sábado, 6 de julho de 2013

AMESTRANDO PROLETÁRIOS

O conhecimento verdadeiro não tem cor, sexo ou classe. E, quando tem, então não é conhecimento verdadeiro.


O problema do pensamento politicamente correto é que ele nada tem de correto. Pior: na ânsia de impedir qualquer ofensa a grupos ou minorias, ele converte-se na mais grotesca ofensa que existe para esses grupos ou minorias.

A revista alemã "Der Spiegel" relata um caso que merece partilha: parece que a Universidade Livre de Berlim decidiu publicar um guia interno para que os alunos de famílias proletárias possam ser mais facilmente integrados na vida acadêmica. E que nos diz o guia?

Coisas sensatas. Primeiro, informa os estudantes da instituição que os coleguinhas proletários não se sentem naturalmente confortáveis em ambientes não proletários.

Mas o guia vai mais longe e exorta os alunos de classe média a gerar o ambiente ideal para que os coleguinhas proletários se sintam em casa. Como? Por exemplo, aconselhando a classe média a não criticar ou ridicularizar nenhuma afirmação dos coleguinhas proletários.

Para os autores do guia, os alunos proletários são como certas espécies zoológicas que é necessário proteger em "habitat" adequado. E isso implica não os assustar e, logicamente, não os alimentar com doses arcaicas de conhecimento "burguês" e "reacionário".

Como é evidente, o pensamento politicamente correto das patrulhas parte de duas ideias profundamente ofensivas.

A primeira ideia é a defesa explícita de que alunos de famílias proletárias estranham e definham em ambientes eruditos. Sim, seria possível fazer uma lista de intelectuais gerados pelo proletariado --de Jack London a D.H. Lawrence-- que marcaram a história da cultura ocidental.

As patrulhas politicamente corretas não conhecem essa lista. Preferem a caricatura do filho do operário fabril que só consegue ser feliz e "autêntico" no meio da fuligem. Livros, para ele, dão soneira. Ou coceira, tanto faz.

Mas é a segunda recomendação que impressiona pela sua evidente discriminação. Para as patrulhas, sempre que um aluno proletário abre a boca, é preciso ser condescendente para escutar as alarvidades que ele diz.

A universidade não é uma universidade, com a missão de corrigir erros e procurar algum conhecimento válido para todos. A universidade é uma grande encenação --ou, melhor ainda, uma sessão coletiva de terapia onde ninguém está certo (ou errado) porque todos estão certos (ou errados).

O que o pensamento politicamente correto produz não é difícil de imaginar: a perpetuação do estigma de alunos proletários e a impossibilidade de eles aprenderem alguma coisa (na universidade) para ascenderem social e economicamente (na vida profissional).

Quando se sai da universidade exatamente como se entrou, é preciso perguntar que mecanismo de atraso explica o resultado. Ironia: o atraso é promovido por aqueles que imaginam lutar contra ele.

Depois de críticas severas da imprensa alemã, o guia da Universidade Livre de Berlim foi retirado para "reformulação". Mas ele deveria ensinar duas lições preciosas aos fanáticos do pensamento politicamente correto.

Para começar, ele ensina como é tirânico falar em nome de grupos inteiros. Porque não existem grupos inteiros. O proletariado não existe. Os negros não existem. Os gays, as mulheres, os anões não existem.

O que existe são indivíduos diversos, com histórias ou interesses diversos. Haverá proletários que não gostam de livros. Haverá proletários que não vivem sem eles.

E haverá burgueses, genuínos burgueses, para quem ler, escrever e pensar são formas medievais de tortura. Conheço vários.

A caricatura do "proletário" como um jumento apedeuta diz mais sobre as patrulhas politicamente corretas do que sobre o proletariado que elas julgam defender.

Por último, respeitar as pessoas não significa tratá-las como crianças. Ou como velhos dementes a quem sorrimos e aplaudimos sempre que eles tentam vestir as cuecas pela cabeça.

O conhecimento verdadeiro não tem cor, sexo ou classe. E, quando tem, então não é conhecimento verdadeiro.

Um guia decente para uma universidade decente só precisava de duas mensagens: "bem-vindo" e "mostra o que vales". Nada mais.

Por: João Pereira Coutinho, português, é escritor e doutor em ciência política.

