quinta-feira, 11 de abril de 2013

O SOCIALISMO COMO UM IMPERATIVO MORAL

Este artigo foi extraído do capítulo 30 do livro Socialism — an economic and sociological analysis


Engels classificou o Movimento Trabalhista alemão como o herdeiro da filosofia alemã clássica. Seria mais correto dizer que o socialismo alemão (não somente o marxista) representa a decadência da escola de filosofia idealista. O socialismo deve a soberania que conseguiu adquirir sobre a mentalidade alemã à ideia de sociedade concebida pelos grandes pensadores alemães. Partindo-se do misticismo kantiano sobre o trabalho e da deificação hegeliana do estado, é fácil remontar a evolução do pensamento socialista.

Em décadas recentes, o ressurgimento da análise kantiana — esta tão aclamada façanha da filosofia alemã — serviu para beneficiar o socialismo. Os neokantianos, especialmente Friedrich Albert Lange e Hermann Cohen, se declararam socialistas. Simultaneamente, os marxistas tentaram conciliar o marxismo com a Neocrítica. Desde que as fundações filosóficas do marxismo começaram a mostrar sinais de rachadura, multiplicaram-se as tentativas de encontrar na filosofia crítica um suporte para as ideias socialistas.

A parte mais fraca do sistema de Kant é a sua ética. Embora seus conceitos individuais sejam fortificados pelo seu poderoso intelecto, a grandeza deles não consegue esconder o fato de que seu ponto de partida foi escolhido desastrosamente e sua concepção fundamental é totalmente errônea. A desesperada tentativa kantiana de erradicar o eudemonismo fracassou. No campo da ética, Bentham, Mill e Feuerbach triunfaram sobre Kant. A filosofia social de seus contemporâneos, Ferguson e Adam Smith, não o afetou. A ciência econômica permaneceu totalmente estranha a ele. Todas as suas percepções sobre problemas sociais sofrem destas deficiências.

Neste aspecto, os neokantianos não fizeram progressos em relação ao seu mestre. Eles, também, não possuem grandes discernimentos sobre a fundamental lei social da divisão do trabalho. Eles apenas creem que a distribuição de renda não condiz com o seu ideal apregoado, e que as maiores rendas não vão para aqueles que eles consideram ser os mais dignos e os mais merecedores, mas sim para uma classe que eles desprezam. Eles veem pessoas pobres e necessitadas, mas não tentam descobrir se isto é uma consequência da instituição da propriedade privada ou de tentativas de se restringi-la. Eles condenam de pronto a existência da instituição da propriedade privada, pela qual eles — que sempre viveram totalmente distantes dos problemas empreendedoriais — jamais tiveram qualquer simpatia. Seus pensamentos são dominados por imagens de pessoas mais prósperas do que eles próprios. Eles fazem comparações entre, de um lado, seus próprios valores e a falta de valores destas pessoas, e, de outro, sua própria pobreza e a riqueza destas outras pessoas. No final, raiva e inveja, em vez de razão, motivam seus escritos.

Isso por si só explica por que pensadores lúcidos como os neokantianos ainda não pensaram claramente sobre os problemas mais prementes da filosofia social. Nem mesmo os rudimentos de uma filosofia social mais abrangente são encontrados em suas obras. Eles fazem inúmeras críticas infundadas a certas condições sociais, mas se omitem de discutir os mais importantes sistemas sociológicos. Eles fazem julgamentos sem antes terem se familiarizado com os resultados da ciência econômica.

O ponto de partida de seu socialismo geralmente é a frase: "Aja de tal maneira que você utilize o seu ser, de maneira idêntica ao ser de qualquer outro, sempre como uma finalidade, jamais como meramente um meio". Nestas palavras, diz Hermann Cohen, "o mais profundo e poderoso significado dos imperativos categóricos é expresso: eles contêm o planejamento moral da era moderna e de toda a história do mundo futuro." E daí até o socialismo, infere ele, não há uma grande distância. "A ideia de que a humanidade possui um propósito final se transmuta diretamente na ideia do socialismo quando cada indivíduo é definido como sendo o propósito supremo, um fim em si próprio."

É evidente que este argumento ético em defesa do socialismo ou se mantém de pé ou é demolido pela declaração de que, na ordem econômica baseada na propriedade privada dos meios de produção, todos os homens, ou alguns homens, são meios e não fins. Os neokantianos consideram isso como algo já completamente comprovado. Eles acreditam que, em tal ordem social, existem duas classes de homens, os proprietários e os não-proprietários, dos quais somente os primeiros levam uma existência digna de um ser humano, ao passo que os últimos meramente sobrevivem. É fácil ver de onde vem esta ideia. Ela se baseia nas sempre populares ideias sobre as relações entre ricos e pobres, e é amparada na filosofia social marxista, pela qual os neokantianos professam grande simpatia sem, no entanto, explicitar suas considerações a respeito dela.

Os neokantianos ignoram completamente a teoria social liberal. Eles admitem como fato consumado que se trata de algo insustentável e indefensável, e creem que seria uma perda de tempo criticá-la. No entanto, é somente refutando as ideias liberais a respeito da natureza da sociedade e da função da propriedade privada que eles conseguiriam justificar a afirmativa de que, em uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção, os homens servem apenas como meios, e não como fins. Pois a teoria social liberal prova que cada indivíduo isolado vê todos os outros, acima de tudo, somente como meios para a realização de seus objetivos, ao passo que ele próprio é visto por todos os outros como um meio para a realização dos objetivos deles; e que, finalmente, por meio de suas ações recíprocas, na qual cada indivíduo é simultaneamente um meio e um fim, alcança-se o mais elevado objetivo da vida social — a concretização de uma melhor existência para todos. 

Se a sociedade só é possível se todos os indivíduos, ao mesmo tempo em que vivem suas próprias vidas, ajudam os outros a viver, se cada indivíduo é simultaneamente meio e fim, se o bem-estar de cada indivíduo é simultaneamente a condição necessária para o bem-estar de outros, então se torna evidente que o contraste entre mim e você, meio e fim, é automaticamente superado. 

O peculiar argumento destes neokantianos em defesa da abolição da propriedade privada revela a ignorância que ainda viceja em suas mentes no que diz respeito a este fundamental problema da vida social. Objetos, dizem eles, têm valor. Pessoas, por outro lado, não têm valor. Elas têm dignidade. O preço de mercado do valor da mão-de-obra é incompatível com a dignidade do indivíduo. Isto nos leva ao abismo da fraseologia marxista e à doutrina do "caráter de mercadoria" da mão-de-obra, bem como todas as objeções que tal expressão desperta. Esta expressão acabou fazendo parte dos tratados de Versalhes e Saint Germain, exigindo a aceitação do princípio básico de que "a mão-de-obra não deve ser considerada meramente como um artigo de comércio".

Após tudo isto, não devemos nos surpreender ao encontrar repetidamente nas obras neokantianas todas aquelas palavras-chaves que por milhares de anos foram empregadas contra a instituição da propriedade privada. Os neokantianos rejeitam a propriedade privada porque o proprietário, ao assumir o controle sobre uma ação isolada, se torna o proprietário de fato do indivíduo. Eles rejeitam a propriedade privada porque ela retira do trabalhador os produtos do seu trabalho.

Evidentemente, o argumento em prol do socialismo apresentado pela escola kantiana sempre nos remete de volta aos conceitos econômicos dos vários escritores socialistas que a precederam; acima de tudo a Marx e aos socialistas "acadêmicos" que seguiram seus passos. Seus argumentos são exclusivamente econômicos e sociológicos, e todos eles se comprovam insustentáveis.

A função do trabalho como um alicerce do socialismo

"Quem não quiser trabalhar, não tem o direito de comer", diz a Segunda Epístola dos Tessalonicenses (2 Tessalonicenses 3:10), a qual é atribuída ao Apóstolo Paulo. Esta advertência e exortação ao trabalho é dirigida àqueles que querem viver sua cristandade à custa dos membros trabalhadores da congregação; tais pessoas devem se prover a si próprias sem representarem um fardo para seus semelhantes. Retirada deste contexto, tal passagem há muito vem sendo interpretada como uma crítica à "renda imerecida", ou seja, à renda que não advém do trabalho puro, mas sim de outras atividades, como ganhos de capital. Ela contém um preceito moral expresso de maneira bastante sucinta, o qual vem continuamente sendo advogado com enorme vigor.

A sequência de ideias que levou as pessoas a este princípio pode ter sua origem rastreada a uma frase de Kant: "O homem pode ser extremamente engenhoso e criativo, mas, ainda assim, ele não pode forçar a Natureza a aceitar outras leis. Ou ele próprio deve trabalhar, ou deve fazer com que os outros trabalhem por ele; e seu trabalho irá roubar dos outros a exata quantidade de felicidade que ele precisa adquirir para elevar a sua própria felicidade para acima da média."

É importante observar que a indireta rejeição da propriedade privada contida nestas palavras kantianas está baseada estritamente em uma visão utilitarista ou eudemonística. O conceito do qual parte Kant é o de que, por meio da propriedade privada, uma maior quantidade de trabalho é imposta sobre alguns, enquanto outros podem se dar ao luxo de permanecer ociosos. Porém, esta crítica não prova que a propriedade privada e as diferenças na quantidade de propriedade representam um confisco ou uma espoliação de alguma pessoa. Tampouco ela desmente o fato de que, em uma ordem social em que a propriedade privada fosse abolida, a produção de bens e serviços seria acentuadamente reduzida e a quota per capita do produto da mão-de-obra seria menor do que aquela que um trabalhador que não é proprietário de nenhum meio de produção recebe como renda em uma ordem social baseada na propriedade privada. Tal crítica kantiana entra em colapso tão logo é desmentida a afirmação de que o lazer e o ócio dos proprietários são comprados com os esforços extras daqueles que não possuem propriedades.

