quinta-feira, 20 de junho de 2013

BRINCANDO DE REVOLUÇÃO


“A raiva e o delírio destroem em uma hora mais coisas do que a prudência, o conselho, a previsão não poderiam construir em um século.” (Edmund Burke)

Não vou sucumbir à pressão das massas. É claro que eu posso estar enganado em minha análise cética sobre as manifestações, mas se eu mudar de idéia – o que não só não ocorreu ainda, como parece mais improvável agora – será por reflexões serenas na calma de minha mente, e não pelo “linchamento” das redes sociais.

Ao contrário de muitos, eu não vejo nada de “lindo” em cem mil pessoas se aglomerando nas ruas. Tal imagem me remete aos delicados anos 60, que foram resumidos por Roberto Campos da seguinte forma: “É sumamente melancólico - porém não irrealista - admitir-se que no albor dos anos 60 este grande país não tinha senão duas miseráveis opções: ‘anos de chumbo’ ou ‘rios de sangue’...”

Eu confesso aos leitores: tenho medo da turba! Eu tenho medo de qualquer movimento de massas, pois massas perdem facilmente o controle. Em clima de revolta difusa, sem demandas específicas (ao contrário de “Fora Collor” ou “Diretas Já”), o ambiente é fértil para aventureiros de plantão. Um Mussolini – ou um juiz de toga preta salvador da Pátria – pode surgir para ser coroado imperador pelas massas.

Alguns celebram a ausência de liderança, se é mesmo esse o caso. Cuidado com aquilo que desejam: sem lideranças, há um vácuo que logo será preenchido. As massas vão como bóias à deriva. E sem rumo definido, não chegaremos a lugar algum desejado. Disse Gustave Le Bon sobre a psicologia das massas:

Uma massa é como um selvagem; não está preparada para admitir que algo possa ficar entre seu desejo e a realização deste desejo. Ela forma um único ser e fica sujeita à lei de unidade mental das massas. No caso de tudo pertencer ao campo dos sentimentos, o mais eminente dos homens dificilmente supera o padrão dos indivíduos mais ordinários. Eles não podem nunca realizar atos que demandem elevado grau de inteligência. Em massas, é a estupidez, não a inteligência, que é acumulada. O sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. Todo sentimento e ato são contagiosos. O homem desce diversos degraus na escada da civilização. Isoladamente, ele pode ser um indivíduo; na massa, ele é um bárbaro, isto é, uma criatura agindo por instinto.

Muito me comove a esperança de alguns liberais que pensam que o povo despertou e que será possível guiá-lo na direção do liberalismo. Não vejo isso nos protestos, nas declarações, nos gritos de revolta. Vejo uma gente indignada – e cheia de razão para tanto – mas sem compreender as causas disso, sem saber os remédios para nossos males. Que tipo de proposta decente e viável pode resultar disso?

Estamos lidando aqui com a especialidade número um das esquerdas radicais, que é incitar as massas. Assim como a década de 60 no Brasil, tivemos o famoso e lamentável Maio de 68 na França, quando apenas Raymond Aron e mais meia dúzia de seres pensantes temiam os efeitos daquela febre juvenil. A Revolução Francesa, a Revolução Bolchevique, é muito raro sair algo bom desse tipo de movimento de massas. Os instintos mais primitivos tomam conta da festa. Por isso acho importante resgatar alguns alertas de Edmund Burke em suas Reflexões sobre a Revolução em França, a precursora desses movimentos descontrolados.

Não ignoro nem os erros, nem os defeitos do governo que foi deposto na França e nem a minha natureza nem a política me levam a fazer um inventário daquilo que é um objeto natural e justo de censura. [...] Será verdadeiro, entretanto, que o governo da França estava em uma situação que não era possível fazer-se nenhuma reforma, a tal ponto que se tornou necessário destruir imediatamente todo o edifício e fazer tábua rasa do passado, pondo no seu lugar uma construção teórica nunca antes experimentada?

Não se curaria o mal se fosse decidido que não haveria mais nem monarcas, nem ministros de Estado, nem sacerdotes, nem intérpretes da lei, nem oficiais-generais, nem assembléias gerais. Os nomes podem ser mudados, mas a essência ficará sob uma forma ou outra. Não importa em que mãos ela esteja ou sob qual forma ela é denominada, mas haverá sempre na sociedade uma certa proporção de autoridade. Os homens sábios aplicarão seus remédios aos vícios e não aos nomes, às causas permanentes do mal e não aos organismos efêmeros por meios dos quais elas agem ou às formas passageiras que adotam.

Se chegam à conclusão de que os velhos governos estão falidos, usados e sem recursos e que não têm mais vigor para desempenhar seus desígnios, eles procuram aqueles que têm mais energia, e essa energia não virá de recursos novos, mas do desprezo pela justiça. As revoluções são favoráveis aos confiscos, e é impossível saber sob que nomes odiosos os próximos confiscos serão autorizados.

A sabedoria não é o censor mais severo da loucura. São as loucuras rivais que fazem as mais terríveis guerras e retiram das suas vantagens as conseqüências mais cruéis todas as vezes que elas conseguem levar o vulgar sem moderação a tomar partido nas suas brigas.

São importantes alertas feitos pelo “pai” do conservadorismo. Ele estava certo quanto aos rumos daquela revolução, que foi alimentada pela revolta difusa, pela inveja, pelo ódio. Oportunistas ou fanáticos messiânicos se apropriaram do movimento e começaram a degolar todo mundo em volta. Se a revolução é contra “tudo que está aí”, então quem é contra ela é a favor de “tudo que está aí”. Cria-se um clima de vingança, revanchismo, que é sempre muito perigoso. As partes íntimas da rainha morta foram espalhadas pelos locais públicos, eis a imagem que fica de uma turba ensandecida.

O PT tem alimentado há décadas um racha na sociedade brasileira. Desde os tempos de oposição, e depois enquanto governo (mas sempre no palanque dos demagogos e agitadores das massas), a esquerda soube apenas espalhar ódio entre diferentes grupos, segregar indivíduos com base em abstrações coletivistas, jogar uns contra os outros. Temos agora uma sociedade indignada, mas sem saber direito para onde apontar suas armas. Cansada da política, dos partidos, do Congresso, dos abusos do poder, as pessoas saem às ruas com a sensação de que é preciso “fazer algo”, mas não sabe ao certo o que ou como fazer.

E isso porque o cenário econômico começou a piorar. Imagina quando a bolha de crédito fomentada pelo governo estourar, ou se a China embicar de vez. Imagina se nossa taxa de desemprego começar a subir aceleradamente. É um cenário assustador. Alguns pensam que nada pode ser pior do que o PT, e eu quase concordo. Mas pode sim! Pode ter um PSOL messiânico, um personalismo de algum salvador da Pátria, uma junta militar tendo que reagir e assumir o poder para controlar a situação. Não desejamos nada disso! Temos que retirar o PT do poder pelas vias legais, pelas urnas, respeitando-se a ordem social e o estado de direito.

O desafio homérico de todos que não deixaram as emoções tomarem conta da razão é justamente canalizar essa revolta para algo construtivo. Mas como? Como dialogar com argumentos quando cem mil tomam as ruas e sofrem o contágio da psicologia das massas? Alguém já tentou conversar com uma torcida revoltada em um estádio de futebol? Boa sorte!

Por ser cético quanto a essa possibilidade, eu tenho mantido minha cautela e afastamento dessas manifestações. Muita gente acha que o Brasil, terra do pacato cidadão que só quer saber de carnaval, novela e futebol, precisa até mesmo de uma guerra civil para acordar. Temo que não gostem nada do gigante que vai despertar. Ele pode fazer com que essa gente morra de saudades do "homem cordial". Não se brinca impunemente de revolução. Pensem nisso, enquanto há tempo. Por: Rodrigo Constantino  

CIENTISTAS SÉRIOS


Nada que se diga sobre as relações entre política, ciência, moral e religião tem aquele mínimo indispensável de dignidade intelectual requerido para merecer alguma atenção, se não leva em conta o fato mais visível da História terrestre: todas as guerras de religião desde o início dos tempos, somadas, mataram muito menos gente do que as ideologias científicas modernas, socialismo e nazismo, mataram em umas poucas décadas. Aquele que, posando de defensor da espécie humana, toma a palavra em nome da “ciência”, das luzes e da modernidade, já sobe ao palanque trazendo na testa o emblema sinistro da mentira totalitária. E é com perfeita hipocrisia, se não com inépcia autêntica, que semelhante paspalho alega entre seus títulos de legitimidade a diferença entre a “pseudociência” dos outros e a “sua” ciência supostamente genuína e respeitável. Pois essa diferença, desde logo, só existe e só aparece no interior da prática científica mesma: os pseudocientistas só o são, no julgamento alheio, porque antes disso são cientistas de profissão e não outra coisa. Quem produz pseudociência é a classe científica e ninguém mais, exatamente como os erros judiciários nascem das cabeças de juízes e as heresias dos cérebros de religiosos, não de ateus ou de indiferentes. A pureza da ciência, como a da justiça e a da religião, é um ideal normativo e não um mérito real inerente a qualquer das três. O cientista que chama alguém de pseudocientista acusa um colega de profissão, e deve fazê-lo com a humildade de quem confessa os pecados da sua própria classe, não com os ares beatíficos de quem, vindo de fora, fala com a autoridade da completa inocência. Em segundo lugar, aquela distinção não é um dado a priori e incontrovertido, não é uma premissa autoprobante, mas o resultado de discussões que podem prosseguir indefinidamente: as teorias racistas do nazismo tiveram defensores entre os mais prestigiosos cientistas da época, e o marxismo ainda os tem às pencas. E ambos esses grupos nunca cessaram de acusar um ao outro de pseudociência.

