domingo, 28 de abril de 2013

OS EFEITOS ECONÔMICOS DA INFLAÇÃO

Este artigo foi extraído do livro "O que o governo fez com o nosso dinheiro", futuro lançamento do IMB.

Os governos, ao contrário de todas as outras organizações, não obtêm suas receitas por meio da oferta de serviços. Sendo assim, os governos enfrentam um problema econômico distinto daquele enfrentado por empresas e indivíduos. Indivíduos que desejam adquirir mais bens e serviços de outros indivíduos têm de produzir e vender aquilo que estes outros indivíduos desejam. Já os governos têm apenas de encontrar algum método de expropriar bens sem o consentimento de seus proprietários.

Em uma economia de escambo, os funcionários do governo podem expropriar recursos somente de uma maneira: confiscando bens físicos. Já em uma economia cujas transações econômicas são mediadas pelo dinheiro, eles descobrirão ser mais fácil confiscar ativos monetários para, em seguida, utilizar o dinheiro para adquirir bens e serviços para si próprios, ou ainda, para conceder subsídios para seus grupos favoritos. Tal confisco é chamado de tributação.

A tributação, no entanto, é sempre algo impopular e, em épocas menos moderadas, frequentemente gerava revoluções. O surgimento do dinheiro, uma bênção para a espécie humana, também abriu um caminho sutil para a expropriação governamental de recursos. 

Em um livre mercado, o dinheiro pode ser adquirido de duas formas: ou o indivíduo produz e vende bens e serviços desejados por terceiros, ou ele se dedica à mineração de ouro (um negócio tão lucrativo como outro qualquer, no longo prazo). Mas se o governo descobrir maneiras de praticar falsificação — criar dinheiro do nada —, então ele poderá, rapidamente, produzir o próprio dinheiro sem ter o trabalho de vender serviços ou de garimpar ouro. Ele poderá, assim, se apropriar maliciosamente de recursos e de forma bastante discreta, sem suscitar as hostilidades desencadeadas pela tributação. Com efeito, a falsificação pode criar em suas próprias vítimas uma doce ilusão de incomparável prosperidade.

Falsificação, evidentemente, nada mais é do que outro nome para a inflação — ambas criam um novo "dinheiro" que não é um metal como ouro ou prata, e ambas funcionam similarmente. E assim podemos entender por que os governos são inerentemente inflacionários: porque a inflação monetária é um meio poderoso e sutil para o governo adquirir recursos do público, uma forma de tributação indolor e bem mais perigosa.

Para mensurar os efeitos econômicos da inflação, vejamos o que acontece quando um grupo de falsificadores dá início ao seu "trabalho". Suponhamos que a economia tenha uma oferta de $10.000. E então os falsificadores, tão sagazes que ninguém os percebe, injetam mais $2.000 nesta economia. Quais serão as consequências?

Primeiramente, os próprios falsificadores serão os primeiros a se beneficiar. Eles utilizarão esse dinheiro recém-criado para adquirir bens e serviços. Como bem ilustrou uma famosa charge da revista New Yorker, que mostrava um grupo de falsificadores contemplando solenemente o próprio trabalho: "O consumo está prestes a receber um grande e necessário estímulo". Exatamente. Os gastos em consumo, de fato, realmente recebem um estímulo. 

Esse dinheiro novo vai percorrendo, pouco a pouco, todo o sistema econômico. À medida que ele vai se espalhando pela economia, os preços vão aumentando — como vimos antes, dinheiro criado do nada pode apenas diluir a efetividade de cada unidade monetária. Mas essa diluição é um processo lento e, por isso, é desigual; durante este ínterim, algumas pessoas ganham e outras perdem. No início deste processo, a renda e o poder de compra dos falsificadores e dos varejistas locais aumentam antes que tenha havido qualquer aumento nos preços dos bens e serviços que eles compram. Com o tempo, à medida que o dinheiro vai perpassando toda a economia e elevando os preços, aquelas pessoas que estão nas áreas mais remotas da economia, e que ainda não receberam esse dinheiro recém-criado, terão de lidar com preços maiores sem que tenham vivenciado um aumento de suas rendas. Os varejistas que estão do outro lado do país, por exemplo, estarão em pior situação. Terão de lidar com preços maiores sem que sua renda e seu poder de compra tenham aumentado. Os primeiros recebedores do dinheiro novo se beneficiam à custa daqueles que recebem este dinheiro por último. Houve uma redistribuição de renda às avessas.

A inflação, portanto, não gera nenhum benefício social; ao contrário, ela redistribui a riqueza para aqueles que obtiveram primeiramente o dinheiro recém-criado, e tudo à custa daqueles que o recebem por último. A inflação é, efetivamente, uma disputa — uma disputa para ver quem obtém antes dos outros a maior fatia do dinheiro recém-criado. Aqueles que ficam por último — aqueles que arcam com a redução de seu poder de compra — são majoritariamente aqueles que estão no chamado de "grupo de renda fixa". Sacerdotes, professores e assalariados em geral estão notoriamente entra aqueles que são os últimos a receber este dinheiro recém-criado. Aposentados, pensionistas, pessoas dependentes de algum seguro de vida, senhorios com contratos de aluguel de longo prazo, portadores de títulos e credores em geral, aqueles que portam dinheiro em espécie — todos arcarão com o fardo da inflação. Eles são os únicos "tributados".

Mas a inflação também gera outros efeitos desastrosos. Ela distorce aquele pilar básico da economia: o cálculo empreendedorial. Dado que os preços não se alteram de maneira uniforme e com a mesma velocidade, torna-se muito difícil para os empreendedores distinguir aquilo que é duradouro daquilo que é transitório, e mensurar corretamente as verdadeiras demandas do consumidor ou o custo de suas operações. 

Por exemplo, a norma da prática contábil é registrar o "custo" de um ativo pelo valor em que ele foi pago. Porém, com a inflação, o custo de repor este ativo quando ele já estiver exaurido será bem maior do que aquele valor registrado nos livros contábeis quando o ativo foi adquirido. Como resultado, a contabilidade das empresas irásobrestimar acentuadamente seus lucros durante um processo de inflação – podendo até mesmo chegar ao ponto de estar consumindo seu capital ao mesmo tempo em que se imagina estar aumentando os investimentos.

Do mesmo modo, os detentores de ações, papeis e imóveis auferirão ganhos de capital durante a inflação que não são de modo algum ganhos reais. Eles podem até acabar consumindo parte destes ganhos sem perceber que estão consumindo seu capital original.

Ao criar lucros ilusórios e distorcer o cálculo econômico, a inflação suspenderá o processo – feito automaticamente pelo livre mercado – de penalização das empresas ineficientes e de recompensa das eficientes. Quase todas as empresas irão aparentemente prosperar. Essa atmosfera geral de "mercado propício ao consumo" levará a um declínio na qualidade dos bens e serviços ofertados aos consumidores, uma vez que os consumidores tendem a oferecer menos resistência a aumentos de preços quando estes ocorrem na forma de redução da qualidade.

A qualidade da mão-de-obra também será pior durante uma inflação e por um motivo mais sutil: as pessoas serão cativadas por esquemas que prometem enriquecimento rápido, os quais, durante uma época de preços em ascensão, parecem estar ao alcance de praticamente todos. Ao mesmo tempo, várias pessoas passarão a desdenhar o esforço e a prudência. A inflação também penaliza a poupança e a frugalidade, premia o consumismo e encoraja o endividamento, pois qualquer soma tomada emprestada hoje será paga no futuro com um dinheiro cujo poder de compra será menor do que aquele em que o empréstimo originalmente ocorreu. O incentivo, consequentemente, passa a ser o de se endividar para pagar mais tarde, em vez de poupar e investir. A inflação, portanto, diminui o padrão de vida geral ao mesmo tempo em que cria uma falsa e opaca atmosfera de "prosperidade".

Felizmente, a inflação é um processo que não pode continuar para sempre. Com o tempo, as pessoas inevitavelmente acordarão para esta forma insidiosa de tributação; elas perceberão a contínua redução do poder de compra do seu dinheiro e exigirão providências.

No entanto, um processo de inflação pode chegar a extremos.

Por exemplo, no início, quando os preços sobem, as pessoas dizem: "Bem, isso não é normal; é certamente fruto de alguma emergência. Adiarei minhas compras e esperarei até os preços baixarem". Essa é a atitude comum durante a primeira fase de uma inflação. Essa postura ajuda a conter a subida dos preços e oculta os efeitos da inflação, dado que houve um aumento na demanda por dinheiro. Mas, à medida que a inflação monetária prossegue, as pessoas começam a perceber que os preços irão aumentar perpetuamente como resultado de uma inflação perpétua.

Neste momento, as pessoas passam a dizer: "Embora os preços estejam 'altos', comprarei agora porque, se esperar mais, os preços ficarão ainda mais altos". O resultado dessa postura é que a demanda por dinheiro diminui e os preços passam a crescer, em termos proporcionais, mais do que o aumento na oferta monetária. Neste ponto, o governo normalmente é conclamado para aliviar a 'escassez' de moeda gerada pelo crescimento acelerado dos preços e inflaciona ainda mais aceleradamente. Em pouco tempo, o país chega ao ponto de descontrole absoluto dos preços, e é aí que as pessoas dizem: "Tenho de comprar qualquer coisa agora — qualquer coisa para me livrar deste dinheiro que só desvaloriza". A oferta monetária dispara, a demanda por dinheiro despenca e os preços sobem astronomicamente. A produção cai de forma dramática, pois as pessoas agora dedicam grande parte do tempo tentando descobrir formas de se livrar do seu dinheiro. O sistema monetário entra em total colapso, e a economia recorre a outras moedas, caso existam – metais ou moedas estrangeiras caso esta inflação seja em um único país; no extremo, a população tem de retornar ao escambo. O sistema monetário se desintegrou sob o impacto da inflação.

Esta situação de hiperinflação foi observada durante a Revolução Francesa com os assignats, durante a Revolução Americana com os continentais e, especialmente, durante a crise alemã de 1923 com o marco. Foi também vivenciada pela China e por outros países após a Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, hiperinflações devastaram os principais países da América Latina.

