quarta-feira, 10 de abril de 2013

RAZÃO E BOM SENSO

Apesar de parecer difícil guardar otimismo e manter esperanças diante do quadro atual de crise financeira e desatinos políticos, sempre se há de tentar construir um futuro melhor.

Descartes dizia que o bom senso é a coisa mais bem distribuída entre as pessoas. Em sua época, bom senso equivalia à razão. Na linguagem atual corresponderia a dizer que o coeficiente de inteligência (QI) se distribui entre todas as pessoas seguindo uma curva que se mantém inalterada no tempo, geração após geração. Será? E possível e mesmo provável. Mas bom senso implica também inteligência emocional e prudência ao tomar decisões. Não basta ser inteligente, é preciso ser razoável e prudente para evitar que as paixões se sobreponham à razão. É preciso ter juízo.

Ora, no mundo em que vivemos, pelo menos neste momento, parece grande o risco de ações impulsivas comprometerem o que é razoável. Quando ainda se podia crer que havia uma "lógica econômica" para justificar ações de força - por exemplo, na época do colonial-imperialismo a repulsa ao inaceitável (a subordinação de povos à acumulação de riquezas) vinha seguida da explicação "lógica" do porquê das ações: o objetivo seria acumular riquezas e expandir o capitalismo. Mas, e agora, quando a Coréia do Norte bravateia (e quem sabe o que fará) que pode arrasar o Sul e mesmo atingir a costa oeste dos Estados Unidos, qual é a lógica? E que dizer do dr. Bashar Assad, que fechou sua clínica médica em Londres para substituir o pai no poder e bombardeia seus conterrâneos há dois anos?

Fossem só esses os exemplos... Mas, não. Na pequena Chipre, cujo sistema bancário se tornou abrigo para capitais de procedência discutível, quando não claramente resultantes da corrupção e da evasão fiscal, vê-se um governo que, sem mais essa nem aquela, temeroso da pressão dos controladores financeiros da União Européia (UE), não tem ideia melhor do que expropriar os depositantes - sejam ou não proprietários de capitais de origem discutível. Embora menos flagrantemente absurdo, o mau manejo financeiro e fiscal na UE não está levando os povos ao desespero, tanta a injustiça de fazer com que quem não tem culpa pague pelo desatino de governos e financistas?

Ainda bem que nem tudo é desatino. Barack Obama, ao tomar posse de seu primeiro mandato, disse que os EUA deveriam investir mais em ciência e tecnologia e preparar uma revolução produtiva baseada na energia limpa, juntando conhecimento e inovação com a possibilidade de a economia crescer sem destruir o meio ambiente. Na semana passada renovou a crença e parece que seu país está saindo da crise iniciada em 2008 fazendo o que era necessário: abrindo novas áreas de investimento, alterando a geopolítica da energia e, quem sabe, deixando para trás os tremendos erros que levaram à explosão dos mercados financeiros.com. Será? Torçamos para que desta vez prevaleça não só a razão cartesiana, mas o bom sentido comum e se entenda que mercados sem regulação levam à irracionalidade.

Quanto a nós, brasileiros, parece que tampouco aprendemos muito com equívocos voluntaristas do passado. Somos reincidentes. Juntamos aos impulsos movidos por boa vontade certa grandiosidade que não corresponde à realidade. Ao desejar sair da ameaça de baixo crescimento econômico a todo custo, vão sendo anunciados a cada dia novos planos e programas. Entretanto, só saem do papel morosamente e muitas vezes, nem isso. Por quê?

Talvez porque acreditemos demais em grandes planos salvadores e menos no método, na rotina, na persistência e na inovação para acelerar o caminho. O governo, por exemplo, percebeu que o futuro depende do conhecimento e que existç um quase apagão de gente qualificada para o País encarar o futuro com maior otimismo. Logo, havia que propor a "grande solução": em vez de termos minguados 8.500 bolsistas no exterior, passaríamos logo a 100 mil em quatro anos! Resultado: uma profusão de bolsas, um menoscabo da capacidade universitária já instalada e o envio ao exterior de muitos que nem sequer conhecem bem a língua do país onde vão estudar.

Do mesmo modo, ao se descobrir que havia óleo na camada do pré-sal largamos o etanol, esquecemos que os poços se extinguem, não investimos suficientemente nas áreas fora do pré-sal e desdenhamos o que de novo pode ter havido no mundo, como as inovações na extração do óleo e do gás do xisto, como fizeram os americanos. Claro que ainda há tempo para recuperar o tempo perdido e retomar a esperança. Mas se, em vez de cantar loas ao que ainda não é palpável e dedicar tanto tempo à briga pelos futuros royalties do petróleo, tivéssemos, sem muito bumbo, discutido metodicamente as melhores alternativas energéticas, inclusive as do petróleo, e tivéssemos apoiado mais a pesquisa e a inovação, provavelmente sentiríamos menos angústia por oportunidades perdidas.

O comentário vale para toda a infraestrutura econômica. Ah, se tivéssemos preparado leilões bem feitos para as concorrências nas estradas, nos portos, nos aeroportos, e assim por diante, poderíamos ter evitado o desperdício de parte "da maior safra de grãos da história" pelas péssimas condições de transporte e embarque dos produtos.

Para remediar propõem-se sempre mais projetos grandiosos e tanto o governo como seus arautos se perdem em discursos grandiloquentes Não é isso o que ocorre também com as medidas para enfrentar as ameaças de uma ainda mais alta inflação? Imediatismo e atropelo na concessão de subsídios, isenções e favores substituem a pachorrenta persistência numa linha de conduta coerente que, menos espalhafatosamente, possa levar o País a dias melhores.

Estes, entretanto, são possíveis. O xis da questão é simples de ser formulado, difícil de ser executado: como passar da quantidade para a qualidade, do palavrório para uma gestão prática; como, em vez de animar uma sociedade de espetáculos (nunca na História...), construir uma sociedade decente, na qual a palavra corresponda a fatos, e não a piruetas virtuais. Continuo a crer que é possível. Mas é preciso mudar de guarda. Esperemos 2014. Por: Fernando Henrique Cardoso O Estado de S Paulo

terça-feira, 9 de abril de 2013

CAMBALACHE - A HISTÓRIA DO COLAPSO ECONÔMICO DA ARGENTINA

À exceção daquelas nações que adotaram o comunismo, é difícil encontrar um exemplo de país cuja economia tenha sido mais espetacularmente destruída pelo seu governo do que a Argentina.

No início do século XX, a Argentina era o 10º país mais rico do mundo em termos per capita. Reza a lenda que, naquela época, a expressão "tão rico quanto um argentino" era comum e frequentemente utilizada por aristocratas britânicos que tentavam casar suas filhas com argentinos ricos. Entre 1860 e 1930, o país enriqueceu acentuadamente em decorrência, entre outras coisas, da exploração das férteis terras dos pampas. Os investimentos estrangeiros eram livres e diversificados, oriundos da França, da Alemanha, da Bélgica e, majoritariamente, da Grã-Bretanha. Indústrias e ferrovias foram construídas com capital estrangeiro. Os altos salários atraíram vários imigrantes, principalmente italianos, espanhóis, alemães e franceses. Em 1899, após algumas décadas de instabilidade financeira e bancária, o país retornou ao padrão-ouro e, durante 14 anos, cresceu a uma taxa anual de 7,7%.

Durante as três primeiras décadas do século XX, a Argentina ultrapassou o Canadá e Austrália não somente em termos de população, mas também em termos de renda total e renda per capita. Nesta época, a famosa loja de departamentos Harrods, de Londres, abriu uma filial em Buenos Aires, sua única filial em todo o mundo. 

A partir de 1930, no entanto, a coisa começou a degringolar. Em termos macroeconômicos, a Argentina era, até então, um dos mais estáveis e sólidos países do mundo. Mas o advento da Grande Depressão nos EUA, que afetou seriamente o comércio mundial — e as exportações argentinas —, alterou este equilíbrio. Instabilidades políticas levaram a um golpe militar em 1930. De 1930 até os anos 1980, houve uma sequência de governos populistas e juntas militares que se revezavam no poder. Estes sucessivos governos, capitaneados pelas teorias de Raúl Prebisch, adotaram uma série de políticas protecionistas e de substituição de importações com o objetivo de alcançar a quimera da 'autossuficiência', um devaneio que ainda hoje excita praticamente todos os desenvolvimentistas (muitos deles estão em Brasília). 

Oficialmente, esse experimento protecionista terminou em 1976, quando uma junta militar sob o comando de Jorge Rafael Videla decidiu abrir um pouco a economia. Obviamente, acostumadas a décadas de protecionismo, várias indústrias argentinas sucumbiram perante a concorrência externa, o que fez com que o governo assumisse suas dívidas. Em paralelo a este setor industrial ineficiente, os gastos governamentais em total descontrole (financiados pela simples impressão de dinheiro) e várias medidas populistas de aumentos salariais levaram a uma crônica inflação de preços, que chegou a 800% ao ano.

