segunda-feira, 8 de abril de 2013

O MITO DA SUPERPOPULAÇÃO

Malthus, pioneiro na ideia de que o mundo não aguentaria tanta gente, previa que a comida do mundo acabaria em 1890. Na década de 60, a ONU (sempre ela) começou a apregoar que isso ocorreria no fim da década de 70. Hoje, 2012, nunca o mundo desperdiçou tanta comida.


Voltava do Recife, casamento de Jorge Ferraz, onde tive o prazer de encontrar os editores desta revista, e olhava Alagoas pela janela. Notei uma imensa área verde, não parecia haver ninguém, e lembrei como se diz por aí que estamos chegando a um ponto de superpopulação no planeta. Mas isso não é verdade.

Junte todas as pessoas do mundo numa única multidão. Cabe todo mundo no Distrito Federal. E nem é muito apertado: pense antes numa missa campal que num show. Dá 0,85m² por pessoa, bem mais tranquilo que um metrô ou um ônibus. Duvida? Pergunte ao Wolfram Alpha:


Ok, mas não dá para colocar toda a humanidade numa multidão. Vamos fazer o seguinte. Vamos dar um lote de 86m² (maior que o meu apartamento) para cada pessoa do mundo. Cabe todo mundo em Minas Gerais:


E isso que não considerei que as pessoas se juntam em famílias e que hoje fazemos construções verticais, os prédios. Muitas vezes acreditamos na balela de superpopulação porque vivemos, a maioria da humanidade, em grandes cidades, e consideramos impossível que se sustente uma densidade assim em todo mundo, esquecendo-nos das áreas inabitadas ou de população muito esparsa, que formam a maioria do território.

Malthus, pioneiro na ideia de que o mundo não aguentaria tanta gente, previa que a comida do mundo acabaria em 1890. Na década de 60, a ONU (sempre ela) começou a apregoar que isso ocorreria no fim da década de 70. Hoje, 2012, nunca o mundo desperdiçou tanta comida.

Há fome no mundo, e sempre houve. As causas são complexíssimas, mas o excesso de gente não é uma delas. Guerras, pobreza, má distribuição, ganância, concorrem para a fome muito mais que o excesso de pessoas.

A pobreza, contudo, tem uma maneira eficaz de ser combatida: mais gente no mundo! Quanto mais braços a trabalhar, mais riqueza é produzida. E isso torna-se óbvio ao ver o êxodo rural de meados do século XX, em que muitos pais de família foram “sozinhos pra capital”, como diz bela canção de Caetano Veloso. A cidade, com todos os seus problemas, exatamente por ser uma concentração enorme de pessoas, permite uma geração de riqueza mais eficaz.

Além de falta de espaço e de comida, outros problemas podem ser elencados em relação ao crescimento populacional, como a geração de lixo, e o uso de outros recursos que não alimentos. Para estes últimos, a inovação científica e tecnológica, aliada à geração cada vez mais eficiente de riquezas, tem andado em ritmo mais veloz que o aumento populacional. O lixo depende de novas ideias e uma nova (ou antiga) maneira de entender o consumo.

A diminuição da população, contudo, traz problemas reais.

É natural na história que os jovens sustentem os velhos quando esses param de trabalhar, como um dever de justiça; o próprio sistema previdenciário é baseado nessa ideia. O aumento da expectativa de vida, juntamente com a queda nas taxas de natalidade, tornou mais difícil (e cada vez mais raro) que isso fosse cumprido, e frustrou cálculos previdenciários feitos há 60 anos. Diversos países que tiveram a sua taxa de natalidade diminuída nos tempos recentes hoje vivem crises gravíssimas de previdência social.

Alguns países já percebem o mal que a diminuição populacional causa, e começam a enfrentar o problema. Vários países europeus, que sofreram um inverno demográfico voluntário e hoje têm medo de uma dominação islâmica meramente numérica (já que esses últimos não se negam a ter filhos), hoje dão inúmeras benesses a quem tenha filhos, chegando ao ponto de dar um valor fixo em dinheiro por mês a cada um que se tenha. Em Cingapura foi feita uma campanha de extremo mau gosto para que as pessoas dedicassem certa noite (a Menthos National Night) à reprodução.

O fato: não há superpopulação. O tamanho da população mundial nunca trouxe problemas por ser grande mas, ao contrário, onde falta gente abundam problemas. Para mais informação, recomendo a visita a este site:http://overpopulationisamyth.com.



Luís Guilherme Pereira é engenheiro de computação e colunista do site da revista Vila Nova, no qual foi publicado este artigo.

domingo, 7 de abril de 2013

PORQUE O BRASIL NÃO CRESCE MAIS?


Em 2011, quando foi dada a notícia de que o Brasil havia ultrapassado o Reino Unido em termos do Produto Interno Bruto (PIB), a euforia foi grande. Para o governo brasileiro, este evento foi interpretado como consequência de sua própria política econômica e como um prognóstico de que em pouco tempo o Brasil iria ultrapassar também as outras grandes economias e encostar na China e nos Estados Unidos. Exatamente por isso, foi grande a decepção quando, pouco tempo depois, a economia brasileira se estagnou e perdeu — na verdade, devolveu — para o Reino Unido o sexto lugar no ranking das maiores economia do mundo.

A pergunta que agora se faz é: o forte crescimento da economia brasileira nos anos anteriores a 2011 representou um sinal de um novo padrão de crescimento econômico para o Brasil ou será que toda aquela bonança econômica foi apenas um ponto fora da curva? No primeiro cenário, o fraco crescimento econômico atual seria apenas algo temporário, de modo que o Brasil voltará em breve a crescer novamente. Porém, uma análise mais profunda do desempenho econômico do Brasil aponta para o segundo cenário: o fraco crescimento econômico atual sinaliza um retorno ao padrão antigo, com longas estagnações.

Porém, dado que o governo atual vai fazer todo o possível para voltar a apresentar altas taxas de crescimento econômico, é de se esperar uma intensa aplicação de todo o arsenal de políticas macroeconômicas com o intuito de se fabricar um crescimento artificial. A consequência disso é que o alívio temporário será pago com uma debilidade econômica ainda maior no futuro. 

Crescimento fraco

Desde 2011, a economia brasileira entrou numa fase de debilidade, com uma rápida queda das taxas do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país (veja figura 1).



Figura 1: Taxas de crescimento do PIB 2010 - 2012 (Trimestre sobre mesmo trimestre do ano anterior



Como se pode observar no seguinte gráfico (figura 2), depois da crise cambial de 1999, o Brasil experimentou uma fase de produção abaixo da trajetória de longo prazo, fase esta que foi seguida por uma forte recuperação de 2004 até 2010, a qual empurrou o produto interno bruto brasileiro para cima da tendência do PIB de longo prazo.



Figura 2 - PIB em bilhões de dólares 1980-2012

Porém, durante essa fase de forte crescimento econômico do PIB, a taxa do crescimento da produção industrial permaneceu fraca.



Figura 3 — Taxas anuais do crescimento da produção industrial 1995-2012

No setor industrial, a taxa de crescimento se tornou negativa em 2012, gerando preocupações quanto a uma onda de "desindustrialização". No entanto, a fraqueza do setor industrial brasileiro não é de modo algum algo novo. Com uma taxa média de crescimento anual de apenas 2,6 % desde o começo dos anos 1990, o Brasil nunca chegou a completar o processo de industrialização.

O conjunto dos dados (figuras 1-3) fortalece a tese de que a atual fraqueza do crescimento da economia brasileira sinaliza um retorno à sua tendência histórica. Dado que a debilidade da produção industrial não mudou e continua fraca, foram fatores temporários que atuaram para gerar o crescimento econômico acima de sua trajetória nos anos de 2004 até 2010. 

Como a capacidade produtiva do Brasil não aumentou de forma sustentável, as baixas taxas de crescimento econômico vivenciadas desde 2011 indicam um retorno a uma trajetória de crescimento mais baixa do que a da última década. Este retorno pode acontecer em tempo mais curto, na forma de uma forte recessão, ou em um período de tempo mais prolongado, configurando uma estagnação.

Uma breve bonança

A boa conjuntura que o Brasil vivenciou de 2004 até 2010 foi mal interpretada pelo governo, que tomou a fase de crescimento forte como uma conquista da sua própria política econômica. Na verdade, a prosperidade veio de fora, com a alta dos preços das exportações brasileiras (veja figura 4).