Digo isso porque a antropóloga Débora Diniz, da UnB, entra no debate sobre o aborto falando em nome dos “cientistas sérios” (sic) e acredita piamente que pertence a essa classe (v. http://www.cebes.org.br/verBlog.asp?idConteudo=4428&idSubCategoria=30).

Da minha parte, não sou cientista, e só sou sério em casos de extrema necessidade, que evito o quanto posso. Mas tenho a certeza de que não é sério, nem científico, alguém se meter a filósofo sem o menor domínio técnico da matéria e dizer uma coisa destas: “Nascituro é um não nascido. A palavra parece ser um nó filosófico — como alguém pode reclamar ser uma negação existencial? Essa é a confusão ética em curso no Congresso Nacional com a proposta do Estatuto do Nascituro.”

Não, dona. O nó filosófico só existe na sua cabeça. Nascituro não é alguém que não nasceu, é alguém que foi gerado e já está em vias de nascer, o que o diferencia radicalmente de todos os simplesmente não-nascidos. O particípio futuro latino que a palavra traduz não tem nenhuma acepção de “negação existencial”. Exatamente ao contrário: nascitur significa “começar a ser ou a existir”. Não vou lhe recomendar que tire a dúvida lendo Cícero porque seria uma crueldade.

No entanto, se o tivesse lido a senhora não se submeteria ao vexame de escrever esta lindeza: “O nascituro é criação religiosa para dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam controlar a reprodução das mulheres pela lei penal.” Ora, dona, não foi nenhum bispo nem pastor protestante que inventou o particípio futuro no latim. O termo designa um estágio na formação natural do ser humano e não uma noção religiosa qualquer, muito menos um dogma cristão. Mas como esperar algum conhecimento de latim da parte de quem não domina sequer o português? Não vou contestar a sua sentença, vou reescrevê-la para ver se a senhora aprende alguma coisa: “O nascituro é criação religiosa para dar personalidade jurídica às convicções morais de homens que acreditam poder controlar, pela lei penal, a atividade reprodutiva das mulheres.” Do modo como a senhora escreveu, parece que a lei penal reproduz as mulheres ou que elas se reproduzem a si mesmas. Como foi que a senhora obteve um diploma de ginásio?

Não satisfeita com tão patente fiasco, prossegue a indigitada: “O nascituro é um conjunto de células com potencialidade de desenvolver um ser humano, se houver o nascimento com vida.” Entenderam? Se o bebê nasce vivo, então e só então começará o processo que fará dele um ser humano. A condição humana não é um dom natural, é uma criação cultural. O sujeito em gestação é apenas um aglomerado de células, quando nasce ainda é apenas isso, e só depois, pela educação recebida, se torna um ser humano. Que o registro civil o inscreva logo de cara entre os seres humanos é portanto, no mínimo, uma antecipação imprudente. Mutatis mutandis, um leão recém-nascido, deixado a si mesmo e desprovido do treinamento em atividades leoninas que ele receberá da sua mamãe, não é um leão de maneira alguma, não é nem mesmo um leãozinho, é apenas um conjunto de células que, beneficiado pelo Estatuto do Nascituro, não foi abortado em tempo.

Mas que outro raciocínio melhor poderia vir de alguém que chama de “potencialidade” aquilo que acaba de rotular como “negação existencial”, confundindo potência com privação de existência, e ainda tem a presunção de desfazer “confusões éticas” no cérebro alheio? Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

DIFÍCIL TRAVESSIA

Em artigo publicado neste espaço (14/3/2010) citei textos escritos por Antonio Palocci e Paulo Bernardo, que registraram seu reconhecimento da herança positiva que o governo Lula havia recebido do governo anterior.


Segue o parágrafo que, à época, escrevi sobre os dois depoimentos: "O respeito aos fatos, claramente expresso por Bernardo e Palocci, se contasse com o respaldo das vozes mais sensatas de seu partido e do movimento lulista, representaria um avanço considerável em direção a um debate público mais sério e de melhor qualidade sobre o País e seu futuro. Um debate voltado para 'o que fazer' com vistas a assegurar a gradual consolidação do muito que já alcançamos como País e, principalmente, como - e com que tipo de lideranças - avançar mais, e melhor, no processo de mudança e de continuidade que nos trouxe até aqui".

A presidente Dilma, em seu discurso de posse, também teve um momento de generosidade para com governos anteriores, algo que Lula nunca se permitiu. E escreveu bela carta pública ao presidente FHC por ocasião de seus 80 anos, exatos dois anos atrás.

Não pretendia mais voltar a este tema após estes gestos.

Mas o prematuro lançamento da campanha pela reeleição da presidente, com quase dois anos de antecedência, e, ao que tudo indica, o que vem por aí, a julgar pelas comemorações pelos "últimos dez anos", sugerem que voltarão à tona variantes retóricas do "nunca antes na história deste país". E, de novo, a tentativa de reescrever a história e estabelecer a data da primeira posse de Lula, em 2003, como o marco zero de uma suposta Nova Era.

A ideia de que, no mundo da política, o que importa é a versão,e não o fato, tem ampla disseminação entre nós. A aceitação dessa "máxima" tem implicações nada triviais para o debate público, em particular durante períodos eleitorais nos quais, como nas guerras, a verdade figura entre as primeiras vítimas.

Pois veja o eventual leitor: se o que realmente importa não são tanto os fatos, mas as versões sobre os mesmos, por vezes muito distintas e conflitantes,segue-se que as versões que tendem a predominar - pelo menos no prazo relevante para o calendário eleitoral - são aquelas mais constantemente repetidas, aquelas mais bem financiadas por esquemas profissionais dos departamentos de agitação, propaganda e marquetagem política.

Há quem diga que tudo isso é apenas efeito do calor da hora, expressão das vastas emoções que fazem parte natural de processos eleitorais em sociedades de massa. Para estes, passadas as eleições, e qualquer que seja o seu resultado, o País continuaria - à nossa pragmática maneira - a avançar em seus complexos processos de continuidade e mudança.

A propósito, meu último artigo neste espaço (Marcados descompassos) termina expressando a esperança de que o País possa melhorar a qualidade do debate público informado sobre crescimento, emprego e renda, com foco na imperiosa necessidade de aumentar, em muito, a produtividade e a competitividade internacional de suas empresas e a eficiência operacional do governo na gestão da coisa pública - aí incluídos os investimentos em infraestrutura...

Pois bem, a respeito desta última área, vale reler a longa entrevista concedida a este jornal seis meses atrás (2/1/2013) pelo presidente da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), há muitos e muitos anos o homem-chave e de confiança de nossa presidente neste campo.

Disse ele: "Se a gente pegar os planos nacionais de logística de transporte e de logística portuária e outros estudos do governo, teremos de investir perto de R$ 400 bilhões em cinco anos. Vamos dizer que tenho de investir outros R$20 bilhões para não gerar novo passivo e ser preventivo. Então a necessidade de investimento seria de R$ 100 bilhões por ano. Resolvendo isso, posso dizer que em cinco anos não teríamos mais problemas de infraestrutura". Deixo ao leitor avaliar, com base em sua experiência, quão crível é essa última assertiva.

Perguntado como seriam os próximos passos, disse o presidente da EPL: "Vamos avaliar todos os estudos preparados até agora e quantificar qual o investimento prioritário. A ideia é levar isso para o Conselho Nacional de Integração de Políticas de Transporte (Conit), que será formado pelo governo e pela iniciativa privada. Ele vai validar quais as ações prioritárias que faltam ser adotadas. A partir da validação do Conit, a EPL vai começar a preparar os projetos para execução. Aí, mais uma vez, voltamos ao Conit, que aprova ou não. Em 2013, também vamos fazer uma ampla pesquisa em todas as rodovias, ferrovias e portos para saber tudo o que é movimentado no País.Vamos simular como a rede se comporta. E aí identificar com mais precisão as prioridades". Deixo ao leitor avaliar quão eficaz é esse processo.

O presidente da EPL diz ainda: "A gente está fazendo 10 mil km de ferrovias, duplicando 5 mil km de rodovias, são R$ 50 bilhões para portos. O PAC tem R$ 20 bilhões para mobilidade urbana". E defende o trem de alta velocidade: "Precisamos resolver todos os problemas e um deles é como as pessoas se deslocam no eixo Rio-São Paulo".