Por fim, uma última condenação da inflação é o fato de que, sempre que o dinheiro recém-criado é utilizado para conceder empréstimos, essa inflação gera os pavorosos "ciclos econômicos". Esse processo silencioso, porém mortal, e que passou despercebido por gerações, age da seguinte maneira: o dinheiro é criado pelo sistema bancário de reservas fracionárias, que opera sob os auspícios do governo, e é emprestado para financiar empreendimentos. Para os empreendedores, esses novos fundos parecem ser investimentos genuínos; mas o problema é que esses fundos não surgiram, como os investimentos que ocorreriam sob um sistema bancário com 100% de reservas, de poupanças voluntárias. 

Após esse dinheiro novo ter entrado na economia e ter sido investido por empreendedores em vários projetos, os preços e os salários começam a subir. O dinheiro novo é também utilizado para pagar os agora mais altos salários dos trabalhadores e os agora também mais caros fatores de produção. No entanto, após esse novo dinheiro ter perpassado toda a economia, as pessoas tendem a restabelecer suas antigas e voluntárias proporções entre consumo e poupança. Em suma, se as pessoas desejam poupar e investir cerca de 20% de sua renda e consumir o restante, esse novo dinheiro criado pelo sistema bancário e emprestado para empreendimentos irá primeiramente fazer com que a fatia destinada à poupança pareça maior. Quando o novo dinheiro já houver chegado a todo o público, as pessoas restabelecem a antiga proporção de 20/80, o que faz com que muitos investimentos se revelem insolventes e não-lucrativos, pois nunca houve de fato uma real demanda por eles. A liquidação destes investimentos insolventes, que só se originaram por causa do boom inflacionário, constitui a fase da depressão dos ciclos econômicos.


1- Virou moda ridicularizar a preocupação demonstrada pelos "conservadores" para com "os pobres, as viúvas e os órfãos" prejudicados pela inflação. E, no entanto, esse é exatamente um dos principais problemas que devem ser enfrentados. Será que é realmente "progressista" roubar pobres, viúvas e órfãos e utilizar os proventos para subsidiar fazendeiros ricos e empresários poderosos?

2- Esse erro será maior naquelas empresas com equipamentos mais velhos e nas indústrias mais pesadamente capitalizadas. Um excessivo número de empresas, por conseguinte, irá fluir para essas indústrias durante uma inflação.

3- Nesta época em que se dá atenção extasiada a "índices do custo de vida" (o que gera, por exemplo, contratos em que os salários variam de acordo com a inflação), há um forte incentivo para se aumentar preços de uma maneira que não seja explicitada pelo indicador.

4- Sobre o exemplo alemão, veja este artigo: A hiperinflação alemã, 1914-1923

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

sábado, 27 de abril de 2013

A LUTA DE CLASSES

Qualquer filosofia da história deve demonstrar qual é o mecanismo por meio do qual aquela agência suprema que determina o curso de todas as relações humanas irá induzir os indivíduos a trilhar exatamente os caminhos destinados a levar a humanidade até o objetivo determinado. No sistema de Marx, a doutrina da luta de classes foi criada para responder a essa questão.

A fragilidade inerente a essa doutrina é que ela lida com classes e não com indivíduos. O que tem de ser mostrado é como os indivíduos são induzidos a agir de tal modo que fará a humanidade finalmente atingir o ponto que as forças produtivas querem que ela atinja. A resposta de Marx é que o que determina a conduta dos indivíduos é a consciência dos interesses de sua classe. Ainda falta ser explicado por que os indivíduos dão aos interesses de sua classe preferência em relação aos seus próprios interesses. Podemos, por enquanto, nos abster de perguntar como o indivíduo aprende quais são os genuínos interesses de sua classe. Porém, mesmo Marx não pôde deixar de admitir que existe um conflito entre os interesses de um indivíduo e os interesses da classe a que ele pertence. Ele faz um distinção entre aqueles proletários que possuem consciência de classe — isto é, que colocam as preocupações de sua classe acima de suas preocupações individuais — e aqueles que não possuem. Ele considera ser um dos objetivos de um partido socialista despertar a consciência de classe daqueles proletários que não possuem espontaneamente uma consciência de classe.

Marx obscureceu o problema ao confundir as noções de casta e classe. Onde prevalecem diferenças de status e casta, todos os membros de cada casta — exceto a mais privilegiada — possuem um interesse em comum, a saber: acabar com as limitações legais de sua própria casta. Todos os escravos, por exemplo, estão unidos em seu interesse de abolir a escravidão. Porém, conflitos desse tipo não estão presentes em uma sociedade na qual os cidadãos são iguais perante a lei. Nenhuma objeção lógica pode ser feita contra o ato de se distinguir várias classes entre os membros de tal sociedade. Qualquer classificação é logicamente permissível, por mais arbitrária que seja a marca de distinção escolhida. Porém, seria algo despropositado classificar os membros de uma sociedade capitalista de acordo com a posição que cada um ocupa no arranjo da divisão social do trabalho e, em seguida, identificar essas classes com as castas de uma sociedade de status.

Em uma sociedade de status, o indivíduo herda de seus pais sua afiliação em uma determinada casta. Ele permanece toda a sua vida em sua casta, e seus filhos já nascem membros dela. Somente em casos excepcionais pode a sorte elevar um homem para uma casta superior. Para a imensa maioria da população, o nascimento determina inalteravelmente a posição social de toda uma vida. 

As classes que Marx distingue em uma sociedade capitalista são diferentes. A condição de membro de uma dada classe é volátil. A afiliação a uma classe não é hereditária. Ela é designada a cada indivíduo por meio de um plebiscito diariamente repetido — plebiscito esse, de certo modo, feito por todas as pessoas. Ao gastar e comprar, o público determina quem deve ser o proprietário e o administrador das indústrias, quem deve atuar nas peças de teatro, quem deve trabalhar nas fábricas e nas minas. Os ricos se tornam pobres, e os pobres se tornam ricos. Os herdeiros, bem como aqueles que adquiriram riqueza, devem tentar mantê-la defendendo seus ativos contra a concorrência de empresas já estabelecidas e de ambiciosos recém-chegados. Em uma economia de mercado livre e desobstruído não existem privilégios, não há proteção de interesses especiais, não há barreiras impedindo qualquer pessoa de se esforçar para obter algum prêmio. O acesso a qualquer uma das classes marxistas é livre para todos. Os membros de cada classe concorrem entre si; eles não estão unidos por um interesse de classe comum e eles não se opõem aos membros de outras classes aliando-se à defesa de um privilégio comum que aqueles vitimados por ele querem ver abolido ou na tentativa de abolir uma deficiência institucional que aqueles que obtêm vantagens dela querem preservar.

Os liberais laissez-faire afirmaram: se as antigas leis estabelecendo privilégios e desvantagens de casta forem repelidas e nenhuma nova prática do mesmo tipo — tais como tarifas, subsídios, tributação discriminatória, indulgências concedidas a agências não-governamentais, como igrejas, sindicatos e afins, para que elas utilizem coerção e intimidação — for introduzida, haverá igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Ninguém terá suas aspirações e ambições tolhidas por quaisquer obstáculos legais. Qualquer indivíduo estará livre para concorrer para a função ou posição social para as quais suas habilidades pessoais o qualifiquem.

Os comunistas negam que é dessa maneira que opera uma sociedade capitalista organizada de acordo com o sistema liberal de igualdade perante a lei. Ao seu modo de ver, a propriedade privada dos meios de produção confere aos seus proprietários — a burguesia ou os capitalistas, na terminologia de Marx — um privilégio que, virtualmente, em nada se difere daqueles concedidos aos senhores feudais. A "revolução burguesa" não aboliu o privilégio e a discriminação das massas; o que ela fez, diz o marxista, foi meramente derrubar a velha e exploradora classe de nobres e substituí-la por uma nova classe exploradora, a burguesia. A classe explorada, os proletários, não lucrou com essa reforma. Eles mudaram de mestres, mas permaneceram oprimidos e explorados. O que se faz necessário é uma nova e definitiva revolução, a qual, ao abolir a propriedade privada dos meios de produção, irá estabelecer uma sociedade sem classes.

A doutrina socialista ou comunista é totalmente incapaz de levar em consideração a diferença essencial entre as condições de uma sociedade de status ou casta e as condições de uma sociedade capitalista. A propriedade feudal surgia pela conquista ou pela doação feita por seu conquistador. E acabava por revogação da doação ou pela conquista feita por um conquistador mais poderoso. Era propriedade pela "graça de Deus" porque sua conquista derivava, em última instância, da vitória militar — algo que a humildade ou a arrogância dos governantes atribuíam à intervenção especial do Senhor. 

Os proprietários da propriedade feudal não dependiam do mercado; eles não serviam aos consumidores. Dentro dos limites de seus direitos de propriedade eles eram verdadeiros senhores. Porém, as coisas são bastante diferentes para os capitalistas e empreendedores de uma economia de mercado. Eles adquirem e aumentam sua propriedade por meio dos serviços que prestam aos consumidores, e somente podem conservá-la caso sirvam esses consumidores diariamente da melhor maneira possível. Essa diferença não é erradicada ao se chamar metaforicamente um bem sucedido fabricante de spaghetti de "O Rei do Spaghetti".

Marx nunca embarcou na impossível tarefa de refutar a descrição feita pelos economistas do funcionamento da economia de mercado. Ao invés disso, sua ânsia era mostrar que o capitalismo iria, no futuro, levar a condições bastante desagradáveis. Ele tentou demonstrar que a operação do capitalismo inevitavelmente iria resultar, de um lado, na concentração de riqueza nas mãos de um número cada vez menor de capitalistas, e, de outro, no progressivo empobrecimento de uma imensa maioria. 