Figura 4 - Índice de preços das exportações brasileiras (1980- 2012)

Aplicando menos de 20% do PIB em investimentos (figura 5), nada foi preparado durante esta fase de bonança para fortalecer a capacidade produtiva do país.



Figura 5 - Investimentos em porcentagem do PIB (1980 - 2012)

O governo brasileiro parece ser incapaz de reconhecer que uma expansão econômica totalmente baseada no consumo, sem investimentos, é uma medida que pode funcionar apenas no curto prazo. Para crescer no longe prazo, é necessário haver acumulação de capital, e a acumulação de capital requer investimentos, que, em sua vez, necessita de poupança.

O que possibilitou o crescimento econômico sem a concomitante expansão da base produtiva da economia por meio de investimentos foi uma mudança radical da tendência dos termos de troca, a relação entre o preço dos bens de exportação e o preço dos bens de importação do Brasil. Em termos de pontos do índice, os termos de troca do Brasil alcançaram um máximo de 132,6 pontos em setembro 2011, tendo atingido um mínimo 64,7 em outubro de 1981.


Figura 6 - Índice dos termos de troca (1980-2012)

Analisando os termos de troca do Brasil — utilizando unidades constantes da moeda local — para um período mais longo, nota-se de forma ainda mais clara a grande mudança que aconteceu a partir de 1967. 



Figura 7 - Termos de troca em constantes unidades de moeda local (constant LCU), 1967-2012O forte disparo visto nos preços dos bens de exportação e a consequente melhoria da posição do Brasil no comércio exterior coincidiu com o aumento global dos preços das commodities. O aumento dos preços dos bens exportados pelo Brasil em relação aos preços dos bens importados foi consequência da alta global dos preços das commodities. Nada teve a ver com uma revitalização da economia brasileira.

Outro indicador desta profunda mudança é o comércio do Brasil com a China. Preços altos e uma aceleração na demanda por commodities da China estimularem as exportações e, por conseguinte, o crescimento do PIB do Brasil. Segundo os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, as exportações do Brasil para a China aumentaram de 1,9 bilhão de dólares em 2001 para 30,8 bilhões de dólares em 2010. 

Das exportações de 2010, 83,7 % foram de commodities básicas e 11,8 % foram semimanufaturados. Somente 4,5 % foram de produtos manufaturados. Ao mesmo tempo, as importações da China para o Brasil foram de 25,6 bilhões de dólares, sendo que 97,5 % foram produtos manufaturados.

Uma nova síntese se formou no mundo: o Brasil é o gigante da agricultura e dos recursos naturais e a China é o novo gigante da indústria. Enquanto a China se industrializou, o Brasil se enfraqueceu; e enquanto China desfrutou de altas taxas de investimentos, o Brasil se entregou a uma mania consumista.

Crescimento sem fundamentos

No contexto da história econômica do Brasil, a atual debilidade da economia brasileira não é uma grande surpresa. Mais um voo de galinha não seria uma exceção, mas sim a regra do padrão do desenvolvimento econômico brasileiro. A liderança política do país usufrui o duvidoso privilégio de, em decorrência da imensa riqueza do Brasil em termos de recursos naturais e de suas benevolentes condições geográficas, quase nunca ser punida mesmo quando comete erros graves de política econômica.

Durante a sua história, o Brasil já vivenciou diversas crises econômicas. Mesmo durante as poucas guerras em que o país se envolveu, o sofrimento foi pequeno em comparação ao de muitos outros países. No entanto, é esta bem-aventurança da falta de punição imediata quando uma má política é implantada o que impede que o país viva seu pleno potencial. A proteção contra erros faz com que os governos brasileiros não aprendam quase nada com as trapalhadas que cometem. Assim, a capacidade do Brasil de efetivamente realizar o seu potencial de prosperidade é tragicamente baixa.

Crescimento econômico requer acumulação de capital, que por sua vez requer investimentos, sendo que investimentos requerem poupança. Mesmo a inovação e o aumento da qualidade do capital humano precisam de poupança. A baixa taxa de poupança do Brasil não é um fenômeno recente, mas sim uma característica típica da economia brasileira. Ao passo que países emergentes que estão decolando em termos de desenvolvimento econômico apresentam taxas de poupança e de investimentos na faixa de 30 % e 40 % do PIB, como a China, a taxa de poupança brasileira esta abaixo de 20 %.



Figura 8 — Taxa de poupança bruta brasileira em porcentagem do PIB, 1967- 2012

Fonte: Indicadores do Banco Mundial. Trading Economics




Figura 9 — China. Taxa de poupança bruta em porcentagem do PIB, 1967-2012

Fonte: Indicadores do Banco Mundial. Trading Economics

Com taxas de investimento tão baixas como as do Brasil, o país está destituído dos fundamentos necessários para um progresso econômico sólido de longo prazo. O que estes débeis fundamentos permitem são apenas pequenosbooms de curto prazo, na forma do voo de galinha — afinal, estas baixas taxas de poupança e investimento do Brasil não são um fenômeno recente, mas sim uma característica crônica da macroeconomia brasileira.

Intimamente relacionada à raquítica formação de capital — em decorrência da baixa poupança — está a produtividade da economia brasileira. Entre 17 países da América Latina, o Brasil ocupa o 15º lugar em produtividade; e na escala global, o país está na 75ª posição entre 122 países. Nas décadas passadas, enquanto muitos outros países emergentes aumentaram a produtividade de suas economias em relação aos Estados Unidos, o Brasil perdeu em relação a eles.

A produtividade econômica é a chave da prosperidade. O grau de produtividade representa um determinante essencial para o nível de salários. O verdadeiro mecanismo de saída da pobreza é o aumento da produtividade, e não a distribuição de esmolas. Para colocar o Brasil no caminho de prosperidade não basta jogar com a macroeconomia como se ela fosse uma bola pingue-pongue. O que o país precisa é de uma estratégia de desenvolvimento econômico de longo prazo, direcionada para o aumento da produtividade. Porém, isto requer acumulação de capital e inovação — algo que é impossível de se obter sem altas taxas de poupança e investimentos.

O que fazer para o Brasil crescer?

A maldição do Brasil é a abundância. Não necessariamente a abundância na forma de recursos naturais, mas sim a abundância excessiva de burocracia, de intervencionismo, de protecionismo, de voluntarismo político, e até mesmo de democracia.

O Brasil não sofre só da inflação monetária; sofre também de uma inflação de leis e regulamentações. Não bastasse a incerteza de se gerenciar empresas no Brasil já ser alta, esta incerteza se multiplica por causa do intervencionismo arbitrário do governo; e se este já não fosse demasiado agigantado, a economia brasileira também é forçada a suportar um poder judiciário que adora se intrometer em áreas onde o livre mercado é capaz de encontrar as melhores soluções.

Ao mesmo tempo em que os políticos fazem o que querem com a economia e os burocratas criam leis e regras que não fazem sentido, a super-poderosa justiça brasileira completa a confusão com decisões que paralisam a iniciativa privada. Em todas aquelas áreas da economia em que os agentes necessariamente se pautam por um horizonte de tempo maior — como poupança e investimento, infraestrutura, inovação e educação —, há uma total paralisia. O país sofre com uma péssima infraestrutura, o desempenho em inovação é fraco e o sistema educacional é dos piores do mundo. 

Se de um lado o governo pratica um hiperativo intervencionismo, intrometendo-se em áreas onde o livre mercado é mais eficiente do que qualquer burocracia, de outro ele mostra uma generosa negligência em relação a áreas cruciais, como infraestrutura e educação. Ainda pior do que essa negligência é o fato de ele criar leis e regulamentações que atrapalham e até mesmo proíbem a iniciativa privada de atuar nestas áreas. 

Conclusão

Há poucos países no mundo cujas condições são tão favoráveis para uma grande prosperidade quanto o Brasil. Porém, uma mentalidade favorável ao intervencionismo estatal e burocrático produz uma atitude de procrastinação permanente que atravessa todo o espectro da sociedade brasileira. O Brasil parece aquele sujeito que tem uma casa grande e bela, mas com vários buracos no telhado que precisam ser reparados. Quando o tempo está bom, ele acha que não há necessidade de consertar os buracos; e quando chove, ele diz que não pode fazer nada agora porque o tempo está ruim.