Deixo ao leitor avaliar o conjunto dos três últimos parágrafos à luz de sua vivência.

A entrevista foi concedida a este jornal quase seis meses atrás. Mas não se passaram somente estes meses. Passaram se 10 anos, 5 meses e 10 dias desde que um mesmo governo está no poder, como quer a propaganda eleitoral oficial.

Desde junho de 2003 tenho o exorbitante privilégio de escrever nesta página, deste excelente jornal, que teve, tem e terá papel histórico no diálogo do País consigo mesmo. A generosidade de seus editores permitiu a publicação de cerca de 100 artigos ao longo destes 10 anos.

O encorajamento de leitores me faz persistir.

Mais uma vez devem tentar estabelecer 2003 como marco zero de uma suposta Nova Era
Por: Pedro Malan O Estado de S Paulo

terça-feira, 18 de junho de 2013

A PERGUNTA PARA A QUAL OS LIBERTÁRIOS SIMPLESMENTE NÃO TÊM RESPOSTA

Por algum motivo insondável, os insolentes progressistas de um famoso website pensam que nos deixaram atônitos e desconcertados com a seguinte pergunta, para a qual, segundo eles, nenhum libertário tem resposta:

"Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que nenhum país do mundo nunca o implantou?"

Então esta é a pergunta irrespondível? O que há de tão difícil nela? Pelo menos 90% de tudo o que libertários escrevem é uma resposta a esta pergunta, pelo menos implicitamente.

Vamos reformular ligeiramente esta pergunta para deduzirmos a resposta. Você perceberá que, quando formulada corretamente, o quão ridícula é a pergunta, pois há uma total falta de conexão entre a premissa inicial e a conclusão.

(1) "Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que as grandes empresas não aceitam concorrer no livre mercado e encarar seus prejuízos, preferindo ser socorridas pelo governo sempre que possível?"

(2) "Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que as pessoas preferem ganhar dinheiro por meio de privilégios especiais em vez de por meio da produção e do trabalho duro e honesto?"

(3) "Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que a polícia não quer abrir mão do dinheiro, dos armamentos e de toda a autoridade oriunda da guerra às drogas?"

(4) "Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que algumas pessoas preferem alcançar seus objetivos por meio da violência, da fraude e do roubo?"

(5) "Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que os grandes empresários sempre preferem receber subsídios e privilégios, e ainda pedem ao governo que aumente as tarifas de importação?"

(6) "Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que a classe política prefere viver parasiticamente à custa do trabalhão dos outros e adora exercer seu vasto poder sobre toda a população?"

(7) "Sabemos que lobistas e grupos de interesse conseguem sempre ganhar benefícios especiais porque, ao passo que tais benefícios são concentrados e individualmente significativos, seus custos estão dispersos entre toda a população e são individualmente irrisórios, o que significa que o público em geral não tem nenhum interesse em se organizar contra isso. Um aumento de $0,10 no litro de leite dificilmente estimulará alguém a dedicar sua vida a se opor aos lobistas, mas um ganho extra de $100 milhões por ano em lucros para as empresas envolvidas no lobby certamente é algo pelo qual é válido gastar tempo e esforço.

Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que isso acontece?"

(8) "Se o arranjo que os libertários defendem é tão bom, então por que as pessoas não se esforçam para tentar implantá-lo após terem passado uns 18 anos de sua vida sofrendo lavagem cerebral nas escolas e universidades, ouvindo diariamente sobre o quão maravilhoso e insubstituível é o estado?"

Portanto, quando alguém, pela enésima vez, lhe fizer a seguinte pergunta: "Se o libertarianismo é tão bom, então por que não existem países libertários?"

Apenas responda utilizando a mesma tática: "Espere aí, você está me perguntando por que motivo todas aquelas pessoas que estão em uma posição de poder absoluto e que podem dar ordens e espoliar a população impunemente não abrem mão deste poder e voluntariamente renunciam? Ótima pergunta!"


O ERRO DE KEYNES

A Escola Austríaca de economia já forneceu ao mundo devastadoras críticas à obra magna de Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (doravante Teoria Geral). Friedrich A. von Hayek, Jacques Rueff, Henry Hazlitt, Murray Rothbard, Ludwig Lachmann, Ludwig von Mises e William Hutt já contribuíram com importantes e sólidos argumentos contra Keynes e o keynesianismo.

Para o júbilo dos defensores da liberdade, podemos agora acrescentar um novo nome a esta distinta lista. Em 2012, o espanhol Juan Ramón Rallo, diretor do Instituto Juan de Mariana, professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri, e graduado sob a orientação de Jesús Huerta de Soto, publicou uma nova crítica à Teoria Geral com o título de Los Errores de la Vieja Economía em homenagem à obra de Henry Hazlitt intitulada The Failure of the 'New Economics'.

Na época de Hazlitt, o programa de Keynes ainda era revolucionário e foi descrito por Hazlitt como sendo um tipo de "Nova Economia" que rompia com as constatações da economia clássica, e especialmente com a Lei de Say. Hoje, o keynesianismo já se tornou a corrente dominante. O keynesianismo, e mais especificamente a sua ideia de que os gastos do governo reduzem o desemprego, é o programa majoritariamente ensinado nas universidades, jubilosamente aplicado por políticos (pode haver coisa melhor do que um economista dizendo a um político que ele tem de gastar mais?) e proeminentemente defendido pelo vencedor do Prêmio Nobel de 2008, Paul Krugman.

Com efeito, a imediata resposta política à atual crise financeira do mundo ocidental foi inspirada pela Teoria Geral. Uma segunda Grande Depressão tinha de ser evitada, diziam os economistas, e as ideias de Keynes foram aplicadas. Os governos então adotaram uma política monetária expansionista combinada a volumosos estímulos fiscais, e tudo em resposta àquilo que, aos olhos de Krugman, parecia ser uma bolha causada pela 'especulação temerária estimulada pelo mercado', fenômeno este que havia sido inspirado pelo "espírito animal" dos agentes de mercado. 

Sendo assim, ainda que o livro de Rallo fosse apenas um resumo dos velhos argumentos apresentados contra aTeoria Geral, o momento para a sua publicação seria mais do que apropriado, já que as ideias do passado ainda são a prática do presente. No entanto, Los Errores de la Vieja Economía é muito mais do que um mero sumário e síntese dos argumentos expostos pelo supracitados autores austríacos. Rallo aproveita, combina e aprimora estes argumentos de uma maneira metódica e ordenada. Ainda mais importante, ele acrescenta suas próprias e inovadoras ideias para, no final, produzir um argumento devastador contra a Teoria Geral.

A crítica de Rallo à Teoria Geral utilizando a teoria austríaca é rigorosa, sistemática e profunda. Importante ressaltar que as ideias de Keynes não são em nenhum momento do livro distorcidas ou mal interpretadas. A completa ausência de espantalhos faz com que o ataque desferido por Rallo ao cerne das crenças keynesianas seja mais forte e poderoso do que o de seus pares. Rallo também não sai à procura de contradições e inconsistências terminológicas. Neste sentido, a crítica de Rallo é ainda mais profunda e devastadora do que, por exemplo, os trechos do brilhante livro de Henry Hazlitt que enfatizam as inconsistências, as imprecisões e toda a falta de clareza de Keynes. Rallo possui um grande e genuíno interesse em fornecer um retrato claro e coerente do raciocínio de Keynes e, por isso, apresenta a teoria keynesiana sob uma luz extremamente favorável.

Vejamos agora alguns dos argumentos de Rallo, começando pela famosa crítica feita por Keynes à Lei de Say. Para começar, Keynes distorceu a Lei de Say, e esta versão distorcida, que aparece na Teoria Geral, afirma que a oferta cria sua própria demanda. Rallo corrige essa distorção e descreve a Lei de Say em sua versão original: no longo prazo, a oferta de bens se ajusta à demanda por eles. Em última análise, bens são ofertados porque o indivíduo quer adquirir outros bens (entre eles, o dinheiro). Um indivíduo produz com o intuito de demandar, o que significa que é impossível haver um excesso de produção.

A Lei de Say nos leva diretamente ao mais inovador argumento do livro de Rallo, que aborda a velha crítica ao entesouramento. Até mesmo alguns severos críticos de Keynes — por exemplo, o pessoal do campo monetarista ou neoclássico — admitem que ele ao menos estava correto na questão de que o entesouramento — mais especificamente, o ato de guardar dinheiro dentro da gaveta — é uma atividade perigosa e desestabilizadora.