Tais julgamentos éticos contra a propriedade privada também demonstram claramente que toda e qualquer avaliação moral sobre determinadas atribuições econômicas baseia-se, em última instância, na percepção de quais efetivamente foram suas realizações econômicas — nisso e em nada mais. Rejeitar somente em "bases morais" uma instituição que não é considerada repreensível do ponto de vista utilitarista não é, se analisarmos mais detidamente, o objetivo de uma consideração ética. Na realidade, em todos estes casos, a única diferença de opinião é uma diferença de opinião a respeito da função econômica de tais instituições.

Este fato tem sido negligenciado pelos defensores da propriedade privada porque, ao tentarem refutar as críticas éticas à propriedade privada, eles recorrem a argumentos errados. Em vez de demonstrar a importância social da propriedade privada, eles normalmente se contentam em demonstrar que existe um direito de propriedade, ou se contentam em provar que o proprietário não é alguém inativo, uma vez que ele trabalhou para adquirir sua propriedade e trabalha para mantê-la. E vários outros argumentos desta natureza. 

A fraqueza de todas estas argumentações é óbvia. É paradoxal se referir a uma lei existente quando o problema todo está em definir qual deve ser a lei; é paradoxal se referir ao trabalho em que o proprietário incorre ou incorreu quando o problema não é se um determinado tipo de trabalho deve ou não ser remunerado, mas sim se a propriedade privada dos meios de produção sequer deve existir; e, se ela existe, se a desigualdade gerada por ela pode ser tolerada.

Portanto, do ponto de vista ético, não se deve perguntar se um determinado preço é justificável ou não. Um julgamento ético tem de escolher entre uma ordem social baseada na propriedade privada dos meios de produção e uma baseada na propriedade comunitária. Assim que se tiver chegado a uma decisão — a qual, para a ética eudemonística, deve ser baseada somente em uma opinião sobre qual seria o resultado de cada uma das duas formas imaginadas de sociedade —, não se pode rotular de imoral as consequências isoladas da ordem escolhida. Se a ética escolheu uma determinada ordem social, suas consequências serão necessariamente morais, e todas as outras alternativas serão imorais.

A igualdade de renda como um postulado ético

Sobre a afirmação de que todos os homens devem ter rendimentos iguais, pouco pode ser dito cientificamente tanto a favor quanto contra. Eis um postulado ético que só pode ser avaliado subjetivamente. Tudo o que ciência pode fazer é mostrar o quanto tal objetivo iria custar para a humanidade, e de quais outros objetivos deveríamos abrir mão em nosso esforço para tentar alcançar este. 

A maioria das pessoas que exige a maior igualdade possível de rendas não percebe que o objetivo que elas desejam só pode ser alcançado pelo sacrifício de outros objetivos. Elas imaginam que a soma de todas as rendas permanecerá inalterada e que tudo o que elas precisam fazer é apenas distribuir a renda de maneira mais uniforme do que a distribuição feita pela ordem social baseada na propriedade privada. Os ricos abdicarão de toda a quantia auferida que estiver acima da renda média da sociedade, e os pobres receberão tanto quanto necessário para compensar a diferença e elevar sua renda até a média. Mas a renda média, imaginam eles, permanecerá inalterada. É preciso entender claramente que tal ideia baseia-se em um grave erro. Como demonstrado em capítulos anteriores, não importa qual seja a maneira que se conjeture a equalização da renda — tal medida levará, sempre e necessariamente, a uma redução extremamente considerável da renda nacional total e, consequentemente, da renda média. Quando se compreende isto, a questão assume uma complexidade bem distinta: agora temos de decidir se somos a favor de uma distribuição equânime de renda a uma renda média mais baixa, ou se somos a favor da desigualdade de renda a uma renda média mais alta.

A decisão irá depender essencialmente, é claro, de quão alta será a redução estimada na renda média causada pela alteração na distribuição social da renda. Se concluirmos que a renda média será mais baixa do que aquela que é hoje recebida pelos mais pobres, nossa atitude provavelmente será bem distinta da atitude da maioria dos socialistas sentimentais. Se aceitarmos o que já foi demonstrado sobre o quão baixa tende a ser a produtividade sob o socialismo, e especialmente a alegação de que o cálculo econômico sob o socialismo é impossível, então este argumento do socialismo ético também desmorona.

É incorreto dizer que alguns são pobres simplesmente porque outros são ricos. Se uma sociedade capitalista fosse substituída por uma sociedade baseada na igualdade de renda, todos os cidadãos se tornariam mais pobres. Por mais paradoxal que isso possa soar, os pobres só recebem o que recebem porque os ricos existem. Não fossem os ricos, os pobres estariam em situação muito pior.

O homem moderno sempre teve perante si a possibilidade de enriquecer por meio do trabalho e do empreendedorismo. Nas sociedades econômicas mais rígidas do passado, isto era mais difícil. As pessoas eram ricas ou pobres desde o nascimento, e assim permaneciam por toda a sua vida, a menos que tivessem a chance de mudar de posição em decorrência de algum fato inesperado, o qual não poderia ser causado ou evitado pelo seu próprio trabalho ou iniciativa. Consequentemente, tínhamos os ricos caminhando nas alturas e os pobres, nas profundezas. Mas não é assim em uma sociedade capitalista. Os ricos podem mais facilmente se tornar pobres e os pobres podem mais facilmente enriquecer. E dado que cada indivíduo não mais nasce, por assim dizer, com seu destino ou com o destino de sua família já selado, ele tenta ascender ao mais alto que for capaz. Ele jamais poderá ser suficientemente rico, pois em uma sociedade capitalista nenhuma riqueza é eterna. No passado, o senhor feudal era intocável. Quando suas terras se tornavam menos férteis, ele tinha de reduzir seu consumo; porém, desde que ele não se endividasse, ele mantinha sua propriedade. O capitalista que empresta seu capital e o empreendedor que produz têm de ser aprovados no teste do mercado. Aquele que investir insensatamente, ou produzir a custos altos, estará arruinado. Isolar-se do mercado não mais é uma possibilidade. Mesmo as fortunas fundiárias não podem escapar da influência do mercado; a agricultura, também, tem de produzir capitalisticamente. Hoje, um homem deve obter seu dinheiro em troca do trabalho. Caso contrário, ele empobrece.

Aqueles que desejam eliminar esta necessidade de trabalhar e de empreender precisam entender bem claramente que o que eles estão propondo é o solapamento dos pilares do nosso bem-estar. Que hoje a terra seja capaz de alimentar muito mais seres humanos do que jamais conseguiu em toda a sua história, e que eles hoje vivam em condições muito melhores que as de seus ancestrais, é um fato que se deve inteiramente ao instinto aquisitivo do ser humano. Se o empenho da indústria moderna fosse substituído pelo estilo de vida contemplativo do passado, incontáveis milhões de pessoas estariam condenadas à morte por inanição.

Na sociedade socialista, a arrogância e a preguiça dos funcionários do governo assumirão o lugar da ávida e perspicaz atividade das indústrias modernas. O funcionário público irá substituir o empreendedor vigoroso e dinâmico. Se a civilização vai ganhar com isso é algo que deixaremos para os autonomeados juízes do mundo e de suas instituições julgarem quando estiverem famintos. Seria o burocrata realmente o tipo humano ideal, e deveríamos nós almejar a preencher o mundo com este tipo de gente a qualquer custo? 

Muitos socialistas descrevem com grande entusiasmo as vantagens de uma sociedade formada por funcionários públicos em detrimento de uma sociedade formada por indivíduos em busca do lucro. Para eles, em uma sociedade deste último tipo (a Sociedade Aquisitiva), cada indivíduo busca apenas a sua própria vantagem, ao passo que na sociedade daqueles dedicados à sua profissão (a Sociedade Funcional), cada indivíduo realiza suas tarefas visando ao bem de todos. Esta avaliação mais elevada da burocracia é apenas mais uma nova forma de desdém pelo trabalho diligente e meticuloso do empreendedor e do assalariado.

Se rejeitarmos o argumento em prol do trabalho funcional e o argumento em prol da igualdade de riqueza e renda, o qual se baseia na afirmação de que alguns desfrutam sua fortuna e lazer à custa da crescente exploração do trabalho e da pobreza alheios, então os únicos fundamentos que restam para estes postulados éticos é o ressentimento e a inveja. Ninguém deve poder ficar ocioso se eu tiver de trabalhar; ninguém dever ser rico enquanto eu for pobre. E assim se constata, reiteradas vezes, que o ressentimento e a inveja estão por trás de todas as ideias socialistas.


 Engels, Ludwig Feuerbach und der Ausgang der klassischen deutschen Philosophie, 5th ed. (Stuttgart, 1910), p. 58.
 Cohen, Ethik des reinen Willens, Berlin, 1904, pp. 303 ff.
 Ibid., p. 304.
 Art. 427 do Tratado de Versalhes e Art. 372 do Tratado de Saint Germain.
 Todt, Rudolf (Der radikale deutsche Sozialismus und die christliche Gesellschaft, 2nd ed. Wittenberg, 2878), pp. 306—19, é um bom exemplo de como, por meio desta e de outras passagens similares, as pessoas do movimento anti-liberal recorrem ao Novo Testamento para tentar justificar suas palavras-chaves modernas.
 Kant, "Fragmente aus dem Nachlass," Collected works, ed. Hartenstein, Vol. VIII (Leipzig, 1868), p. 622.
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

quarta-feira, 10 de abril de 2013

PODRES PODERES

Quando Hugo Chávez morreu, minha timeline foi tomada, como de costume, por manifestações contraditórias: uns em luto, outros em festa. Devo admitir que minha reação estava mais para o time da celebração. Totalmente alheio que sou à vida pessoal do homem — como cristão, contudo, espero que encontre a paz —, para mim já passou da hora da América católica se libertar de seus ridículos tiranos. Um líder autoritário a menos é sempre uma boa notícia. Claro que em seu lugar virão outros. As ideias que garantiram seu poder estão firmes e fortes.