Publicado no jornal Folha de São Paulo.

O PREFEITO ESTÁ NU


Seguindo as recentes manifestações que começaram como um protesto contra o aumento de 20 centavos na tarifa do ônibus em São Paulo, mas que acabaram sendo um protesto contra tudo que tem revoltado os brasileiros, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad propôs aumentar os impostos da gasolina — que já são mais de 53% — para fazer com que este aumento de arrecadação cubra a diminuição do preço da passagem de ônibus; "o dono de carro de São Paulo subsidiaria o transporte público de sua cidade" é o que pretende seu plano.

É este o pensamento político predominante hoje em dia.

Veja bem o que Haddad está dizendo. Ele deseja algo ("diminuir o preço da passagem de ônibus"), portanto as pessoas deveriam ser forçadas a dar isto a ele. (Em nenhum momento se vislumbra a ideia de como o livre mercado poderia alcançar este resultado pacificamente. Pense em quantos bens de consumo o mercado mesmo obstruído pelo governo tornou universal e acessível mesmo para os mais pobres.)

Se eu ou você reivindicássemos isso em nossas vidas privadas, seríamos considerados bruscos. E se empreendêssemos ações concretas para conseguir estes objetivos, seríamos presos por roubo ou extorsão, merecidamente.

Por que as regras normais e sensatas da moralidade não se aplicam a prefeitos e outros ocupantes de cargos públicos? Obviamente isto é um absurdo. Como pode um subconjunto de seres humanos possuir direitos e poderes que não são possuídos por todos?

Quando éramos crianças, todos nós fomos ensinados a não bater nos outros, não pegar o que é dos outros sem permissão e a não quebrar nossas promessas. Se precisamos da cooperação de outras pessoas, o que se espera é que recorramos a persuasão. O uso da força é proibido. Estes são princípios consistentes que sustentam toda sociedade decente, e espera-se que sigamos estes princípios quando nos tornamos adultos. Na verdade, tanto a lei criminal quanto o direito civil incorporam estes princípios em suas proibições de assassinatos, assaltos, roubos, furtos e quebras de contratos.

Porém, quando um politico defende que se obrigue as pessoas a seguir seus grandes planos, as regras normais são suspensas e substituídas por regras diferentes. No mundo político, pessoas que nunca importunaram ninguém podem ser coagidas a participar de um esquema de um político por nenhum motivo. A única coisa que alegam é que o esquema não iria funcionar se não contasse com a participação de todos.

Bem, desculpem-me, mas esta justificativa não basta.

E o fato de que apenas levantar esta questão soa como algo tão estranho nos mostra o quanto a política está distante da moralidade normal. Numa sociedade educada, simplesmente não se costuma comparar um político com um criminoso comum. Mas pense a respeito. Imagine que Haddad fosse seu vizinho e ele bolasse um plano para uma associação comunitária que fosse prover diversos serviços, incluindo passagem de ônibus com desconto. "Meu plano não irá funcionar a menos que todos participem", ele diz. Então ele ameaça todos que se recusarem a participar. O que você iria pensar deste homem? Se ele exigisse seu dinheiro sob a mira de um revólver, você chamaria a polícia, não?

Política, força e moralidade

Então porque esta exceção moral para prefeitos? Força agressiva é força agressiva. Será que importa quem aplica a força? O fato é que aquele que se recusa a participar de um programa do governo — previdência social, saúde pública, transporte subsidiado ou gratuito — não importunou ninguém. Ele não coagiu ninguém. Ele simplesmente cuidou da própria vida. Portanto, o governo deveria deixa-lo em paz. O princípio "viva e deixe viver" parecia ser levado mais em conta antigamente. Mas agora parece estar quase que completamente em desuso. Ninguém quer encarar este problema. De onde os funcionários públicos tiram a autoridade para compelir pessoas pacíficas a financiar e participar de seus programas sociais? Alguém poderia responder que a autoridade vem do próprio povo. Mas como? Já vimos que nem eu e nem você temos autoridade para iniciar agressão contra outros. Se nós ainda assim fizermos isso, somos criminosos. Então como todos nós juntos podemos ter tal autoridade? Não podemos.