Rallo, no entanto, demonstra, comprova e enfatiza a função social do entesouramento. Se as pessoas estão demandando dinheiro — isto é, se elas estão aumentando a quantidade de dinheiro vivo em seus encaixes — isso não significa que elas não estão demandando nada do mercado. O entesouramento é uma reação natural dos poupadores e dos consumidores a uma estrutura de produção que não está se ajustando às suas reais necessidades. Trata-se de um sinal de protesto enviado aos empreendedores: "Por favor, ofertem-nos outros bens de consumo e de capital! Mudem a atual estrutura de produção, pois os bens que ela nos oferece hoje não nos é adequada."

Em uma situação de grande incerteza, é mais prudente entesourar do que imobilizar fundos para o longo prazo. Rallo nos oferece um exemplo visual. Suponhamos que a incerteza aumente porque as pessoas estão à espera de um terremoto. Consequentemente, elas começam a entesourar, ou seja, elas aumentam seus encaixes em dinheiro vivo, o que dá a elas mais flexibilidade. Tal atitude é completamente racional e benéfica do ponto de vista dos participantes do mercado. A alternativa keynesiana seria dar este dinheiro para o governo para que ele pudesse gastar. A construção de arranha-céus estatais não apenas iria contra a vontade da maioria das pessoas prudentes, como também se comprovaria desastrosa casso o terremoto ocorresse.

Entesourar é um seguro contra incertezas futuras. Rallo argumenta que, se a demanda por dinheiro aumentar (em termos técnicos, se a preferência por liquidez aumentar) por causa desta maior cautela, as taxas de juros de curto prazo tenderão a cair, ao passo que as de longo prazo irão subir. As pessoas irão investir mais em ativos de curto prazo e menos em ativos de longo prazo, pois elas querem se manter líquidas. Isso leva a um reajuste na estrutura de produção. Mais recursos serão direcionados para a produção de bens que apresentarem maior liquidez (em um padrão-ouro, por exemplo, este bem seria o ouro), e para a produção de bens de consumo. A estrutura de produção será alterada, apresentando agora um maior número de processos mais curtos e menos arriscados e um menor número de processos mais longos e mais arriscados.

O entesouramento, portanto, não faz com que os fatores de produção fiquem ociosos. No cenário acima, tais fatores serão alocados para a produção de ouro e para outros projetos de curto prazo. Rallo insiste que não é nada irracional querer entesourar. Com efeito, quando projetos de longo prazo são mantidos e as condições econômicas se alteram, estes projetos talvez tenham de ser liquidados. Por exemplo, o terremoto destruiria o arranha-céu que está sendo construído.

Vale observar que a maioria dos austríacos não é adepta de uma teoria híbrida que diz que a taxa de juros é determinada tanto pela preferência pela liquidez quanto pela preferência temporal. Rallo, porém, é adepto desta teoria híbrida, e acredita que a taxa de juros, ou a estrutura das taxas de juros, é determinada tanto pela preferência temporal quanto pela preferência pela liquidez. A maioria dos austríacos defende apenas a teoria da preferência temporal como formadora das taxas de juros. Devido à incerteza, um agente prefere estar líquido em vez de ilíquido. E devido à preferência temporal, um agente prefere estar mais líquido agora do que no futuro. Consequentemente, em condições normais, os juros de curto prazo tendem a ser menores do que os juros de longo prazo. Quando a incerteza aumenta, os juros de longo prazo tendem a ficar ainda maiores. No entanto, em uma crise financeira, um outro efeito tende a prevalecer sobre esta tendência. Quando a sociedade em geral se torna ilíquida — em consequência do início da crise —, surge uma maior demanda por empréstimos de curto prazo. Esta busca por liquidez imediata tende a fazer com que os juros de curto prazo aumentem e se tornem maiores do que os juros de longo prazo.

A questão dos recursos ociosos é outro tópico importante do livro de Rallo, uma vez que Keynes recomenda a inflação monetária como forma de evitar que os fatores de produção se tornem ociosos e o desemprego aumente. Rallo pergunta por que, em primeiro lugar, os fatores se tornaram ociosos e o desemprego aumentou? A resposta é que os proprietários destes fatores — no caso dos bens de capital, os donos das fábricas; e no caso da mão-de-obra, os desempregados — estão demandando um preço por seus serviços que é maior do que o valor presente de seu produto marginal. Nestas circunstâncias, a inflação monetária irá apenas gerar uma redistribuição de renda em prol dos proprietários destes fatores, em nada ajudando a reestruturar a economia — ou seja, a estrutura de produção continuará desajustada e a economia vivenciará um consumo de capital, isto é, recursos escassos continuarão sendo utilizados em linhas de produção para a qual não há mais demanda.

Por outro lado, quando os fatores de produção têm seus preços reajustados, isto é, quando os preços dos bens de capital caem e os salários diminuem até chegar ao valor de seu produto marginal, a demanda agregada não cai, como sugere Keynes. Ao contrário: a demanda aumenta porque, em decorrência do maior número de pessoas agora empregadas e do maior nível de investimentos em decorrência da queda no preço das máquinas, a produção total da economia também aumenta.

Rallo ataca impiedosamente outros conceitos keynesianos. O famoso "multiplicador do investimento" é uma das vítimas. Segundo esta teoria, um aumento unitário no volume de investimento de uma economia provoca ondas sucessivas de aumento da renda, cuja dimensão depende da propensão marginal a consumir ou poupar. Esta teoria requer que todos os fatores de produção estejam apresentando alguma ociosidade. Mais especificamente, para Keynes estar correto, é necessário que haja desemprego voluntário de todos os fatores de produção e que também haja capacidade ociosa nas indústrias de bens de consumo. 

Vejamos. Se não houver desemprego voluntário de todos os fatores, o estímulo governamental a novos projetos de investimentos irá gerar apenas gargalos, uma vez que fatores de produção serão retirados de outros projetos mais lucrativos e direcionados para projetos artificiais. Os keynesianos concordam com isso. Se todos os tipos de fatores de produção estiverem apresentando alguma ociosidade, mas não houver mais capacidade produtiva nas indústrias de bens de consumo, então estímulos governamentais irão apenas elevar os preços dos bens de consumo e encurtar a estrutura de produção, tornando-a mais voltada para o presente. Os keynesianos também concordam com isso. E, finalmente, se os dois fenômenos ocorrerem conjuntamente — isto é, se houver uma ociosidade geral dos fatores e houver folga na capacidade produtiva das indústrias de bens de consumo, que é o pressuposto da teoria de Keynes —, por que então não há um acordo voluntário entre os proprietários dos fatores de produção e os empreendedores? Keynes não respondeu a essa questão, e preferiu ir diretamente para a defesa do aumento dos gastos do governo e da inflação monetária para corrigir esta situação.

Outra importante ideia keynesiana que Rallo aborda é a famosa armadilha da liquidez. Uma armadilha da liquidez ocorre quando, em uma economia em recessão, as taxas de juros estão muito baixas. Nesta situação, Keynes diz que a política monetária se torna inútil, pois os especuladores irão simplesmente entesourar todo o dinheiro que o governo imprimir. Os especuladores não irão investir em títulos porque eles já estão com preços máximos (os juros são mínimos), e os preços deles irão cair quando os juros finalmente voltarem a subir. Neste ponto, a política monetária se torna impotente e o aumento do gasto público se torna necessário para estimular a demanda agregada.

Rallo mostra que, após um período de forte crescimento artificial estimulado pela expansão do crédito, em que vários investimentos errôneos foram feitos, a economia entra em recessão quando esta expansão do crédito é reduzida em decorrência da alta dos preços (que levam a um aumento dos juros cobrados pelos bancos). Neste cenário, os preços estão mais altos e há um endividamento generalizado das pessoas e empresas. Consequentemente, praticamente não há demanda por novos empréstimos, mesmo que as taxas de juros sejam acentuadamente reduzidas. Neste caso, a economia na verdade se encontra em uma armadilha de iliquidez, uma vez que indivíduos e empresas estão preocupados em aumentar sua liquidez. Eles querem reduzir suas dívidas e não pegar mais empréstimos. A política monetária de redução dos juros irá na realidade piorar a situação, pois com juros baixos não há incentivo para pagar antecipadamente e cancelar as dívidas (pois uma redução dos juros eleva o valor presente da dívida). A solução para esta situação de incerteza generalizada é o entesouramento, a estabilidade das instituições, a liquidação dos investimentos ruins e a redução das dívidas.

Uma alta incerteza não implica um alto desemprego, uma vez que até mesmo sob uma alta incerteza a redução dos preços dos fatores de produção faz com que novos projetos sejam mais lucrativos. Sob uma alta incerteza, estes projetos de investimento serão a produção de ouro (se a economia estiver em um padrão-ouro) e a produção de bens de consumo voltada para o curto prazo.

Rallo demonstra que, ao contrário do que diz a Teoria Geral, não é a oferta agregada ou a demanda agregada o que importa, mas sim a composição das duas. Em uma depressão em que a estrutura da produção está distorcida e a economia apresenta uma "armadilha da liquidez", se a demanda agregada for estimulada pelos gastos do governo, a estrutura existente não terá como produzir os bens que os consumidores querem com mais urgência. Logo, a solução não é mais gastos e mais endividamento, mas sim uma redução da dívida e a liquidação dos investimentos ruins para fazer com que novos e mais sensatos investimentos sejam exequíveis.