Alguns anos depois, em 1982, um cavalheiro chamado Leopoldo Galtieri teve a brilhante ideia de desviar a atenção dos problemas econômicos invadindo as ilhas Falkland (Las Malvinas para os argentinos), o que jogou o país em guerra contra os britânicos. Tal esforço de guerra, além de vidas humanas, serviu apenas para aumentar o endividamento do governo argentino e, consequentemente, a inflação monetária para financiar este endividamento. Humilhada pela derrota, a ditadura militar terminou em dezembro de 1983, com a eleição de Raúl Alfonsín. Veja o histórico inflacionário deste último período militar (a menor inflação anual foi de 82%, em fevereiro de 1981).



Gráfico 1: Taxa de inflação de preços anual, 1976-1983

Em decorrência desta escalada inflacionária, o governo Alfonsín criou, em junho de 1985, uma nova moeda, o austral (a primeira moeda argentina que não tinha o peso em seu nome). Mas a criação da nova moeda — plano este, aliás, que serviu de inspiração ao Plano Cruzado — foi feita daquela maneira tipicamente heterodoxa: o governo simplesmente cortou zeros, congelou preços das tarifas públicas e da cesta básica, e controlou rigidamente os salários do setor privado. No primeiro momento, exatamente como também ocorreu com o Plano Cruzado, os preços ficaram sob controle e a popularidade do governo disparou. 

Na melhor fase do plano, a inflação de preços ficou em "apenas" 50% ao ano. Porém, e obviamente, o governo em momento algum abriu mão de continuar imprimindo dinheiro e, assim que os preços começaram a ser descongelados, tudo voltou a ser como era antes. Para complicar, como o governo havia contraído várias dívidas perante o FMI, ele também recorria à impressão de austrais para comprar dólares. 

O resultado desta vez não foi apenas uma típica inflação latino-americana, mas sim uma hiperinflação que chegou a 200% ao mês (julho de 1989) e encerrou o ano totalizando 5.000%. Quando os preços dos serviços de utilidade pública dispararam e os argentinos foram para as ruas saquear supermercados (maio e junho de 1989), Alfonsín renunciou.

Eis o resultado da inflação de preços deste período:



Gráfico 2: taxa de inflação de preços anual, 1984-1989




A era Menem

Reformas

Eleito para assumir o poder dezembro de 1989, a posse de Carlos Menem foi antecipada para julho por causa da baderna em que estava o país. Quando Menem assumiu a presidência, os gastos públicos estavam em 36% do PIB e o déficit orçamentário do governo era de 7,6% do PIB.

Em 17 de agosto de 1989, foi aprovada a Ley de Reforma del Estado, que deu a Menem a autoridade para efetuar várias reformas econômicas que ajudassem a acabar com a hiperinflação. As principais reformas foram o descongelamento seguido da liberdade de preços, a abertura da economia ao comércio internacional, aos investimentos estrangeiros e ao fluxo de capitais, a reorganização do sistema tributário, a redução da burocracia e a privatização de várias estatais — a telefônica Entel, a companhia aérea Aerolíneas Argentinas, vários trechos rodoviários, vários canais de televisão, algumas redes ferroviárias, a petrolífera YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales, cuja privatização só foi completada em 1999), e a empresa de gás natural Gas del Estado. 

Como de praxe, várias privatizações foram feitas às pressas — pois o governo estava desesperado por recursos —, o que gerou vários esquemas de favorecimento, irregularidades e corrupção. 

Após chegar ao insano valor anual de 20.000% em março de 1990, a inflação terminou o ano em 1.344%



Gráfico 3: taxa de inflação de preços anual, 1990

Mas foi em abril de 1991 — sob o comando do ministro da economia Domingo Cavallo — que a principal e decisiva medida econômica foi adotada: a reforma monetária que culminaria na substituição do austral pelo peso. Mas o peso não seria uma nova moeda qualquer: ele seria inflexivelmente igual a um dólar, valor este irrevogável e fixado por lei. Esse regime monetário argentino passou a ser chamado de regime de conversibilidade.

O programa de conversibilidade foi implantado em duas etapas. Na primeira etapa, em abril de 1991, o Banco Central argentino passou a funcionar como se fosse um Currency Board. 

Currency Board

Para o leigo, o termo soa esquisito, mas realmente não existe tradução definitiva para o português. Alguns traduzem como Caixa de Conversão ou Agência de Conversão; outros traduzem como Conselho da Moeda.

Apesar da ausência de um termo nacional, um Currency Board é um dos arranjos monetários mais antigos e tradicionais do mundo, perdendo apenas para o padrão-ouro. Aliás, era comum que o país que adotasse o padrão-ouro o fizesse por meio de um Currency Board. O Brasil operou um Currency Board no início do século XX, durante um de nossos efêmeros experimentos com o padrão-ouro. O padrão-ouro da Argentina, que durou até 1929, também se deu sob um Currency Board. 

Hong Kong opera um Currency Board desde 1983. Vários outros pequenos países utilizam exitosamente um Currency Board, entre eles Lituânia, Bulgária, Bósnia e Herzegovina, as Ilhas Fakland, Gibraltar e Santa Helena. A Estônia operou um Currency Board de 1992 até janeiro de 2011, quando resolveu adotar integralmente o euro.

O princípio de operação de um Currency Board é bastante simples e, quando obedecido ortodoxamente, muito eficaz. O Currency Board é o arranjo que se implementa quando se quer adotar uma genuína "âncora cambial", o que faz com que a moeda de um país se torne um mero substituto de uma moeda estrangeira. A única função de um Currency Board é trocar moeda nacional (que ele próprio emite) por moeda estrangeira, e vice versa, a uma taxa fixa. 

No caso específico da Argentina, o Currency Board tinha a função de trocar, sem custo e sem demora, 1 peso por 1 dólar e 1 dólar por 1 peso. Para cada dólar que entrasse no país, o Currency Board emitiria um peso argentino em troca desse dólar. A operação inversa ocorreria no caso de uma saída de dólar (peso argentino seria entregue ao Currency Board que, em troca, enviaria o dólar para o destinatário estrangeiro). 

Ao agir assim, a taxa de câmbio está irremediavelmente fixa. Se você quisesse vender 1 dólar por um valor maior do que 1 peso para outra pessoa, esta preferiria simplesmente ir ao Currency Board e lá trocaria 1 peso por 1 dólar. Ou seja, tal artifício é totalmente eficaz em realmente fixar a taxa de câmbio.

Neste sistema, como a moeda nacional está totalmente atrelada a uma moeda estrangeira, a variação da base monetária nacional se dá estritamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos (saldo da quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia nacional). 

Em sua forma ortodoxa, este sistema não permite a existência de um Banco Central, pois não deve haver nenhuma política monetária. Trata-se de um sistema monetário totalmente passivo, em que a base monetária do país varia estritamente de acordo com as reservas internacionais.

Sendo assim, dado que a base monetária do país não pode ser maior do que a quantidade de reservas internacionais (no caso argentino, o dólar), ela varia de acordo com a quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia em decorrência das transações internacionais do país. Quando há um superávit nas transações internacionais, a base monetária doméstica aumenta; quando há um déficit, diminui. 

Em tese, como a quantidade de dólares nas reservas internacionais é, por definição, igual ou superior à base monetária, é impossível haver qualquer ataque especulativo, pois seria impossível exaurir as reservas internacionais (a base monetária teria de ser toda mandada pra fora, algo por definição impossível). Essa é a principal atratividade do sistema: ele dá segurança aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem repatriar seus lucros.

Outra característica do Currency Board que ajuda a aumentar a confiança do investidor estrangeiro é o fato de que, ao contrário de um Banco Central convencional, um Currency Board não pode imprimir dinheiro à vontade; ele só imprime moeda nacional se receber um valor equivalente em moeda estrangeira. Logo, um Currency Board não pode comprar ativos nacionais e nem títulos do governo; ele não faz política monetária. Sendo assim, o governo não pode se financiar por meio da inflação monetária. Isso obriga o governo a evitar déficits e a manter um orçamento equilibrado (caso contrário, ele terá de aumentar impostos ou se endividar, o que levaria a um aumento dos juros em toda a economia).

No entanto, ao mesmo tempo em que um Currency Board é extremamente eficiente quando implantando ortodoxamente, ele cobra severas punições quando seus pré-requisitos operacionais são desobedecidos. E foi isso que a Argentina descobriu.