Sendo sinceros, no entanto, temos que reconhecer que, embora Hugo Chávez tenha sido um líder autoritário, não foi um monstro tirânico. Perpetuou-se no poder indefinidamente, travou uma campanha de coação pesada contra todos os seus opositores, especialmente na mídia (campanha que culminou com as declarações de Nicolás Maduro, às vésperas da morte do presidente, acusando a mídia de espalhar mentiras sobre sua saúde). Fechou redes privadas de televisão, impôs quotas enormes de produção local a todas as estações, bem como financiou essa produção local — entre elas o hilário talk show comandado pelo próprio Chávez. Seu governo desceu ainda a pormenores ridículos como a restrição de horário aos Simpsons e a proibição total de Family Guy.

Ao mesmo tempo em que mobilizava força policial para fiscalizar lan houses e se certificar de que ninguém estava jogando jogos violentos, a violência real no país, medida em número de homicídios, mais do que triplicou desde que ele assumiu o poder. Não se trata de mortes comandadas pelo poder central, mas de um clima de absoluta anomia, ou seja, falta de lei, que permite que bandidos e mesmo a polícia ajam como bem entenderem, como é próprio de governos autoritários em que o poder do estado é magnificado.

Como eu ia dizendo, Chávez foi um presidente (e por que negar-lhe o título? Por acaso a maioria não o elegeu?) autoritário, mas não foi um monstro. Não foi, por exemplo, um ditador brutal como Pinochet, do Chile, cujo governo matou cerca de 3.000 dissidentes políticos e torturou dezenas de milhares de pessoas. Até agora, apesar da violência endêmica da polícia venezuelana (sem conteúdo ideológico pró ou anti-governo), não se tem notícias desse tipo de repressão direta por parte das autoridades. A coação aos grupos de mídia e aos partidos de oposição é real, mas não chegou ao nível da proibição direta da opinião contrária e da execução ou prisão sumárias de quem discorda.

A crítica a Chávez: bons e maus motivos

Chávez foi membro de uma nova esquerda que apresenta problemas à crítica mainstream. A maior parte das críticas se refere à "falta de democracia", à falta de liberdade de imprensa, à violação de direitos humanos. São todas preocupações reais, mas estão longe de ser o pior lado do regime Chávez. Essas críticas erram, em minha opinião, exatamente no ponto em que o livro O Caminho da Servidão, de Hayek, errou. Ele criticava os governos da social-democracia intervencionista (e a esquerda latinoamericana é uma versão um pouco mais contundente da variante europeia que Hayek tinha em mente) porque, supostamente, eles levariam à supressão das liberdades civis e da democracia e conduziriam à tirania. Passaram as décadas e sua previsão pessimista não se concretizou.

Na prática, é possível um regime francamente de esquerda que não viole os direitos civis, a democracia, a liberdade de imprensa. Chávez tem notas ruins em tudo isso; exceto, em certo sentido, na democracia: suas decisões sempre estavam amparadas pela vontade expressa da maioria — nesse sentido, ele foi até democrático em demasia. Enfim, apesar das notas ruins, não foi dos piores violadores que o mundo já conheceu. Regimes mais capitalistas em vários aspectos foram piores nesses quesitos; é o caso novamente do Chile de Pinochet (voltarei à comparação à frente). Para um libertário, essa constatação não traz problema algum: as medidas da esquerda social-democrata e socialista não são ruins devido a supostas violações de direitos civis que elas podem trazer no longo prazo. São ruins devido à violação da liberdade individual e da consequente distorção econômica que eles provocam no presente. E falar de economia não é falar de números abstratos e índices arcanos do mercado financeiro, mas da qualidade de vida de toda a população.

Economicamente, Chávez foi um desastre. Um desastre que só não levou ao colapso completo da nação porque foi salvo por uma dádiva dos céus: o petróleo e o aumento de seu preço desde que o regime começou. Ainda assim, a inépcia do estado venezuelano neutralizou boa parte dessa benesse da natureza. O mínimo que uma empresa estatal pode fazer (e que se espera que faça) é alocar cargos de acordo com a qualidade técnica dos funcionários, e não com a orientação ideológica deles, que foi o que Chávez fez. A inépcia foi tamanha que a produção de petróleo medida em barris caiu desde que Chávez assumiu, apesar da renda com a venda deles ter aumentado.

Os defensores de Chávez exaltam suas conquistas sociais: a diminuição da pobreza e o aumento do alfabetismo (de 90% para 95% da população). É verdade: se se tira o dinheiro de alguns mais produtivos — e mais, se se usa os retornos generosos do petróleo — e se dá aos muito pobres, isso significará um aumento em sua qualidade de vida. Todo mundo há de convir que pessoas passando um pouco menos de necessidade é, em si mesmo, algo bom. Mas e se, para realizar essa leve melhora na qualidade de vida da população mais pobre, o governo minar significativamente as bases que permitiriam a melhora substancial na qualidade de vida de todos no longo prazo? Foi isso que Chávez fez.

O uso político dos recursos permite que o estado atinja — com muita ineficiência e desperdício, claro — algumas metas bem definidas: diminuir a miséria atual; melhorar alguns índices da educação (ainda que os alunos tenham que ler "bibliografia revolucionária"). A ineficiência do programa educacional de Chávez confirma essa hipótese. A UNESCO sugere que custos entre US$ 50 e US$ 100 por pessoa são razoáveis para um programa de alfabetização; o programa de alfabetização do governo Chávez, além de fazer uma autopromoção notoriamente falsa, custou mais de US$ 500 por pessoa. Isso é mérito? Jogando muito dinheiro, custe o que custar, alguma coisa dá pra fazer; o resto do sistema é que rui.

Chávez fez ruir a já precária economia venezuelana, cada vez mais dependente de um petróleo extraído com ineficiência crescente. Destinou os retornos dessa extração para aliviar a pobreza extrema de grande parte da população (e conquistar seu apoio nas urnas), é verdade; mas ao mesmo tempo garantiu que a pobreza continuará sendo um problema crônico da Venezuela por muitas décadas. Um país com enormes reservas de petróleo convive com apagões rotineiros; com o quarto maior rio do mundo, e enfrentando racionamento crônico de água. Impõe-se o controle de preços (com ameaça de prisão de infratores e nacionalização de seus negócios) para mascarar uma inflação que oscila entre 20% e 30% ao ano (isso porque os preços controlados entram no cálculo do índice).

Em consequência, faltam itens básicos nas lojas, como leite, açúcar, farinha, óleo, frango, carne; filas se formam nas portas dos mercados. As leis são ineficientes, e o mercado informal contrata 50% dos trabalhadores. A participação do governo na economia não para de crescer: não só com medidas assistencialistas, mas também com grandes obras rodoviárias, construções de estádios e subsídios para empresas estatais. A sociedade é cada vez mais estatizada (mais de mil empresas já passaram para as mãos do estado), e a ineficiência do estado como gestor apenas agrava as lacunas crônicas da infraestrutura. Empregos secam no setor privado, sendo absorvidos pelo estado, que está, além de tudo, cada vez mais endividado.

Enfim, Chávez reverteu os ganhos de sua incompetente indústria estatal petrolífera em benefícios sociais para os muito pobres. Minou, contudo, as bases da economia venezuelana, que é o que poderia dar aos muito pobres chances de aumentarem sua produtividade e dar fim à pobreza. Os venezuelanos pobres que louvam Chávez não sabem que, graças a ele, permanecerão pobres por muito mais tempo. Novamente, o contraste com o Chile de Pinochet é marcante. É um fato desconfortável, mas real: o regime ditatorial e homicida de Pinochet provavelmente foi, no longo prazo, mais benéfico à sua população que o regime bem menos violento e mais democrático de Chávez.

Do ponto de vista econômico, as medidas de Pinochet eram sensatas: controle da inflação, equilíbrio fiscal, abertura ao comércio exterior, simplicidade e contenção de impostos, facilidade para empreender. A herança disso se vê hoje em dia: abrir empresas no Chile demora poucos dias, e quase toda a parte burocrática pode ser feita pela internet. Mérito do governo? Calma lá! Se não fosse pelo governo, abrir uma nova empresa seria um ato instantâneo e gratuito. Podemos dizer, isso sim, que o estado chileno atrapalha menos a vida do empreendedor do que o estado venezuelano (ou do que o brasileiro...). Por esses motivos, a Venezuela continuará a integrar o rol das nações pobres por um bom tempo ainda, enquanto o Chile já desponta como a nação mais rica da América do Sul. O Peru, outro país que adotou medidas liberalizantes, e que em 2002 tinha uma taxa de pobreza superior à da Venezuela, hoje tem taxa menor, e é o país que mais cresce no continente.

Conclusão: pouco se salva na política

É muito fácil se deixar levar por partidarismos, e eleger Chávez como um enorme vilão enquanto poupamos outros chefes de estado com condutas até piores, como Pinochet, por terem tido algum mérito no que diz respeito ao ordenamento econômico (o "mérito", novamente, de terem atrapalhado menos); também é fácil cair no conto de que a oposição atual a Chávez apresenta uma solução de verdade. A posição libertária não se deixa iludir por nenhum dos lados. Ela tem que estar acima de quaisquer partidarismos, sem exaltar e nem demonizar nenhum governante, mostrando todas as falhas e eventuais méritos que uma administração tenha tido. O valor de suas propostas não se confunde com o desempenho de algum político ou partido. Chávez foi um governante muito ruim, bem pior do que a média; o que não significa que a média seja boa. Se comparado ao que fazem na Europa e nos EUA, levou mais a sério as premissas que eles próprios advogam e põem em prática de forma mais tímida. Não se presta serviço algum à causa da liberdade se, ao criticar Chávez, louvemos Lula (como fez a The Economist em um infeliz editorial), Obama ou Merkel.