Os direitos do todo não podem ser maiores que a soma dos direitos de suas partes. Frédéric Bastiat escreveu emA lei,


Se cada homem tem o direito de defender — até mesmo pela força — sua pessoa, sua liberdade e sua propriedade, então os demais homens têm o direito de se concertarem, de se entenderem e de organizarem uma força comum para proteger constantemente esse direito.
O direito coletivo tem, pois, seu princípio, sua razão de ser, sua legitimidade, no direito individual. E a força comum, racionalmente, não pode ter outra finalidade, outra missão que não a de proteger as forças isoladas que ela substitui. 
Assim, da mesma forma que a força de um indivíduo não pode, legitimamente, atentar contra a pessoa, a liberdade, a propriedade de outro indivíduo, pela mesma razão a força comum não pode ser legitimamente usada para destruir a pessoa, a liberdade, a propriedade dos indivíduos ou dos grupos.

Ninguém conseguiu até hoje refutar o argumento de Bastiat. Não existe refutação para isso. Além disso, este princípio é uma ideia que forjou a liberdade norte-americana, e, consequentemente, do resto do mundo. Foi o que Thomas Jefferson quis dizer quando escreveu que "todos os homens são criados iguais" na Declaração da Independência americana. Com certeza ele não quis dizer que as pessoas são iguais em inteligência, talento, disposição, ambição, força física etc. E ele não poderia querer dizer simplesmente que eles deveriam ser iguais perante a lei, porque seria muito primário; podemos imaginar uma sociedade em que a lei trate todos muito mal, porém, igualmente mal. Mesmo a igualdade de liberdade não representa o que Jefferson quis dizer, porque existiram sociedades em que praticamente todos possuíam uma pequena e igual porção de liberdade.

Não precisa haver nenhuma dúvida sobre o que Jefferson quis dizer. Roderick Long nos lembra que Jefferson pegou emprestado a filosofia da Declaração de John Locke, o qual era bastante claro sobre o que ele queria dizer por igualdade. Em seu Segundo Tratado sobre o Governo, Locke diz que igualdade é um estado


onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a jurisdição, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem aindaser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição. . . .[ênfases inseridas]

Locke prossegue para elaborar o que Long chama de "igualdade de autoridade":


[S]endo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus bens. . . . Dotados de faculdades similares, dividindo tudo em uma única comunidade da natureza, não se pode conceber que exista entre nós uma "hierarquia" que nos autorizaria a nos destruir uns aos outros, como se tivéssemos sido feitos para servir de instrumento às necessidades uns dos outros, da mesma maneira que as ordens inferiores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas.

Portanto, se Fernando Haddad, cidadão privado, não pode legitimamente forçar você e eu a pagar pela passagem de ônibus de outra pessoa quando compramos gasolina para nós, o prefeito Fernando Haddad também não pode — mesmo se 99,99% das pessoas apoiasse a ideia. A moralidade não é apropriadamente determinada pela regra da maioria.

As pessoas permitiram que suas liberdades fossem retiradas porque não conseguiram seguir o senso comum e a lógica simples. Negligenciaram o fato de que políticos não podem ter nenhum poder que indivíduos privados não possuam. Engoliram a propaganda de que todas as pessoas foram criadas iguais, mas que algumas são mais iguais que outras. O povo se tornou os súditos que tinham medo de contar ao Rei que ele estava sem roupa com receio de serem considerados estúpidos. E os políticos têm toda a intenção de nos explorar desta mesma forma.

Onde está o corajoso garoto que gritou que o Rei estava nu?

O texto foi levemente adaptado apenas substituindo o nome do político (Hillary Clinton) e a intervenção (saúde pública).

Por: Sheldon Richman é vice presidente da The Future of Freedom Foundation e editor da revista mensal Future of Freedom.Durante 15 anos foi o editor da The Freeman, publicada pela Foundation for Economic Education.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

'DILMA E SEUS GOVERNOS"

Dilma Rousseff é caso único na História do Brasil. Já iniciou, em apenas sete meses, três vezes o seu governo. Em janeiro assumiu a Presidência. Parecia que a sua gestão iria começar. Ledo engano. Veio a crise em maio – caso Palocci – e ela rearranjou o núcleo duro do poder. Seus entusiastas saudaram a mudança e espalharam aos quatro ventos que, naquele momento, iria efetivamente dar início ao seu governo. Mera ilusão. Veio nova crise em junho, esta no Ministério dos Transportes. Seguiram-se demissões de altos funcionários – ontem já chegaram a 27. Em seguida, foi anunciado que agora – agora mesmo – é que iria começar a sua Presidência. Será?