A principal causa da paralisia do país perante a urgente necessidade de se arrumar as condições para possibilitar um futuro melhor é a onipresença do estado brasileiro. Este estado intervencionista obstrui todas as atividades privadas. A economia brasileira se encontra permanentemente bombardeada por imprevisibilidades e por uma total ausência de lógica e de bom senso nas medidas intervencionistas do governo, as quais visam apenas ao curtíssimo prazo. O resultado é uma economia de produtividade extremamente baixa em conjunto com uma renda não somente baixa, mas também mal distribuída.

O que bloqueia o país não é a falta de "inclusão social" ou outras quimeras. O que bloqueia o progresso do Brasil é a crença quase absoluta no poder do estado e uma forte desconfiança na eficiência do livre mercado. O grande mistério da cultura brasileira é a contradição entre esta ideologia que idolatra o estado e a visível realidade gerada por esta ideologia.

Antony Mueller é doutor pela Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha (FAU) e, desde 2008, professor de economia na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde ele atua também no Centro de Economia Aplicada. Antony Mueller é fundador do The Continental Economics Institute (CEI) e mantém em português os blogs Economia Nova e Sociologia econômica. Ele vai administrar o curso online "Patologias macroeconômicas -- Como governos e bancos centrais provocam inflação, desemprego e crises econômicas" do Instituto Mises Brasil a partir de 9 de Abril de 2013.

NA CONTRAMÃO DA MODERNIDADE

O mundo moderno das relações empresariais e trabalhistas caminha rumo à flexibilização, à agilidade e à redução de custos. Ninguém pode ficar imune a um processo que, por seu caráter global, faz padecer aqueles que desconsideram essa nova realidade.


Engessar relações trabalhistas e considerar setores produtivos de uma forma segmentada fazem com que toda a nação termine por pagar um preço exorbitante pelo desconhecimento das transformações em curso.

As novas redes de produção estão baseadas em crescente especialização, em que cada elemento ou elo oferece sua vantagem competitiva, de forma que todos saiam ganhando.

A recente decisão da Justiça do Trabalho de Matão (SP), a partir de uma ação proposta pelo Ministério Público do Trabalho, vai na contramão dessa tendência.

Ela condenou as maiores indústrias de suco de laranja do país (Cutrale, Citrosuco e Louis Dreyfus Commodities) a pagar indenização de R$ 400 milhões por dano moral coletivo que teria sido causado --e esse é o problema-- pela terceirização indevida de trabalhadores no plantio e colheita de laranja.

Ora, o plantio e a colheita, assim como o transporte de frutos ou de grãos, são atividades por si mesmas, que seguem regras próprias e nada têm a ver com uma suposta terceirização de mão de obra indevida.

Não se trata de forma de precarização das relações de trabalho ou de fazer com que trabalhadores levem uma vida insalubre, prática que, evidentemente, condenamos.

Terceirização no bom sentido significa, nesse caso, que empresas processadoras e comerciantes de sucos, assim como empreendedores rurais, forneçam, cada um, o que de melhor têm de si. Especializações respectivas auferem ganhos coletivos.

Não há mais sentido, nas redes de produção modernas, em separar como realidades distintas atividades-meio de atividades-fim. Elas se entrelaçam de uma forma indissociável, pois, segundo a perspectiva, fim se torna meio, e meio, fim. O mundo contemporâneo vive, precisamente, da diferenciação e da interface dessas perspectivas.

Se um empreendedor rural opta pela produção e pela colheita de um determinado produto, trata-se de algo que se origina de uma escolha sua, sendo dela responsável, inclusive do ponto de vista trabalhista.

O que é inaceitável é que tal empreendedor venha a ser considerado, pela Justiça do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho, como um mero intermediário, um eventual ludibriador da legislação trabalhista ou, até mesmo, um trabalhador assalariado velado. A livre escolha é um princípio da moderna sociedade.

Consoante com o espírito do tempo, tramita no Senado o projeto de lei nº 87, de 2010, de autoria do senador Eduardo Azeredo, que procura introduzir um novo conceito de terceirização, em acordo com a modernização necessária de nossas relações sociais e econômicas. Segundo esse novo espírito, cabe considerar de outra maneira as relações civis entre empresas, cada uma responsável por suas próprias relações trabalhistas, em um espírito de parceria e de respeito à lei.

A justificativa desse projeto de lei diz o seguinte: "Nenhuma empresa pode fazer tudo. Há mais eficiência quando empresas de diferentes especializações formam redes de produção, nas quais cada uma faz a sua parte".

Grandes empresas do agronegócio se veem, assim, diante da maior insegurança jurídica, o que pode causar enorme prejuízo do ponto de vista de suas exportações.

Empresas concorrentes a nível internacional, por exemplo, podem aproveitar situações desse tipo para falar de condições insalubres ou precárias de mão de obra, visando ao fechamento de nossos mercados.

A opinião pública internacional é facilmente manipulável, sobretudo no que diz respeito ao Brasil. O país joga contra si mesmo.

O imperativo diante do qual estamos é o de não nos colocarmos na contramão de uma modernização necessária. Urge, portanto, que o Congresso Nacional assuma essa questão, elaborando novas leis que deem conta de um mundo também novo. Por: Kátia Abreu Folha de SP

sábado, 6 de abril de 2013

DEZ OBJEÇÕES TÍPICAS AO ANARQUISMO LIBERTÁRIO

Obs: O texto a seguir é a transcrição de um discurso improvisado. Daí seu tom mais coloquial.

Gostaria de abordar aqui algumas das principais objeções apresentadas ao anarquismo libertário. Tentarei responder a cada uma delas. Porém, antes de começar, não faria muito sentido eu tentar retrucar objeções a uma determinada visão de mundo sem antes oferecer alguma razão positiva para defender esta visão de mundo. Sendo assim, gostaria de explicitar rapidamente aquilo que creio ser um argumento positivo em prol do anarquismo libertário para, logo em seguido, fazer sua defesa contra suas principais objeções.

O argumento em defesa do anarquismo libertário

Problemas com o monopólio forçado

Pense desta forma: o que haveria de errado em se ter um monopólio da produção de sapatos? Suponha que eu e minha gangue sejamos as únicas pessoas que podem legalmente fabricar e vender sapatos. Ninguém mais pode, a menos que eu autorize. O que há de errado neste arranjo?

Para começar, de um ponto de vista puramente moral, a pergunta é: por que nós? O que há de tão especial em relação a nós para desfrutarmos deste monopólio? De onde foi que minha gangue e eu tiramos esse direito de que somente nós podemos fabricar e vender algo e que ninguém mais tem o direito de fazer o mesmo? Por que somente nós podemos ofertar um bem ou serviço que ninguém mais tem o direito de ofertar? 

Até onde se sabe, sou apenas um ser humano tão mortal quanto qualquer outro. Logo, de um ponto de vista moral, qualquer outra pessoa deve ter o mesmo 'direito' a este privilégio.

Logo, de um ponto de vista pragmático, qual é a consequência mais provável de minha gangue e eu termos o monopólio da produção de sapatos? Em primeiro lugar, há o problema dos incentivos. Se eu sou a única pessoa que tem o direito de fabricar e vender sapatos, você provavelmente não irá conseguir de mim sapatos muito baratos. Posso cobrar de você o tanto que eu quiser. Só não irei cobrar caro demais porque você pode acabar decidindo que é melhor não me dar dinheiro e ficar sem os sapatos. Porém, desde que você esteja disposto a comprar sapatos e tenha o dinheiro para tal, irei cobrar de você o maior preço que puder — como não há concorrência, você não tem outra opção. 

Da mesma maneira, e pelos mesmos motivos, você também não deve esperar que meus sapatos sejam de alta qualidade, pois, desde que eles sejam minimamente úteis, você irá preferir calçá-los a andar descalço — e, sendo assim, irá comprá-los de mim. 

Além dessa probabilidade de que os sapatos serão caros e de baixa qualidade, há também o fato de que eu ser a única pessoa que pode fabricar e vender sapatos me concede um grande poder de chantagem sobre você. Suponha que eu não goste de você. Suponha que você tenha me ofendido em outra ocasião. Eu simplesmente não irei vender sapatos para você — pelo menos por algum tempo, enquanto meu humor não melhorar. Logo, tal privilégio monopolista também me concede a capacidade do 'abuso de poder'.