A reforma monetária

O primeiro passo da Argentina, portanto, foi fazer o seu Banco Central operar como se fosse um Currency Board.

No dia 1º abril de 1991, o Banco Central da Argentina fixou a taxa de câmbio no valor de 10.000 austrais por dólar (essa era a taxa de câmbio do dia). A partir daí, comprometeu-se a operar sob os mesmos princípios de um Currency Board: ele iria emitir austrais estritamente de acordo com o ingresso de dólares. Para cada dólar que entrasse no país e fosse para as reservas internacionais, 10.000 austrais seriam emitidos. Para cada dólar que saísse, 10.000 austrais seriam recolhidos. (Veja o vídeo do anúncio feito por Cavallo, a partir do minuto 7:37).

Simultaneamente, o dólar passou a ser aceito como moeda corrente. Os argentinos agora tinham liberdade de transacionar livremente em dólares, e de livremente trocar austrais por dólares. Na prática, havia duas moedas oficiais na Argentina. 

No dia 1º de janeiro de 1992, o austral foi abolido e em seu lugar entrou o peso conversível. Cada 10.000 austrais foram convertidos em 1 peso, que valia exatamente 1 dólar.

Pronto, a reforma monetária estava completa. De agora em diante, o Banco Central da Argentina se comprometia a trocar peso por dólar e dólar por peso a uma taxa de 1:1, sem restrições e sem demora. Se os argentinos quisessem manter mais dólares do que pesos, eles simplesmente trocariam seus pesos por dólares. Similarmente, se quisessem portar mais pesos, eles trocariam seus dólares por pesos. O efeito dessa regra era garantir tanto aos residentes quanto aos investidores estrangeiros que não havia risco nenhum de se utilizar tanto uma moeda quanto outra. Não haveria risco de uma desvalorização súbita. 

Os argentinos podiam manter contas bancárias tanto em peso quanto em dólares, e os bancos faziam empréstimos tanto em peso quanto em dólares.

As consequências iniciais

Inicialmente, tanto o Banco Central argentino quanto o governo seguiram à risca a ortodoxia. O BC de fato imprimia dinheiro estritamente de acordo com a variação de reservas internacionais, e o governo — agora sem poder se utilizar da inflação monetária — reduziu drasticamente seus déficits.

A inflação de preços, que havia sido de 1.344% em 1990, caiu para 84% em 1991, para 17,5% em 1992, para 7,4% em 1993, para 3,9% em 1994, para 1,6% em 1995 e, de 1996 até o final de 2001, a média foi de praticamente 0%.

Para um país que havia se acostumado a ter uma inflação de preços média maior do que 250% de 1970 até 1990, e que havia vivenciado valores de até 20.000% em 1990, a queda de preços foi extremamente rápida.

Já o governo conseguiu baixar o gasto público de 35,6% do PIB em 1989 para 27% do PIB em 1995. Igualmente, o déficit fiscal saiu de 7,6% do PIB em 1989 para 2,3% em 1990 e, de 1991 até o final de 1994, ficou próximo de 0%.

As reservas internacionais, por sua vez, que estavam 3,81 bilhões no final de 1989, foram para 17,93 bilhões ao final de 1994.

O principal efeito desta política de abolição da inflação e de redução do estado foi a perceptível queda nos índices de pobreza. Em outubro de 1989, o percentual de pessoas abaixo da linha de pobreza em Buenos Aires e adjacências era de 47,3%. Em maio de 1994, tal valor já havia caído para 16,1%.

A crise do México de dezembro de 1994

As coisas vinham muito bem para a Argentina desde abril de 1991. A economia estava crescendo robustamente e os preços eram invejavelmente estáveis.

Só que, em dezembro de 1994, a economia do México — cujo Banco Central adotava um sistema cambial heterodoxo, no qual a cotação do câmbio era diariamente manipulada — sofreu um ataque especulativo. O governo desvalorizou subitamente o peso mexicano. Essa súbita desvalorização gerou pânico nos investidores ao redor de todo o mundo, os quais, temerosos de terem seus investimentos desvalorizados, começaram a retirar seus capitais dos países emergentes. (Esse fenômeno ficou conhecido como Efeito Tequila, e teve repercussões nos países emergentes, especialmente no Brasil.)

A Argentina não ficou imune, e um volume substantivo de capital estrangeiro foi retirado do país. Os gráficos abaixo ilustram perfeitamente este momento. Observe a retração sofrida pela base monetária em 1995. Essa retração ocorre justamente porque pesos estavam sendo trocados por dólares para ser enviados ao exterior. 



Gráfico 4: evolução da base monetária, 04/1991—12/1995

No entanto, o M1 e o M2 se alteram muito pouco, quase nada. Isso porque, como os bancos praticam reservas fracionárias e podem criar moeda do nada, uma retração da base monetária não significa necessariamente uma redução na quantidade de dinheiro na economia. Embora as reservas fracionadas sejam previstas pelo Currency Board (que não se opõe a elas), tal prática pode gerar grandes distúrbios, pois quanto maior o volume de moeda sem lastro em reservas internacionais, maiores as chances de um ataque especulativo para se tentar desvalorizar o câmbio.



Gráfico 5: evolução do M1 (papel-moeda em poder do público mais depósitos em conta-corrente), 04/1991—12/1995



Gráfico 6: evolução do M2 (M1+depósitos a prazo), 04/1991—12/1995

Essa fuga de capitais gerou um acentuado aumento dos juros no mercado interbancário.



Gráfico 7: juros do mercado interbancário, 1993-1995

O crédito encareceu. O país entrou em recessão e o desemprego subiu. A recessão diminuiu as receitas tributárias do governo; o aumento do desemprego aumentou os gastos sociais do governo. A consequência inevitável desta redução na receita e deste aumento nos gastos foi que o governo voltou a apresentar déficits orçamentários. E estes nunca mais voltariam a ser zero — o que significa que sua dívida não mais pararia de subir.

Anos 1996-1999: calmaria no início, pânico no fim

A economia permaneceu em recessão durante todo o ano de 1995, mas voltou a se recuperar em 1996. O problema é que o desequilíbrio continuou vindo do estado.

Em janeiro de 1991, quando Cavallo assumiu o Ministério da Economia, a dívida pública era de US$61,4 bilhões. Em dezembro de 1995, ela já estava em US$87 bilhões. E em agosto de 1996, quando ele foi substituído por Roque Fernández, a dívida já estava em US$90,5 bilhões. E terminaria aquele ano em US$97 bilhões.

O problema do endividamento é que, quanto maior a dívida, maior o volume gasto com juros. E quanto mais se gasta com juros, maior é o déficit fiscal. E quanto maior o déficit fiscal, maior é a emissão de títulos da dívida para cobrir o déficit, o que aumenta o endividamento e reinicia o ciclo vicioso.

Não obstante essa explosão do endividamento do governo, a economia seguia estável e com inflação zero. Após o susto de 1995, as reservas internacionais já haviam voltado a subir.

No segundo semestre de 1997, ocorreu a crise asiática, um tsunami que gerou fuga de capitais ao redor do mundo e súbitas desvalorizações no baht tailandês, no novo dólar taiwanês, na rúpia indonésia, no ringgit malaio, no won sul-coreano, no peso filipino e no dólar cingapuriano. O dólar de Hong Kong, que opera sob um Currency Board, conseguiu manter sua taxa de câmbio intacta. A Argentina, nesta crise específica, sofreu pouco.

Em agosto de 1998, a situação começou a ficar ruim. A Rússia entrou em crise financeira e o governo russo anunciou uma forte desvalorização do rublo seguida de uma moratória. Adicionalmente, a retomada dos confrontos na Chechênia e o início de uma nova guerra entre os separatistas e o governo russo pioraram ainda mais o humor dos investidores estrangeiros, que ainda estavam abalados pela crise asiática. Houve uma nova rodada de fuga de capitais. Na Argentina, por causa desta fuga, os juros do mercado interbancário sobem e o crédito se torna mais restringido. Como consequência, o país entra em recessão em setembro de 1998 e o desemprego aumenta.

A situação se agrava em 1999. Com a forte depreciação do real e de várias outras moedas, as importações de produtos argentinos por estes países caem. Não bastasse a queda nas exportações argentinas, os preços dos produtos primários também caem fortemente no mercado mundial. Como consequência, o setor exportador argentino encolhe. (No entanto, ao contrário do que é dito, as importações de produtos estrangeiros pelos argentinos também diminuem, por causa da recessão. Não foi um aumento nas importações, portanto, o que atrapalhou as empresas argentinas).

Para piorar, os gastos do governo continuam subindo e as receitas, por causa da recessão, se tornam menores que as de 1998. A dívida pública vai adquirindo uma proporção de insustentabilidade, já em US$118 bilhões, o que dava 50% do PIB (era de 29,5% em 1993). Os juros, por causa do endividamento do governo, continuam em ascensão, assim como o risco-país. 