Para Keynes, por outro lado, o problema sempre será de 'demanda insuficiente'. Sendo assim, o que deve ser feito se consumidores e investidores não quiserem comprar os produtos que as empresas estão oferecendo, preferindo poupar? Keynes recomenda reduzir os impostos, as taxas de juros e desvalorizar a moeda. Se isso não funcionar, o governo deve sair comprando os produtos que os consumidores não querem comprar. Porém, pergunta Rallo, por que os consumidores e investidores deveriam comprar bens que eles não querem?

A resposta de Keynes é que, se isso não for feito, o desemprego aumentará. E Rallo contra-argumenta: mas se uma pessoa é forçada a gastar seu salário comprando algo que ela não quer, qual seria seu incentivo para trabalhar? Por que ela sequer deveria ter um emprego? A alternativa a forçar as pessoas a gastar é reduzir os salários até o valor de seu produto marginal, o que elevaria a produção e a demanda. Como demonstra Rallo, a sociedade não se torna mais rica se o governo induzir ou forçar as pessoas a comprar bens que elas não querem. 

Logo, para Rallo, eis a essência da Teoria Geral: quando as pessoas não querem comprar aquilo que está sendo produzido, o governo deveria obrigá-las a agir contra sua vontade.

As observações sobre o livro de Rallo aqui demonstradas são apenas uma pequena amostra. Dentre outras coisas, Rallo também apresenta uma análise das principais definições inventadas por Keynes e os erros teóricos de cada uma delas (como, por exemplo, seu viés pró-consumismo). Ele apresenta uma análise austríaca dos mercados financeiros, discutindo as inter-relações que existem entre a estrutura da curva de juros, as taxa de juros, a taxa de redesconto, a estrutura do investimento, a armadilha da liquidez e a bolsa de valores. Ele analisa a questão dos salários reais e nominais, os ciclos econômicos, as implicações políticas dos ciclos e todos os antecessores intelectuais da Teoria Geral de Keynes, e tudo utilizando a teoria austríaca. Também extremamente útil é o guia criado por Rallo para os leitores da Teoria Geral, que torna mais fácil e mais eficiente ler e identificar os principais erros de Keynes, capítulo por capítulo. Como extra, no final do livro, Rallo também apresenta uma crítica ao modelo IS-LM, desenvolvido por John Hicks e Franco Modigliani, que formalizou a teoria de Keynes e que ainda é maciçamente ensinado nas universidades ao redor do mundo.

O livro de Rallo, além de repleto de observações brilhantes, é hoje a obra que fornece a mais poderosa e completa demolição dos argumentos keynesianos. Los Errores de la Vieja Economía será, no futuro, a referência, tanto dos estudiosos quanto dos leigos, para encontrar todos os erros no pensamento de Keynes e nas políticas adotadas pelos governos. O único ponto negativo do livro é que, por enquanto, existe apenas a versão em espanhol. É de se esperar que a obra rapidamente seja disponibilizada em outros idiomas.

Por: Philipp Bagus é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri. É o autor do livro A Tragédia do Euro. Veja seuwebsite.
Tradução de Leandro Roque

segunda-feira, 17 de junho de 2013

KONDRATIEV - A IRRESISTÍVEL FORÇA GRAVITACIONAL DOS CICLOS ECONÔMICOS LONGOS

Uma sucessão de bolhas? A bolha da tecnologia, que inflou de 1995 ao estouro em 2000, foi sucedida pela bolha imobiliária, que estourou em 2007-2008. No momento, boa parte dos especialistas defende que há uma bolha dos títulos dos governos ao redor do mundo. De fato, os juros nunca estiveram tão baixos. O Tesouro do governo dos Estados Unidos está pagando apenas 2,09% ao ano para o prazo de dez anos, e créditos exóticos, como os Tesouros de Ruanda e Mongólia, aproveitaram o momento para captar dinheiro fácil.

Há quatro anos acredita-se que os juros deveriam subir, mas, desafiando os especialistas, os juros caem ano após ano. A pergunta é: temos realmente uma bolha de títulos de renda fixa, ou há algum outro fator estrutural que explique tal comportamento paradoxal dos juros? O que isto significa para o mercado de ações nos Estados Unidos e no Brasil?

Nicolai Kondratiev foi um economista russo do princípio do século XX, que se propôs a estudar falhas da economia capitalista. Em livros e estudos, chegou à conclusão de que esta percorre ciclos econômicos longos e razoavelmente regulares. Os principais seguidores atuais da tese dos ciclos de Kondratiev — ou K-wave — acreditam que o ciclo varia de 55 a 80 anos. As variáveis explicadas pelos ciclos longos são principalmente taxas de juros, preços de ações, e inflação.

Ao passo em que os chamados "ciclos econômicos", que variam de 7 a 15 anos, são usualmente traçados causalmente a políticas monetárias dos Bancos Centrais, a K-wave é supostamente explicada por outros fatores, como tecnologia ou demografia.

Prefiro, no entanto, entender o comportamento da K-wave primordialmente por fatores causais relacionados a respostas monetárias e fiscais do sistema — sejam advindas das políticas monetária e fiscal, ou do próprio sistema financeiro privado —, que por sua vez refletem paradigmas geracionais.

A K-wave costuma ser dividida em quatro "estações" de 15 a 20 anos cada. Não recomendo o foco na duração das estações, mas sim na sua sucessão lógica bem como nos indicadores de mudança da estação.

O diagrama abaixo mostra de forma simplificada o atual ciclo Kondratiev dos Estados Unidos, cuja passagem do Inverno para a Primavera ocorreu em 1949 (veja no diagrama a passagem entre estas estações na posição das seis horas, marcada à época em que o mercado acionário tocou o ponto mais baixo).

A Primavera de Kondratiev começa quando a economia já está depurada: os bancos já se livraram dos ativos tóxicos e se tornaram melhor capitalizados, e não são mais necessárias políticas monetárias e fiscais agressivas. É o período no qual gradualmente o processo inflacionário é retomado (reflação), após a longa temporada hibernal, deflacionária e desalavancadora.

A confiança ainda permanece frágil, e há receio pelos agentes de uma recaída da deflação, que caracterizou o Inverno (descrito mais abaixo). Há uma retomada lenta do crédito, e as taxas de juros sobem um pouco, de maneira gradual. Os ativos mais beneficiados são ações e imóveis. Os preços dos títulos (e demais ativos de renda fixa prefixados), que atingiram o topo no fim do inverno, começam a cair, pelo aumento gradual das taxas de juros.

Diagrama de Kondratiev – estações

















O Verão começa quando o mercado acionário alcança o topo histórico (all-time high) e inicia leve descida (conforme o diagrama, o Verão se iniciou em 1966, na posição das nove horas). A confiança no futuro dispara, a inflação gradualmente acelera até chegar ao máximo ao fim do Verão. As taxas de juros também batem no topo no mesmo momento. Os ativos mais beneficiados são imóveis, commodities, e ouro. Os títulos tocam o preço mais baixo (o que significa que seus juros chegam ao valor mais alto).

Ao final do Verão a economia já está em recessão inflacionária (estagflação). Os indicadores da passagem do Verão para o Outono são a recessão, e a inflação que já começa a ceder. As ações, portanto, tocam um ponto baixo na passagem para o Outono. (veja a passagem do Verão para o Outono, em 1980, na posição das doze horas).

Durante o Outono a inflação começa a ser debelada e cai durante todo este período desinflacionário, e a confiança dos agentes aumenta gradualmente, inicialmente aumentando suavemente, mas eventualmente alcançando a euforia ao final da estação. As taxas de juros caem durante todo o Outono, beneficiando ações, títulos, e imóveis, e punindo severamente commodities e o ouro, que chegam ao mínimo no fim da estação. O endividamento aumenta. Ao final do Outono, há um crash no mercado acionário.

O ponto máximo (all-time high) das ações e o crash marcam o início do Inverno (que começou em 2000 nos Estados Unidos, com o toque no máximo do S&P500 em 1.530 pontos, seguido do estouro da bolha de tecnologia, marcado no diagrama na posição das três horas). A confiança migra gradualmente de preocupação ao medo, do medo ao pânico, e do pânico à desesperança, principalmente por conta do impacto de uma crise bancária e da desalavancagem. A moderação da inflação de preços se acentua e passa a haver pressão deflacionária.

A desalavancagem do setor financeiro com a contração aguda do crédito gera inadimplência e defaults. As taxas de juros caem muito, e os títulos começam a subir no meio da estação, após a contração aguda do crédito, e chegam ao topo ao final do Inverno. Mesmo tendo caído muito com o crash, o mercado acionário sofre duas ou três correções agudas adicionais após altas provisórias, durante o Inverno. Os ativos de curto prazo e de 'caixa', bem como o ouro, se beneficiam.