No entanto, os problemas não se resumem apenas à questão dos incentivos. Suponha que eu seja um genuíno e perfeito santo, e esteja verdadeiramente disposto a fabricar os melhores sapatos possíveis para você, e a cobrar o menor preço que eu puder. Eu realmente não irei, em momento algum, abusar do meu poder, pois sou uma pessoa totalmente confiável; sou um príncipe entre os homens (não no sentido maquiavélico). Ainda assim haverá um problema incontornável: como saberei se realmente estou fazendo o melhor trabalho possível com estes sapatos? Afinal, não há concorrência. 

Sim, eu poderia fazer uma pesquisa junto aos consumidores para tentar descobrir que tipo de sapato eles querem. Mas o problema é que há várias maneiras distintas de se fabricar sapatos. Há métodos mais caros e há métodos mais baratos. Se não há um mercado na área de fabricação de sapatos, não há formação de preços para os métodos de produção empregados na fabricação de sapatos. Sem formação de preços, não há como eu calcular os métodos mais eficientes para se produzir sapatos. E, igualmente, por não haver um livre mercado na venda de sapatos, não há também formação de preços nesta área. Sem saber ao certo o preço de venda, e sem ter como calcular os métodos mais eficientes para se produzir sapatos, não terei como calcular custos, e minha contabilidade de lucros e prejuízos estará impossibilitada. Terei simplesmente de recorrer ao método da adivinhação. 

Portanto, mesmo que eu realmente esteja fazendo o meu melhor, a quantidade de sapatos que irei fabricar e a qualidade que empregarei podem não ser as mais bem indicadas para satisfazer as preferências das pessoas, e terei enormes dificuldades para descobrir o melhor procedimento.

O governo é um monopólio forçado

Portanto, estas são todas as razões para não se ter um monopólio na fabricação e na venda de sapatos. E, ao menos à primeira vista, estas também são boas razões para que absolutamente ninguém detenha um monopólio da oferta de serviços judiciários, de adjudicação de contendas, de proteção de direitos, e de todas as coisas relacionadas àquilo que pode ser mais amplamente chamado de exercício das leis.

Em primeiro lugar, há a questão moral: por que um pequeno agrupamento de pessoas deveria deter o direito de ser a única organização dentro de um dado território autorizada a oferecer certos tipos de serviços legais ou a poder impingir certos tipos de leis?

E há também as questões econômicas: quais serão os incentivos? Repetindo, trata-se de um monopólio. Parece bastante provável supor que, tendo consumidores cativos, essa organização monopolista irá cobrar preços maiores e ofertar serviços piores do que os que seriam praticados em um ambiente concorrencial. Pode até mesmo ocorrer eventuais abusos de poder. 

E, mesmo que fosse possível evitar todos estes problemas — colocando exclusivamente anjos e santos no governo —, ainda haveria o problema do cálculo econômico, tornando impossível saber se a maneira específica como esse grupo está ofertando seus serviços legais é realmente a melhor maneira. Dado que não há concorrência, este grupo de pessoas não tem como saber se o que está fazendo é realmente a melhor e mais bem-sucedida atividade que ele pode empreender. A única maneira de descobrir sua aptidão será tentando descobrir na prática o que e o que não irá funcionar. Quem gostaria de ser a cobaia?

Logo, o propósito destas considerações é justamente o de jogar o ônus da prova para o defensor do monopólio estatal. Sempre que um defensor do monopólio estatal de serviços jurídicos e de defesa levantar algumas objeções à livre concorrência nesta área, ele deve ser questionado sobre como é possível o monopólio destes serviços funcionar de maneira sequer razoável.

Dez objeções ao anarquismo libertário

(1) O governo não é um monopólio coercivo

Uma objeção que frequentemente é lançada não é exatamente uma objeção ao anarquismo, mas sim uma objeção ao argumento moral em prol do anarquismo: dizer que o governo, na realidade, não é um monopóliocoercivo.

Segundo este argumento, os cidadãos, ao aceitarem viver dentro das fronteiras de um determinado território e ao aceitarem os benefícios que o governo oferece — por exemplo, serviços policiais, jurídicos, educacionais, de saúde etc. —, estão na prática consentindo com este arranjo. Eles estão consentindo com o sistema vigente. 

A ideia é a mesma de quando você vai a um restaurante e pede uma carne. Ao fazer isso, você não tem de dizer explicitamente que você está concordando em pagar por aquele carne; há simplesmente um entendimento tácito de que é isso que você fará. Ao se sentar à mesa do restaurante e pedir a carne, você está automaticamente concordando em pagar por ela.

O argumento seria o mesmo para a não-coercividade do estado. Se você reside dentro de um determinado território e aceita, por exemplo, os benefícios da proteção policial fornecida pelo estado local, então você implicitamente aceitou obedecer a todas as ordens desta organização. 

Logo de cara, observe que, mesmo que este argumento fosse válido, ele ainda não resolve a questão pragmática sobre a funcionalidade deste sistema; ele não explica por que este é o melhor arranjo possível.

Mas há outros problemas com este argumento. É realmente verdade que, se eu for à propriedade de alguém, então há um consenso tácito de que, enquanto eu estiver nessa propriedade, eu tenho de seguir as regras locais. Se eu não quiser seguir as regras locais, então eu tenho de ir embora. 

Ou seja, eu convido você para vir à minha casa. Quando você chega, eu abro a porta e lhe digo: para ficar aqui em casa, você tem de usar este nariz de palhaço. Isto certamente vai lhe parecer bastante estranho, mas ainda assim eu posso dizer: "Ei, é a minha casa e estas são minhas regras. Se quiser entrar, tem de ser assim". Neste caso, sendo eu o proprietário, você não pode simplesmente dizer: "Olha, eu vou entrar na sua casa, sim, e não vou usar o nariz de palhaço." Se fizesse isso, você estaria invadindo a minha propriedade e desrespeitando as leis vigentes dentro dela, as quais foram estipuladas antes da sua entrada. Isso, portanto, é algo que você nãotem o direito de fazer.

Agora, imaginemos o cenário contrário. Suponha que eu vá à sua casa e lhe diga: "Você tem de usar um nariz de palhaço". Além do espanto total, sua outra provável reação será a de perguntar quando foi que você disse que concordava em ser obrigado a utilizar um nariz de palhaço dentro da sua casa. Ao que irei responder: "Ora, você se mudou para perto de mim. E eu uso nariz de palhaço na minha casa. Portanto, o simples fato de você estar morando perto de mim significa que você, de uma maneira um tanto mística e tácita, consente em também utilizar nariz de palhaço dentro da sua casa, mesmo que você não goste da ideia."

As pessoas que defendem o monopólio estatal simplesmente pegam este cenário que é evidentemente absurdo em nível local e o expandem para um nível nacional: se você está aqui, então você deu seu consentimento tácito com tudo o que se passa nele. Tais pessoas já partem da pressuposição de que o governo possui uma jurisdição legítima sobre um determinado território, de modo que quem está nele está automaticamente concordando com todas as regras vigentes.

O problema de tal raciocínio é que ele pressupõe exatamente aquilo que ele está tentando provar — no caso, que esta jurisdição sobre o território é legítima. No entanto, caso não se consiga provar que tal jurisdição é legítima, então se conclui que o governo é simplesmente apenas mais um grupo de pessoas que vive neste amplo território geográfico. 

O que nos leva a outro ponto. Eu vivo em minha propriedade. Não sei bem quais são as determinações do governo em relação ao resto do país, mas sei que vivo em minha propriedade e ela pertence a mim, e não ao governo. Logo, o fato de que estou vivendo "neste país" significa que estou vivendo em uma determinada região geográfica sobre a qual o governo possui certas pretensões. Logo, a questão é: estas pretensões são legítimas? Se o objetivo é justamente provar que elas são legítimas então não é válido já partir do pressuposto de que elas são legítimas. Pressupor algo não significa comprovar sua legitimidade.