Havia um temor de que o governo desvalorizasse a moeda para estimular as exportações e, com isso, melhorar a situação do setor exportador e, de quebra, melhorar as próprias receitas do governo. Para conter essas especulações, Menem anunciou que tinha a intenção de dolarizar forçosamente toda a economia. A dolarização seria uma maneira de aprofundar o regime de conversibilidade, e eliminaria totalmente as incertezas acerca do regime de câmbio fixo. Houvesse uma dolarização, os ataques especulativos contra o peso seriam eliminados.

No entanto, não houve a dolarização.

Como 1999 era um ano de eleições presidenciais, todos os candidatos (Menem, Fernando De la Rúa e Eduardo Duhalde) se puseram a defender o atual regime cambial, jurando que não tocariam nele, justamente para evitar ataques especulativos.

Em dezembro de 1999, Fernando De la Rúa assume a presidência. Após 10 anos no poder, Menem foi derrubado por causa da economia em recessão desde setembro 1998 e do desemprego em ascensão.

Com De la Rúa, a tragédia

Anatomia de um caos

No dia 1º de janeiro de 2000, o governo De la Rúa, por meio do novo Ministro da Economia, José Luis Machinea, anuncia um pacote fiscal de aumento de impostos. Inicialmente, os impostos incidiriam sobre ganhos de capital. 

Em março de 2000, no entanto, o estouro da bolha tecnológica nos EUA (das empresas pontocom) gera nova fuga de capitais, e os juros do mercado interbancário voltam a subir. Isso agrava a recessão, reduz as receitas previstas pelo governo e aumentam o déficit fiscal, dando sequência àquele antigo círculo vicioso: o aumento dos juros aumentava os gastos do governo com o serviço de sua dívida. Quanto maior era esse gasto, maior se tornava o déficit fiscal, o que levava a um aumento do endividamento e a um novo aumento dos gastos com juros.

No final, o aumento previsto nas receitas não se concretiza, e elas terminam o ano de 2000 em um valor praticamente idêntico ao de dois anos atrás.

Tudo isso aumenta ainda mais as incertezas sobre a capacidade do país de continuar honrando suas dívidas (boa parte dela nas mãos de credores internacionais) e sobre sua intenção de continuar no regime de paridade cambial. Para piorar, em outubro de 2000, o vice-presidente Carlos Álvarez renuncia ao cargo dizendo não se conformar com o volume de corrupção que estava acontecendo dentro do governo. Isso desencadeia uma crise institucional, abalando em definitivo a pouca confiança que ainda restava no regime. Ainda em outubro, os próprios argentinos começaram a retirar seu dinheiro dos bancos, muitos deles mandando dólares para fora do país. Naquele mês, 789 milhões de pesos/dólares foram retirados dos bancos. Em novembro, mais de 1 bilhão. Os juros do interbancário disparam. A confiança havia ruído em definitivo.



Gráfico 8: juros do mercado interbancário, 1998-2000

Para conter essa fuga, o FMI anuncia um pacote de empréstimos de US$40 bilhões para a Argentina repor suas reservas internacionais. Em troca do pacote, o Fundo pedia corte de gastos e aumento de impostos.

Essa injeção de dólares conseguiu conter a fuga de depósitos, mas somente até março de 2001. Logo no início daquele mês, no dia 2, o Ministro da Economia José Luis Machinea renuncia ao cargo. 

No dia 4, Ricardo López Murphy, economista formado pela Universidade de Chicago, é nomeado e imediatamente anuncia seu programa de ajuste fiscal, o qual seria o melhor de todos: não haveria aumento de impostos, mas sim um profundo corte de gastos de 2 bilhões de pesos, inclusive para as áreas de saúde e educação. Haveria também várias privatizações, inclusive da Casa da Moeda.

Obviamente, o anúncio de medidas tão "drásticas" gerou forte reação popular. Vários membros do governo, contrários à nomeação de López Murphy, renunciam em protesto às suas medidas. Sem apoio, López Murphy renuncia ao cargo no dia 19 de março, apenas 15 dias após ter sido nomeado.

Toda essa baderna faz com que a fuga de depósitos bancários recomece, e agora com renovada intensidade: apenas em março, mais 5,5 bilhões de pesos/dólares são sacados dos bancos argentinos, até então a maior saída mensal de dinheiro do sistema bancário da história do país.

Desesperado, Fernando De la Rúa oferece o cargo de Ministro da Economia a um velho conhecido dos argentinos: no dia 20 de março, Domingo Cavallo, que agora era considerado o único com alguma autoridade moral para reconduzir o país à tranquilidade econômica, assume o cargo que havia abandonado em agosto de 1996.

Sua primeira medida, anunciada em 21 de março: aumentar as tarifas de importação e impor uma alíquota sobre transações financeira. 

Mas foi no dia 17 de abril de 2001 que o regime de conversibilidade, o qual o próprio Cavallo havia ajudado a implantar, sofreu um duro golpe que abalou fortemente a sua credibilidade. Cavallo enviou um projeto de lei ao Congresso para alterar a âncora do peso. Em vez de apenas em dólar, a âncora agora seria em relação a uma cesta formada por dólar e euro, na proporção de 50% para cada. Neste arranjo, o peso flutuaria dentro de uma banda definida pelo valor do dólar e do euro. Se o euro estivesse valendo menos que o dólar (como estava na época), o peso se desvalorizaria até ficar em paridade com o euro. Se o euro passasse a valer mais que o dólar, o peso voltaria a ficar em paridade com o dólar. A intenção deste arranjo era o de sempre: estimular as exportações. (Tal lei viria a ser promulgada em junho).

Ainda em abril, o presidente do Banco Central, Pedro Pou, formado em Chicago, que havia defendido a total dolarização da economia e que estava no cargo desde agosto de 1996, é substituído por Roque Maccarone, um sujeito tido como mais "flexível".

Em junho, o regime de conversibilidade é definitivamente abolido. No dia 15, Cavallo anuncia que, a partir dali, o governo adotará um regime de câmbio preferencial para as exportações — o que na prática significava que agora o câmbio teria duas taxas paralelas. No dia 25 de junho, é aprovada a lei que altera a âncora cambial para a cesta de dólar e euro.

Ambas essas medidas eram totalmente contrárias ao funcionamento de um regime de conversibilidade e à ortodoxia de um Currency Board. As medidas de Cavallo deixaram óbvio que o governo estava totalmente propenso a alterar o regime de conversibilidade, algo que poderia ocorrer a qualquer momento. Vale lembrar que, em 1999, quando também havia incerteza, o governo Menem havia tomado a decisão contrária: não apenas reafirmou a manutenção do regime de conversibilidade, como ainda "ameaçou" aprofundá-lo com a dolarização. Aquela certeza transmitida fez com que não houvesse fuga de capitais e nem ataques especulativos.

Já Cavallo, com esse seu ataque arbitrário aos alicerces de regime de conversibilidade, acabou com a pequena confiança que o governo ainda usufruía. A consequência desta intervenção de Cavallo foi restringir ainda mais o mercado de crédito. As taxas de juros para empréstimos feitos em peso disparam, pois os bancos sabiam que a qualquer momento a moeda poderia ser desvalorizada. Como consequência, tanto o governo federal quanto os governos das províncias deixam de conseguir novos financiamentos junto aos bancos, pois estes já pressentiam que seriam caloteados. 

Em julho, três agências de classificação de risco reduzem acentuadamente a classificação da Argentina. O prêmio de risco se torna 13 pontos percentuais acima dos juros pagos pelos títulos americanos. Os juros no mercado interbancário se aproximam de 50%. O governo federal não mais consegue vender títulos de sua dívida no mercado internacional.



Gráfico 9: juros do mercado interbancário, 01/1999 — 07/2001

Sem acesso ao mercado de crédito, Cavallo anuncia um plano de déficit zero, o qual não apenas inclui um aumento da alíquota sobre transações financeiras, como ainda estipula que, dali em diante, a arrecadação de cada mês será majoritariamente utilizada para os juros da dívida. Apenas o que sobrar será utilizado para cobrir os gastos do governo. Salários e pensões do setor público são reduzidos em 13%. Funcionários públicos do alto escalão, que recebiam os maiores salários, passam a ser pagos apenas em notas promissórias. As greves pipocam pelo país e a fuga de depósitos bancários não pára.

Em outubro, há eleições para o Congresso. O partido de De la Rúa perde vários assentos e se torna minoria. 