No país das Polianas, sempre encontramos justificativas para o injustificável. Os defensores, meio que envergonhados da presidente, argumentam que ela recebeu uma herança maldita. Mas não foi essa “herança” que a elegeu presidente? Não permaneceu cinco anos na Casa Civil participando e organizando essa “herança”? Herança, como é sabido, é algo recebido de outrem. Não é o caso. A então ministra da Casa Civil foi uma participante ativa na organização da base partidária que sustenta o governo no Congresso Nacional. Tinha e tem absoluta ciência do que representam essas alianças para o erário.

Fingir indignação, falar em limpeza – quando o vocabulário doméstico invade a política, é sinal de pobreza ideológica -, dizer que agora, sempre agora, só vai aceitar indicações que tenham a ficha limpa, isso é um engodo. Quer dizer que no momento em que formou o Ministério a ficha limpa era irrelevante? Ficha limpa é para coagir aliados? E que aliados são esses que são constrangidos pelo currículo?

Os sucessivos reinícios de governo são demonstrações de falta de rumo e de liderança. O PAC não é um plano de governo. É uma junção aleatória de obras realizadas principalmente pelo governo e por empresas estatais. É um todo sem unidade alguma. Não há uma concepção de projeto nacional, nada disso. Além da falta de organicidade, os cronogramas de todas as obras estão atrasados. O governo não consegue realizar, de forma eficaz, nenhum empreendimento. Quando algo chama a atenção, não é por seu efeito para o desenvolvimento do País. Muito ao contrário. É por gasto excessivo, desvio de recursos, inutilidade da obra ou atraso no prazo de entrega. E, algumas vezes, é uma cruel somatória desses quatro fatores.

O País está sem rumo. Mantém indicadores razoáveis no campo econômico, contudo muito abaixo das nossas potencialidades. Basta lembrar que neste ano a taxa de crescimento será a mais baixa entre os países da América do Sul (não estamos falando de China, Índia ou Coreia do Sul, mas de Paraguai, Equador e Peru). A economia ainda é movida pelo que foi estruturado durante os primeiros anos do Plano Real e por medidas adotadas em 2009, ante a crise internacional.

A falta de liderança é evidente. Os últimos quatro meses foram de abalos permanentes. E nos primeiros cem dias a presidente teve uma trégua. Foi elogiada até pelo que não fez. Politicamente, o ano começou em abril e, de lá para cá, o governo toda semana foi tendo algum tipo de problema. Ora no relacionamento com a base, ora no cotidiano administrativo. O problema central é que Dilma não se conseguiu firmar como liderança com vida própria. É vista pelos líderes da base como alguém que deve ser suportada até o retorno de Lula. A questão – para eles – é aguentar a destemperança presidencial. Claro que o preço compensa. Porém a rispidez e os gritos da presidente revelam que ela própria sabe que não é levada a sério. Vez por outra, o passado deve rondar os pensamentos da presidente. Ela, em alguns momentos, exige uma obediência ao estilo do velho “centralismo democrático” leninista. Sonha com Trotsky, Bukharin e Kamenev, mas convive com Collor, Sarney e Renan.

Nas crises que enfrentou, não conseguiu encontrar solução razoável. Ao contrário, desarrumou a articulação existente e foi incapaz de substituí-la por algo mais eficiente. Deixou rastros de insatisfação e desejos de vingança. A trapalhada com o PR e a demora em resolver de vez as denúncias são mais evidências da falta de capacidade política. Criou na Esplanada dos Ministérios a versão petista do “onde está Wally?”. Agora o jogo é adivinhar, entre mais de três dúzias de ministros, quem será o próximo a cair em desgraça. Algo meio stalinista (é o passado novamente?). Com tanto estardalhaço, Dilma nem acabou com a corrupção nem conseguiu fazer a máquina governamental funcionar. E quem perde é o País.