Outro problema com este argumento do contrato social implícito é que ele não deixa claro qual exatamente é o contrato. Quando vou a um restaurante e peço comida, todos sabem perfeitamente qual é o contrato. Sendo assim, neste arranjo é válido apresentar o argumento do consentimento implícito. Porém, ninguém jamais diria que você pode comprar um imóvel desta mesma maneira. Para a compra de imóveis, as regras são outras. Ninguém diz que "Você meio que concordou com a compra ao ter balançado positivamente sua cabeça quando lhe mostrei o tamanho do banheiro". Você tem de ver o que realmente está escrito no contrato. Com o que exatamente você está concordando? Um contrato não é claro se ninguém sabe exatamente quais são seus detalhes. 

(2) Hobbes: o governo é necessário para a cooperação

Provavelmente, o mais famoso argumento contra a anarquia é o de Thomas Hobbes. O argumento de Hobbes é o de que a cooperação humana — a cooperação social — requer a existência de uma estrutura legal. O motivo de podermos confiar uns nos outros é que sabemos que existem forças legais que irão nos punir caso violemos os direitos de terceiros. Eu sei que eles irão me punir se eu violar seus direitos, e você sabe que eles irão lhe punir caso você viole meus direitos. Sendo assim, posso confiar em você sem conhecer seu caráter pessoal. Tenho apenas de confiar no fato de que você estará intimidado pela lei. 

Portanto, a cooperação social requer este arcabouço legal impingido à força pelo estado.

O problema é que, neste raciocínio, Hobbes está pressupondo várias coisas de uma só vez. Primeiro, ele está pressupondo que não é possível haver cooperação social sem leis. Segundo, ele está pressupondo que nenhuma lei realmente existe se ela não for impingida pela força física. E terceiro, ele está pressupondo que só é possível haver leis impingidas pela força física se tal força física for monopólio do estado.

Mas todas estas pressuposições são falsas. 

Em primeiro lugar, a cooperação pode surgir, e de fato surge, em um ambiente sem leis específicas. Ela pode não ser tão eficiente quanto seria em um ambiente com leis, mas ela ocorre. Há o livro de Robert Ellickson, Order Without Law, no qual ele fala sobre como vizinhos são capazes de resolver voluntariamente suas pendências. Ele também mostra um exemplo de o que acontece quando a vaca de um fazendeiro sai de suas delimitações e vai pastar na grama de outro fazendeiro, e de como eles resolvem o problema por meio de acordos consuetudinários, pois não há nenhum arcabouço legal voltado para esta situação específica. Talvez estes exemplos não sejam suficientes para economias complexas, mas certamente mostram que é possível haver algum tipo de cooperação sem a existência de um arcabouço jurídico específico.

Ademais, é possível existir um arcabouço legal que não seja impingido pela força. Um exemplo seria a Lex mercatoria do final da Idade Média: um sistema de leis comerciais que era mantido por ameaças de boicote. O boicote não é um ato de força. Os mercadores faziam seus contratos e, se algum deles desobedecesse as cláusulas, os tribunais simplesmente tornariam público que "esta pessoa não cumpriu o contrato pré-estabelecido; levem isso em consideração caso venham a firmar algum contrato com ela no futuro".

Por fim, é possível existir sistemas jurídicos formais que façam uso da força e que não sejam monopolistas. Dado que Hobbes nem sequer considerou esta possibilidade, ele não forneceu nenhum argumento contra ela. Mas é possível encontrar vários exemplos ao longo da história. Na Islândia medieval, por exemplo, não havia uma agência centralizada de imposição de leis. Embora houvesse algo que, com algumas concessões, pudesse ser chamado de governo, este não possuía absolutamente nenhum braço executivo. Não havia polícia, não havia soldados, não havia nada. Havia uma espécie de sistema judiciário que funcionava em bases concorrenciais. A aplicação de sanções ficava a cargo de quem quisesse. E vários sistemas se desenvolveram para cuidar disso.

(3) Locke: três "inconveniências" da anarquia

Os argumentos mais interessantes são de John Locke. Locke argumenta que a anarquia possui três características que ele considera serem "inconveniências". "Inconveniência", vale ressaltar, é um termo que soava mais grave no inglês do século XVII do que no inglês moderno. Seja como for, Locke referia-se meramente a "inconveniências" porque, ao contrário de Hobbes, ele acreditava que a cooperação social poderia sim existir de algum modo na anarquia. Ele era mais otimista do que Hobbes. Ele imaginava que, por causa de uma mescla entre afinidades morais e interesse próprio, a cooperação podia surgir.

Mas ele temia três problemas. Um problema, segundo ele, era que não haveria um conjunto de leis gerais que fosse conhecido, entendido e acordado por todos. As pessoas poderiam aceitar certos princípios básicos das leis da natureza, mas suas aplicações e seus detalhes exatos sempre seriam controversos. Afinal, nem mesmo libertários concordam plenamente entre si. Eles podem concordar em aspectos gerais, mas sempre estão discutindo acerca de vários pontos específicos. Logo, mesmo em uma sociedade composta exclusivamente por libertários pacíficos e cooperativos, haverá desavenças acerca de detalhes. E, sendo assim, a menos que haja um conjunto de leis gerais, o qual todo mundo conheça e com o qual todo mundo concorde, de modo que cada indivíduo sabe exatamente o que pode e o que não pode fazer, o arranjo não irá funcionar. Esse era o primeiro argumento de Locke. É necessário haver um conjunto universal de leis, amplamente conhecido, que seja aplicável a todos e que todos conheçam antecipadamente.

Um segundo problema seria a questão do poder de aplicação e imposição das leis. Locke imaginava que, sem um governo, não haveria um poder suficientemente unificado capaz de impingir o cumprimento das leis. Sem um governo, haveria apenas indivíduos impingindo coisas por conta própria. Mas dado que indivíduos são fracos e não são suficientemente organizados, eles poderiam facilmente ser sobrepujados por uma quadrilha de bandidos ou algo do tipo.

O terceiro problema é o fato de que, segundo Locke, não se pode deixar que indivíduos sejam os juízes de seus próprios processos. Se duas pessoas têm uma desavença, uma delas não pode simplesmente dizer "Eu sei qual é a lei natural e irei aplicá-la a você". As pessoas são tendenciosas e irão obviamente utilizar aquela interpretação da lei natural que favoreça de modo mais plausível a sua própria causa. Logo, Locke acreditava que não se podia deixar que as pessoas fossem os juízes de seus próprios processos. Consequentemente, seria moralmente necessário que elas aceitassem se submeter a um arbitrador, a um terceiro — e este teria de ser o estado.

Estes são os três problemas que Locke imaginava serem prementes em uma anarquia, e os quais não existiriam sob um governo — ou pelo menos não sob o tipo certo de governo. 

Porém, ouso dizer que o problema é justamente o oposto. É justamente a anarquia que pode resolver todos estes três problemas, ao passo que o estado, por sua própria natureza, está totalmente impossibilitado de resolvê-los.

Comecemos com um exemplo em que haja universalidade, isto é, em que haja um conjunto de leis universalmente conhecidas e aplicáveis a todos. Pode este arranjo surgir em um sistema sem estado? Ora, a Lex mercatoria surgiu exatamente porque os estados não estavam fornecendo este tipo de lei. Um dos fatores que contribuiu para o surgimento da Lex mercatoria foi a ausência de uma lei comum entre as nações da Europa. Cada país possuía diferentes conjuntos de leis para reger os comerciantes. Todas as leis eram diferentes. E um tribunal da França não iria endossar um contrato feito na Inglaterra sob as leis da Inglaterra, e vice versa. 

Sendo assim, a capacidade dos comerciantes de incorrerem no comércio internacional foi dificultada pelo fato de que não havia um sistema uniforme de leis comerciais para toda a Europa. Consequentemente, os comerciantes se juntaram e disseram: "Bom, vamos simplesmente fazer alguma lei por nossa conta. Os tribunais estão criando regras malucas e nenhum respeita as decisões dos outros — portanto nós iremos simplesmente ignorá-los e estabeleceremos nosso próprio sistema."

Portanto, este foi um caso em que uniformidade e previsibilidade foram produzidas pelo mercado e não pelo estado. E é possível entender por que isso não é nada surpreendente: afinal, é do total interesse daqueles que ofertam um sistema privado torná-lo o mais uniforme e previsível possível, se for isso que seus cliente querem.