Em novembro, o governo apresenta um plano para fazer um swap — leia-se, adiar o pagamento e renegociar os termos — da dívida do governo, que já estava em US$132 bilhões de dólares. Temendo agora não apenas a desvalorização iminente, mas também o colapso do sistema bancário (se o governo desse o calote na dívida, os bancos detentores de seus títulos quebrariam), os argentinos fazem uma nova corrida bancária e batem um segundo recorde de saques bancários: quase 3 bilhões de dólares são retirados dos bancos, especialmente na última semana de novembro. Como consequência dessa nova rodada de saques, a liquidez do sistema financeiro — que opera com reservas fracionadas — desaparece completamente, o que faz com que os juros do mercado interbancário disparem a níveis sem precedentes (em um determinado dia, as taxas do interbancário chegaram a 689%). O governo, então, decide impor um limite ao valor máximo dos juros do interbancário.



Gráfico 10: juros do mercado interbancário, 1996-2001

O colapso de dezembro de 2001

No dia 1º de dezembro, um sábado, Cavallo anuncia restrições a saques bancários e transferências para o exterior. No dia 3, segunda-feira, o corralito entra em vigor. Todas as contas bancárias são congeladas por 12 meses, permitindo o saque de apenas 250 pesos por semana. A retirada de dólares é totalmente proibida. Operações utilizando cheques e cartões de crédito e de débito podem ser feitas normalmente (pois elas não retiram dinheiro do sistema bancário, apenas transferem de um banco para o outro), mas a ausência de dinheiro físico nas ruas gera sérios e graves distúrbios.

No dia 5 de dezembro, o FMI anuncia que não mais irá emprestar dinheiro para a Argentina. O risco país dispara. Uma greve geral ocorre no dia 13 de dezembro.

Furiosos em decorrência do confisco bancário, que privou a população de seu próprio dinheiro, e com fome, os argentinos saem às ruas. Entre os dias 16 e 18 de dezembro, ativistas e manifestantes desempregados exigem que os supermercados distribuam comida. Perante a negativa, no dia 18 de dezembro vários supermercados e lojas de conveniência são saqueados em Buenos Aires e Rosário. 

No dia 19, nova onda de saques em toda a grande Buenos Aires. Além de supermercados, bancos e empresas estrangeiras, normalmente americanas e europeias, são o alvo predileto. Várias ruas de Buenos Aires são palco de incêndios.

Acuado, De la Rúa decreta estado de sítio em rede nacional  e avisa que a Polícia Federal, a Força de Segurança (Gendarmería Nacional Argentina) e a Prefectura Naval Argentina serão acionadas para conter a baderna. Alheios às ameaças, os argentinos, logo após a transmissão do anúncio, marcham rumo à Casa Rosada para protestar batendo panelas. Este cacerolazo ocorre simultaneamente em várias regiões do país, mostrando que a população desafiava abertamente o estado de sítio imposto pelo governo. Na madrugada do dia 20 de dezembro, após uma manifestação frente à sua residência ser duramente reprimida, o ministro Domingo Cavallo renuncia ao cargo.
Já na manhã do dia 20, os manifestantes se concentram na famosa Plaza de Mayo, não obstante a vigência do estado de sítio. A Polícia Federal tenta violentamente controlar os protestos. Algum tempo depois, outros grupos de manifestantes chegam e a situação sai totalmente do controle. O mesmo cenário se repete em vários pontos do país. Apenas na Plaza de Mayo, cinco pessoas morrem. 

No final daquele dia, De la Rúa decide renunciar. Como a Plaza de Mayo fica diretamente em frente à Casa Rosada, e os confrontos continuavam intensos, De la Rúa não pode sair da Casa Rosada de carro. Tem de fugir de helicóptero. A imprensa do mundo inteiro registra a humilhante cena. 

No final do dia, 34 pessoas haviam morrido em todo o país em decorrência dos confrontos. O presidente interino do Senado, Ramón Puerta, assume a presidência interina do país até que o Congresso possa nomear um novo presidente.

Abaixo, uma boa compilação das cenas (Aviso: algumas são fortes)







O trágico ano de 2002

No dia 23 de dezembro de 2001, Adolfo Rodriguez Saá, governador da província de San Luis, é nomeado presidente. Seu mandato seria transitório e deveria durar apenas 3 meses. 

Sua primeira medida é anunciar a moratória total da dívida externa. Tal anúncio é feito sob uma chuva de aplausos no Congresso. Não obstante, ele decepciona vários grupos de interesse ao anunciar que a âncora cambial seria mantida. Embora houvesse anunciado que o dinheiro confiscado dos correntistas seria integralmente liberado, tal promessa não se concretiza.

Com apenas uma semana de governo, novos distúrbios e novos panelaços voltam a acontecer nas ruas de Buenos Aires. Alguns manifestantes conseguem entrar no Congresso e ateiam fogo em algumas mobílias. Sem apoio partidário e cercado de protestos, Saá renuncia no dia 30 de dezembro, tendo permanecido apenas uma semana no cargo.

No dia 2 de janeiro, assume a presidência Eduardo Duhalde, que havia disputado e perdido as eleições presidências de 1999. Assim como Saá, em sua fala inaugural Duhalde garante que o corralito seria revogado e que todo o dinheiro seria integralmente devolvido à população. "... van a ser respetadas las monedas en que fueron pactados originalmente los depósitos (...) el que depositó dólares recibirá dólares...el que depositó pesos recibirá pesos."

No entanto, não apenas o corralito não é revogado, como ainda é intensificado.

No dia 6 de janeiro, o regime de conversibilidade é oficialmente revogado. As operações de conversão monetária de 1 peso para 1 dólar são abolidas. É delegado ao Executivo o poder de estipular a taxa de câmbio do peso em relação ao dólar e de regulamentar novos regimes cambiais.

Com a abolição da âncora cambial, o valor do dólar dispara. No mercado negro, dólares estão sendo precificados acima de 3 pesos. Mas o governo opta por estabelecer, arbitrariamente, uma nova taxa de câmbio: 1,40 peso por dólar. 

Ao mesmo tempo, o governo emite outro decreto dizendo que todas as dívidas privadas, de pessoas físicas e jurídicas, estão de agora em diante 'pesificadas', só que à taxa de 1:1. Inclusive dívidas em dólares junto ao sistema bancário. Para salvar os bancos da bancarrota, uma consequência inevitável desta manipulação cambial, o governo assume parte dessa dívida. Credores e poupadores são dizimados.

Para aumentar o ultraje, ocorre em fevereiro a pesificação de todos os depósitos em dólar. Quem ainda possuía dólares depositados nos bancos vê seus dólares serem integralmente confiscados pelo governo, que converte todos os valores em peso à taxa oficial de 1,40 pesos por dólar. Isso é chamado decorralón. 

Esta 'pesificação assimétrica', na qual as dívidas com o sistema bancário foram pesificadas na razão de 1:1 ao passo que os depósitos em moeda estrangeira foram convertidos na razão de 1,40 pesos por dólar, algo que beneficiava os bancos, foi uma medida que o próprio governo reconheceu como sendo um bônus dado aos bancos para compensar o calote gerado pela manipulação cambial acima descrita. 

Em março, o governo também pesifica toda a dívida pública nacional, provincial e municipal, à taxa de 1,40 peso por dólar. Em seguida, ele deixa o câmbio flutuar de maneira um pouco mais livre. Como consequência, o peso afunda. Em junho, a cotação do dólar chega a quase 4 pesos.



Gráfico 11: evolução do valor do dólar em relação ao peso

Consequentemente, a inflação de preços, após quase uma década de estabilidade, vai a 40%. 



Gráfico 12: taxa de inflação anual de preços, 2001-2002

A tragédia agora estava completa. Os pobres estavam literalmente sem dinheiro. A classe média não apenas estava com seu dinheiro preso nos bancos, como também este havia sido forçosamente desvalorizado. Quem tinha depósitos em dólares — e, em 2001, a maioria dos depósitos bancários era em dólar (47 bilhões de dólares contra 18 bilhões de pesos) — viu sua poupança ser convertida em peso à taxa de 1,40 peso por dólar, sendo que o câmbio havia ido para quase 4 pesos. Não bastasse a falta de dinheiro, a desvalorização cambial fez com que tudo encarecesse, gerando a inflação de 40%. Todos os importados se tornaram virtualmente inacessíveis. Pouco dinheiro e moeda sem nenhum poder de compra.

Inúmeras empresas faliram. A qualidade de vida da população despencou. Há relatos de que, na elegante Calle Florida, famílias de classe média, cuja poupança de toda uma vida havia sido confiscada pelo governo, abordavam turistas suplicando por dinheiro. O desespero era grande porque até mesmo a compra de itens básicos, como leite, estava difícil.

Vários milhares de destituídos e desempregados se transformaram em cartoneros, catadores de papel. Estatísticas afirmam que entre 30 e 40 mil pessoas passaram a revirar as ruas de Buenos Aires à procura do material.