Segundo a análise da K-wave, os Estados Unidos se encontram atualmente no Inverno, que se estima que perdure até 2015-2020. O índice de ações S&P500 (ver Figuras 1 e 2 abaixo), importante indicador de mudança de estações, mostra que os dois picos após o crash de 2000 (em 2007 e agora em abril de 2013) falharam em se aproximar dos 1.530 anteriores (quando ajustados pela inflação, conforme ilustra a Figura 2). Caso o S&P500 alcance e se sustente na faixa entre 1.750 e 1.850 pontos, a análise de K-wave indicará que provavelmente o Inverno terá sido superado. Mas ainda estamos distantes deste ponto. A K-wave sugere que haverá ainda mais um crash antes da entrada na Primavera, completando a terceira perna de queda.

Figura 1 – S&P 500 (1997-2013)







fonte: Bloomberg, O Ponto Base.

Figura 2 – S&P 500 em dólares constantes de 2000 (1997-2013)


fonte: Bloomberg, O Ponto Base.

Outro importante indicador, o índice Preço/Lucro (P/L ou PE Ratio) está hoje em 15,5x, ou seja, muito abaixo do nível do ano 2000, de 30x. O P/L deveria alcançar e permanecer em18 a 20x para uma comprovação de que o Inverno já tenha sido superado.

Figura 3 – Índice Preço/Lucro (PE Ratio) do S&P 500 (1994-2013)


fonte: Bloomberg, O Ponto Base.

Hoje há um relevante suporte para os preços das ações. E não tem nada a ver com o tal do "great rotation" — que os 'comprados' acreditam que ocorreria desde 2012 —, e que consistiria no êxodo dos investimentos em títulos (por conta de suposta alta de juros) para alocação em ações. O suporte é baseado no fragilíssimo argumento de que o dividend yield[7] de 2,5 a 3% excede os juros dos títulos, ou seja, de que os rendimentos com dividendos excedem os rendimentos em renda fixa.

De fato, esta força representa mais que um mero suporte, pois está havendo efetiva pressão de compra. É temerário que empresas como IBM captem recursos a 1% ao ano para pagar dividendos e aumentar o dividend yield, criando incentivos artificiais para a alta das ações. Essa artimanha por estes hackers do sistema não é sustentável.

Os Estados Unidos e o mundo desenvolvido possuem atualmente economias auxiliadas à base de maciças injeções monetárias e aumento de dívida pública. Não obstante, as forças deflacionárias do Inverno de Kondratiev desafiam e suplantam as ações dos governos. Os preços dos títulos demonstram ser sustentáveis e devem permanecer altos (ou seja, com juros baixos) até a entrada da Primavera. Deve-se ficar atento aos sinais do S&P500 e de seu P/L, que serão importantes para referendar uma efetiva mudança de estação.

Em que ponto da K-wave está o Brasil? O que isto significa para ações, inflação e juros brasileiros?

E afinal, por que utilizar uma teoria não aceita pelo mainstream para usar como uma das ferramentas de análise de investimentos? Por que razão ocorre uma sucessão repetitiva de estação para estação na K-wave?

Em breve discorrerei sobre essas questões.

Artigo originalmente publicado em O Ponto Base.

 Menos que os níveis correntes de inflação.

 [é também comum a grafia Kondratieff] Kondratiev, que tinha apoio do establishment durante a era Lênin, foi assassinado em 1938 por ordem de Stalin na Gulag em que se encontrava preso desde 1930. Stalin se desapontou quando Kondratiev deixou de corroborar sua crença de que o capitalismo se extinguiria com a Grande Depressão.


 Recomendo o premonitório livro de Michael Alexander, Stock Cycles - Why Stocks Won't Beat Money Markets over the Next Twenty Years. Não discorre apenas sobre K-wave, mas é uma boa introdução ao tema.

 O conceito de ciclos econômicos é em grande medida aceito pela ciência econômica convencional, ou mainstream, em contraste com o conceito de K-wave.

] Explicarei tal mecânica em artigos posteriores.

] A média histórica do P/L americano desde 1900 é de 16x. Um valor acima de 16x indica que há expectativa de crescimento de lucros que justifique um múltiplo acima da média.


 Dividend yield é a razão entre os dividendos anuais por ação e o preço atual da ação

Helio Beltrão é o presidente do Instituto Mises Brasil.

domingo, 16 de junho de 2013

A ESTATÍSTICA, O PONTO FRACO DO GOVERNO

É fato que vivemos na Era das Estatísticas. Em uma época obcecada por números e que venera dados estatísticos como sendo algo extremamente "científico", algo capaz de nos fornecer a chave para o segredo de todo o conhecimento, uma vasta gama de dados de todos os tipos, formatos e tamanhos nos é despejada diariamente. E estes dados provêm majoritariamente de agências do governo.

Embora agências privadas e associações comerciais de fato colham e publiquem algumas estatísticas, elas se limitam a mensurar apenas aquelas variáveis específicas demandadas por indústrias específicas. A grande maioria das estatísticas é coletada e disseminada pelo governo. A principal estatística da economia, o popular "produto interno bruto" — que permite que todo e qualquer economista se transforme em um adivinho das condições empreendedoriais —, é publicada pelo governo.

Além do mais, muitas estatísticas são subproduto de outras atividades governamentais: da Receita Federal advêm dados não apenas dos impostos mas também do patrimônio de pessoas e empresas que pagam esses impostos; do Ministério do Trabalho e da Previdência Social advêm estimativas da criação de empregos e do número de desempregados; da Alfândega advêm dados sobre o comércio exterior; do Banco Central advêm dados sobre o sistema bancário, e assim por diante. E à medida que novas técnicas estatísticas vão sendo desenvolvidas, novas ramificações da burocracia estatal vão sendo criadas para utilizar e aplicar essas estatísticas.

O inchaço das estatísticas governamentais impõe vários malefícios óbvios para o libertário. Em primeiro lugar, o governo tem de recrutar um verdadeiro exército de civis para fazer o trabalho da coleta de dados e da análise dos números. Isso significa que uma quantidade enorme de esforços e recursos é retirada do setor produtivo (o setor privado) e desviada para o setor improdutivo (setor público) apenas para fazer a coleta e a subsequente produção de estatísticas. Em um genuíno livre mercado, no qual a função do governo é mínima, a quantidade de mão-de-obra, de capital e de terra dedicada à coleta de estatísticas iria definhar para apenas uma pequena fração do total atual. O tanto que o governo gasta apenas para coletar estatísticas, bem como o total de burocratas que ele emprega para tal serviço, ainda tem de ser estimado e divulgado. 

Os custos ocultos do envio de informações

Em segundo lugar, a esmagadora maioria dos dados é coletada por meio da coerção estatal. Isso não apenas significa que tais dados são produto de atividades contraproducentes e indesejáveis, como também significa que o verdadeiro custo destas estatísticas para a população é muito maior do que a mera quantidade de impostos utilizada pelo governo para financiar esta atividade. Tanto as empresas privadas quanto os cidadãos têm de arcar com os onerosos custos de registrar todas as informações e arquivar todos os milhares de papeis e recibos que estas estatísticas exigem. E não apenas isso: estes custos fixos impõem um fardo relativamente maior sobre as micro e pequenas empresas, que não estão equipadas para lidar com esta montanha de formalidades burocráticas — e nem podem se dar ao luxo de gastar muito dinheiro com isso. 

Uma empresa comum tem de desviar tempo, dinheiro e capital humano para compilar todas as estatísticas que o governo e seus múltiplos ministérios e agências exigem. Vários empregados das empresas privadas se ocupam exclusivamente da coleta e do relato destas estatísticas exigidas pelo governo. Para pequenas empresas, isso é especialmente oneroso. Não são incomuns casos em que as pessoas que lidam com o governo têm de manter vários conjuntos de livros de registro apenas para atender aos diversos e desiguais requerimentos das agências e ministérios do governo.

Portanto, estas aparentemente inocentes estatísticas, que são geradas pela coleta compulsória de dados das empresas, afetam sensivelmente o mercado, pois aumentam os custos das pequenas empresas e reduzem sua capacidade de investimento e expansão, algo que é bem visto pelas grandes empresas, que com isso sofrem menos risco de concorrência. A burocracia enrijece todo o sistema econômico e protege os grandes contra eventuais investidas dos pequenos.

Outras objeções

Mas há outros motivos importantes, e não tão óbvios, para o libertário encarar as estatísticas governamentais com desalento e temor. Não apenas a coleta e a produção de estatísticas vão muito além da clássica função governamental de defender o indivíduo e a propriedade privada; não apenas recursos econômicos escassos são desperdiçados e mal alocados; não apenas os pagadores de impostos, as indústrias, as pequenas empresas e os consumidores são onerados e sobrecarregados. Há ainda algo pior: as estatísticas coletadas pelo governo são, em um sentido crucial, essenciais para todas as atividades intervencionistas e de cunho socialista do governo.