Penso que o único bom político é aquele que propõe menos estado; e ele é bom apenas na medida em que o faz. Mesmo os melhores, como Reagan ou Thatcher, ainda estão muito longe de ter promovido uma sociedade libertária. Se ajudaram a regredir ou ao menos conter um pouco o avanço do estado, é um mérito que deve ser reconhecido (mas será que ajudaram mesmo?); precisamos, contudo, de muito mais. As mudanças que propomos estão tão distantes do panorama político atual — na verdade, de todo o panorama político de toda a história da humanidade —, que muito pouco dele se salva. São propostas que a política jamais conheceu, embora, ao mesmo tempo, elas se baseiem na experiência acumulada mais sólida de cada um de nós: relações voluntárias promovem o progresso de ambas as partes.

Não vejo governantes e estado como bandidos, a não ser quando realmente violam a dignidade mais básica de seus cidadãos. Acho que o estado, bem ou mal, é um meio para se tentar garantir um mínimo de justiça e legalidade. Não sei se uma sociedade plenamente livre do estado é possível, embora esteja convicto de que ela deva ser tentada. Assim, Chávez não foi um monstro, um tirano, como um Hitler ou um Stalin. Não foi nem mesmo tão violento quanto um Pinochet ou quanto nossos ditadores militares. Foi um presidente terrível, como tantos outros.

Claro que sempre dá pra piorar. Imagine um chefe de estado que unisse brutalidade maior que a de Pinochet a medidas econômicas ainda mais desastrosas que as de Chávez. Fidel ainda vive. E mesmo ele não precisa ser demonizado. Combatamos, com ideias e ideais, todos os inimigos da ordem pacífica e harmoniosa que o mercado — ou seja, o processo de relações voluntárias entre indivíduos — gera e garante; mas saibamos também que nossos grandes rivais não são essas pessoas específicas, e sim as ideias falsas e a estúpida retórica que mantêm e justificam esses podres poderes.

Joel Pinheiro da Fonseca é mestrando em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta

RAZÃO E BOM SENSO

Apesar de parecer difícil guardar otimismo e manter esperanças diante do quadro atual de crise financeira e desatinos políticos, sempre se há de tentar construir um futuro melhor.

Descartes dizia que o bom senso é a coisa mais bem distribuída entre as pessoas. Em sua época, bom senso equivalia à razão. Na linguagem atual corresponderia a dizer que o coeficiente de inteligência (QI) se distribui entre todas as pessoas seguindo uma curva que se mantém inalterada no tempo, geração após geração. Será? E possível e mesmo provável. Mas bom senso implica também inteligência emocional e prudência ao tomar decisões. Não basta ser inteligente, é preciso ser razoável e prudente para evitar que as paixões se sobreponham à razão. É preciso ter juízo.

Ora, no mundo em que vivemos, pelo menos neste momento, parece grande o risco de ações impulsivas comprometerem o que é razoável. Quando ainda se podia crer que havia uma "lógica econômica" para justificar ações de força - por exemplo, na época do colonial-imperialismo a repulsa ao inaceitável (a subordinação de povos à acumulação de riquezas) vinha seguida da explicação "lógica" do porquê das ações: o objetivo seria acumular riquezas e expandir o capitalismo. Mas, e agora, quando a Coréia do Norte bravateia (e quem sabe o que fará) que pode arrasar o Sul e mesmo atingir a costa oeste dos Estados Unidos, qual é a lógica? E que dizer do dr. Bashar Assad, que fechou sua clínica médica em Londres para substituir o pai no poder e bombardeia seus conterrâneos há dois anos?

Fossem só esses os exemplos... Mas, não. Na pequena Chipre, cujo sistema bancário se tornou abrigo para capitais de procedência discutível, quando não claramente resultantes da corrupção e da evasão fiscal, vê-se um governo que, sem mais essa nem aquela, temeroso da pressão dos controladores financeiros da União Européia (UE), não tem ideia melhor do que expropriar os depositantes - sejam ou não proprietários de capitais de origem discutível. Embora menos flagrantemente absurdo, o mau manejo financeiro e fiscal na UE não está levando os povos ao desespero, tanta a injustiça de fazer com que quem não tem culpa pague pelo desatino de governos e financistas?

Ainda bem que nem tudo é desatino. Barack Obama, ao tomar posse de seu primeiro mandato, disse que os EUA deveriam investir mais em ciência e tecnologia e preparar uma revolução produtiva baseada na energia limpa, juntando conhecimento e inovação com a possibilidade de a economia crescer sem destruir o meio ambiente. Na semana passada renovou a crença e parece que seu país está saindo da crise iniciada em 2008 fazendo o que era necessário: abrindo novas áreas de investimento, alterando a geopolítica da energia e, quem sabe, deixando para trás os tremendos erros que levaram à explosão dos mercados financeiros.com. Será? Torçamos para que desta vez prevaleça não só a razão cartesiana, mas o bom sentido comum e se entenda que mercados sem regulação levam à irracionalidade.

Quanto a nós, brasileiros, parece que tampouco aprendemos muito com equívocos voluntaristas do passado. Somos reincidentes. Juntamos aos impulsos movidos por boa vontade certa grandiosidade que não corresponde à realidade. Ao desejar sair da ameaça de baixo crescimento econômico a todo custo, vão sendo anunciados a cada dia novos planos e programas. Entretanto, só saem do papel morosamente e muitas vezes, nem isso. Por quê?

Talvez porque acreditemos demais em grandes planos salvadores e menos no método, na rotina, na persistência e na inovação para acelerar o caminho. O governo, por exemplo, percebeu que o futuro depende do conhecimento e que existç um quase apagão de gente qualificada para o País encarar o futuro com maior otimismo. Logo, havia que propor a "grande solução": em vez de termos minguados 8.500 bolsistas no exterior, passaríamos logo a 100 mil em quatro anos! Resultado: uma profusão de bolsas, um menoscabo da capacidade universitária já instalada e o envio ao exterior de muitos que nem sequer conhecem bem a língua do país onde vão estudar.

Do mesmo modo, ao se descobrir que havia óleo na camada do pré-sal largamos o etanol, esquecemos que os poços se extinguem, não investimos suficientemente nas áreas fora do pré-sal e desdenhamos o que de novo pode ter havido no mundo, como as inovações na extração do óleo e do gás do xisto, como fizeram os americanos. Claro que ainda há tempo para recuperar o tempo perdido e retomar a esperança. Mas se, em vez de cantar loas ao que ainda não é palpável e dedicar tanto tempo à briga pelos futuros royalties do petróleo, tivéssemos, sem muito bumbo, discutido metodicamente as melhores alternativas energéticas, inclusive as do petróleo, e tivéssemos apoiado mais a pesquisa e a inovação, provavelmente sentiríamos menos angústia por oportunidades perdidas.

O comentário vale para toda a infraestrutura econômica. Ah, se tivéssemos preparado leilões bem feitos para as concorrências nas estradas, nos portos, nos aeroportos, e assim por diante, poderíamos ter evitado o desperdício de parte "da maior safra de grãos da história" pelas péssimas condições de transporte e embarque dos produtos.

Para remediar propõem-se sempre mais projetos grandiosos e tanto o governo como seus arautos se perdem em discursos grandiloquentes Não é isso o que ocorre também com as medidas para enfrentar as ameaças de uma ainda mais alta inflação? Imediatismo e atropelo na concessão de subsídios, isenções e favores substituem a pachorrenta persistência numa linha de conduta coerente que, menos espalhafatosamente, possa levar o País a dias melhores.

Estes, entretanto, são possíveis. O xis da questão é simples de ser formulado, difícil de ser executado: como passar da quantidade para a qualidade, do palavrório para uma gestão prática; como, em vez de animar uma sociedade de espetáculos (nunca na História...), construir uma sociedade decente, na qual a palavra corresponda a fatos, e não a piruetas virtuais. Continuo a crer que é possível. Mas é preciso mudar de guarda. Esperemos 2014. Por: Fernando Henrique Cardoso O Estado de S Paulo

terça-feira, 9 de abril de 2013

CAMBALACHE - A HISTÓRIA DO COLAPSO ECONÔMICO DA ARGENTINA

À exceção daquelas nações que adotaram o comunismo, é difícil encontrar um exemplo de país cuja economia tenha sido mais espetacularmente destruída pelo seu governo do que a Argentina.

No início do século XX, a Argentina era o 10º país mais rico do mundo em termos per capita. Reza a lenda que, naquela época, a expressão "tão rico quanto um argentino" era comum e frequentemente utilizada por aristocratas britânicos que tentavam casar suas filhas com argentinos ricos. Entre 1860 e 1930, o país enriqueceu acentuadamente em decorrência, entre outras coisas, da exploração das férteis terras dos pampas. Os investimentos estrangeiros eram livres e diversificados, oriundos da França, da Alemanha, da Bélgica e, majoritariamente, da Grã-Bretanha. Indústrias e ferrovias foram construídas com capital estrangeiro. Os altos salários atraíram vários imigrantes, principalmente italianos, espanhóis, alemães e franceses. Em 1899, após algumas décadas de instabilidade financeira e bancária, o país retornou ao padrão-ouro e, durante 14 anos, cresceu a uma taxa anual de 7,7%.

Durante as três primeiras décadas do século XX, a Argentina ultrapassou o Canadá e Austrália não somente em termos de população, mas também em termos de renda total e renda per capita. Nesta época, a famosa loja de departamentos Harrods, de Londres, abriu uma filial em Buenos Aires, sua única filial em todo o mundo. 

A partir de 1930, no entanto, a coisa começou a degringolar. Em termos macroeconômicos, a Argentina era, até então, um dos mais estáveis e sólidos países do mundo. Mas o advento da Grande Depressão nos EUA, que afetou seriamente o comércio mundial — e as exportações argentinas —, alterou este equilíbrio. Instabilidades políticas levaram a um golpe militar em 1930. De 1930 até os anos 1980, houve uma sequência de governos populistas e juntas militares que se revezavam no poder. Estes sucessivos governos, capitaneados pelas teorias de Raúl Prebisch, adotaram uma série de políticas protecionistas e de substituição de importações com o objetivo de alcançar a quimera da 'autossuficiência', um devaneio que ainda hoje excita praticamente todos os desenvolvimentistas (muitos deles estão em Brasília). 