Ainda mais impressionante foi a evolução — ou, mais apropriadamente, a involução — da porcentagem de pessoas abaixo da linha de pobreza na grande Buenos Aires. Uma cifra que chegou a ser de 16,1% em maio de 1994 saltou para 54,3% em outubro de 2002, um valor ainda maior do que o do ano de 1989 (47,3%), quando o país vivia sob hiperinflação. Em nível nacional, a pobreza chegou a 57,5% da população, a indigência a 27,5% e o desemprego a 21,5%, todos níveis recordes para o país.

Conclusão

Todo o desenrolar dos fatos deixa bem claro de quem é a culpa. Qual entidade confisca o dinheiro das pessoas, aniquila toda a sua poupança e até mesmo estipula quantias máximas a serem utilizadas? Qual entidade gera incertezas ao se mostrar incapaz de controlar seus gastos e de se adequar dentro de seu orçamento?

Enquanto o governo foi capaz de manter um orçamento equilibrado e de seguir ortodoxamente as regras do Currency Board, a qualidade de vida da população aumentou substancialmente.

A partir do momento em que o governo não mais conseguiu manter seu orçamento equilibrado (a partir de 1995) e passou a aumentar sua dívida de forma contínua, gerando incertezas quanto à capacidade de financiamento e aumentando a propensão a um calote, a confiança no sistema começou a desaparecer. Não obstante, tudo poderia ter sido revertido caso o governo houvesse feito a dolarização da economia em 1999. Neste cenário, seria por definição impossível uma desvalorização e uma fuga de capitais. 

Quando o ministro Cavallo deixou explícita sua intenção de alterar o regime cambial, o que na prática representou a abolição do regime de conversibilidade original, a confiança no sistema foi completamente aniquilada. O colapso era questão de tempo.

Mas há outros culpados.

O sistema bancário de reservas fracionárias também teve um papel decisivo nessa história. Muito embora o Currency Board de fato tenha restringido a taxa de crescimento da oferta monetária, tanto o M1 quanto o M2 chegaram a volumes muito acima das reservas internacionais. Não apenas isso estimulou os ataques especulativos, como também foi a causa dos saques bancários dos correntistas a partir de outubro de 2000, o que gerou uma forte contração monetária. Uma contração monetária é consequência direta da expansão anterior decorrente das reservas fracionárias. A adoção de um regime de 100% de reservas teria evitado esse cenário.



Gráfico 13: evolução do M1, 04/1991—12/2001



Gráfico 14: evolução do M2, 04/1991—12/2001

O corralito implantado pelo governo com o intuito de conter a sangria ilustrada nos dois gráficos acima foi apenas mais um exemplo prático da teoria de que um sistema bancário de reservas fracionárias sem um emprestador de última instância é uma impossibilidade. (O corralito só viria a ser abolido em dezembro de 2002, mas ainda manteria várias restrições sobre transações financeiras e aquisição de dólares).

No entanto, vale enfatizar o fato de que, não obstante o governo tenha destruído seu orçamento, elevado seus gastos, incorrido em vultosos déficits, se endividado e, no final, tenha adulterado os fundamentos básicos do Currency Board, tal sistema deu à Argentina, um país que há muito desconhecia o que era inflação baixa, um período de sete anos (1995-2001) de inflação praticamente nula, um atestado de sua qualidade.

Veja o gráfico da evolução anual da inflação de preços. O gráfico começa em abril de 1992, um ano após a introdução do Currency Board. Note que a âncora cambial é abolida em janeiro de 2002.



Gráfico 15: taxa de inflação anual, 04/1992—12/2002

Por fim, este gráfico da evolução do PIB em dólares desde 1970 é bastante significativo. Ele mostra o que a estabilidade de preços em conjunto com uma moeda forte podem fazer a uma economia. Mostra também o que acontece quando o governo resolve destruir este sistema.



Gráfico 16: PIB nominal em dólares, 1970-2009

Ao final de 2009, o PIB em dólares era praticamente o mesmo de 1998, o que significa que a economia levou 11 anos para voltar ao mesmo nível de onde estava durante a crise da Rússia.

O tamanho do estrago que um governo é capaz de fazer em uma economia é algo que jamais deve ser subestimado.

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

O MITO DA SUPERPOPULAÇÃO

Malthus, pioneiro na ideia de que o mundo não aguentaria tanta gente, previa que a comida do mundo acabaria em 1890. Na década de 60, a ONU (sempre ela) começou a apregoar que isso ocorreria no fim da década de 70. Hoje, 2012, nunca o mundo desperdiçou tanta comida.


Voltava do Recife, casamento de Jorge Ferraz, onde tive o prazer de encontrar os editores desta revista, e olhava Alagoas pela janela. Notei uma imensa área verde, não parecia haver ninguém, e lembrei como se diz por aí que estamos chegando a um ponto de superpopulação no planeta. Mas isso não é verdade.

Junte todas as pessoas do mundo numa única multidão. Cabe todo mundo no Distrito Federal. E nem é muito apertado: pense antes numa missa campal que num show. Dá 0,85m² por pessoa, bem mais tranquilo que um metrô ou um ônibus. Duvida? Pergunte ao Wolfram Alpha:


Ok, mas não dá para colocar toda a humanidade numa multidão. Vamos fazer o seguinte. Vamos dar um lote de 86m² (maior que o meu apartamento) para cada pessoa do mundo. Cabe todo mundo em Minas Gerais:


E isso que não considerei que as pessoas se juntam em famílias e que hoje fazemos construções verticais, os prédios. Muitas vezes acreditamos na balela de superpopulação porque vivemos, a maioria da humanidade, em grandes cidades, e consideramos impossível que se sustente uma densidade assim em todo mundo, esquecendo-nos das áreas inabitadas ou de população muito esparsa, que formam a maioria do território.

Malthus, pioneiro na ideia de que o mundo não aguentaria tanta gente, previa que a comida do mundo acabaria em 1890. Na década de 60, a ONU (sempre ela) começou a apregoar que isso ocorreria no fim da década de 70. Hoje, 2012, nunca o mundo desperdiçou tanta comida.

Há fome no mundo, e sempre houve. As causas são complexíssimas, mas o excesso de gente não é uma delas. Guerras, pobreza, má distribuição, ganância, concorrem para a fome muito mais que o excesso de pessoas.

A pobreza, contudo, tem uma maneira eficaz de ser combatida: mais gente no mundo! Quanto mais braços a trabalhar, mais riqueza é produzida. E isso torna-se óbvio ao ver o êxodo rural de meados do século XX, em que muitos pais de família foram “sozinhos pra capital”, como diz bela canção de Caetano Veloso. A cidade, com todos os seus problemas, exatamente por ser uma concentração enorme de pessoas, permite uma geração de riqueza mais eficaz.

Além de falta de espaço e de comida, outros problemas podem ser elencados em relação ao crescimento populacional, como a geração de lixo, e o uso de outros recursos que não alimentos. Para estes últimos, a inovação científica e tecnológica, aliada à geração cada vez mais eficiente de riquezas, tem andado em ritmo mais veloz que o aumento populacional. O lixo depende de novas ideias e uma nova (ou antiga) maneira de entender o consumo.

A diminuição da população, contudo, traz problemas reais.

É natural na história que os jovens sustentem os velhos quando esses param de trabalhar, como um dever de justiça; o próprio sistema previdenciário é baseado nessa ideia. O aumento da expectativa de vida, juntamente com a queda nas taxas de natalidade, tornou mais difícil (e cada vez mais raro) que isso fosse cumprido, e frustrou cálculos previdenciários feitos há 60 anos. Diversos países que tiveram a sua taxa de natalidade diminuída nos tempos recentes hoje vivem crises gravíssimas de previdência social.

Alguns países já percebem o mal que a diminuição populacional causa, e começam a enfrentar o problema. Vários países europeus, que sofreram um inverno demográfico voluntário e hoje têm medo de uma dominação islâmica meramente numérica (já que esses últimos não se negam a ter filhos), hoje dão inúmeras benesses a quem tenha filhos, chegando ao ponto de dar um valor fixo em dinheiro por mês a cada um que se tenha. Em Cingapura foi feita uma campanha de extremo mau gosto para que as pessoas dedicassem certa noite (a Menthos National Night) à reprodução.

O fato: não há superpopulação. O tamanho da população mundial nunca trouxe problemas por ser grande mas, ao contrário, onde falta gente abundam problemas. Para mais informação, recomendo a visita a este site:http://overpopulationisamyth.com.



Luís Guilherme Pereira é engenheiro de computação e colunista do site da revista Vila Nova, no qual foi publicado este artigo.

domingo, 7 de abril de 2013

PORQUE O BRASIL NÃO CRESCE MAIS?