Na execução dessa tarefa, ele iniciou seu raciocínio pela espúria 'lei de ferro dos salários' — de acordo com a qual o salário médio é aquela quantidade específica dos meios de subsistência absolutamente necessários para permitir, de maneira escassa, que o trabalhador possa sobreviver e criar sua prole. Essa suposta lei já foi, desde então, inteiramente desacreditada, e até mesmo os mais fanáticos marxistas já a abandonaram. Porém, mesmo que alguém estivesse disposto, pelo bem da argumentação, a dizer que tal lei é correta, é óbvio que ela não poderia de maneira alguma servir como base para uma demonstração de que a evolução do capitalismo leva ao empobrecimento progressivo dos assalariados.

Se, sob o capitalismo, os salários são sempre tão baixos a ponto de, por razões psicológicas, não poderem cair ainda mais sem que isso extermine toda a classe de assalariados, é impossível manter a tese apresentada peloManifesto Comunista de que o trabalhador "se afunda mais e mais" com o progresso da indústria. Como todos os outros argumentos de Marx, essa demonstração é contraditória e autodestrutiva. Marx jactava-se de ter descoberto as leis imanentes da evolução capitalista. A mais importante dessas leis, segundo ele próprio, era a lei do empobrecimento progressivo das massas assalariadas. É o funcionamento dessa lei que ocasionaria o colapso final do capitalismo e a emergência do socialismo. Quando essa lei for entendida como totalmente espúria, as bases tanto do sistema econômico de Marx quanto de sua teoria da evolução capitalista estarão acabadas.

Incidentalmente, temos de compreender o fato de que, desde a publicação do Manifesto Comunista e do primeiro volume de O Capital, o padrão de vida dos assalariados, nos países capitalistas, aumentou de uma forma sem precedentes e até mesmo inimaginável. Marx deturpou a operação do sistema capitalista em todos os aspectos possíveis.

O corolário do suposto empobrecimento progressivo dos assalariados é a concentração de todas as riquezas nas mãos de uma classe de exploradores capitalistas que existem em números continuamente decrescentes. Ao lidar com essa questão, Marx foi incapaz de levar em consideração o fato de que a evolução das grandes empresas e suas unidades comerciais não necessariamente envolve a concentração de riqueza em poucas mãos. As grandes empresas são, quase que sem exceção, corporações — precisamente porque elas são grandes demais para que poucos indivíduos sejam inteiramente os proprietários delas. O crescimento das unidades comerciais ultrapassou em muito o crescimento das fortunas individuais. Os ativos de uma corporação não são idênticos à riqueza de seus acionistas. Uma parte considerável desses ativos, o equivalente a ações preferenciais, títulos corporativos emitidos e empréstimos levantados, pertence virtualmente, senão no sentido do conceito legal de propriedade, a outras pessoas — a saber, os donos dos títulos, das ações preferenciais e os credores das dívidas. Onde essas ações e obrigações são mantidas por bancos e companhias de seguro, e esses empréstimos foram concedidos por esses bancos e companhias, os virtuais proprietários são as pessoas clientes dessas instituições. Da mesma forma, as ações ordinárias de uma corporação não estão, via de regra, concentradas nas mãos de um homem. Quanto maior a corporação, mais amplamente distribuídas estão suas ações.

O capitalismo é essencialmente produção em massa para satisfazer as necessidades das massas. Mas Marx sempre trabalhou com o conceito enganoso de que os trabalhadores labutam arduamente apenas para o benefício da uma classe superior de parasitas ociosos. Ele não percebeu que os próprios trabalhadores consomem, de longe, a maior parte de todos os bens de consumo produzidos. Os milionários consomem uma porção quase que insignificante daquilo que é chamado de produto nacional. Todas as sucursais das grandes empresas provêem direta ou indiretamente às necessidades do cidadão comum. As indústrias de luxo nunca se desenvolvem além das unidades de pequena ou média escala. A evolução das grandes empresas é, por si só, prova do fato de que as massas, e não os ricaços nababos, são os principais consumidores. Aqueles que lidam com o fenômeno das grandes empresas classificando-o de "concentração do poder econômico" não percebem que o poder econômico pertence ao público consumidor, de cujo consumo depende a prosperidade das fábricas. Na sua capacidade de consumidor, o assalariado é o cliente que "sempre tem razão". Mas Marx declara que a burguesia "é incompetente em garantir uma existência para seu escravo dentro de sua escravidão".

Marx deduziu a excelência do socialismo do fato de que a força motora da evolução histórica — as forças materiais produtivas — certamente ocasionará o socialismo. Como ele estava absorto naquele tipo hegeliano de otimismo, não havia qualquer necessidade em sua mente de demonstrar os méritos do socialismo. Era óbvio para ele que o socialismo, sendo a última etapa da história após o fim do capitalismo, era também uma etapa superior. Era uma blasfêmia absoluta duvidar de seus méritos.

O que ainda faltava ser demonstrado era o mecanismo por meio do qual a natureza produziria a transição do capitalismo para o socialismo. O instrumento da natureza é a luta de classes. À medida que os trabalhadores vão se afundando cada vez mais em decorrência do progresso do capitalismo, à medida que sua miséria, opressão, escravidão e degradação aumentam, eles são induzidos à revolta, e sua rebelião estabelece o socialismo.

Toda a cadeia desse raciocínio é despedaçada pela observação do fato de que o progresso do capitalismo não empobrece os assalariados de modo crescente; ao contrário, melhora seu padrão de vida. Por que as massas seriam inevitavelmente induzidas a se revoltarem quando se sabe que elas estão tendo acesso a mais e melhores alimentos, habitações e vestuários, carros e geladeiras, rádios e aparelhos de televisão, nylon e outros produtos sintéticos? 

Mesmo se, em prol da argumentação, admitíssemos que os trabalhadores são induzidos à rebelião, por que seu motim revolucionário almejaria apenas o estabelecimento do socialismo? O único motivo que poderia induzi-los a pedir a implementação do socialismo seria a convicção de que eles próprios estariam melhores sob o socialismo do que sob o capitalismo. Porém os marxistas, ansiosos para evitar lidar com os problemas econômicos inerentes a uma economia socialista, nada fizeram para demonstrar a superioridade do socialismo em relação ao capitalismo, exceto apresentar este raciocínio circular: o socialismo está destinado a surgir como a próxima etapa da evolução histórica. Sendo uma etapa histórica posterior ao capitalismo, ele é necessariamente melhor que o capitalismo. Por que ele está destinado a surgir? Porque os trabalhadores, condenados ao empobrecimento progressivo sob o capitalismo, irão se rebelar e estabelecer o socialismo. Porém, qual outro motivo poderia impeli-los a almejar o estabelecimento do socialismo, além da convicção de que o socialismo é melhor do que o capitalismo? Essa superioridade do socialismo é deduzida por Marx do fato de que a vinda do socialismo é inevitável. E assim o círculo se fecha.

No contexto da doutrina marxista, a superioridade do socialismo é comprovada pelo fato de que os proletários estão visando ao socialismo. O que os filósofos, os utópicos, pensam não interessa. O que interessa são as ideias do proletariado, a classe a quem a história confiou a tarefa de moldar o futuro.

A verdade é que o conceito de socialismo não se originou da "mente proletária". Nenhum proletário ou filho de proletário contribuiu com qualquer ideia substancial para a ideologia socialista. Os pais intelectuais do socialismo eram membros da intelligentsia, descendentes da "burguesia". O próprio Marx era filho de um advogado abastado. Ele estudou no Gymnasium alemão, a escola que todos os marxistas e outros socialistas denunciavam como sendo o principal braço do sistema burguês de educação, e sua família o sustentou ao longo de todos os anos de seus estudos; ele não teve de trabalhar para chegar à universidade. Ele se casou com a filha de um membro da nobreza alemã; seu cunhado era Ministro do Interior prussiano e, como tal, líder da polícia da Prússia. Em sua casa trabalhava uma governanta, Helene Demuth, que nunca se casou e que seguia a família Marx em todas as suas trocas de residência, o modelo perfeito da empregada doméstica explorada cuja frustração e atrofiada vida sexual já foram repetidamente retratadas nas ficções realistas "sociais" da Alemanha. Friedrich Engels era filho de um industrial rico, e ele próprio era um industrial; ele se recusou a se casar com sua amante Mary porque ela era inculta e de origem "baixa" ele apreciava as diversões propiciadas pela alta classe britânica, como, por exemplo, caçar a cavalo junto com cães de caça.

Os trabalhadores nunca foram entusiastas do socialismo. Eles apoiavam o movimento sindical cuja luta por maiores salários Marx desprezava como inútil. Eles pediam por todas aquelas medidas de interferência do governo nas empresas, medidas essas que Marx rotulava como tolices pequeno-burguesas. Eles se opunham ao progresso tecnológico — nos primórdios, destruindo as novas máquinas; mais tarde, utilizando os sindicatos para, por meio da coerção, forçar o empregador a contratar mais operários do que o necessário.

O sindicalismo — apropriação das empresas pelos trabalhadores que nela trabalham — é um programa que os trabalhadores desenvolveram espontaneamente. Porém o socialismo foi trazido para as massas por intelectuais de procedência burguesa. Jantando e tomando vinhos conjuntamente nas luxuosas mansões londrinas e nas mansões rurais da "sociedade" vitoriana, damas e cavalheiros com trajes elegantes planejavam esquemas para converter o proletariado britânico ao credo socialista.

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Notas

1-E assim lemos no Manifesto Comunista: "A organização do proletariado em uma classe e, consequentemente, em um partido político, é a todo instante rompido e demolido pela competição entre os próprios trabalhadores."

2-Obviamente, Marx não gostava do termo alemão "das eherne Lohngesetz", pois havia sido criado por seu rival Ferdinand Lassalle.

3- Marx, Das Kapital, 1, 728.

4- Após a morte de Mary, Engels pegou a irmã dela, Lizzy, para ser sua amante. Ele s casou com ela em seu leito de morte "para poder lhe propiciar seu último prazer". Gustav Mayer, Frederick Engels (The Hague, Martinus Nijhoff, 1934), 2, 329.

5-Marx, Value, Price and Profit, ed. E. Marx Aveling (Chicago, Charles H. Kerr & Co. Cooperative), pp. 125-6.


Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

sexta-feira, 26 de abril de 2013

O STF CORRE PERIGO

No julgamento do mensalão o Supremo Tribunal Federal (STF) está decidindo a sua sorte. Mas não só: estará decidindo também a sorte da democracia brasileira. A Corte deve servir de exemplo não só para o restante do Poder Judiciário, mas para todo cidadão. O que estamos assistindo, contudo, é a um triste espetáculo marcado pela desorganização, pelo desrespeito entre seus membros, pela prolixidade das intervenções dos juízes e por manobras jurídicas.


Diferentemente do que ocorreu em 2007, quando do recebimento do Inquérito 2.245 – que se transformou na Ação Penal 470 -, o presidente Carlos Ayres Britto deixou de organizar reuniões administrativas preparatórias, que facilitariam o bom andamento dos trabalhos. Assim, tudo passou a ser decidido no calor da hora, sem que tenha havido um planejamento minimamente aceitável. Essa insegurança transformou o processo numa arena de disputa política e aumentou, desnecessariamente, a temperatura dos debates.

Desde o primeiro dia, quando toda uma sessão do Supremo foi ocupada por uma simples questão de ordem, já se sinalizou que o julgamento seria tumultuado. Isso porque não interessava aos petistas que fosse tomada uma decisão sobre o processo ainda neste ano. Tudo porque haverá eleições municipais e o PT teme que a condenação dos mensaleiros possa ter algum tipo de influência no eleitorado mais politizado, principalmente nas grandes cidades. São conhecidas as pressões contra os ministros do STF lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-presidente agiu de forma indigna. Se estivesse no exercício do cargo, como bem disse o ministro Celso de Mello, seria caso de abertura de um processo de impeachment.

A lentidão do julgamento reforça ainda mais a péssima imagem do Judiciário. Quando o juiz não consegue apresentar brevemente um simples voto, está sinalizando para o grande público que é melhor evitar procurar aquela instância de poder. O desprezo pela Justiça enfraquece a consolidação da democracia. Quando não se entende a linguagem dos juízes, também é um mau sinal. No momento em que observa que um processo acaba se estendendo por anos e anos – sempre havendo algum recurso postergando a decisão final – a descrença toma conta do cidadão.

Os ministros mais antigos deveriam dar o exemplo. Teriam de tomar a iniciativa de ordenar o julgamento, diminuir a tensão entre os pares, possibilitar a apreciação serena dos argumentos da acusação e da defesa, garantindo que a Corte possa apreciar o processo e julgá-lo sem delongas. Afinal, se a Ação Penal 470 tem enorme importância, o STF julga por ano 130 mil processos. E no ritmo em que está indo o julgamento é possível estimar – fazendo uma média desde a apresentação de uma pequena parcela do voto do ministro Joaquim Barbosa -, sendo otimista, que deverá terminar no final de outubro.

Esse julgamento pode abrir uma nova era na jovem democracia brasileira, tão enfraquecida pelos sucessivos escândalos de corrupção. A punição exemplar dos mensaleiros serviria como um sinal de alerta de que a impunidade está com os dias contados. Não é possível considerarmos absolutamente natural que a corrupção chegue até a antessala presidencial. Que malotes de dinheiro público sejam instrumento de “convencimento” político. Que uma campanha presidencial – como a de Lula, em 2002 – seja paga com dinheiro de origem desconhecida e no exterior, como foi revelado na CPMI dos Correios e reafirmado na Ação Penal 470.

A estratégia do PT é tentar emparedar o tribunal. Basta observar a ofensiva na internet montada para pressionar os ministros. O PT tem uma vertente que o aproxima dos regimes ditatoriais e, consequentemente, tem enorme dificuldade de conviver com qualquer discurso que se oponha às suas práticas. Considera o equilíbrio e o respeito entre os três Poderes um resquício do que chama de democracia burguesa. Se o STF não condenar o núcleo político da “sofisticada organização criminosa”, como bem definiu a Procuradoria-Geral da República, e desviar as punições para os réus considerados politicamente pouco relevantes, estará reforçando essa linha política.

Porém, como no Brasil o que é ruim sempre pode piorar, com as duas aposentadorias previstas – dos ministros Cezar Peluso, em setembro, e Ayres Britto, em novembro – o STF vai caminhar para ser uma Corte petista. Mais ainda porque pode ocorrer, por sua própria iniciativa, a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Haverá, portanto, mais três ministros de extrema confiança do partido – em sã consciência, ninguém imagina que serão designados ministros que tenham um percurso profissional distante do lulopetismo. Porque desta vez a liderança petista deve escolher com muito cuidado os indicados para a Suprema Corte. Quer evitar “traição”, que é a forma como denomina o juiz que deseja votar segundo a sua consciência, e não como delegado do partido.

Em outras palavras, o STF corre perigo. E isso é inaceitável. Precisamos de uma Suprema Corte absolutamente independente. Se, como é sabido, cabe ao presidente da República a escolha dos ministros, sua aprovação é prerrogativa do Senado. E aí mora um dos problemas. Os senadores não sabatinam os indicados. A aprovação é considerada automática. A sessão acaba se transformando numa homenagem aos escolhidos, que antes da sabatina já são considerados nomeados.

Poderemos ter nas duas próximas décadas, independentemente de que partido detenha o Poder Executivo, um controle petista do Estado brasileiro por intermédio do STF, que poderá agir engessando as ações do presidente da República. Dessa forma – e estamos trabalhando no terreno das hipóteses – o petismo poderá assegurar o controle do Estado, independentemente da vontade dos eleitores. E como estamos na América Latina, é bom não duvidar. Por: MARCO ANTONIO VILLA, HISTORIADOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS (UFSCAR) – O Estado de S.Paulo

IRRESPONSABILIDADE

Sempre há um trauma passado que "explica" e serve para evitar a responsabilidade


A coluna da semana passada tratava da maioridade penal. Eu disse que sou a favor de considerar que, nos crimes mais graves (sobretudo contra a pessoa), os jovens sejam responsáveis pelos seus atos.

A partir de que idade? Talvez um juiz ou uma corte especial possam decidir, em cada circunstância, quando um jovem deve ser julgado como adulto ou não.

A coluna suscitou um grande número de comentários, pelos quais agradeço e aos quais não terei como responder individualmente. Tento resumir algumas objeções, organizando-as em quatro eixos:

1) A redução da maioridade penal não vai resolver o problema da violência.

Concordo: em geral, a severidade das penas não produz o efeito mágico de estancar a violência e o crime. Em compensação, a impunidade, ela sim, autoriza o crime e seu crescimento. Mas tanto faz: o que importa é que a violência criminosa baixa quando sobem não tanto as penas quanto a inclusão social e o sentimento de pertencermos todos a uma mesma comunidade de destino.

Desse ponto de vista, no máximo, a redução da maioridade penal faria que menos adolescentes fossem arregimentados pelo tráfico --mas nem isso é uma certeza.

2) Então, para que serve a proposta de reduzir a maioridade penal?

A Justiça e o sistema penitenciário sonham em amedrontar e dissuadir do crime. Também eles sonham com a reabilitação dos criminosos condenados. Agora, mais prosaicamente, eles têm a tarefa (menos gloriosa) de punir os criminosos de forma que a sociedade se sinta vingada e que, portanto, as vítimas não inaugurem ciclos de vendetas privadas.

A questão da maioridade penal se coloca relativamente a essa última tarefa da Justiça: podemos e devemos punir os jovens da mesma forma que os adultos?

3) Sobretudo, no caso dos jovens, não deveríamos querer que eles sejam reabilitados em vez de punidos? Para que encarcerar os jovens se sabemos que a detenção será uma escola do crime e não um lugar onde seria preparada sua reinserção social?

O sistema penitenciário moderno é paradoxal: nele, tanto para os jovens quanto para os adultos, a vontade de punir coexiste e rivaliza com a vontade de reeducar. Esse conflito de intenções talvez não seja uma falha, mas a propriedade essencial do sistema.

Nota: à vista do fracasso crônico de reabilitação e reinserção é possível pensar que a intenção de reeducar seja sobretudo o álibi necessário de uma punição que se envergonha de si mesma. Ou seja, queremos reeducar (e nunca conseguimos) porque nos envergonhamos de estarmos "ainda" punindo os criminosos. Gostaria de ter o tempo de reler "Vigiar e Punir", de Michel Foucault, pensando nisso.

4) A redução da maioridade penal significaria encher as cadeias de crianças pobres.

Em Brasília, 16 anos atrás, cinco jovens de classe média assassinaram barbaramente um índio, colocando fogo em seu corpo. Eles se desculparam dizendo, aliás, que não sabiam que era um índio, achavam que fosse um mendigo.

Graças a seu privilégio social, quatro desses jovens, condenados, cumpriram sua pena estudando e trabalhando fora da prisão. O quinto, que tinha 17 anos na época, ficou três meses num centro de reabilitação e só. Eu acho que ele deveria ter sido julgado como adulto.

Mais uma coisa. A coluna da semana passada queria abordar um problema mais amplo do que a simples maioridade penal. Explico.

Uma das grandes novidades de nossa cultura é que ela promove a obrigação de cada um responder por suas ações. Talvez por isso mesmo, para descansarmos um pouco de tamanho encargo, um dos grandes sonhos contemporâneos seja a irresponsabilidade.

É assim que nos tornamos mestres nas explicações que valem como desculpas.

Os assassinos de Brasília passearam demais pelos shoppings da capital e foram mimados pelos pais, e o assassino de Victor Hugo Deppman talvez tenha crescido em algum tipo de favela. Sempre há um trauma, um abuso passado, que "explica" e que serve para transferir a culpa.

Ao mesmo tempo, somos uma cultura "infantólatra", ou seja, que idealiza e venera as crianças como crianças. Ou seja, amamos vê-las sem nenhum dos pesos que castigam a vida adulta.