Oficialmente, esse experimento protecionista terminou em 1976, quando uma junta militar sob o comando de Jorge Rafael Videla decidiu abrir um pouco a economia. Obviamente, acostumadas a décadas de protecionismo, várias indústrias argentinas sucumbiram perante a concorrência externa, o que fez com que o governo assumisse suas dívidas. Em paralelo a este setor industrial ineficiente, os gastos governamentais em total descontrole (financiados pela simples impressão de dinheiro) e várias medidas populistas de aumentos salariais levaram a uma crônica inflação de preços, que chegou a 800% ao ano.

Alguns anos depois, em 1982, um cavalheiro chamado Leopoldo Galtieri teve a brilhante ideia de desviar a atenção dos problemas econômicos invadindo as ilhas Falkland (Las Malvinas para os argentinos), o que jogou o país em guerra contra os britânicos. Tal esforço de guerra, além de vidas humanas, serviu apenas para aumentar o endividamento do governo argentino e, consequentemente, a inflação monetária para financiar este endividamento. Humilhada pela derrota, a ditadura militar terminou em dezembro de 1983, com a eleição de Raúl Alfonsín. Veja o histórico inflacionário deste último período militar (a menor inflação anual foi de 82%, em fevereiro de 1981).



Gráfico 1: Taxa de inflação de preços anual, 1976-1983

Em decorrência desta escalada inflacionária, o governo Alfonsín criou, em junho de 1985, uma nova moeda, o austral (a primeira moeda argentina que não tinha o peso em seu nome). Mas a criação da nova moeda — plano este, aliás, que serviu de inspiração ao Plano Cruzado — foi feita daquela maneira tipicamente heterodoxa: o governo simplesmente cortou zeros, congelou preços das tarifas públicas e da cesta básica, e controlou rigidamente os salários do setor privado. No primeiro momento, exatamente como também ocorreu com o Plano Cruzado, os preços ficaram sob controle e a popularidade do governo disparou. 

Na melhor fase do plano, a inflação de preços ficou em "apenas" 50% ao ano. Porém, e obviamente, o governo em momento algum abriu mão de continuar imprimindo dinheiro e, assim que os preços começaram a ser descongelados, tudo voltou a ser como era antes. Para complicar, como o governo havia contraído várias dívidas perante o FMI, ele também recorria à impressão de austrais para comprar dólares. 

O resultado desta vez não foi apenas uma típica inflação latino-americana, mas sim uma hiperinflação que chegou a 200% ao mês (julho de 1989) e encerrou o ano totalizando 5.000%. Quando os preços dos serviços de utilidade pública dispararam e os argentinos foram para as ruas saquear supermercados (maio e junho de 1989), Alfonsín renunciou.

Eis o resultado da inflação de preços deste período:



Gráfico 2: taxa de inflação de preços anual, 1984-1989




A era Menem

Reformas

Eleito para assumir o poder dezembro de 1989, a posse de Carlos Menem foi antecipada para julho por causa da baderna em que estava o país. Quando Menem assumiu a presidência, os gastos públicos estavam em 36% do PIB e o déficit orçamentário do governo era de 7,6% do PIB.

Em 17 de agosto de 1989, foi aprovada a Ley de Reforma del Estado, que deu a Menem a autoridade para efetuar várias reformas econômicas que ajudassem a acabar com a hiperinflação. As principais reformas foram o descongelamento seguido da liberdade de preços, a abertura da economia ao comércio internacional, aos investimentos estrangeiros e ao fluxo de capitais, a reorganização do sistema tributário, a redução da burocracia e a privatização de várias estatais — a telefônica Entel, a companhia aérea Aerolíneas Argentinas, vários trechos rodoviários, vários canais de televisão, algumas redes ferroviárias, a petrolífera YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales, cuja privatização só foi completada em 1999), e a empresa de gás natural Gas del Estado. 

Como de praxe, várias privatizações foram feitas às pressas — pois o governo estava desesperado por recursos —, o que gerou vários esquemas de favorecimento, irregularidades e corrupção. 

Após chegar ao insano valor anual de 20.000% em março de 1990, a inflação terminou o ano em 1.344%



Gráfico 3: taxa de inflação de preços anual, 1990

Mas foi em abril de 1991 — sob o comando do ministro da economia Domingo Cavallo — que a principal e decisiva medida econômica foi adotada: a reforma monetária que culminaria na substituição do austral pelo peso. Mas o peso não seria uma nova moeda qualquer: ele seria inflexivelmente igual a um dólar, valor este irrevogável e fixado por lei. Esse regime monetário argentino passou a ser chamado de regime de conversibilidade.

O programa de conversibilidade foi implantado em duas etapas. Na primeira etapa, em abril de 1991, o Banco Central argentino passou a funcionar como se fosse um Currency Board. 

Currency Board

Para o leigo, o termo soa esquisito, mas realmente não existe tradução definitiva para o português. Alguns traduzem como Caixa de Conversão ou Agência de Conversão; outros traduzem como Conselho da Moeda.

Apesar da ausência de um termo nacional, um Currency Board é um dos arranjos monetários mais antigos e tradicionais do mundo, perdendo apenas para o padrão-ouro. Aliás, era comum que o país que adotasse o padrão-ouro o fizesse por meio de um Currency Board. O Brasil operou um Currency Board no início do século XX, durante um de nossos efêmeros experimentos com o padrão-ouro. O padrão-ouro da Argentina, que durou até 1929, também se deu sob um Currency Board. 

Hong Kong opera um Currency Board desde 1983. Vários outros pequenos países utilizam exitosamente um Currency Board, entre eles Lituânia, Bulgária, Bósnia e Herzegovina, as Ilhas Fakland, Gibraltar e Santa Helena. A Estônia operou um Currency Board de 1992 até janeiro de 2011, quando resolveu adotar integralmente o euro.

O princípio de operação de um Currency Board é bastante simples e, quando obedecido ortodoxamente, muito eficaz. O Currency Board é o arranjo que se implementa quando se quer adotar uma genuína "âncora cambial", o que faz com que a moeda de um país se torne um mero substituto de uma moeda estrangeira. A única função de um Currency Board é trocar moeda nacional (que ele próprio emite) por moeda estrangeira, e vice versa, a uma taxa fixa. 

No caso específico da Argentina, o Currency Board tinha a função de trocar, sem custo e sem demora, 1 peso por 1 dólar e 1 dólar por 1 peso. Para cada dólar que entrasse no país, o Currency Board emitiria um peso argentino em troca desse dólar. A operação inversa ocorreria no caso de uma saída de dólar (peso argentino seria entregue ao Currency Board que, em troca, enviaria o dólar para o destinatário estrangeiro). 

Ao agir assim, a taxa de câmbio está irremediavelmente fixa. Se você quisesse vender 1 dólar por um valor maior do que 1 peso para outra pessoa, esta preferiria simplesmente ir ao Currency Board e lá trocaria 1 peso por 1 dólar. Ou seja, tal artifício é totalmente eficaz em realmente fixar a taxa de câmbio.

Neste sistema, como a moeda nacional está totalmente atrelada a uma moeda estrangeira, a variação da base monetária nacional se dá estritamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos (saldo da quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia nacional). 

Em sua forma ortodoxa, este sistema não permite a existência de um Banco Central, pois não deve haver nenhuma política monetária. Trata-se de um sistema monetário totalmente passivo, em que a base monetária do país varia estritamente de acordo com as reservas internacionais.

Sendo assim, dado que a base monetária do país não pode ser maior do que a quantidade de reservas internacionais (no caso argentino, o dólar), ela varia de acordo com a quantidade de moeda estrangeira que entra e sai da economia em decorrência das transações internacionais do país. Quando há um superávit nas transações internacionais, a base monetária doméstica aumenta; quando há um déficit, diminui. 

Em tese, como a quantidade de dólares nas reservas internacionais é, por definição, igual ou superior à base monetária, é impossível haver qualquer ataque especulativo, pois seria impossível exaurir as reservas internacionais (a base monetária teria de ser toda mandada pra fora, algo por definição impossível). Essa é a principal atratividade do sistema: ele dá segurança aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem repatriar seus lucros.

Outra característica do Currency Board que ajuda a aumentar a confiança do investidor estrangeiro é o fato de que, ao contrário de um Banco Central convencional, um Currency Board não pode imprimir dinheiro à vontade; ele só imprime moeda nacional se receber um valor equivalente em moeda estrangeira. Logo, um Currency Board não pode comprar ativos nacionais e nem títulos do governo; ele não faz política monetária. Sendo assim, o governo não pode se financiar por meio da inflação monetária. Isso obriga o governo a evitar déficits e a manter um orçamento equilibrado (caso contrário, ele terá de aumentar impostos ou se endividar, o que levaria a um aumento dos juros em toda a economia).

No entanto, ao mesmo tempo em que um Currency Board é extremamente eficiente quando implantando ortodoxamente, ele cobra severas punições quando seus pré-requisitos operacionais são desobedecidos. E foi isso que a Argentina descobriu.

A reforma monetária

O primeiro passo da Argentina, portanto, foi fazer o seu Banco Central operar como se fosse um Currency Board.

No dia 1º abril de 1991, o Banco Central da Argentina fixou a taxa de câmbio no valor de 10.000 austrais por dólar (essa era a taxa de câmbio do dia). A partir daí, comprometeu-se a operar sob os mesmos princípios de um Currency Board: ele iria emitir austrais estritamente de acordo com o ingresso de dólares. Para cada dólar que entrasse no país e fosse para as reservas internacionais, 10.000 austrais seriam emitidos. Para cada dólar que saísse, 10.000 austrais seriam recolhidos. (Veja o vídeo do anúncio feito por Cavallo, a partir do minuto 7:37).