Em 2011, quando foi dada a notícia de que o Brasil havia ultrapassado o Reino Unido em termos do Produto Interno Bruto (PIB), a euforia foi grande. Para o governo brasileiro, este evento foi interpretado como consequência de sua própria política econômica e como um prognóstico de que em pouco tempo o Brasil iria ultrapassar também as outras grandes economias e encostar na China e nos Estados Unidos. Exatamente por isso, foi grande a decepção quando, pouco tempo depois, a economia brasileira se estagnou e perdeu — na verdade, devolveu — para o Reino Unido o sexto lugar no ranking das maiores economia do mundo.

A pergunta que agora se faz é: o forte crescimento da economia brasileira nos anos anteriores a 2011 representou um sinal de um novo padrão de crescimento econômico para o Brasil ou será que toda aquela bonança econômica foi apenas um ponto fora da curva? No primeiro cenário, o fraco crescimento econômico atual seria apenas algo temporário, de modo que o Brasil voltará em breve a crescer novamente. Porém, uma análise mais profunda do desempenho econômico do Brasil aponta para o segundo cenário: o fraco crescimento econômico atual sinaliza um retorno ao padrão antigo, com longas estagnações.

Porém, dado que o governo atual vai fazer todo o possível para voltar a apresentar altas taxas de crescimento econômico, é de se esperar uma intensa aplicação de todo o arsenal de políticas macroeconômicas com o intuito de se fabricar um crescimento artificial. A consequência disso é que o alívio temporário será pago com uma debilidade econômica ainda maior no futuro. 

Crescimento fraco

Desde 2011, a economia brasileira entrou numa fase de debilidade, com uma rápida queda das taxas do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do país (veja figura 1).



Figura 1: Taxas de crescimento do PIB 2010 - 2012 (Trimestre sobre mesmo trimestre do ano anterior



Como se pode observar no seguinte gráfico (figura 2), depois da crise cambial de 1999, o Brasil experimentou uma fase de produção abaixo da trajetória de longo prazo, fase esta que foi seguida por uma forte recuperação de 2004 até 2010, a qual empurrou o produto interno bruto brasileiro para cima da tendência do PIB de longo prazo.



Figura 2 - PIB em bilhões de dólares 1980-2012

Porém, durante essa fase de forte crescimento econômico do PIB, a taxa do crescimento da produção industrial permaneceu fraca.



Figura 3 — Taxas anuais do crescimento da produção industrial 1995-2012

No setor industrial, a taxa de crescimento se tornou negativa em 2012, gerando preocupações quanto a uma onda de "desindustrialização". No entanto, a fraqueza do setor industrial brasileiro não é de modo algum algo novo. Com uma taxa média de crescimento anual de apenas 2,6 % desde o começo dos anos 1990, o Brasil nunca chegou a completar o processo de industrialização.

O conjunto dos dados (figuras 1-3) fortalece a tese de que a atual fraqueza do crescimento da economia brasileira sinaliza um retorno à sua tendência histórica. Dado que a debilidade da produção industrial não mudou e continua fraca, foram fatores temporários que atuaram para gerar o crescimento econômico acima de sua trajetória nos anos de 2004 até 2010. 

Como a capacidade produtiva do Brasil não aumentou de forma sustentável, as baixas taxas de crescimento econômico vivenciadas desde 2011 indicam um retorno a uma trajetória de crescimento mais baixa do que a da última década. Este retorno pode acontecer em tempo mais curto, na forma de uma forte recessão, ou em um período de tempo mais prolongado, configurando uma estagnação.

Uma breve bonança

A boa conjuntura que o Brasil vivenciou de 2004 até 2010 foi mal interpretada pelo governo, que tomou a fase de crescimento forte como uma conquista da sua própria política econômica. Na verdade, a prosperidade veio de fora, com a alta dos preços das exportações brasileiras (veja figura 4).



Figura 4 - Índice de preços das exportações brasileiras (1980- 2012)

Aplicando menos de 20% do PIB em investimentos (figura 5), nada foi preparado durante esta fase de bonança para fortalecer a capacidade produtiva do país.



Figura 5 - Investimentos em porcentagem do PIB (1980 - 2012)

O governo brasileiro parece ser incapaz de reconhecer que uma expansão econômica totalmente baseada no consumo, sem investimentos, é uma medida que pode funcionar apenas no curto prazo. Para crescer no longe prazo, é necessário haver acumulação de capital, e a acumulação de capital requer investimentos, que, em sua vez, necessita de poupança.

O que possibilitou o crescimento econômico sem a concomitante expansão da base produtiva da economia por meio de investimentos foi uma mudança radical da tendência dos termos de troca, a relação entre o preço dos bens de exportação e o preço dos bens de importação do Brasil. Em termos de pontos do índice, os termos de troca do Brasil alcançaram um máximo de 132,6 pontos em setembro 2011, tendo atingido um mínimo 64,7 em outubro de 1981.


Figura 6 - Índice dos termos de troca (1980-2012)

Analisando os termos de troca do Brasil — utilizando unidades constantes da moeda local — para um período mais longo, nota-se de forma ainda mais clara a grande mudança que aconteceu a partir de 1967. 



Figura 7 - Termos de troca em constantes unidades de moeda local (constant LCU), 1967-2012O forte disparo visto nos preços dos bens de exportação e a consequente melhoria da posição do Brasil no comércio exterior coincidiu com o aumento global dos preços das commodities. O aumento dos preços dos bens exportados pelo Brasil em relação aos preços dos bens importados foi consequência da alta global dos preços das commodities. Nada teve a ver com uma revitalização da economia brasileira.

Outro indicador desta profunda mudança é o comércio do Brasil com a China. Preços altos e uma aceleração na demanda por commodities da China estimularem as exportações e, por conseguinte, o crescimento do PIB do Brasil. Segundo os dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, as exportações do Brasil para a China aumentaram de 1,9 bilhão de dólares em 2001 para 30,8 bilhões de dólares em 2010. 

Das exportações de 2010, 83,7 % foram de commodities básicas e 11,8 % foram semimanufaturados. Somente 4,5 % foram de produtos manufaturados. Ao mesmo tempo, as importações da China para o Brasil foram de 25,6 bilhões de dólares, sendo que 97,5 % foram produtos manufaturados.

Uma nova síntese se formou no mundo: o Brasil é o gigante da agricultura e dos recursos naturais e a China é o novo gigante da indústria. Enquanto a China se industrializou, o Brasil se enfraqueceu; e enquanto China desfrutou de altas taxas de investimentos, o Brasil se entregou a uma mania consumista.

Crescimento sem fundamentos

No contexto da história econômica do Brasil, a atual debilidade da economia brasileira não é uma grande surpresa. Mais um voo de galinha não seria uma exceção, mas sim a regra do padrão do desenvolvimento econômico brasileiro. A liderança política do país usufrui o duvidoso privilégio de, em decorrência da imensa riqueza do Brasil em termos de recursos naturais e de suas benevolentes condições geográficas, quase nunca ser punida mesmo quando comete erros graves de política econômica.

Durante a sua história, o Brasil já vivenciou diversas crises econômicas. Mesmo durante as poucas guerras em que o país se envolveu, o sofrimento foi pequeno em comparação ao de muitos outros países. No entanto, é esta bem-aventurança da falta de punição imediata quando uma má política é implantada o que impede que o país viva seu pleno potencial. A proteção contra erros faz com que os governos brasileiros não aprendam quase nada com as trapalhadas que cometem. Assim, a capacidade do Brasil de efetivamente realizar o seu potencial de prosperidade é tragicamente baixa.

Crescimento econômico requer acumulação de capital, que por sua vez requer investimentos, sendo que investimentos requerem poupança. Mesmo a inovação e o aumento da qualidade do capital humano precisam de poupança. A baixa taxa de poupança do Brasil não é um fenômeno recente, mas sim uma característica típica da economia brasileira. Ao passo que países emergentes que estão decolando em termos de desenvolvimento econômico apresentam taxas de poupança e de investimentos na faixa de 30 % e 40 % do PIB, como a China, a taxa de poupança brasileira esta abaixo de 20 %.



Figura 8 — Taxa de poupança bruta brasileira em porcentagem do PIB, 1967- 2012

Fonte: Indicadores do Banco Mundial. Trading Economics




Figura 9 — China. Taxa de poupança bruta em porcentagem do PIB, 1967-2012

Fonte: Indicadores do Banco Mundial. Trading Economics

Com taxas de investimento tão baixas como as do Brasil, o país está destituído dos fundamentos necessários para um progresso econômico sólido de longo prazo. O que estes débeis fundamentos permitem são apenas pequenosbooms de curto prazo, na forma do voo de galinha — afinal, estas baixas taxas de poupança e investimento do Brasil não são um fenômeno recente, mas sim uma característica crônica da macroeconomia brasileira.