No sonho de irresponsabilidade que mencionei antes, esses dois traços de nossa cultura se combinam assim: 1) as crianças são todas querubins irresponsáveis e 2) a história da nossa infância nos torna irresponsáveis quando adultos. Que maravilha. Por: Contardo Calligaris Folha de SP

quinta-feira, 25 de abril de 2013

EIKE, EMBLEMA E INDÍCIO

O resgate em curso solicitaria investigações de outra ordem e de amplas implicações — que, por isso mesmo, não serão feitas

Eike Batista valia US$ 1,5 bilhão em 2005, US$ 6,6 bi em 2008, US$ 30 bi em 2011 e US$ 9,5 bilhões em março passado, depois de 12 meses nos quais seu patrimônio encolheu num ritmo médio de US$ 50 milhões por dia. Desconfie das publicações de negócios quando se trata do perfil dos investimentos de grandes empresários. Apenas cinco anos atrás, uma influente revista de negócios narrou a saga de Eike sem conectá-la uma única vez à sigla BNDES. Mas o ciclo de destruição implacável de valor das ações do Grupo X acendeu uma faísca de jornalismo investigativo. Hoje, o nome do empresário anda regularmente junto às cinco letrinhas providenciais — e emergem até mesmo reportagens que o conectam a outras quatro letrinhas milagrosas: Lula.

A história de Eike é, antes de tudo, um emblema do capitalismo de estado brasileiro. Durante o regime militar, Eliezer Batista circulou pelos portões giratórios que interligavam as empresas mineradoras internacionais à estatal Vale do Rio Doce. Duas décadas depois, seu filho converteu-se no ícone de uma estratégia de modernização do capitalismo de estado que almeja produzir uma elite de megaempresários associados à nova elite política lulista.

“O BNDES é o melhor banco do mundo”, proclamou Eike em 2010, no lançamento das obras do Superporto Sudeste, da MMX. O projeto, orçado em R$ 1,8 bilhão, acabava de receber financiamento de R$ 1,2 bilhão do banco público de desenvolvimento, que também é sócio das empresas LLX, de logística, e MPX, de energia. No ano seguinte, o banco negociou com o empresário duas operações de injeção de capital no valor de R$ 3,2 bilhões, aumentando em R$ 600 milhões sua participação na MPX e abrindo uma linha de crédito de R$ 2,7 bilhões para as obras do estaleiro da OSX, orçadas em pouco mais de R$ 3 bilhões, no Porto do Açu, da LLX. Hoje, o endividamento do Grupo X com o banco mais generoso do mundo gira em torno de R$ 4,5 bilhões — algo como 23% do seu valor total de mercado. Por: Demétrio Magnoli

“A natureza sempre foi generosa comigo”, explicou Eike. “As pessoas ricas foram as que mais ganharam dinheiro no meu governo”, explicou Lula. A política, não a economia, a “natureza” ou a sorte, inflou o balão do Grupo X. Dez anos atrás, o BNDES não era “o melhor banco do mundo”. Ele alcançou essa condição por meio de uma expansão assombrosa de seu capital deflagrada no fim do primeiro mandato de Lula da Silva. A mágica sustentou-se sobre o truque prosaico da transferência de recursos do Tesouro Nacional para o BNDES. O dinheiro ilimitado que irrigou o Grupo X e impulsionou uma bolha de expectativas desmesuradas no mercado acionário é, num sentido brutalmente literal, seu, meu, nosso, dos filhos de todos nós e das crianças que ainda não nasceram, mas pagarão a conta da dívida pública gerada pela aventura do empresário emblemático.

Eike é emblema, mas também indício. A saga da célere ascensão e do ainda mais rápido declínio do Grupo X contém uma profusão de pistas, ainda não exploradas, das relações perigosas entre o círculo interno do lulismo e o mundo dos altos negócios.

Na condição de “consultor privado”, em julho de 2006, o ex-ministro José Dirceu viajou à Bolívia, num jatinho da MMX, exatamente quando o governo de Evo Morales recusava licença de operação à siderúrgica de Eike. Nos anos seguintes, impulsionado por um fluxo torrencial de dinheiro do BNDES, o Grupo X atravessou as corredeiras da fortuna. Durante a travessia, em 2009, o empresário contou com o beneplácito de Lula para uma tentativa frustrada de adquirir o controle da Vale, pela compra a preço de oportunidade da participação acionária dos fundos de pensão, do BNDES e do Bradesco na antiga estatal. Naquele mesmo ano, o fracasso de bilheteria “Lula, o filho do Brasil”, produzido com orçamento recordista, contou com o aporte de um milhão de reais do empreendedor X.

A parceria entre os dois “filhos do Brasil” não foi abalada pela reversão do movimento da roda da fortuna. Em janeiro passado, a bordo do jato do virtuoso empresário, Eike e o ex-presidente visitaram o Porto do Açu. O tema do encontro teria sido um plano de transferência para o Açu de um investimento de R$ 500 milhões de um estaleiro que uma empresa de Cingapura ergue no Espírito Santo. Em março, depois que Lula recomendou-lhe prestar maior atenção às demandas dos empresários, Dilma Rousseff reuniu-se com 28 megaempresários, entre eles o inefável X. Dias depois, numa reunião menor, a presidente e um representante do BNDES teriam se sentado à mesa com Eike e seus credores privados do Itaú, Bradesco e BTG-Pactual.

Equilibrando-se à beira do abismo, o Grupo X explora diferentes hipóteses de resgate. O BNDES, opção preferencial, concedeu um novo financiamento de R$ 935 milhões para a MMX e analisa uma solicitação da OSX, de créditos para a construção de uma plataforma de petróleo. Entrementes, diante da deterioração financeira do “melhor banco do mundo”, emergem opções alternativas. No cenário mais provável, o Porto do Açu seria resgatado por uma série de iniciativas da Petrobras e da Empresa de Planejamento e Logística. A primeira converteria a imensa estrutura portuária sem demanda em base para a produção de petróleo na Bacia de Campos. A segunda esculpiria um pacote de licitações de modo a ligar o porto fincado no meio do nada à malha ferroviária nacional, assumindo os riscos financeiros da operação.

No registro do emblema, a vasta mobilização de empresas estatais e recursos públicos para salvar o Grupo X pode ser justificada em nome da “imagem do país no exterior”, como sugere candidamente o governo, ou da proteção da imagem do próprio governo e de seu modelo de capitalismo de estado, como interpretam as raras vozes críticas. No registro do indício, porém, o resgate em curso solicitaria investigações de outra ordem e de amplas implicações — que, por isso mesmo, não serão feitas. Por: Demétrio Magnoli O Globo

SOBRE A ATUAL INFLAÇÃO DE PREÇOS NO BRASIL E O PROBLEMA DA SELIC

Como atualmente só se fala em tomate, era inevitável tratarmos da crônica inflação de preços por que passa o Brasil. Qual a sua causa? Como resolvê-la? 

Em episódios passados — por exemplo, entre outubro de 2010 e setembro de 2011, quando o IPCA acumulado em 12 meses pulou de 5% para 7,31% —, o governo ainda se safava dizendo que a alta inflação de preços era culpa do nosso atordoante "crescimento econômico" e da nossa mundialmente invejável "economia superaquecida", e que tal inflação era um aceitável efeito colateral do inegável fato de que o Brasil estava se transformando em uma potência capaz de fazer a China tremelicar... 

Agora, no entanto, tal desculpa deixou de surtir o mesmo efeito de antes. Não somos mais capa da The Economist. Afinal, como culpar um PIB de 0,9% por um IPCA de 6,59% (acumulado em 12 meses em março de 2013)? Ainda pior é saber que o INPC, que mensura a inflação de preços para as famílias de baixa renda, está acumulado em 7,22%. 

Foi nesse embalo, que um leitor me mandou um email pedindo para comentar o seguinte trecho escrito por Reinaldo Azevedo em seu blog: 

Os alimentos continuam a pressionar a inflação, como informa reportagem da VEJA Online. Fosse só isso, tudo certo. Mesmo uma economia em deflação, como a do Japão, pode sofrer um choque de oferta — se não de tomate, daquela raiz-forte insuportável que se deve comer junto com outras coisas insuportáveis… Passa. Caso a inflação "tomatística" persista, o jeito é parar de comer tomate. O preço vai cair. 

O problema é que a elevação de preços se espalhou em alguns setores da economia. É só o tomate ou a cebola? Não! O índice de 12 meses, em março, chegou a 6,59%, acima, portanto, da banda superior da meta. Nove desses 12 meses referem-se ao ano de 2012, quando o PIB brasileiro cresceu modestíssimos 0,9%. Tem-se, portanto, uma situação indesejável de baixo crescimento com inflação alta. Ou não se tem? 

Agora eu volto lá aos economistas. Desafio os especialistas da Casa das Garças (que reúne muita gente boa e intelectualmente honesta), da Casa dos Tucanos, da Casa dos Falcões, da Casa dos Canarinhos a me demonstrar que a receita para baixar a inflação que está aí é a elevação de juros. 

Notem bem: eu não estou contestando que elevação de juros concorra para baixar a inflação, como não contesto que um dos efeitos do antibiótico é baixar febre quando o paciente contraiu uma infecção bacteriana 

O desafio é interessante, mas inócuo. Por quê? Porque movimentos da SELIC, por si sós, não indicam nada. Uma elevação da SELIC não é garantia alguma de que o Banco Central está querendo conter a inflação de preços, e por um simples motivo: a elevação da SELIC nem sempre significa um aperto monetário. E, da mesma forma, uma redução da SELIC nem sempre significa um afrouxamento monetário. Mais ainda: é perfeitamente possível acontecer o oposto, isto é, a SELIC subir ao mesmo tempo em que está havendo uma forte expansão monetária e a SELIC cair ao mesmo tempo em que está havendo uma redução na expansão monetária. 

Em suma, alterações da SELIC, se não analisadas corretamente, podem ser altamente enganosas, pois elas nem sempre indicam corretamente a real postura do Banco Central. 

O que é a SELIC e por que seu aumento não necessariamente significa uma restrição à inflação 

Para entender por que alterações da SELIC podem ser enganosas, é necessário antes entender o que ela é. 