Simultaneamente, o dólar passou a ser aceito como moeda corrente. Os argentinos agora tinham liberdade de transacionar livremente em dólares, e de livremente trocar austrais por dólares. Na prática, havia duas moedas oficiais na Argentina. 

No dia 1º de janeiro de 1992, o austral foi abolido e em seu lugar entrou o peso conversível. Cada 10.000 austrais foram convertidos em 1 peso, que valia exatamente 1 dólar.

Pronto, a reforma monetária estava completa. De agora em diante, o Banco Central da Argentina se comprometia a trocar peso por dólar e dólar por peso a uma taxa de 1:1, sem restrições e sem demora. Se os argentinos quisessem manter mais dólares do que pesos, eles simplesmente trocariam seus pesos por dólares. Similarmente, se quisessem portar mais pesos, eles trocariam seus dólares por pesos. O efeito dessa regra era garantir tanto aos residentes quanto aos investidores estrangeiros que não havia risco nenhum de se utilizar tanto uma moeda quanto outra. Não haveria risco de uma desvalorização súbita. 

Os argentinos podiam manter contas bancárias tanto em peso quanto em dólares, e os bancos faziam empréstimos tanto em peso quanto em dólares.

As consequências iniciais

Inicialmente, tanto o Banco Central argentino quanto o governo seguiram à risca a ortodoxia. O BC de fato imprimia dinheiro estritamente de acordo com a variação de reservas internacionais, e o governo — agora sem poder se utilizar da inflação monetária — reduziu drasticamente seus déficits.

A inflação de preços, que havia sido de 1.344% em 1990, caiu para 84% em 1991, para 17,5% em 1992, para 7,4% em 1993, para 3,9% em 1994, para 1,6% em 1995 e, de 1996 até o final de 2001, a média foi de praticamente 0%.

Para um país que havia se acostumado a ter uma inflação de preços média maior do que 250% de 1970 até 1990, e que havia vivenciado valores de até 20.000% em 1990, a queda de preços foi extremamente rápida.

Já o governo conseguiu baixar o gasto público de 35,6% do PIB em 1989 para 27% do PIB em 1995. Igualmente, o déficit fiscal saiu de 7,6% do PIB em 1989 para 2,3% em 1990 e, de 1991 até o final de 1994, ficou próximo de 0%.

As reservas internacionais, por sua vez, que estavam 3,81 bilhões no final de 1989, foram para 17,93 bilhões ao final de 1994.

O principal efeito desta política de abolição da inflação e de redução do estado foi a perceptível queda nos índices de pobreza. Em outubro de 1989, o percentual de pessoas abaixo da linha de pobreza em Buenos Aires e adjacências era de 47,3%. Em maio de 1994, tal valor já havia caído para 16,1%.

A crise do México de dezembro de 1994

As coisas vinham muito bem para a Argentina desde abril de 1991. A economia estava crescendo robustamente e os preços eram invejavelmente estáveis.

Só que, em dezembro de 1994, a economia do México — cujo Banco Central adotava um sistema cambial heterodoxo, no qual a cotação do câmbio era diariamente manipulada — sofreu um ataque especulativo. O governo desvalorizou subitamente o peso mexicano. Essa súbita desvalorização gerou pânico nos investidores ao redor de todo o mundo, os quais, temerosos de terem seus investimentos desvalorizados, começaram a retirar seus capitais dos países emergentes. (Esse fenômeno ficou conhecido como Efeito Tequila, e teve repercussões nos países emergentes, especialmente no Brasil.)

A Argentina não ficou imune, e um volume substantivo de capital estrangeiro foi retirado do país. Os gráficos abaixo ilustram perfeitamente este momento. Observe a retração sofrida pela base monetária em 1995. Essa retração ocorre justamente porque pesos estavam sendo trocados por dólares para ser enviados ao exterior. 



Gráfico 4: evolução da base monetária, 04/1991—12/1995

No entanto, o M1 e o M2 se alteram muito pouco, quase nada. Isso porque, como os bancos praticam reservas fracionárias e podem criar moeda do nada, uma retração da base monetária não significa necessariamente uma redução na quantidade de dinheiro na economia. Embora as reservas fracionadas sejam previstas pelo Currency Board (que não se opõe a elas), tal prática pode gerar grandes distúrbios, pois quanto maior o volume de moeda sem lastro em reservas internacionais, maiores as chances de um ataque especulativo para se tentar desvalorizar o câmbio.



Gráfico 5: evolução do M1 (papel-moeda em poder do público mais depósitos em conta-corrente), 04/1991—12/1995



Gráfico 6: evolução do M2 (M1+depósitos a prazo), 04/1991—12/1995

Essa fuga de capitais gerou um acentuado aumento dos juros no mercado interbancário.



Gráfico 7: juros do mercado interbancário, 1993-1995

O crédito encareceu. O país entrou em recessão e o desemprego subiu. A recessão diminuiu as receitas tributárias do governo; o aumento do desemprego aumentou os gastos sociais do governo. A consequência inevitável desta redução na receita e deste aumento nos gastos foi que o governo voltou a apresentar déficits orçamentários. E estes nunca mais voltariam a ser zero — o que significa que sua dívida não mais pararia de subir.

Anos 1996-1999: calmaria no início, pânico no fim

A economia permaneceu em recessão durante todo o ano de 1995, mas voltou a se recuperar em 1996. O problema é que o desequilíbrio continuou vindo do estado.

Em janeiro de 1991, quando Cavallo assumiu o Ministério da Economia, a dívida pública era de US$61,4 bilhões. Em dezembro de 1995, ela já estava em US$87 bilhões. E em agosto de 1996, quando ele foi substituído por Roque Fernández, a dívida já estava em US$90,5 bilhões. E terminaria aquele ano em US$97 bilhões.

O problema do endividamento é que, quanto maior a dívida, maior o volume gasto com juros. E quanto mais se gasta com juros, maior é o déficit fiscal. E quanto maior o déficit fiscal, maior é a emissão de títulos da dívida para cobrir o déficit, o que aumenta o endividamento e reinicia o ciclo vicioso.

Não obstante essa explosão do endividamento do governo, a economia seguia estável e com inflação zero. Após o susto de 1995, as reservas internacionais já haviam voltado a subir.

No segundo semestre de 1997, ocorreu a crise asiática, um tsunami que gerou fuga de capitais ao redor do mundo e súbitas desvalorizações no baht tailandês, no novo dólar taiwanês, na rúpia indonésia, no ringgit malaio, no won sul-coreano, no peso filipino e no dólar cingapuriano. O dólar de Hong Kong, que opera sob um Currency Board, conseguiu manter sua taxa de câmbio intacta. A Argentina, nesta crise específica, sofreu pouco.

Em agosto de 1998, a situação começou a ficar ruim. A Rússia entrou em crise financeira e o governo russo anunciou uma forte desvalorização do rublo seguida de uma moratória. Adicionalmente, a retomada dos confrontos na Chechênia e o início de uma nova guerra entre os separatistas e o governo russo pioraram ainda mais o humor dos investidores estrangeiros, que ainda estavam abalados pela crise asiática. Houve uma nova rodada de fuga de capitais. Na Argentina, por causa desta fuga, os juros do mercado interbancário sobem e o crédito se torna mais restringido. Como consequência, o país entra em recessão em setembro de 1998 e o desemprego aumenta.

A situação se agrava em 1999. Com a forte depreciação do real e de várias outras moedas, as importações de produtos argentinos por estes países caem. Não bastasse a queda nas exportações argentinas, os preços dos produtos primários também caem fortemente no mercado mundial. Como consequência, o setor exportador argentino encolhe. (No entanto, ao contrário do que é dito, as importações de produtos estrangeiros pelos argentinos também diminuem, por causa da recessão. Não foi um aumento nas importações, portanto, o que atrapalhou as empresas argentinas).

Para piorar, os gastos do governo continuam subindo e as receitas, por causa da recessão, se tornam menores que as de 1998. A dívida pública vai adquirindo uma proporção de insustentabilidade, já em US$118 bilhões, o que dava 50% do PIB (era de 29,5% em 1993). Os juros, por causa do endividamento do governo, continuam em ascensão, assim como o risco-país. 

Havia um temor de que o governo desvalorizasse a moeda para estimular as exportações e, com isso, melhorar a situação do setor exportador e, de quebra, melhorar as próprias receitas do governo. Para conter essas especulações, Menem anunciou que tinha a intenção de dolarizar forçosamente toda a economia. A dolarização seria uma maneira de aprofundar o regime de conversibilidade, e eliminaria totalmente as incertezas acerca do regime de câmbio fixo. Houvesse uma dolarização, os ataques especulativos contra o peso seriam eliminados.

No entanto, não houve a dolarização.

Como 1999 era um ano de eleições presidenciais, todos os candidatos (Menem, Fernando De la Rúa e Eduardo Duhalde) se puseram a defender o atual regime cambial, jurando que não tocariam nele, justamente para evitar ataques especulativos.

Em dezembro de 1999, Fernando De la Rúa assume a presidência. Após 10 anos no poder, Menem foi derrubado por causa da economia em recessão desde setembro 1998 e do desemprego em ascensão.

Com De la Rúa, a tragédia

Anatomia de um caos

No dia 1º de janeiro de 2000, o governo De la Rúa, por meio do novo Ministro da Economia, José Luis Machinea, anuncia um pacote fiscal de aumento de impostos. Inicialmente, os impostos incidiriam sobre ganhos de capital. 

Em março de 2000, no entanto, o estouro da bolha tecnológica nos EUA (das empresas pontocom) gera nova fuga de capitais, e os juros do mercado interbancário voltam a subir. Isso agrava a recessão, reduz as receitas previstas pelo governo e aumentam o déficit fiscal, dando sequência àquele antigo círculo vicioso: o aumento dos juros aumentava os gastos do governo com o serviço de sua dívida. Quanto maior era esse gasto, maior se tornava o déficit fiscal, o que levava a um aumento do endividamento e a um novo aumento dos gastos com juros.