É por esse mesmo motivo que não encontramos cartões de débito ou de crédito triangulares. Até onde se sabe, não existe nenhuma lei proibindo que tais cartões sejam triangulares. Mas se alguém tentasse comercializá-los, eles simplesmente não se tornariam muito populares, pois não se encaixariam em nenhum dos terminais existentes. Quando as pessoas querem diversidade, quando elas querem diferentes sistemas para diferentes pessoas, o mercado proporciona exatamente isso. Mas há algumas coisas para as quais a uniformidade é a melhor solução. Seu cartão de débito será mais útil para você se todas as outras pessoas também estiverem utilizando o mesmo tipo ou pelo menos algum tipo compatível com o seu, de tal modo que todos vocês possam utilizar as mesmas máquinas onde quer que estejam. Consequentemente, se os comerciantes desejam ter lucro, eles proporcionarão uniformidade.  

Portanto, ao contrário dos governos, o mercado possui todos os incentivos para oferecer uniformidade.

Quanto à questão da necessidade de se ter poder suficiente para organizar serviços de proteção e defesa, não há absolutamente nenhum argumento que diga que não é possível haver tal organização sem um estado. A ausência de estado não significa que cada pessoa tem de fabricar seus próprios sapatos. A alternativa a um arranjo em que o governo fornece todos os sapatos não é cada indivíduo tendo de fabricar os seus próprios sapatos. Analogamente, a alternativa a um arranjo em que o governo fornece todos os serviços legais não é cada pessoa tendo de se transformar em agente policial independente. Não há por que supor que elas não poderão se organizar e criar maneiras de suprir esta demanda. Com efeito, se a preocupação é a de não haver força suficiente para resistir a um agressor, então não há nada mais preocupante do que um monopólio estatal. Um monopólio estatal da violência é um agressor muito mais perigoso do que uma gangue de bandidos qualquer porque o monopólio estatal unifica todo este poder de agressão em apenas um ponto de toda a sociedade.

Mas, acima de tudo, eu creio que — e isso é muito interessante — o argumento de Locke sobre você não poder ser o juiz de seu próprio processo é um tiro que realmente sai pela culatra. Em primeiro lugar, tal raciocínio não é um bom argumento a favor de um monopólio porque se trata de uma construção falaciosa. Da alegação de que todo mundo deveria submeter suas contendas a uma entidade externa, Locke falaciosamente infere que deveria haver uma entidade externa para quem todo mundo submeteria suas contendas. Isso é semelhante a dizer que da afirmação todo mundo gosta de pelo menos um programa de TV pode-se inferir que existe apenas um programa de TV do qual todo mundo gosta. Uma coisa simplesmente não decorre da outra. É possível que todo mundo submeta suas contendas a terceiros sem que haja apenas um terceiro a quem todo mundo obrigatoriamente submete suas contendas.

Suponhamos que haja três pessoas em uma ilha. A e B podem submeter suas contendas a C; A e C podem submeter suas contendas a B; e B e C podem submeter suas contendas a A. Logo, não há nenhuma necessidade de haver um monopólio ao qual todas as pessoas deveriam submeter suas contendas.

No que mais, não somente não é necessário um governo, como na verdade um governo é exatamente o arranjo que não satisfaz esse princípio. Pois se você tiver uma contenda com o governo, o governo não irá submeter esta contenda a uma entidade externa. Se você tiver uma contenda com o governo, ela será resolvida em um tribunal do governo (isso se você tiver sorte — caso o governo seja do tipo mais "indelicado", você sequer conseguirá chegar a um tribunal).

Agora, é óbvio que é preferível que o governo seja dividido em três poderes, que haja todo um sistema de pesos e contrapesos e tudo mais. Isso faz com que haja algo um pouco mais parecido com entidades externas. Mas ainda assim tais entidades externas fazem parte do mesmo sistema; os juízes são funcionários do estado e são pagos com dinheiro dos pagadores de impostos. Portanto, existem aproximações melhores e aproximações piores em relação a esse princípio. Ainda assim, dado que se trata de um sistema monopolista, o que temos na prática é algo que, por sua própria natureza, opera sem lei. Em última instância, um sistema monopolista jamais submeterá suas contendas a uma entidade externa.

(4) Ayn Rand: agências de proteção privada irão guerrear entre si

Provavelmente, o argumento mais popular contra a anarquia libertária foi aquele apresentado por Ayn Rand. Suponha que eu creia que você violou meus direitos. Você nega. Eu então decido acionar minha agência de proteção privada para fazer valer meus direitos. Você, para se defender, aciona a sua agência de proteção privada. O que ocorrerá? As duas irão entrar em guerra? Quem garante que não?

A resposta, obviamente, é que ninguém pode garantir que elas não irão guerrear entre si. Seres humanos possuem livre arbítrio. Eles podem fazer todos os tipos de maluquices. Eles podem iniciar guerras sem motivo aparente. O presidente americano, por exemplo, pode apertar o botão nuclear amanhã se ele quiser. 

A questão é: o que é mais provável? Qual dos dois é mais propenso a resolver suas pendengas por meio da violência: governos ou agências de proteção privadas?

A diferença mais óbvia é que agências de proteção privada têm de arcar com todos os custos de sua eventual decisão de fazer uma guerra. Fazer guerra é algo extremamente caro. É péssimo para os lucros. Suponha que você pode escolher entre duas agências de proteção, uma que tende a resolver suas contendas por meio da violência e outra que tende a resolver suas contendas por meio do arbitramento. Se você for um indivíduo belicista, fanático por guerras, você pode até achar legal optar pela agência violenta — até o momento em que você receber sua fatura mensal.

Ainda assim, por mais que você realmente seja um sujeito tão fanático por guerra a ponto de continuar disposto a pagar valores exorbitantes, é certo que a imensa maioria dos outros clientes irá preferir agências que não cobrem toda esta quantia extra apenas para brincar de guerra. 

Por outro lado, tal opção nem sequer existe quando se trata de governo. Para começar, um governo possui clientes cativos, que não podem optar por não pagar, estejam eles de acordo ou não com a violência do governo. Ademais, dado que o governo tributa seus clientes, e dado que seus clientes não podem se recusar a repassar o dinheiro, os governos não apenas não precisam se preocupar com custos, como eles também podem simplesmente externalizar os custos de suas guerras de uma maneira extremamente eficaz: mandando a conta para seus cidadãos pagadores de impostos. Tal eficácia nenhuma agência privada jamais sonharia ser capaz de conseguir.

(5) Robert Bidinotto: não existe um arbitrador supremo para as contendas

Outra objeção comum — esta você encontra, por exemplo, nos escritos de Robert Bidinotto, que é um randiano que já escreveu vários artigos contra a anarquia — é que, em um arranjo sem governo, não há um arbitrador supremo para as contendas. Em um arranjo com governo, em algum momento um arbitrador supremo será chamado e irá resolver a disputa de um jeito ou de outro. Já em um arranjo sem governo, dado que não há nenhuma agência que detém o direito de resolver as contendes de uma vez por todas — ou seja, não há um arbitrador supremo —, tem-se que as contendas de certa forma nunca acabam, podendo nunca ser resolvidas, permanecendo em aberto para sempre.

Qual a resposta a isso?

Creio que nesse caso há uma ambiguidade quanto ao conceito de arbitrador supremo. Normalmente, pensa-se em no termo "arbitrador supremo" de uma forma muito platônica — isto é, alguém ou alguma instituição que, de alguma forma, consegue garantir de maneira absoluta que a contenda está resolvida para sempre; que garanta de maneira absolutamente incontestável a resolução de todas as pendengas. 

Por outro lado, "arbitrador supremo" também pode ser simplesmente alguma pessoa ou algum processo ou alguma instituição que, de uma maneira relativamente confiável e autêntica, garanta na maior parte das vezes que os problemas sejam resolvidos. 

É verdade que, no sentido platônico — no sentido de uma garantia absoluta dada por um arbitrador final —, um arranjo sem governo não pode propiciar tal solução. E nem nenhum outro sistema. Imaginemos uma república constitucional minarquista, do tipo defendido por Bidinotto. Será que haveria um arbitrador supremo neste sistema, algo que garantiria de modo absoluto o fim definitivo de um processo de contenda judiciária? 