A taxa SELIC nada mais é do que a taxa de juros que os bancos cobram entre si no mercado interbancário para emprestar (ou tomar emprestado) dinheiro que possuem em suas reservas. Os bancos recorrem a essas operações interbancárias diariamente porque, ao final de cada dia, precisam manter um determinado volume de dinheiro em suas reservas. (Esse volume de reservas é o equivalente a uma determinada porcentagem do total de seus depósitos, e é determinado pelo Banco Central; chama-se compulsório). 

Quando o Banco Central cria dinheiro eletronicamente e utiliza esse dinheiro criado do nada para comprar títulos públicos que estão em posse do sistema bancário, as reservas bancárias aumentam. Este aumento nas reservas bancárias tende a gerar uma diminuição na taxa de juros que os bancos cobram entre si no mercado interbancário. Ou seja, tende a gerar uma diminuição na SELIC. Afinal, com mais dinheiro nas reservas, menos bancos se veem na necessidade de pedir dinheiro emprestado no interbancário, e mais bancos se veem com reservas acima do nível estipulado pelo Banco Central. Ato contínuo, os bancos podem agora criar mais empréstimos para indivíduos e empresas. 

Ao estipular um valor para SELIC, o Banco Central manipula o mercado interbancário — injetando dinheiro nele — de modo a fazer com que a taxa de juros neste mercado se mantenha próxima do valor estipulado. 

No entanto, essa manipulação monetária do Banco Central não é o fator decisivo na expansão monetária que ocorre na economia. Quem realmente vai conduzir a expansão monetária é o sistema bancário. No arranjo financeiro e monetário em que vivemos, são os bancos que jogam dinheiro na economia, e não o Banco Central. O Banco Central não pode jogar dinheiro diretamente na economia (podia até o ano 2000, quando a Lei de Responsabilidade Fiscal finalmente proibiu esta prática); apenas os bancos podem fazer isso. 

Se os bancos sentirem que o momento econômico é bom, eles irão conceder empréstimos. E bancos, ao concederem empréstimos, criam dinheiro do nada e jogam este dinheiro na economia (para entender todo este processo em detalhes, recomendo este artigo). Portanto, se os bancos quiserem emprestar dinheiro, a oferta monetária irá aumentar. Por outro lado, se eles sentirem que o momento econômico não é muito favorável, eles reduzirão o ritmo de concessão de empréstimos, e a quantidade de dinheiro na economia crescerá a um ritmo bem mais vagaroso. 

Outra maneira de os bancos jogarem dinheiro na economia é comprando títulos do Tesouro. Quando o governo incorre em déficits orçamentários — e o governo brasileiro sempre incorre em déficits orçamentários (chamado de "déficit nominal") —, o Tesouro vende títulos para arrecadar dinheiro. Esses títulos são adquiridos pelo sistema bancário, sendo que, para comprar estes títulos do Tesouro, os bancos também criam dinheiro do nada. O Tesouro recebe esse dinheiro e o utiliza para custear suas despesas. O dinheiro entra na economia. 

Tendo entendido esse mecanismo, algumas extrapolações se tornam mais claras. Por exemplo, se a economia estiver indo bem e os bancos estiverem otimistas, eles concederão mais empréstimos (tanto para o setor privado quanto para o governo). Isso, por si só, fará com que os juros do interbancário, a SELIC, subam — afinal, como estão concedendo muitos empréstimos, os bancos continuamente terão de recorrer ao mercado interbancário para manter suas reservas naquele nível estipulado pelo Banco Central. 

Ato contínuo, o Banco Central — que trabalha com uma meta SELIC definida — terá de injetar dinheiro no mercado interbancário para conter esta subida na SELIC. Se ele injetar uma quantia suficiente, a SELIC permanecerá no mesmo nível. Se ele injetar uma quantidade insuficiente, a SELIC subirá. 

E essa conclusão é extremamente importante: sempre que os bancos expandem o crédito, ocorre uma maior atividade no mercado interbancário. Logo, sempre que os bancos expandem o crédito, a SELIC irá disparar caso o Banco Central nada faça. No entanto, dado que o Banco Central existe justamente para harmonizar esse processo de expansão monetária, ele irá intervir injetando dinheiro no interbancário a um ritmo que faça com que esta subida da SELIC seja mais branda e suave. Em outras palavras, o Banco Central irá injetar dinheiro no interbancário a um ritmo suficiente para fazer com que a SELIC suba suavemente. Neste cenário, temos um aumento da SELIC, mas o Banco Central não está genuinamente restringindo a expansão do crédito bancário. A quantidade de dinheiro na economia continuará crescendo vigorosamente. Estará havendo, portanto, um "aumento acomodatício" da SELIC. 

Logo, é plenamente possível vivenciarmos um aumento na SELIC e os empréstimos bancários seguirem crescendo a um ritmo forte. Ou seja: é perfeitamente possível que um aumento na SELIC não seja de forma alguma uma medida anti-inflacionária. 

Inversamente, caso os bancos, por algum motivo específico, se tornem mais pessimistas em relação ao futuro da economia e reduzam a concessão de crédito, a atividade deles no mercado interbancário será bem menos volumosa. Isso significa que, caso o Banco Central continue no mesmo ritmo de injeções monetárias, a SELIC cairá. E ela cairá sem que isso gere um aumento da expansão do crédito. Ou seja, é perfeitamente possível que a SELIC caia e que o volume de concessão de empréstimos bancários caia junto. Ou, para ser mais direto, é perfeitamente possível haver uma situação em que uma queda na SELIC seja acompanhada por uma postura anti-inflacionária dos bancos. 

Um exemplo extremo deste último fenômeno está ocorrendo nos EUA e na Europa neste momento: a SELIC deles está abaixo de 1%, e não está havendo nenhuma explosão na concessão de crédito. Ou, articulando mais corretamente, a SELIC deles está em níveis historicamente baixos justamente porque não está ocorrendo nenhuma explosão na concessão de crédito. Como os bancos estão pessimistas, eles não saem concedendo empréstimos a torto e a direito (como fizeram até 2008). Consequentemente, a atividade no interbancário é menos intensa e os juros ficam baixos. As injeções monetárias feitas pelo Fed e pelo Banco Central Europeu nos bancos não se traduziram em acentuadas expansões do crédito. 

E o Brasil? Ao nosso modo, estamos também passando por este fenômeno, mas com menos intensidade. 

Onde estamos e como chegamos aqui 

O gráfico abaixo mostra a evolução do agregado monetário M2. O M2 mensura a quantidade total de cédulas e moedas metálicas em poder do público mais depósitos em conta-corrente mais depósitos em poupança mais depósitos a prazo e outros depósitos no sistema bancário. 

Analisar o M2 é interessante porque ele mostra exatamente como os bancos estão se comportando. Da mesma forma que os bancos jogam dinheiro na economia quando concedem crédito, eles também retiram dinheiro da economia quando vendem algum papel para se recapitalizar, ou quando vendem dólares ou quando pegam algum empréstimo junto a corretoras e fundos de investimento. É bom ter isso em mente porque é o resultado destas duas medidas opostas (expansão monetária e contração monetária) que determinará a quantidade total de dinheiro na economia 

Se o M2 cresce aceleradamente — sempre que a linha do M2 se torna mais inclinada em relação ao ano anterior —, isso significa que os bancos estão otimistas e expandindo o crédito. Se o M2 desacelera, isso significa que os bancos estão mais contidos em sua concessão de crédito. Estão criando empréstimos mas também estão retirando dinheiro da economia em um volume maior em relação ao ano anterior. 

Veja a evolução do M2 no Brasil desde 2002. 



Gráfico 1: evolução do M2 (01/2002 — 02/2013) 

Agora, observe a evolução da SELIC. 


Gráfico 2: evolução da SELIC (01/2002 — 03/2013) 

No início de 2003, as alterações na SELIC realmente geraram os efeitos esperados pelos senso comum. A inflação de preços havia disparado em 2002 (ver gráfico 3) tanto por causa da forte expansão do M2 quanto por causa da acentuada desvalorização cambial (por causa da eleição e Lula), e o Banco Central teve de deixar os juros do interbancário subir de 18 para 26,5%. A subida dos juros no interbancário tende a ocorrer automaticamente, pois os bancos naturalmente elevarão os juros de seus empréstimos para se protegerem da inflação de preços. Nesta situação, o Banco Central simplesmente reduz suas injeções monetárias no mercado interbancário — ou, no extremo, ele simplesmente pára de injetar dinheiro. 

Tal elevação súbita e acentuada dos juros no final de 2002 e no início de 2003 fez com que ninguém se interessasse em pegar empréstimos, pois estavam muito caros. Como consequência, o M2 parou de crescer abruptamente, e o país entrou em recessão. 

A partir de meados de 2003, ocorre uma forte redução na SELIC, de 26,25% para 16,25%. Dado que esta redução não gerou nenhuma explosão no M2 até o final daquele ano, isso significa que a SELIC caiu justamente porque os bancos estavam contidos. Ou seja, primeiro os juros subiram porque a inflação de preços se manifestou de maneira súbita. Depois, voltaram a cair porque a concessão de crédito estava extremamente baixa, diminuindo a demanda no mercado interbancário. 

A inflação de preços acumulada em 12 meses cairia de 17% em maio de 2003 para 5,15% em maio de 2004 (gráfico 3). 

Em 2004, com a inflação de preços contida, o otimismo voltou e houve uma forte aceleração na concessão de crédito (daí o robusto PIB daquele ano). É possível dizer que a explosão do M2 em 2004 ocorreu por causa da forte redução da SELIC em 2003, sendo que tal redução foi possível porque os bancos praticamente não expandiram o crédito naquele ano. Após terem se contido por um ano, o que permitiu a redução na SELIC e a acentuada redução na inflação de preços, os bancos voltaram a expandir o crédito. 

Ou seja, até aqui, a relação entre SELIC e expansão monetária está indo de acordo com o senso comum. Um aumento na SELIC gerou contenção monetária, e uma redução na SELIC gerou expansão monetária. 

Já a partir de 2004, essa relação assume um comportamento errático. Por exemplo, de 2004 até o final de 2007, não se nota nenhuma correlação entre aceleração do M2 e alterações na SELIC. A SELIC sobe e desce, e o M2 continua subindo em velocidade constante. 