No final, o aumento previsto nas receitas não se concretiza, e elas terminam o ano de 2000 em um valor praticamente idêntico ao de dois anos atrás.

Tudo isso aumenta ainda mais as incertezas sobre a capacidade do país de continuar honrando suas dívidas (boa parte dela nas mãos de credores internacionais) e sobre sua intenção de continuar no regime de paridade cambial. Para piorar, em outubro de 2000, o vice-presidente Carlos Álvarez renuncia ao cargo dizendo não se conformar com o volume de corrupção que estava acontecendo dentro do governo. Isso desencadeia uma crise institucional, abalando em definitivo a pouca confiança que ainda restava no regime. Ainda em outubro, os próprios argentinos começaram a retirar seu dinheiro dos bancos, muitos deles mandando dólares para fora do país. Naquele mês, 789 milhões de pesos/dólares foram retirados dos bancos. Em novembro, mais de 1 bilhão. Os juros do interbancário disparam. A confiança havia ruído em definitivo.



Gráfico 8: juros do mercado interbancário, 1998-2000

Para conter essa fuga, o FMI anuncia um pacote de empréstimos de US$40 bilhões para a Argentina repor suas reservas internacionais. Em troca do pacote, o Fundo pedia corte de gastos e aumento de impostos.

Essa injeção de dólares conseguiu conter a fuga de depósitos, mas somente até março de 2001. Logo no início daquele mês, no dia 2, o Ministro da Economia José Luis Machinea renuncia ao cargo. 

No dia 4, Ricardo López Murphy, economista formado pela Universidade de Chicago, é nomeado e imediatamente anuncia seu programa de ajuste fiscal, o qual seria o melhor de todos: não haveria aumento de impostos, mas sim um profundo corte de gastos de 2 bilhões de pesos, inclusive para as áreas de saúde e educação. Haveria também várias privatizações, inclusive da Casa da Moeda.

Obviamente, o anúncio de medidas tão "drásticas" gerou forte reação popular. Vários membros do governo, contrários à nomeação de López Murphy, renunciam em protesto às suas medidas. Sem apoio, López Murphy renuncia ao cargo no dia 19 de março, apenas 15 dias após ter sido nomeado.

Toda essa baderna faz com que a fuga de depósitos bancários recomece, e agora com renovada intensidade: apenas em março, mais 5,5 bilhões de pesos/dólares são sacados dos bancos argentinos, até então a maior saída mensal de dinheiro do sistema bancário da história do país.

Desesperado, Fernando De la Rúa oferece o cargo de Ministro da Economia a um velho conhecido dos argentinos: no dia 20 de março, Domingo Cavallo, que agora era considerado o único com alguma autoridade moral para reconduzir o país à tranquilidade econômica, assume o cargo que havia abandonado em agosto de 1996.

Sua primeira medida, anunciada em 21 de março: aumentar as tarifas de importação e impor uma alíquota sobre transações financeira. 

Mas foi no dia 17 de abril de 2001 que o regime de conversibilidade, o qual o próprio Cavallo havia ajudado a implantar, sofreu um duro golpe que abalou fortemente a sua credibilidade. Cavallo enviou um projeto de lei ao Congresso para alterar a âncora do peso. Em vez de apenas em dólar, a âncora agora seria em relação a uma cesta formada por dólar e euro, na proporção de 50% para cada. Neste arranjo, o peso flutuaria dentro de uma banda definida pelo valor do dólar e do euro. Se o euro estivesse valendo menos que o dólar (como estava na época), o peso se desvalorizaria até ficar em paridade com o euro. Se o euro passasse a valer mais que o dólar, o peso voltaria a ficar em paridade com o dólar. A intenção deste arranjo era o de sempre: estimular as exportações. (Tal lei viria a ser promulgada em junho).

Ainda em abril, o presidente do Banco Central, Pedro Pou, formado em Chicago, que havia defendido a total dolarização da economia e que estava no cargo desde agosto de 1996, é substituído por Roque Maccarone, um sujeito tido como mais "flexível".

Em junho, o regime de conversibilidade é definitivamente abolido. No dia 15, Cavallo anuncia que, a partir dali, o governo adotará um regime de câmbio preferencial para as exportações — o que na prática significava que agora o câmbio teria duas taxas paralelas. No dia 25 de junho, é aprovada a lei que altera a âncora cambial para a cesta de dólar e euro.

Ambas essas medidas eram totalmente contrárias ao funcionamento de um regime de conversibilidade e à ortodoxia de um Currency Board. As medidas de Cavallo deixaram óbvio que o governo estava totalmente propenso a alterar o regime de conversibilidade, algo que poderia ocorrer a qualquer momento. Vale lembrar que, em 1999, quando também havia incerteza, o governo Menem havia tomado a decisão contrária: não apenas reafirmou a manutenção do regime de conversibilidade, como ainda "ameaçou" aprofundá-lo com a dolarização. Aquela certeza transmitida fez com que não houvesse fuga de capitais e nem ataques especulativos.

Já Cavallo, com esse seu ataque arbitrário aos alicerces de regime de conversibilidade, acabou com a pequena confiança que o governo ainda usufruía. A consequência desta intervenção de Cavallo foi restringir ainda mais o mercado de crédito. As taxas de juros para empréstimos feitos em peso disparam, pois os bancos sabiam que a qualquer momento a moeda poderia ser desvalorizada. Como consequência, tanto o governo federal quanto os governos das províncias deixam de conseguir novos financiamentos junto aos bancos, pois estes já pressentiam que seriam caloteados. 

Em julho, três agências de classificação de risco reduzem acentuadamente a classificação da Argentina. O prêmio de risco se torna 13 pontos percentuais acima dos juros pagos pelos títulos americanos. Os juros no mercado interbancário se aproximam de 50%. O governo federal não mais consegue vender títulos de sua dívida no mercado internacional.



Gráfico 9: juros do mercado interbancário, 01/1999 — 07/2001

Sem acesso ao mercado de crédito, Cavallo anuncia um plano de déficit zero, o qual não apenas inclui um aumento da alíquota sobre transações financeiras, como ainda estipula que, dali em diante, a arrecadação de cada mês será majoritariamente utilizada para os juros da dívida. Apenas o que sobrar será utilizado para cobrir os gastos do governo. Salários e pensões do setor público são reduzidos em 13%. Funcionários públicos do alto escalão, que recebiam os maiores salários, passam a ser pagos apenas em notas promissórias. As greves pipocam pelo país e a fuga de depósitos bancários não pára.

Em outubro, há eleições para o Congresso. O partido de De la Rúa perde vários assentos e se torna minoria. 

Em novembro, o governo apresenta um plano para fazer um swap — leia-se, adiar o pagamento e renegociar os termos — da dívida do governo, que já estava em US$132 bilhões de dólares. Temendo agora não apenas a desvalorização iminente, mas também o colapso do sistema bancário (se o governo desse o calote na dívida, os bancos detentores de seus títulos quebrariam), os argentinos fazem uma nova corrida bancária e batem um segundo recorde de saques bancários: quase 3 bilhões de dólares são retirados dos bancos, especialmente na última semana de novembro. Como consequência dessa nova rodada de saques, a liquidez do sistema financeiro — que opera com reservas fracionadas — desaparece completamente, o que faz com que os juros do mercado interbancário disparem a níveis sem precedentes (em um determinado dia, as taxas do interbancário chegaram a 689%). O governo, então, decide impor um limite ao valor máximo dos juros do interbancário.



Gráfico 10: juros do mercado interbancário, 1996-2001

O colapso de dezembro de 2001

No dia 1º de dezembro, um sábado, Cavallo anuncia restrições a saques bancários e transferências para o exterior. No dia 3, segunda-feira, o corralito entra em vigor. Todas as contas bancárias são congeladas por 12 meses, permitindo o saque de apenas 250 pesos por semana. A retirada de dólares é totalmente proibida. Operações utilizando cheques e cartões de crédito e de débito podem ser feitas normalmente (pois elas não retiram dinheiro do sistema bancário, apenas transferem de um banco para o outro), mas a ausência de dinheiro físico nas ruas gera sérios e graves distúrbios.

No dia 5 de dezembro, o FMI anuncia que não mais irá emprestar dinheiro para a Argentina. O risco país dispara. Uma greve geral ocorre no dia 13 de dezembro.

Furiosos em decorrência do confisco bancário, que privou a população de seu próprio dinheiro, e com fome, os argentinos saem às ruas. Entre os dias 16 e 18 de dezembro, ativistas e manifestantes desempregados exigem que os supermercados distribuam comida. Perante a negativa, no dia 18 de dezembro vários supermercados e lojas de conveniência são saqueados em Buenos Aires e Rosário. 

No dia 19, nova onda de saques em toda a grande Buenos Aires. Além de supermercados, bancos e empresas estrangeiras, normalmente americanas e europeias, são o alvo predileto. Várias ruas de Buenos Aires são palco de incêndios.

Acuado, De la Rúa decreta estado de sítio em rede nacional  e avisa que a Polícia Federal, a Força de Segurança (Gendarmería Nacional Argentina) e a Prefectura Naval Argentina serão acionadas para conter a baderna. Alheios às ameaças, os argentinos, logo após a transmissão do anúncio, marcham rumo à Casa Rosada para protestar batendo panelas. Este cacerolazo ocorre simultaneamente em várias regiões do país, mostrando que a população desafiava abertamente o estado de sítio imposto pelo governo. Na madrugada do dia 20 de dezembro, após uma manifestação frente à sua residência ser duramente reprimida, o ministro Domingo Cavallo renuncia ao cargo.
Já na manhã do dia 20, os manifestantes se concentram na famosa Plaza de Mayo, não obstante a vigência do estado de sítio. A Polícia Federal tenta violentamente controlar os protestos. Algum tempo depois, outros grupos de manifestantes chegam e a situação sai totalmente do controle. O mesmo cenário se repete em vários pontos do país. Apenas na Plaza de Mayo, cinco pessoas morrem. 