Imaginemos: eu sou processado por você. Perco. Apelo. Perco de novo. Apelo para o Supremo Tribunal. Eles ficam contra mim. Faço lobby no Congresso para mudarem as leis para que elas agora me favoreçam. Eles não mudam. Tento então criar um movimento para conseguir fazer uma emenda à Constituição. Não dá certo. Tento então convencer as pessoas a elegerem novos membros para o Congresso que irão votar a favor da emenda. Não consigo. Tento de novo dali a alguns anos. E assim por diante. Observem que, de certa forma, posso continuar para sempre. A contenda não está resolvida.

Na prática, porém, a maioria das contendas judiciais sempre chega a um fim. Chega-se a um ponto que se torna caro demais continuar brigando. Do mesmo modo, em um arranjo sem governo, não há nenhuma garantia de que o conflito não irá se arrastar para sempre. Aliás, existem poucas garantias férreas sobre qualquer assunto. Mas isso não é motivo para esperar que as coisas não funcionem.(6) Leis sobre propriedade não podem surgir no mercado

Outro argumento popular, também muito usado pelos randianos, é que as transações de mercado pressupõem um histórico de leis de propriedade. Você e eu só podemos trocar bens por serviços, ou dinheiro por serviços, ou fazer qualquer outra transação, se já existir leis de propriedade estáveis que assegurem a veracidade dos títulos de propriedade que temos. E dado que o mercado, para funcionar bem, pressupõe a existência de todo um arcabouço de leis de propriedade, tais leis não podem ser elas próprias um produto do mercado. 

Segundo este raciocínio, as leis de propriedade têm de surgir de algum lugar — provavelmente será criada por algum robô infalível ou algo do gênero. Não sei bem de onde exatamente ela surge, mas sei que, por algum motivo, ela não pode surgir do mercado.

Ironias à parte, um raciocínio deste tipo é o equivalente a dizer que, primeiro, as leis sobre propriedade foram surgindo do nada e tudo foi sendo estabelecido sem nenhuma transação de mercado acontecendo — todo mundo ficou quieto, apenas esperando que toda a estrutura legal ficasse pronta. E então, após algum tempo, com a estrutura finalmente já completada, as pessoas enfim começaram a fazer negócios umas com as outras. 

É verdade que não é possível haver mercados funcionando corretamente se não houver um sistema legal operante. Mas não faz sentido imaginar que primeiro criaram todo um sistema legal para então, só então, começarem a fazer transações econômicas. Ambos nasceram e evoluíram juntos. Instituições jurídicas e transações econômicas surgem conjuntamente em um mesmo local e ao mesmo tempo. O sistema legal não é algo totalmente independente das atividades que ele restringe. Afinal, um sistema legal não é um robô ou um deus ou algo externo completamente separado de nós. A existência de um sistema legal consiste em pessoas obedecendo a suas regras. Se todos ignorassem o sistema legal, ele não teria poder nenhum. Logo, é justamente porque as pessoas geralmente apóiam e concordam com o sistema legal, que ele sobrevive. O sistema legal também depende de um respaldo voluntário das pessoas.

Creio que um dos motivos por que várias pessoas temem um arranjo sem governo é que elas imaginam que, sob um governo, ao menos existe algum tipo de garantia que não mais irá existir sem o governo; que de algum modo existe este firme arcabouço ao qual podemos recorrer, e o qual, sem governo, simplesmente desapareceria. Mas este firme arcabouço é apenas o produto de pessoas interagindo de acordo com os incentivos que possuem. 

Do mesmo modo, quando anarquistas dizem que as pessoas, em um arranjo sem governo, provavelmente teriam incentivos para fazer isto ou aquilo, as pessoas respondem exasperadas "Bem, isso não é suficiente! Eu não quero que apenas seja provável que elas terão incentivos para fazer isso. Quero que o governo garanta de maneira absoluta que elas farão isso!" Mas o governo nada mais é do que um conjunto de pessoas. E, dependendo da estrutura constitucional do governo, é provável que elas façam isso ou aquilo. É impossível elaborar uma constituição que garanta que as pessoas no governo irão se comportar de uma determinada maneira. É possível estruturar uma constituição de modo a tornar mais provável que as pessoas façam uma coisa e menos provável que elas façam outra coisa. E a anarquia pode ser considerada como sendo uma ampliação dos sistemas de pesos e contrapesos para um nível mais amplo.

(7) O crime organizado controlará tudo

Outra objeção é que, em um arranjo sem estado, o crime organizado tomará conta de tudo. Bom, é possível. Mas é improvável. O crime organizado surge justamente naquelas áreas que foram tornadas ilegais pelo estado. O crime organizado adquire seu poder ao se especializar em atividades que foram proibidas pelo estado — coisas como drogas, prostituição, jogos, agiotagem e assim por diante.

Durante os anos em que o álcool era proibido, o crime organizado especializou-se no comércio de álcool. Hoje, após o fim da proibição, praticamente não se ouve falar de crime organizado no comércio de álcool. O poder do crime organizado, em grande parte, depende do poder do governo. Ele é uma espécie de parasita das atividades do governo. Os governos, ao proibirem certas atividades, criam mercados negros. Os mercados negros são atividades perigosas de desempenhar porque seus membros têm de se preocupar tanto com o governo quanto com outras pessoas nada simpáticas que estão interessadas na sua fatia de mercado. Adicionalmente, como os tribunais não fazem valer aqueles contratos que o estado considera ilegais, todas as pelejas contraídas no mundo do crime organizado têm de ser cumpridas na base da violência. Todos estes fatores explicam por que uma indústria que é perseguida por agentes armados do governo acaba se tornando fortemente militarizada também.

Se a análise acima está correta, e o crime organizado (e gangues violentas em geral) prospera apenas naquelas áreas infestadas de intervenção estatal, então parece óbvio que uma anarquia de mercado iria emascular esses grupos criminosos. Colocando em outras palavras, à medida que o governo legalizasse mais e mais setores, o crime organizado teria de concentrar suas atividades em negócios cada vez mais restritos. No limite, se tudo fosse legalizado (do ponto de vista de legislação estatal), o crime organizado não teria como obter nenhuma vantagem especial. Da mesma forma que a máfia não aguenta concorrer diretamente com uma fabricante de cervejas como a Budweiser, ela também perderia sua fatia de mercado para empreendedores honestos dos setores judiciário e policial caso o estado cancelasse seu monopólio sobre esses serviços.(8) Os ricos irão dominar

Outra preocupação é que os ricos irão dominar. Afinal, se os serviços legais forem transformados em um bem econômico, a justiça não estará a serviço daquele que pagar mais? Trata-se de uma objeção comum. O interessante é que tal objeção é particularmente comum entre os randianos, que repentina e curiosamente se transformam em seres extremamente preocupados com os desvalidos. 

Mas sob qual sistema os ricos são mais poderosos? Sob o atual sistema ou sob um sistema sem estado? 

Certamente, você sempre terá algum tipo de vantagem se for rico. É bom ser rico. Sendo rico, você sempre estará em uma posição privilegiada para subornar pessoas. Porém, no atual sistema, o poder dos ricos é amplificado.

Suponha que eu seja um rico malvado e queira que o governo faça algo que custará $5 milhões. Teria eu de subornar algum burocrata em $5 milhões para conseguir que a coisa fosse feita? Não, pelo simples motivo de que, se a coisa for feita, o político não estará utilizando nenhum centavo de seu próprio bolso. Pelo mesmo motivo, se eu estivesse pedindo que ele fizesse o trabalho com seu próprio dinheiro, então obviamente eu não conseguiria convencê-lo a gastar $5 milhões dando a ele uma propina menor que $5 milhões. Eu teria de dar pelo menos cinco milhões e um centavo.

Pessoas que controlam o dinheiro de impostos de terceiros, dinheiro este que não pertence a elas — o que significa que elas não podem fazer com ele o que quiserem —, não podem simplesmente embolsar os $5 milhões e ir pra casa (muito embora elas façam coisas que cheguem muito perto disso). Tudo o que eu tenho de fazer é subornar o burocrata em alguns milhares, e ele, por sua vez, irá desviar estes $5 milhões em dinheiro de impostos para aquele projeto que eu defendo. 

Ou seja, no atual sistema, meu poder de propina é multiplicado.

Por outro lado, se você fosse o presidente de uma agência de proteção privada e eu estivesse tentando fazer você gastar em algo que custasse $5 milhões, eu teria de lhe pagar uma propina de valor (muito) superior a $5 milhões. Logo, o poder do rico é na realidade menor em um sistema sem governo. 