Mas em 2008 ocorre um fenômeno inverso ao de 2003: a SELIC aumenta porque os bancos estavam extremamente animados. A SELIC começou a se elevar em abril (de 11,25 para 11,75%) e foi até 13,75% em setembro. E o M2 foi junto. A elevação da SELIC não conteve o M2 naquele ano simplesmente porque, como explicado no início do artigo, ela foi uma consequência da forte aceleração da expansão de crédito naquele ano, o que gerou uma enorme demanda no mercado interbancário. Caso o Banco Central interrompesse suas injeções monetárias no mercado interbancário, a SELIC dispararia e toda essa expansão monetária seria interrompida. Porém, ele não fez isso. Ele optou por acomodar essa expansão do crédito com contínuas injeções monetárias, fazendo com que a SELIC subisse apenas suavemente. Esse foi o primeiro exemplo de "aumento acomodatício" da SELIC, isto é, um aumento que visa a possibilitar a continuidade da expansão do crédito. 

Já em 2009, o M2 se desacelera abruptamente (daí a recessão daquele ano), e junto com ele vem a SELIC, que cai de 13,75% para 8,75%. A desaceleração do M2 em 2009 está muito mais correlacionada ao clima de incerteza gerado pela crise financeira de outubro de 2008 do que pela elevação da SELIC ao longo de 2008, tanto é que a forte redução da SELIC ao longo de 2009 não estimula o M2. Ou seja, o M2 cresceu pouco em 2009, e a SELIC caiu acentuadamente, justamente por causa da postura mais comedida dos bancos, que não apenas se recuperavam dos excessos de 2008, como ainda estavam assustados com a crise de 2009. 

Já de abril de 2010 a agosto 2011, a SELIC pula de 8,75 para 12,50%. Mas o M2 dispara. Tem-se uma repetição de cenário de 2008. Os bancos estavam extremamente animados com as perspectivas econômicas do país, e seu crescente volume de empréstimos concedidos gerou grande demanda no mercado interbancário, o que elevou a SELIC. Novamente, se o Banco Central houvesse interrompido suas injeções monetárias, a SELIC dispararia, e essa expansão creditícia seria interrompida. Mas como a SELIC aumentou apenas vagarosamente ao passo que o M2 cresceu fortemente, isso significa que o Banco Central injetou de forma contínua dinheiro no mercado interbancário, apenas a um ritmo um pouco menor. Ou seja, o Banco Central na realidade estimulou essa expansão creditícia. Se ele quisesse, ele poderia ter interrompido suas injeções monetárias no sistema bancário. Mas isso não seria popular. Mais um exemplo de "aumento acomodatício" da SELIC, um aumento que não configurou nenhuma restrição à expansão monetária. 

A partir de agosto de 2011, a SELIC começa a cair. Cai de 12,50% para seus atuais 7,25%. E o M2 perceptivelmente desacelera junto: o crescimento do M2 em 2012 foi sensivelmente menor que o de 2011 — daí o baixo PIB do ano passado —, não obstante a SELIC tenha caído quase pela metade. Tudo indica que a SELIC caiu porque os bancos diminuíram seu ritmo de concessão de crédito, não obstante o Banco Central tenha continuado injetando dinheiro no mercado interbancário. 

Conclusão: um aumento da SELIC nem sempre significa contenção monetária (vide 2008, 2010 e 2011) e uma diminuição da SELIC nem sempre significa aceleração da expansão monetária (vide 2009 e 2012). Uma SELIC baixa, ou em queda, pode ser consequência de uma postura mais cautelosa dos bancos, que estão mais contidos em conceder empréstimos e, por conseguinte, estão demandando menos empréstimos no mercado interbancário. 

O que efetivamente aniquila uma inflação de preços 

Tendo entendido que a relação entre SELIC e inflação monetária nem sempre é explícita — aumento da SELIC não necessariamente significa contenção monetária e redução não necessariamente se reverte em expansão monetária —, façamos agora uma análise direta das medidas corretas e comprovadamente eficazes para se combater uma inflação de preços. 

Apenas duas medidas comprovadamente aniquilam uma inflação de preços de maneira efetiva: a quantidade de dinheiro na economia tem de parar de aumentar e a taxa de câmbio tem de se apreciar. Mais ainda: essas duas têm de ocorrer simultaneamente. 

Se a interrupção da expansão da quantidade de dinheiro na economia for acompanhada de uma depreciação cambial — arranjo esse que é incomum —, a inflação de preços não será debelada. Isso aconteceu no Brasil em 2003. Naquele ano, a quantidade de dinheiro na economia cresceu a uma das menores taxas de história do real, mas como o câmbio havia se desvalorizado fortemente no final de 2002 (por causa dos temores com a eleição de Lula), indo de R$2,25 para quase R$4 por dólar, o IPCA de 2003 chegou a um pico de 17% em maio de 2003. 

Observe os três gráficos a seguir. O primeiro gráfico mostra a variação do IPCA acumulado em 12 meses. O segundo gráfico mostra a variação do câmbio. E o terceiro gráfico mostra novamente a variação do M2. 


Gráfico 3: IPCA acumulado em 12 meses (01/2002 — 03/2013) 


Gráfico 4: evolução da taxa de câmbio (01/2002 — 03/2013) 


Gráfico 5: evolução do M2 (01/2002 — 02/2013) 

Logo de início, é possível observar que uma aceleração no M2 — a qual ocorre sempre que a linha do M2 se torna mais inclinada em relação ao ano anterior — é preponderante em determinar a variação do IPCA. Mas o efeito de uma forte alteração na taxa de câmbio não pode ser ignorado. 

Além do já citado exemplo de 2003 — quando o M2 ficou parado, mas o câmbio havia se desvalorizado —, são notáveis também os exemplos de 2005 e 2006. O M2 cresceu moderadamente nestes 2 anos (não houve nenhuma aceleração no crescimento, dado que a inclinação da linha não se altera), e a taxa de câmbio se valorizou continuamente. Como consequência, o IPCA acumulado em 12 meses caiu de 8% para 3% (e a SELIC também caiu continuamente, como mostra o gráfico 2). 

Já em 2007, embora a taxa de câmbio continuasse caindo, o M2 apresenta uma ligeira aceleração, o que altera o IPCA de 3% para 4,5%. Em 2008, a coisa degringola: o M2 dispara ao longo do ano, e o câmbio se desvaloriza fortemente nos quatro últimos meses. O IPCA atinge picos de 6,5%. 

Em 2009, há a súbita interrupção no crescimento do M2. A taxa de câmbio se aprecia. O IPCA chega a um mínimo de 4,17% naquele ano (ano em que a SELIC apresentou o menor valor de sua história até então). 

Em 2010, a variação cambial é relativamente pequena, mas o M2 apresenta uma aceleração vertiginosa. O IPCA sai de 4,17% para quase 6%. 

Em 2011, o M2 continua em forte expansão, e o IPCA atinge um pico de 7,31% em setembro, muito embora o câmbio tenha chegado à sua menor cotação (R$1,54 em julho) desde 2008. E com um detalhe adicional: a SELIC já havia subido de 8,75% para 12,50%, mostrando-se totalmente ineficaz para controlar a escalada da inflação de preços. 

Em 2012, há uma desaceleração substantiva do M2, mas tal desaceleração — que deveria ajudar a conter a inflação de preços — é contrabalançada pela desvalorização do câmbio, de R$1,70 no início de 2012 para um pico de R$ 2,11 em dezembro daquele ano. 

É neste ponto em que estamos atualmente. 

Primeira conclusão: a variação da oferta monetária é o fator preponderante para a inflação de preços. Se a oferta monetária estiver apresentando aceleração (a linha estiver mais inclinada em relação ao ano anterior), os preços subirão. 

E um aumento da SELIC nesta situação — algo que inevitavelmente ocorrerá, por causa da maior demanda no mercado interbancário —, não necessariamente significará uma política contracionista do Banco Central, e pelo seguinte motivo: para realmente conter uma expansão monetária que está em aceleração, o Banco Central tem de interromper por completo suas injeções no mercado interbancário. Isso faria com que os juros deste mercado — a SELIC — disparassem. Porém, ao continuar injetando dinheiro, o Banco Central evita esta disparada dos juros, e acaba por acomodar a expansão monetária. Isso ocorreu em 2008, 2010 e 2011. 

Segunda conclusão: apenas uma redução da expansão monetária não é garantia de redução da inflação de preços. É preciso que o câmbio também se aprecie. Caso isso não ocorra, pode haver uma estagflação (de certa forma, estamos atualmente neste cenário). 

Terceira conclusão: uma SELIC em queda não necessariamente significa aceleração da expansão monetária. A SELIC pode estar caindo porque, além de o Banco Central estar injetando dinheiro no mercado interbancário, os bancos estão reduzindo seus empréstimos, o que faz com que a atividade no interbancário seja menor. E como são os bancos que jogam dinheiro na economia, são eles que, em última instância, definem a intensidade da expansão monetária, à revelia do Banco Central. 

E agora? 

Observe que, de janeiro de 2008 a janeiro de 2013, a quantidade de dinheiro na economia mais do que duplicou. Isso permite uma explicação para vários fenômenos. 

Por exemplo, o baixo desemprego. Essa duplicação da quantidade de dinheiro na economia estimulou o aumento do emprego, pois a maior quantidade de dinheiro reduz o custo real dos encargos sociais e trabalhistas — ao menos temporariamente, enquanto os preços e custos estiverem crescendo bem abaixo da inflação monetária. Se a quantidade de dinheiro aumenta bem mais do que o aumento de preços, o volume de gastos tende a aumentar, o que significa que o desemprego tende a cair. 

Outro fenômeno também explicado por essa duplicação na quantidade de dinheiro é o contínuo aumento do salário mínimo sem o subsequente aumento do desemprego. Um comparativo entre a evolução do salário mínimo e a evolução do emprego estará totalmente incompleto se você não levar em conta a evolução da quantidade de dinheiro na economia. A análise que diz que aumento do salário mínimo gera desemprego pressupõe uma oferta monetária razoavelmente constante. Porém, se por uma conjunção de circunstâncias, a oferta monetária crescer muito e os preços crescerem bem menos, não há nenhum motivo para um aumento do salário mínimo gerar desemprego. 