No final daquele dia, De la Rúa decide renunciar. Como a Plaza de Mayo fica diretamente em frente à Casa Rosada, e os confrontos continuavam intensos, De la Rúa não pode sair da Casa Rosada de carro. Tem de fugir de helicóptero. A imprensa do mundo inteiro registra a humilhante cena. 

No final do dia, 34 pessoas haviam morrido em todo o país em decorrência dos confrontos. O presidente interino do Senado, Ramón Puerta, assume a presidência interina do país até que o Congresso possa nomear um novo presidente.

Abaixo, uma boa compilação das cenas (Aviso: algumas são fortes)







O trágico ano de 2002

No dia 23 de dezembro de 2001, Adolfo Rodriguez Saá, governador da província de San Luis, é nomeado presidente. Seu mandato seria transitório e deveria durar apenas 3 meses. 

Sua primeira medida é anunciar a moratória total da dívida externa. Tal anúncio é feito sob uma chuva de aplausos no Congresso. Não obstante, ele decepciona vários grupos de interesse ao anunciar que a âncora cambial seria mantida. Embora houvesse anunciado que o dinheiro confiscado dos correntistas seria integralmente liberado, tal promessa não se concretiza.

Com apenas uma semana de governo, novos distúrbios e novos panelaços voltam a acontecer nas ruas de Buenos Aires. Alguns manifestantes conseguem entrar no Congresso e ateiam fogo em algumas mobílias. Sem apoio partidário e cercado de protestos, Saá renuncia no dia 30 de dezembro, tendo permanecido apenas uma semana no cargo.

No dia 2 de janeiro, assume a presidência Eduardo Duhalde, que havia disputado e perdido as eleições presidências de 1999. Assim como Saá, em sua fala inaugural Duhalde garante que o corralito seria revogado e que todo o dinheiro seria integralmente devolvido à população. "... van a ser respetadas las monedas en que fueron pactados originalmente los depósitos (...) el que depositó dólares recibirá dólares...el que depositó pesos recibirá pesos."

No entanto, não apenas o corralito não é revogado, como ainda é intensificado.

No dia 6 de janeiro, o regime de conversibilidade é oficialmente revogado. As operações de conversão monetária de 1 peso para 1 dólar são abolidas. É delegado ao Executivo o poder de estipular a taxa de câmbio do peso em relação ao dólar e de regulamentar novos regimes cambiais.

Com a abolição da âncora cambial, o valor do dólar dispara. No mercado negro, dólares estão sendo precificados acima de 3 pesos. Mas o governo opta por estabelecer, arbitrariamente, uma nova taxa de câmbio: 1,40 peso por dólar. 

Ao mesmo tempo, o governo emite outro decreto dizendo que todas as dívidas privadas, de pessoas físicas e jurídicas, estão de agora em diante 'pesificadas', só que à taxa de 1:1. Inclusive dívidas em dólares junto ao sistema bancário. Para salvar os bancos da bancarrota, uma consequência inevitável desta manipulação cambial, o governo assume parte dessa dívida. Credores e poupadores são dizimados.

Para aumentar o ultraje, ocorre em fevereiro a pesificação de todos os depósitos em dólar. Quem ainda possuía dólares depositados nos bancos vê seus dólares serem integralmente confiscados pelo governo, que converte todos os valores em peso à taxa oficial de 1,40 pesos por dólar. Isso é chamado decorralón. 

Esta 'pesificação assimétrica', na qual as dívidas com o sistema bancário foram pesificadas na razão de 1:1 ao passo que os depósitos em moeda estrangeira foram convertidos na razão de 1,40 pesos por dólar, algo que beneficiava os bancos, foi uma medida que o próprio governo reconheceu como sendo um bônus dado aos bancos para compensar o calote gerado pela manipulação cambial acima descrita. 

Em março, o governo também pesifica toda a dívida pública nacional, provincial e municipal, à taxa de 1,40 peso por dólar. Em seguida, ele deixa o câmbio flutuar de maneira um pouco mais livre. Como consequência, o peso afunda. Em junho, a cotação do dólar chega a quase 4 pesos.



Gráfico 11: evolução do valor do dólar em relação ao peso

Consequentemente, a inflação de preços, após quase uma década de estabilidade, vai a 40%. 



Gráfico 12: taxa de inflação anual de preços, 2001-2002

A tragédia agora estava completa. Os pobres estavam literalmente sem dinheiro. A classe média não apenas estava com seu dinheiro preso nos bancos, como também este havia sido forçosamente desvalorizado. Quem tinha depósitos em dólares — e, em 2001, a maioria dos depósitos bancários era em dólar (47 bilhões de dólares contra 18 bilhões de pesos) — viu sua poupança ser convertida em peso à taxa de 1,40 peso por dólar, sendo que o câmbio havia ido para quase 4 pesos. Não bastasse a falta de dinheiro, a desvalorização cambial fez com que tudo encarecesse, gerando a inflação de 40%. Todos os importados se tornaram virtualmente inacessíveis. Pouco dinheiro e moeda sem nenhum poder de compra.

Inúmeras empresas faliram. A qualidade de vida da população despencou. Há relatos de que, na elegante Calle Florida, famílias de classe média, cuja poupança de toda uma vida havia sido confiscada pelo governo, abordavam turistas suplicando por dinheiro. O desespero era grande porque até mesmo a compra de itens básicos, como leite, estava difícil.

Vários milhares de destituídos e desempregados se transformaram em cartoneros, catadores de papel. Estatísticas afirmam que entre 30 e 40 mil pessoas passaram a revirar as ruas de Buenos Aires à procura do material.

Ainda mais impressionante foi a evolução — ou, mais apropriadamente, a involução — da porcentagem de pessoas abaixo da linha de pobreza na grande Buenos Aires. Uma cifra que chegou a ser de 16,1% em maio de 1994 saltou para 54,3% em outubro de 2002, um valor ainda maior do que o do ano de 1989 (47,3%), quando o país vivia sob hiperinflação. Em nível nacional, a pobreza chegou a 57,5% da população, a indigência a 27,5% e o desemprego a 21,5%, todos níveis recordes para o país.

Conclusão

Todo o desenrolar dos fatos deixa bem claro de quem é a culpa. Qual entidade confisca o dinheiro das pessoas, aniquila toda a sua poupança e até mesmo estipula quantias máximas a serem utilizadas? Qual entidade gera incertezas ao se mostrar incapaz de controlar seus gastos e de se adequar dentro de seu orçamento?

Enquanto o governo foi capaz de manter um orçamento equilibrado e de seguir ortodoxamente as regras do Currency Board, a qualidade de vida da população aumentou substancialmente.

A partir do momento em que o governo não mais conseguiu manter seu orçamento equilibrado (a partir de 1995) e passou a aumentar sua dívida de forma contínua, gerando incertezas quanto à capacidade de financiamento e aumentando a propensão a um calote, a confiança no sistema começou a desaparecer. Não obstante, tudo poderia ter sido revertido caso o governo houvesse feito a dolarização da economia em 1999. Neste cenário, seria por definição impossível uma desvalorização e uma fuga de capitais. 

Quando o ministro Cavallo deixou explícita sua intenção de alterar o regime cambial, o que na prática representou a abolição do regime de conversibilidade original, a confiança no sistema foi completamente aniquilada. O colapso era questão de tempo.

Mas há outros culpados.

O sistema bancário de reservas fracionárias também teve um papel decisivo nessa história. Muito embora o Currency Board de fato tenha restringido a taxa de crescimento da oferta monetária, tanto o M1 quanto o M2 chegaram a volumes muito acima das reservas internacionais. Não apenas isso estimulou os ataques especulativos, como também foi a causa dos saques bancários dos correntistas a partir de outubro de 2000, o que gerou uma forte contração monetária. Uma contração monetária é consequência direta da expansão anterior decorrente das reservas fracionárias. A adoção de um regime de 100% de reservas teria evitado esse cenário.



Gráfico 13: evolução do M1, 04/1991—12/2001



Gráfico 14: evolução do M2, 04/1991—12/2001

O corralito implantado pelo governo com o intuito de conter a sangria ilustrada nos dois gráficos acima foi apenas mais um exemplo prático da teoria de que um sistema bancário de reservas fracionárias sem um emprestador de última instância é uma impossibilidade. (O corralito só viria a ser abolido em dezembro de 2002, mas ainda manteria várias restrições sobre transações financeiras e aquisição de dólares).

No entanto, vale enfatizar o fato de que, não obstante o governo tenha destruído seu orçamento, elevado seus gastos, incorrido em vultosos déficits, se endividado e, no final, tenha adulterado os fundamentos básicos do Currency Board, tal sistema deu à Argentina, um país que há muito desconhecia o que era inflação baixa, um período de sete anos (1995-2001) de inflação praticamente nula, um atestado de sua qualidade.

Veja o gráfico da evolução anual da inflação de preços. O gráfico começa em abril de 1992, um ano após a introdução do Currency Board. Note que a âncora cambial é abolida em janeiro de 2002.



Gráfico 15: taxa de inflação anual, 04/1992—12/2002

Por fim, este gráfico da evolução do PIB em dólares desde 1970 é bastante significativo. Ele mostra o que a estabilidade de preços em conjunto com uma moeda forte podem fazer a uma economia. Mostra também o que acontece quando o governo resolve destruir este sistema.



Gráfico 16: PIB nominal em dólares, 1970-2009

Ao final de 2009, o PIB em dólares era praticamente o mesmo de 1998, o que significa que a economia levou 11 anos para voltar ao mesmo nível de onde estava durante a crise da Rússia.

O tamanho do estrago que um governo é capaz de fazer em uma economia é algo que jamais deve ser subestimado.

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.