O cidadão comum, enquanto consumidor, não possui nenhuma necessidade de utilizar estatísticas em sua rotina. Por meio da publicidade, das informações fornecidas por amigos, e de sua própria experiência, ele é capaz de descobrir o que está acontecendo nos mercados à sua volta. O mesmo é válido para uma empresa. O empreendedor tem de saber mensurar e satisfazer as condições do mercado em que ele atua, determinar os preços que ele tem de pagar por aquilo que ele compra e de cobrar por aquilo que ele vende, incorrer em contabilidade de custos para estimar seus gastos e por aí vai. Porém, nenhuma destas atividades depende realmente daquela mixórdia de dados estatísticos sobre a economia ingerida e regurgitada pelo governo. O empreendedor, assim como o consumidor, conhece e aprende os detalhes de seu mercado por meio de suas experiências diárias.

Um substituto para os dados do mercado

Já os burocratas, assim como todos os pretensos reformadores estatistas, vivem em uma realidade completamente distinta. Eles decididamente vivem fora do mercado. Consequentemente, para se inteirar da situação que estão tentando planejar e reformar, eles têm de obter um conhecimento que não é pessoal, que não advém da experiência diária. E o único formato que tal conhecimento pode adquirir é o formato estatístico.

As estatísticas são os olhos e os ouvidos do burocrata, do político, do reformador socialista. É somente por meio da estatística que eles podem saber, ou ao menos ter uma vaga ideia, do que está acontecendo na economia.

É somente por meio da estatística que eles podem descobrir quantos idosos apresentam raquitismo, quantos jovens têm cáries, quantos pobres precisam de mais repasses do governo, e quantos empresários precisam de mais subsídios estatais. Desta forma, é somente por meio da estatística que estes intervencionistas descobrem quem "necessita" do quê ao longo de toda a economia, e quanto de dinheiro federal deve ser canalizado em qual direção.

O plano-mestre

Certamente, somente pelas estatísticas pode o governo federal fazer qualquer tentativa, por mais espasmódica que seja, de planejar, regular, controlar e reformar várias indústrias — ou, em última instância, de impor o planejamento central e a socialização de todo o sistema econômico. Por exemplo, se o governo não recebesse nenhuma estatística sobre o funcionamento das companhias aéreas, como ele iria sequer pensar em regular as tarifas e as finanças das empresas? Se o governo não recebesse dados sobre a situação das indústrias, como ele iria especificar tarifas protecionistas? Sem a estatística, como o governo iria regular rigidamente o mercado de telefonia? Principalmente: sem as estatísticas, como o governo iria manipular as taxas de juros? Como o governo iria impor controles de preços se ele não soubesse sequer quais bens estão sendo vendidos no mercado e a que preços? 

As estatísticas, repetindo, são os olhos e os ouvidos dos intervencionistas: do intelectual reformista, do político, do burocrata do governo. Arranque estes olhos e ouvidos, destrua estas diretrizes de conhecimento, e toda a ameaça de qualquer tipo de intervenção estatal será quase que completamente eliminada.

Obviamente, é verdade que mesmo privado de todo o conhecimento estatístico da situação do país, o governo ainda assim poderia tentar intervir, tributar, subsidiar, regular e controlar. Ele poderia tentar subsidiar os pobres e os idosos mesmo sem ter a mais mínima ideia de quantos deles existem e de onde eles estão; ele poderia tentar regular uma indústria sem nem mesmo saber quantas empresas existem e quais são suas características básicas; ele poderia tentar controlar os ciclos econômicos sem nem mesmo saber se os preços e a atividade empreendedorial estão em ascensão ou em queda. Ele poderia tentar, mas não iria muito longe. O caos seria óbvio, patente e evidente demais até mesmo para os padrões burocráticos, e mais ainda para os cidadãos.

E isso pode ser comprovado pelo fato de que um dos principais argumentos em prol da intervenção estatal é que o governo "corrige" o mercado, e torna o mercado e toda a economia mais "racional". Obviamente, se o governo fosse privado de tudo o que se passa na seara econômica, simplesmente não poderia haver nem mesmo uma pretensa racionalidade na intervenção estatal.

Seguramente, a ausência de estatísticas recolhidas pelo estado iria, de maneira absoluta e imediata, destruir toda e qualquer tentativa de planejamento de cunho de socialista. É difícil imaginar, por exemplo, o que os planejadores centrais do Kremlin poderiam fazer para planejar e controlar a vida dos cidadãos soviéticos se eles fossem privados de todas as informações, de todos os dados estatísticos, sobre estes cidadãos. O governo não saberia nem para quem dar ordens, muito menos como tentar planejar uma intrincada economia.

Portanto, dentre todas as várias medidas que já foram propostas ao longo dos anos para tentar restringir e limitar o governo, ou para revogar suas desastrosas intervenções, a simples e nada espalhafatosa abolição das estatísticas do governo provavelmente seria a mais completa e eficaz delas. A estatística, tão vital para o estatismo — seu homônimo —, também é o calcanhar da Aquiles do estado.

Por: Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies. 


sábado, 15 de junho de 2013

COMO PRIVATIZAR SERVIÇOS DE INFRAESTRUTURA

Para uma economia ser desenvolvida e funcionar bem, ela tem de ter uma infraestrutura de qualidade. É uma infraestrutura de qualidade que irá facilitar o fluxo de bens, de pessoas, de informação e de energia. É uma infraestrutura de qualidade que permitirá o escoamento da produção, fazendo com que oferta e demanda estejam sempre no mesmo compasso. Consequentemente, portos, estradas, pontes, ferrovias, aeroportos, redes de comunicação, linhas de transmissão de energia, sistemas de fornecimento e distribuição de água, gás encanado, metrô e vários outros sistemas de infraestrutura representam insumos essenciais para uma economia. 

Uma infraestrutura ruim — tanto em termos de quantidade quanto em termos de qualidade — não somente aumenta os custos da produção e da distribuição, mas também pode literalmente deixar uma economia de joelhos. Grandes economias como Índia, Brasil e várias nações da Ásia e da América Latina têm sido severamente afetadas por sua pobre infraestrutura, que é majoritariamente gerida pelo estado.

Mesmo a nação mais rica do mundo tem problemas de infraestrutura. Nos EUA, por exemplo, o número de veículos dobrou desde 1980, mas a capacidade viária total do país aumentou apenas 6%. O resultado foi um dramático aumento dos custos gerados pelos congestionamentos (tempo perdido, combustível extra etc.).

Em todo o mundo, os gastos com manutenção e com investimentos em infraestrutura são de 2% do PIB. Europa e Ásia gastam mais (quase 7% do PIB) e a América Latina e o Caribe gastam menos (3,02% do PIB). Países ricos podem se dar ao luxo de direcionar mais recursos para infraestrutura do que países pobres, que direcionam seus gastos (ineficientes, como todos os gastos do governo) para outras prioridades.



O que nos leva a uma pergunta crítica: a infraestrutura deve ser ofertada e gerenciada pelo setor público ou pelo setor privado?

Adam Smith já havia respondido a esta pergunta em seu livro A Riqueza das Nações (1776). Ele concluiu que: "Não há personagens mais incompatíveis do que o comerciante e o soberano", uma vez que as pessoas são mais esbanjadoras e imprevidentes com a riqueza dos outros do que com a riqueza própria.

Ele acreditava que a propriedade e a gerência estatais eram negligentes e dispendiosas porque burocratas e funcionários públicos não possuem um interesse direto no resultado comercial de suas ações.

Análises comparativas dos custos do fornecimento privado e do fornecimento público de bens e serviços dão suporte à conclusão de que empresas privadas são mais eficazes — tanto em termos de custos quanto em termos de qualidade — do que empresas estatais. E evidências consideráveis sugerem que o custo estatal incorrido pelo fornecimento de uma determinada quantidade e qualidade de serviço é aproximadamente duas vezes maior do que o fornecimento privado. Este resultado ocorre com tamanha frequência, que acabou dando origem a uma regra empírica: "a regra burocrática do dois". Tudo custa duas vezes mais quando fornecido pelo estado.

A privatização da infraestrutura, no entanto, pode levar a um problema: como introduzir e manter a concorrência na área privatizada. Economistas neoclássicos argumentam que projetos de infraestrutura possuem a característica do monopólio natural, de modo que a privatização destes setores traria um problema de falta de concorrência. Já economistas austríacos são desconfiados da própria tese de que existe de fato algo chamado monopólio natural

É claro que todos os economistas liberais defendem que a iniciativa privada possa construir e gerir serviços de infraestrutura; porém, infelizmente, tal realidade nem sempre é exequível. Afinal, dado que a infraestrutura já existe e foi majoritariamente construída pelo estado, seria desarrazoado imaginar que empresas privadas poderiam, em pé de igualdade, construir sua própria infraestrutura para concorrer em condições de igualdade com o estado. Dado que rodovias, portos, aeroportos, metrô, linhas de transmissão e sistemas de fornecimento e distribuição de água já existem, não faz sentido imaginar empresas privadas construindo sistemas paralelos para concorrer com o estado. O custo de se abrir uma nova estrada, um novo aeroporto, um novo porto ou um novo sistema de fornecimento e distribuição de água para concorrer com um já existente seria absolutamente proibitivo. 