No momento, como dito, o M2 está em clara tendência de desaceleração. Após ter crescido 18,7% em 2011, cresceu apenas 9% em 2012. Essa redução na sua taxa de crescimento foi suficiente para derrubar o PIB, mas, por causa da desvalorização cambial (o dólar foi de R$1,70 para R$2,11) e de todo esse robusto crescimento do M2 desde 2008, a inflação de preços praticamente não foi afetada. Dado que há uma defasagem entre expansão monetária e aumento dos preços, ainda há "gordura" para os preços subirem, mesmo que o M2 porventura mantenha a atual tendência de desaceleração. 

A conclusão, por ora, é que toda a propaganda governamental sobre "forçar" os bancos a conceder mais empréstimos felizmente não surtiu o efeito esperado. Sim, a carteira de empréstimos continuou se expandindo, mas a um ritmo mais contido, principalmente nos bancos privados, que aumentaram suas carteiras em apenas 7,4% nos últimos 12 meses. O principal risco, como sempre, vem dos bancos públicos, que aumentaram suas carteiras em 28,9% neste mesmo período. 

Bancos privados não são bobos. Eles sabem que emprestar dinheiro para uma população cujo endividamento está em níveis recordes nunca é uma boa política. É mais sensato e prudente expandir sua carteira de empréstimos de forma comedida, selecionando bem as pessoas para quem conceder empréstimo, a sair desvairadamente emprestando para qualquer um, como quer o governo. Sofrer calotes não é algo que nenhum banco privado quer vivenciar, especialmente no mundo pós-2008. 

Se os bancos privados mantiverem esta prudência e este comedimento, e os bancos públicos não desvairarem, não há por que esperar que haja grandes elevações na SELIC. 

Aliás, na atual situação, dado que a expansão monetária está em desaceleração — o que significa uma menor atividade no interbancário, e consequentemente uma SELIC baixa —, um aumento na SELIC seria algo inédito. Ainda não vivenciamos uma situação em que a SELIC foi elevada quando o M2 já estava em perceptível desaceleração e o PIB estava perto de zero. Para isso acontecer, o Banco Central teria de reduzir sobremaneira suas injeções monetárias no mercado interbancário, ou até mesmo retirar reservas do sistema bancário. Isso seria bastante atípico. 

O Banco Central tem sim o poder de elevar a SELIC quando quiser e até o nível que quiser. Basta ele anunciar que estará vendendo títulos do Tesouro a preços menores que seus valores atuais. Quanto mais baixos os preços a que ele estiver vendendo (e ele pode reduzir o preço o tanto que quiser), maiores serão os juros, maior será a quantidade de dinheiro que os bancos direcionarão para a compra destes títulos e consequentemente maior será o volume de reservas retiradas dos bancos, o que afetaria diretamente a expansão do crédito. Mas tal medida é politicamente inviável — ela afetaria todo o leilão de venda de títulos do Tesouro, que agora conseguiria apenas um valor muito pequeno por leilão, dado que todos os investidores prefeririam comprar mais barato do Banco Central. Consequentemente, o governo teria enormes dificuldades em financiar seus déficits e em rolar sua dívida. Impensável. 

Caso o Banco Central opte por deixar tudo como está, que é o que ele vem fazendo já há algum tempo, a única maneira de a inflação de preços cair é se os bancos voluntariamente decidirem conter seus empréstimos — o que também significa que o governo tem de reduzir seus déficits orçamentários — e o dólar se desvalorizar perante o real. 

Eis, portanto, o resumo da situação: por causa de um Banco Central totalmente inoperante e submisso ao governo, temos de ficar na torcida para que os bancos, contra seus próprios interesses lucrativos e contra os interesses do governo, se contenham e evitem a expansão de sua carteira de crédito. E temos de fazer figa para que aquele aloprado que está no comando da Fazenda demonstre algum bom senso e equilibre o orçamento. E temos de esperar alguma manifestação sobrenatural que faça com que os desenvolvimentistas que ocupam Brasília fiquem repentinamente sãos, abandonem a histeria e permitam uma eventual apreciação do câmbio. 

Ou seja, quando foi que você imaginou que chegaria o dia em que o preço do seu almoço seria totalmente dependente do bom senso e da frugalidade de banqueiros? 

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

A NOVA GEOPOLÍTICA DO PETRÓLEO

Relatórios recentes da Agência Internacional de Energia sobre a situação do petróleo no mundo, da Exxon sobre as perspectivas para o setor, além de estudo da Harvard Kennedy School sobre as perspectivas de crescimento da capacidade de produção e o que isso significa para o mundo, ensejam algumas reflexões acerca das profundas modificações que devem ocorrer na geopolítica internacional nos próximos anos. Dois fatos novos deverão trazer significativas implicações políticas, econômicas e estratégicas no cenário internacional: as fontes de produção do petróleo sofrerão profundas mudanças e a demanda global, em especial da China, da Índia e do Oriente Médio, deverá crescer de 35% a 46% entre 2010 e 2035.


Em 2015 os EUA deverão superar a Rússia e se transformar no maior produtor mundial de gás natural. Até 2017 os mesmos EUA devem superar a Arábia Saudita e se tornar assim um dos maiores produtores de petróleo do mundo. De importadores passarão, até 2025, a ser exportadores de líquido de combustível, graças a um significativo aumento na produção de gás (20% de 2008 a 2012) e de petróleo (37% nesse período). Isso como resultado de uma nova tecnologia na exploração de depósitos profundos em formações de xisto (fraturamento hidráulico e perfuração horizontal) e da rápida melhoria na eficiência do consumo de combustível.

O novo cenário deverá propiciar um movimento de reindustrialização nos EUA, que atrairá de volta empresas instaladas na China e no México. Esse fato reforçará a tendência de crescimento do país e da redução das emissões de gás carbônico. Com isso poderá ocorrer o enfraquecimento das resistências domésticas às decisões internacionais na área de meio ambiente. Na medida em que são construídas usinas a gás natural, mais eficientes, haverá declínio nos EUA do uso no carvão mineral, substituído por usinas térmicas, o que pode significar aumento de sua exportação para os mercados europeu e chinês.

O crescimento na produção global é resultado do grande volume de investimentos feitos nos EUA desde 2003, com seu ponto mais elevado em 2010, em reservas não convencionais no país (xisto betuminoso), no Canadá, na Venezuela (óleo superpesado) e no Brasil (pré-sal). Por outro lado, Noruega, Reino Unido, México e Irã enfrentarão até 2020 queda na capacidade produtiva. O maior potencial de produção deve concentrar-se no Iraque, nos EUA, no Canadá e no Brasil. A continuação do crescimento da produção, contudo, dependerá, segundo os relatórios, de o custo desta se manter acima de US$ 70, a preços correntes.

Esse cenário otimista do crescimento da indústria petrolífera poderá ser afetado ou por uma recessão econômica global, que engendraria a redução do consumo na China, ou por uma crise no Oriente Médio, incluindo o Irã. Com a queda da demanda, o excesso de produção poderá trazer o preço para abaixo dos US$ 50, ameaçando a produção global. Mesmo nesse cenário pouco provável, o desenvolvimento de projetos de maior custo marginal, como o pré-sal brasileiro, segundo os relatórios, não ficaria afetado.

A partir desses fatos e projeções, surgem algumas consequências geopolíticas da revolução petrolífera. O Oriente Médio poderá deixar de ser o foco das preocupações para os principais mercados consumidores, especialmente para os EUA e a Europa. E a Ásia se tornará o principal mercado para a maior parte do petróleo do Oriente Médio, com a transformação da China em novo protagonista no cenário político dessa região.

Ao mesmo tempo, o Hemisfério Ocidental poderá recuperar a situação que tinha antes da 2.ª Guerra Mundial, voltando a ser autossuficiente em petróleo. Os EUA reduziram, desde 2006, em 40% a importação do produto. Não parece provável, porém, que os EUA se isolem do resto do mundo petrolífero e não tenham influência sobre a formação dos preços do produto, nem que, no contexto da política externa, as questões do Oriente Médio percam sua importância. A Rússia, nesse contexto, deverá reduzir suas exportações de petróleo e, sobretudo, diante da concorrência dos EUA, de gás natural para a Europa. A importância política relativa russa na Europa tenderá a diminuir, o que pode explicar o interesse de Moscou em se associar à OCDE.

Quanto às implicações desse novo cenário sobre a América Latina, o país mais afetado deverá ser a Venezuela. Em consequência da situação interna e das atitudes de Hugo Chávez, os EUA iniciaram nos últimos anos um processo de redução das aquisições de petróleo, hoje situadas ao redor de 10% da demanda norte-americana. As refinarias da costa do Golfo estão substituindo o petróleo venezuelano pelo xisto betuminoso, de produção local. O México, com produção cadente a partir de 2020, poderá tornar-se importador de petróleo, revertendo uma posição de tranquilidade nas suas contas externas. Essa situação poderá agravar-se caso ocorra a volta de maquilas norte-americanas, estimuladas pela reindustrialização favorecida pelos baixos preços do gás natural.

Argentina, por suas reservas importantes de xisto betuminoso, e Brasil, pelas reservas do pré-sal, estarão em posição privilegiada caso consigam superar as dificuldades internas que impedem a exploração das referidas reservas em sua plenitude. Nos dois países, a instabilidade jurídica, derivada da modificação das normas regulatórias, as limitações de financiamento das empresas e as dificuldades por que passam as estatais petrolíferas mostram um retrocesso em suas capacidades produtivas, justamente quando ocorre essa grande transformação na indústria de petróleo no mundo. No caso do Brasil, o petróleo do pré-sal não mais será absorvido pelo mercado americano, como inicialmente esperado. Outros destinos deverão ser buscados, em especial China e Índia. 

Por: Rubens Barbosa Fonte: O Globo