Ademais, obviamente, qualquer tribunal que adquirisse a má reputação de favorecer milionários contra os pobres também, presumivelmente, teria a reputação de favorecer bilionários contra milionários. Por conseguinte, os milionários não iriam querer lidar com esse tribunal. Eles só iriam querer lidar com ele quando estivessem em uma contenda contra pessoas mais pobres, e não contra pessoas mais ricas. Mas a questão é que as repercussões de uma má reputação não fariam nada bem para a imagem deste tribunal no mercado.

Há também preocupações quanto ao fato de vítimas pobres não serem capazes de arcar com serviços jurídicos, ou com vítimas que morrem sem deixar herdeiros (de novo, os randianos são muito preocupados com vítimas que morrem sem herdeiros). No caso de vítimas pobres, é possível fazer o que se fazia na Islândia medieval. Se você é pobre demais para pagar por serviços jurídicos e alguém prejudicou você, você tem o direito de requerer indenização daquela pessoa. Você pode vender esse direito à indenização — toda ela ou apenas uma parte dela — para outra pessoa. Na realidade, funciona como se você contratasse um advogado na condição de só pagar honorários se houver ganho de causa. Você poderá vender sua indenização para alguém que tenha condições de impingir suas reivindicações. Ou, se você morrer e não deixar herdeiros, em certo sentido os bens que você deixar passam a ser a reivindicação de indenização, e poderão ser objetos de apropriação.(9) Robert Bidinotto: as massas irão demandar leis ruins

Outra preocupação que aflige Bidinotto — e esta é praticamente oposta à preocupação de que os ricos irão dominar — tem a ver com a questão de o mercado ser, como Mises havia dito, uma grande democracia na qual a soberania do consumidor decide quem prospera e quem vai à falência. Segundo Bidinotto, esse tipo de democracia é ótimo quando se trata de geladeiras, celulares, automóveis, computadores etc. Mas certamente não é uma coisa boa quando se trata de leis. Porque, afinal, as massas nada mais são do que um bando de ignaros intolerantes que, se puderem criar as leis que quiserem, certamente inventarão as coisas mais pavorosas imagináveis.

A diferença entre a democracia econômica do tipo misesiano e a democracia política é óbvia: na democracia econômica, você consegue o que quer, mas tem de pagar por isso. Por outro lado, é verdade que, em um arranjo sem governo, se houver pessoas suficientemente fanáticas que desejam impor algo ignóbil a outras pessoas, e tal grupo de pessoas for grande o suficiente, então de fato a anarquia poderá levar a resultados nada libertários.

Se você vive em um estado povoado por pessoas de mentalidade mais progressista, você certamente estará rodeado de fanáticos que querem banir o cigarro de tudo quanto é lugar. Se você vive em um estado mais conservador, a tendência é que, em vez do cigarro, as pessoas queiram banir a homossexualidade — neste caso, pode ser que tais pessoas sejam tão fanáticas, que elas irão conseguir a proibição. Mas vale lembrar que elas terão de pagar por isso. 

Logo, quando elas receberem suas apólices mensais de suas agências de segurança privada, lá vai constar o preço do serviço básico — proteção contra agressões — e depois uma taxa adicional pelo serviço extra de posicionar agentes de tocaia para espiar os vizinhos pelas janelas e se certificar de que eles não estavam fumando ou praticando atos homossexuais.

Agora, as pessoas realmente fanáticas dirão "Sim, vou desembolsar mais dinheiro para pagar por isso." (Obviamente, se elas forem fanáticas a esse ponto, serão um problema em um arranjo minarquista também). Mas se elas não forem tão fanáticas assim, dirão: "Bem, se tudo o que eu preciso fazer é apoiar e votar em candidatos que defendem leis que restrinjam a liberdade das outras pessoas, então é claro que farei isso, é muito fácil ir e votar." Porém, se elas tiverem efetivamente de pagar um preço para impor seus desejos, então são enormes as chances de que elas se resignem e desistam de suas tentações totalitárias.(10) Robert Nozick e Tyler Cowen: agências de proteção privada irão se transformar em um genuíno governo

Meu último ponto. Essa é uma questão que foi originalmente levantada por Robert Nozick e, desde então, vem sendo desenvolvida por Tyler Cowen. Nozick disse: se não houver governo, um destes três fenômenos ocorrerá. As agências de proteção brigarão entre si — e isso, segundo Nozick, levará a dois cenários distintos. Porém, como já falei acima sobre o que aconteceria se elas brigassem, não irei me concentrar nestes dois cenários e vou pular logo para a terceira opção. 

E se elas não brigarem? Então, segundo ele, se elas concordarem com todos esses contratos de arbitramento mútuo, então basicamente todo o arranjo de agências de proteção iria simplesmente se transformar em um governo.

Tyler Cowen desenvolveu ainda mais essa argumentação. Ele disse que, basicamente, todo esse arranjo viraria um cartel, e seria do total interesse desse cartel se transformar em um governo. Qualquer nova agência privada que porventura quisesse entrar no mercado seria imediatamente boicotada pelo o cartel.

E o argumento prossegue: assim como é do seu interesse, caso você invente um novo cartão de débito, que ele seja compatível com as máquinas de todos os estabelecimentos, se você criar uma nova agência de proteção também será de seu interesse conseguir fazer parte do mesmo sistema de contratos e arbitramento do qual as agências existentes já fazem parte. Você não conseguirá clientes caso as pessoas descubram que sua agência não possui nenhum acordo com as outras agências especificando o que ocorrerá caso um cliente de sua agência entre em uma contenda com um cliente de outra agência. Sendo assim, agindo desta forma, esse cartel seria capaz de boicotar a entrada de novas agências no mercado.

E então, isso poderia ocorrer? Sim, é claro que poderia. Qualquer tipo de coisa pode ocorrer. Metade da população do país pode se suicidar amanhã. Mas isso é provável? Seria provável que esse cartel conseguisse abusar de seu poder dessa maneira? O problema é que cartéis são arranjos inerentemente instáveis, pois, por sua própria organização, as possibilidades de ganhos para quem furar o cartel, ofertar preços menores e com isso atrair mais clientes são enormes. Isso não significa que é impossível um cartel ser bem-sucedido; afinal, as pessoas têm livre arbítrio. No entanto, tal sucesso é algo improvável, pois os mesmos incentivos que levam você a formar um cartel também levam você a querer romper o acordo — pois é sempre do interesse econômico de alguém fazer acordos fora do cartel quando se está dentro dele.

Bryan Caplan faz uma distinção entre boicotes que se mantêm automaticamente e boicotes que não se mantêm automaticamente. Os boicotes que se mantêm automaticamente são bastante estáveis porque são boicotes contra, por exemplo, pessoas que trapaceiam seus parceiros comerciais. Você não precisa ser uma pessoa dotada de extrema rigidez moral para não querer fazer negócios com pessoas conhecidas por trapacear seus parceiros comerciais. Você tem um total interesse próprio em não querer fazer negócio com este tipo de pessoa.

Por outro lado, pense no que ocorreria caso você não quisesse fazer negócios com um determinado indivíduo porque você não gosta da religião dele, ou da opção sexual dele, ou da cor dele ou simplesmente porque ele é cliente de uma agência de proteção com a qual a sua agência recomenda não fazer negócio — sim, o boicote poderá funcionar. Transpondo este raciocínio para um cartel, talvez uma quantidade suficiente de pessoas (talvez todo mundo) no cartel esteja tão decidida a manter esse cartel, que elas simplesmente não se relacionarão com este indivíduo. Isso seria possível? Sim. Mas a que custo de oportunidade? Esse é um boicote que não se mantém automaticamente.

Se essas pessoas formaram um cartel motivadas por um interesse econômico próprio, então esse interesse próprio é exatamente o que levará à quebra do cartel, pois é do interesse econômico delas lidar com o indivíduo em questão, assim como é sempre do seu interesse incorrer em transações econômicas mutuamente benéficas.

Roderick T. Long é membro sênior do Ludwig von Mises Institute, professor de filosofia na Universidade de Auburn, Alabama, e autor do livro Reason and Value: Aristotle Versus Rand. Ele preside o Molinari Institute e a Molinari Society. Seu website: Praxeology.net.