(É claro que tal alternativa não pode jamais ser proibida. Sempre que uma empresa privada quiser construir seu próprio porto, seu próprio aeroporto, sua própria estrada, seu próprio metrô, seu próprio sistema de distribuição de água etc. ela deve ser perfeitamente livre para tal — e, neste caso, também deve ser perfeitamente livre para cobrar os preços que quiser).

Sendo assim, seria mais prático e realista concentrarmo-nos em como melhorar a infraestrutura já existente. E isso envolve retirar do estado e entregar ao setor privado a gerência destes serviços. Só que, neste cenário, mesmo que não haja nenhuma barreira artificial à concorrência, é muito provável que a empresa privada para a qual o serviço for entregue não terá concorrência, pois, por uma questão de economias de escala, uma única empresa pode fornecer serviços de infraestrutura de forma mais barata do que várias empresas (múltiplos portos, aeroportos, rodovias, pontes, metrôs e sistema de fornecimento e distribuição de água na "mesma" localidade não são economicamente viáveis).

Os oponentes da infraestrutura fornecida pelo setor privado são rápidos em apontar justamente para este fantasma do monopólio natural, utilizando-o para justificar a necessidade de que apenas o estado esteja neste setor.

Felizmente, há uma maneira de solucionar este impasse. Há uma maneira de contornar a questão do monopólio natural e introduzir concorrência no fornecimento privado de serviços de infraestrutura.

E tal maneira envolve um sistema de licitação competitiva no qual uma empresa privada irá adquirir a concessão de uma determinada infraestrutura. Embora a concorrência prática dentro de um mercado possa ser impossível, os benefícios gerados pela concorrência naquele mercado podem ser alcançáveis.

Enquanto houver um vigoroso processo de licitação pela concessão de uma infraestrutura, o melhor dos dois mundos será possível: não haverá desperdício de recursos com a duplicação de estruturas (algo que seria supérfluo e desnecessário) e os preços cobrados serão competitivos. Em teoria, tal sistema pode garantir que os incentivos benéficos normalmente associados à gerência privada de uma empresa (por exemplo, o fato de que proprietários privados terão interesse em controlar custos e aprimorar a eficiência como forma de maximizar seus lucros) estarão presentes.

Como funciona?

O segredo para um processo de licitação competitiva é o seguinte: a licitação para a concessão de um serviço de infraestrutura não deve ser em termos de uma soma de dinheiro a ser paga pelo direito de explora a concessão, mas sim termos dos preços que o vencedor da concessão irá cobrar e dos serviços que irá ofertar ao público em troca do privilégio de ser o ofertante exclusivo.

Se a concessão fosse meramente entregue ao licitante que ofertasse o maior preço por esse direito exclusivo, a própria concorrência entre as empresas iria jogar o valor dos lances no leilão para uma soma igual ao valor presente dos lucros futuros esperados para este mercado. E, vale lembrar, os lucros futuros esperados seriam lucros de monopólio.

Tal processo de licitação iria apenas transferir os lucros monopolistas do vencedor da concessão para o governo. E, no final, os consumidores ainda pagariam preços monopolistas pelos serviços.

Em vez disso, um leilão deve ser feito de maneira que a concessão seja entregue ao licitante que prometer a melhor combinação entre preço e qualidade para os consumidores. Neste caso, a concorrência iria derrubar os preços cobrados pelos serviços. Para cada nível de qualidade exigido haveria um preço. E este seria sempre o menor possível.

No entanto, a teoria nem sempre vira realidade. Com efeito, vários estudiosos do assunto já manifestaram suas ressalvas quanto a este processo de licitação. Uma das preocupações está relacionada ao próprio formato do processo.

Selecionar um vencedor (isto é, determinar uma estrutura ótima de preços e de combinação de serviços) pode ser algo extremamente complexo e subjetivo, e não há nenhuma garantia de que o processo de licitação será realmente competitivo. Por exemplo, quando um prazo de concessão estiver próximo do fim, outras empresas podem se mostrar relutantes a participar do novo processo de licitação se a concessionária atual também estiver participando do leilão, pois esta certamente estará mais bem informada do que suas rivais quanto aos verdadeiros custos e à real demanda do mercado.

Outra preocupação está relacionada ao comportamento do vencedor da concessão durante a vigência de seu contrato. Se o contrato for para um prazo razoavelmente longo, será necessário que haja alguma fórmula que permita alterações nas tarifas cobradas à medida que o custo, a demanda e a tecnologia mudem ao longo do tempo — em última instância, renegociações de tarifa devem ser permitidas.

O arranjo em que há uma fórmula é preferível; porém, se ele for impraticável e optar-se pela renegociação, então sugere-se que uma empresa privada — uma empresa de auditoria e contabilidade, por exemplo — seja escolhida para auditar a concessionária e confirmar se os termos do contrato estão sendo observados. A escolha desta empresa de auditoria também pode ocorrer por meio do mesmo processo de licitação: aquela que ofertar o menor preço pelo serviço de auditoria, ganha. E, desnecessário dizer, tal empresa terá todo o interesse em ser imparcial: afinal, trata-se de uma empresa privada que opera no mercado, e zelar por sua reputação é extremamente importante.

Outros problemas podem surgir à medida que o fim do contrato vai se aproximando e a atual concessionária não tiver interesse em participar do novo processo de licitação: sendo assim, ela poderá reduzir suas operações de manutenção e deixar de investir em novos ativos, deixando para a próxima empresa a tarefa de lidar com os problemas resultantes.

Todos estes problemas são importantes, mas não são insolúveis. As variáveis realmente cruciais são o grau de complexidade tecnológica e a rapidez em que ocorrem mudanças tecnológicas nos setores concessionados. Selecionar um licitante pode ser difícil em uma área em que a tecnologia criou incontáveis opções de serviços potenciais. Já em uma área em que é possível especificar um limitado número de serviços, bem como seu padrão, selecionar uma concessionária por meio do processo de licitação aqui defendido não traz dificuldade alguma.

E naqueles setores em que o ritmo das mudanças tecnológicas não é muito rápido, é fácil concordar com algum tipo de fórmula que governe alterações nas tarifas, de modo que uma renegociação dos termos do contrato durante a vigência do contrato nunca seja necessária.

Conclusão

Este arranjo que envolve licitação competitiva, especificação antecipada de preços e de tipo de serviço ofertado, e auditoria privada em caso de renegociação de contrato é capaz de gerar o melhor dos dois mundos: a empresa vencedora da licitação poderá explorar todas as possíveis economias de escala na oferta de seus serviços ao mesmo tempo em que os preços cobrados, que foram determinados em um processo concorrencial, serão os menores possíveis. Isso impede que a empresa vencedora da concessão utilize sua posição privilegiada para cobrar preços abusivos e ofertar serviços ruins. Mais ainda: o arranjo faz com que as empresas tenham de controlar seus custos eficientemente caso queiram maximizar seus lucros.

Para criar incentivos adicionais para que os detentores das concessões aprimorem continuamente a qualidade dos serviços, os contratos podem estipular que a concessionária faça uma espécie de depósito-caução, o qual seria dado à agência de auditoria caso a concessionária violasse os termos da concessão.

Uma vez em prática, a concessionária teria todos os incentivos para agressivamente cortar seus custos e adotar novas tecnologias, pois cada centavo economizado representa um centavo de lucro. Se os proprietários da empresa não atentarem para o controle de custos, os lucros da empresa cairão, o valor de suas ações despencará e a empresa passará a ser o alvo favorito de uma aquisição por outros proprietários mais bem capacitados e ansiosos para auferir os ganhos resultantes de uma troca de gerência.

São várias as nações do globo que enfrentam problemas dantescos de infraestrutura. Para solucioná-los, métodos testados e aprovados de oferta privada destes serviços devem ser adotados. Serviços de infraestrutura ofertados por franquias privadas, quando corretamente especificados e auditados, são a chave para a melhoria deste setor. E o que é melhor: a um preço baixo e sem grandes pirotecnias.

Por: Steve Hanke é professor de Economia Aplicada e co-diretor do Institute for Applied Economics, Global Health, and the Study of Business Enterprise da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, EUA. O Professor Hanke também é membro sênior do Cato Institute em Washington, D.C.; professor eminente da Universitas Pelita Harapan em Jacarta, Indonésia; conselheiro sênior do Instituto Internacional de Pesquisa Monetária da Universidade da China, em Pequim; conselheiro especial do Center for Financial Stability, de Nova York; membro do Comitê Consultivo Internacional do Banco Central do Kuwait; membro do Conselho Consultivo Financeiro dos Emirados Árabes Unidos; e articulista da Revista Globe Asia.