Intimamente relacionada à raquítica formação de capital — em decorrência da baixa poupança — está a produtividade da economia brasileira. Entre 17 países da América Latina, o Brasil ocupa o 15º lugar em produtividade; e na escala global, o país está na 75ª posição entre 122 países. Nas décadas passadas, enquanto muitos outros países emergentes aumentaram a produtividade de suas economias em relação aos Estados Unidos, o Brasil perdeu em relação a eles.

A produtividade econômica é a chave da prosperidade. O grau de produtividade representa um determinante essencial para o nível de salários. O verdadeiro mecanismo de saída da pobreza é o aumento da produtividade, e não a distribuição de esmolas. Para colocar o Brasil no caminho de prosperidade não basta jogar com a macroeconomia como se ela fosse uma bola pingue-pongue. O que o país precisa é de uma estratégia de desenvolvimento econômico de longo prazo, direcionada para o aumento da produtividade. Porém, isto requer acumulação de capital e inovação — algo que é impossível de se obter sem altas taxas de poupança e investimentos.

O que fazer para o Brasil crescer?

A maldição do Brasil é a abundância. Não necessariamente a abundância na forma de recursos naturais, mas sim a abundância excessiva de burocracia, de intervencionismo, de protecionismo, de voluntarismo político, e até mesmo de democracia.

O Brasil não sofre só da inflação monetária; sofre também de uma inflação de leis e regulamentações. Não bastasse a incerteza de se gerenciar empresas no Brasil já ser alta, esta incerteza se multiplica por causa do intervencionismo arbitrário do governo; e se este já não fosse demasiado agigantado, a economia brasileira também é forçada a suportar um poder judiciário que adora se intrometer em áreas onde o livre mercado é capaz de encontrar as melhores soluções.

Ao mesmo tempo em que os políticos fazem o que querem com a economia e os burocratas criam leis e regras que não fazem sentido, a super-poderosa justiça brasileira completa a confusão com decisões que paralisam a iniciativa privada. Em todas aquelas áreas da economia em que os agentes necessariamente se pautam por um horizonte de tempo maior — como poupança e investimento, infraestrutura, inovação e educação —, há uma total paralisia. O país sofre com uma péssima infraestrutura, o desempenho em inovação é fraco e o sistema educacional é dos piores do mundo. 

Se de um lado o governo pratica um hiperativo intervencionismo, intrometendo-se em áreas onde o livre mercado é mais eficiente do que qualquer burocracia, de outro ele mostra uma generosa negligência em relação a áreas cruciais, como infraestrutura e educação. Ainda pior do que essa negligência é o fato de ele criar leis e regulamentações que atrapalham e até mesmo proíbem a iniciativa privada de atuar nestas áreas. 

Conclusão

Há poucos países no mundo cujas condições são tão favoráveis para uma grande prosperidade quanto o Brasil. Porém, uma mentalidade favorável ao intervencionismo estatal e burocrático produz uma atitude de procrastinação permanente que atravessa todo o espectro da sociedade brasileira. O Brasil parece aquele sujeito que tem uma casa grande e bela, mas com vários buracos no telhado que precisam ser reparados. Quando o tempo está bom, ele acha que não há necessidade de consertar os buracos; e quando chove, ele diz que não pode fazer nada agora porque o tempo está ruim.

A principal causa da paralisia do país perante a urgente necessidade de se arrumar as condições para possibilitar um futuro melhor é a onipresença do estado brasileiro. Este estado intervencionista obstrui todas as atividades privadas. A economia brasileira se encontra permanentemente bombardeada por imprevisibilidades e por uma total ausência de lógica e de bom senso nas medidas intervencionistas do governo, as quais visam apenas ao curtíssimo prazo. O resultado é uma economia de produtividade extremamente baixa em conjunto com uma renda não somente baixa, mas também mal distribuída.

O que bloqueia o país não é a falta de "inclusão social" ou outras quimeras. O que bloqueia o progresso do Brasil é a crença quase absoluta no poder do estado e uma forte desconfiança na eficiência do livre mercado. O grande mistério da cultura brasileira é a contradição entre esta ideologia que idolatra o estado e a visível realidade gerada por esta ideologia.

Antony Mueller é doutor pela Universidade de Erlangen-Nuremberg, Alemanha (FAU) e, desde 2008, professor de economia na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde ele atua também no Centro de Economia Aplicada. Antony Mueller é fundador do The Continental Economics Institute (CEI) e mantém em português os blogs Economia Nova e Sociologia econômica. Ele vai administrar o curso online "Patologias macroeconômicas -- Como governos e bancos centrais provocam inflação, desemprego e crises econômicas" do Instituto Mises Brasil a partir de 9 de Abril de 2013.

NA CONTRAMÃO DA MODERNIDADE

O mundo moderno das relações empresariais e trabalhistas caminha rumo à flexibilização, à agilidade e à redução de custos. Ninguém pode ficar imune a um processo que, por seu caráter global, faz padecer aqueles que desconsideram essa nova realidade.


Engessar relações trabalhistas e considerar setores produtivos de uma forma segmentada fazem com que toda a nação termine por pagar um preço exorbitante pelo desconhecimento das transformações em curso.

As novas redes de produção estão baseadas em crescente especialização, em que cada elemento ou elo oferece sua vantagem competitiva, de forma que todos saiam ganhando.

A recente decisão da Justiça do Trabalho de Matão (SP), a partir de uma ação proposta pelo Ministério Público do Trabalho, vai na contramão dessa tendência.

Ela condenou as maiores indústrias de suco de laranja do país (Cutrale, Citrosuco e Louis Dreyfus Commodities) a pagar indenização de R$ 400 milhões por dano moral coletivo que teria sido causado --e esse é o problema-- pela terceirização indevida de trabalhadores no plantio e colheita de laranja.

Ora, o plantio e a colheita, assim como o transporte de frutos ou de grãos, são atividades por si mesmas, que seguem regras próprias e nada têm a ver com uma suposta terceirização de mão de obra indevida.

Não se trata de forma de precarização das relações de trabalho ou de fazer com que trabalhadores levem uma vida insalubre, prática que, evidentemente, condenamos.

Terceirização no bom sentido significa, nesse caso, que empresas processadoras e comerciantes de sucos, assim como empreendedores rurais, forneçam, cada um, o que de melhor têm de si. Especializações respectivas auferem ganhos coletivos.

Não há mais sentido, nas redes de produção modernas, em separar como realidades distintas atividades-meio de atividades-fim. Elas se entrelaçam de uma forma indissociável, pois, segundo a perspectiva, fim se torna meio, e meio, fim. O mundo contemporâneo vive, precisamente, da diferenciação e da interface dessas perspectivas.

Se um empreendedor rural opta pela produção e pela colheita de um determinado produto, trata-se de algo que se origina de uma escolha sua, sendo dela responsável, inclusive do ponto de vista trabalhista.

O que é inaceitável é que tal empreendedor venha a ser considerado, pela Justiça do Trabalho e pelo Ministério Público do Trabalho, como um mero intermediário, um eventual ludibriador da legislação trabalhista ou, até mesmo, um trabalhador assalariado velado. A livre escolha é um princípio da moderna sociedade.

Consoante com o espírito do tempo, tramita no Senado o projeto de lei nº 87, de 2010, de autoria do senador Eduardo Azeredo, que procura introduzir um novo conceito de terceirização, em acordo com a modernização necessária de nossas relações sociais e econômicas. Segundo esse novo espírito, cabe considerar de outra maneira as relações civis entre empresas, cada uma responsável por suas próprias relações trabalhistas, em um espírito de parceria e de respeito à lei.

A justificativa desse projeto de lei diz o seguinte: "Nenhuma empresa pode fazer tudo. Há mais eficiência quando empresas de diferentes especializações formam redes de produção, nas quais cada uma faz a sua parte".

Grandes empresas do agronegócio se veem, assim, diante da maior insegurança jurídica, o que pode causar enorme prejuízo do ponto de vista de suas exportações.

Empresas concorrentes a nível internacional, por exemplo, podem aproveitar situações desse tipo para falar de condições insalubres ou precárias de mão de obra, visando ao fechamento de nossos mercados.

A opinião pública internacional é facilmente manipulável, sobretudo no que diz respeito ao Brasil. O país joga contra si mesmo.

O imperativo diante do qual estamos é o de não nos colocarmos na contramão de uma modernização necessária. Urge, portanto, que o Congresso Nacional assuma essa questão, elaborando novas leis que deem conta de um mundo também novo. Por: Kátia Abreu Folha de SP