A cada fracasso de Dilma, mais cresce o clamor da base (e do PT, principalmente) para o retorno de Lula. Difícil acreditar que o criador não imaginasse como seria o governo da sua criatura. Pode ter sido uma jogada de mestre. Respeitou a Constituição (não patrocinando o terceiro mandato), impôs uma candidatura-poste, venceu com o seu prestígio a eleição e será chamado cada vez mais para apagar incêndios. Ou seja, a possibilidade de ser passado para trás é nula. Dessa forma, transformou-se no personagem fundamental para manter a estabilidade da aliança do grande capital nacional e estrangeiro, fundos de pensão das estatais, políticos corruptos e oportunistas de toda ordem. É também o único que consegue fazer a articulação com o andar de baixo, dando legitimidade ao projeto antinacional. Sem ele, tudo desmorona.

Dilma vai administrando (e mal) o cotidiano. A fantasia de excelente gestora, envergada no governo Lula e na campanha presidencial, revelou-se um figurino de péssima qualidade. Como nos velhos sambas, a quarta-feira já chegou. Um pouco cedo, é verdade. O carnaval mal começou. E dos quatro dias de folia, nem acabou o primeiro. Por: Marco Antonio Villa

quinta-feira, 4 de julho de 2013

O PIBINHO AMERICANO

Os números do PIB americano trouxeram um pouco de bom-senso aos espíritos dos mais afobados


A imprensa brasileira tem usado a expressão "pibinho" para descrever -e ridicularizar- o nosso crescimento econômico na era Dilma. Muito dessa expressão representa uma reação bem brasileira ao eterno excesso de otimismo do ministro da Fazenda ao falar sobre o futuro da economia.

Pois a divulgação final dos números do crescimento nos Estados Unidos, no primeiro trimestre do ano, foi recebida com o mesmo sentimento de frustração pelos mercados financeiros. Esperava-se um aumento do PIB da ordem de 2,4% ao ano e o número final foi de apenas 1,8% ao ano, um verdadeiro "pibinho".

Na métrica usada pelo IBGE no Brasil, teríamos na maior economia do mundo, nestes primeiros três meses do ano, um crescimento de 0,45%, ante 0,60% no Brasil.

Mas é importante entender que os EUA vivem uma dinâmica econômica bastante diferente da brasileira e, nessas condições, comparar taxas de crescimento pode levar a conclusões erradas e perigosas.

No Brasil, a dificuldade de crescer vem principalmente do esgotamento de um ciclo criado pela ocupação de espaços ociosos de oferta na economia, em resposta principalmente a estímulos fiscais e de crédito criados pelo governo.

Nos Estados Unidos, ainda é muito grande a ociosidade em partes importantes do tecido econômico, principalmente no mercado de trabalho e no sistema bancário, e por isso a economia vem trabalhando bem abaixo de seu potencial.

Por outro lado, a política fiscal nesta primeira metade do ano tem sido um fator de contração da demanda, com uma redução importante do deficit das contas públicas.

A atividade econômica, medida apenas no setor privado da economia, cresceu nestes primeiros três meses do ano a uma taxa anual bem mais elevada (2,75%). Ou seja, a política fiscal de ajuste do deficit orçamentário, depois de vários anos de política fiscal expansionista anticíclica, está reduzindo em mais de 1% ao ano o crescimento americano em 2013.

Mesmo com esse freio funcionando deliberadamente, a economia já se encontra em uma fase inicial de recuperação do crescimento, depois de mais de cinco anos de crise financeira. Um fato que deve ser comemorado por todos os países, desenvolvidos ou emergentes, com entusiasmo.

Foi nesse ambiente de retomada de um crescimento sustentado que o Federal Reserve, o banco central dos EUA, comunicou ao mercado que começaria a normalizar a política monetária até o fim de 2013.

Em entrevista logo após a reunião do Fomc -equivalente ao nosso Copom-, o presidente do Fed descreveu uma agenda muito cuidadosa e cheia de qualificações dos próximos passos na direção de uma política monetária clássica.

Claramente ele temia uma reação exagerada dos mercados e que uma alta nos juros americanos, muito acima da desejada pela autoridade monetária, poderia abortar essa recuperação.

Apesar do cuidado de suas palavras, essa decisão provocou um abalo importante nos negócios financeiros pelo mundo afora. Os juros dos títulos do Tesouro americano de dez anos de prazo --que já vinham aumentando em razão das expectativas-- deram um pulo de mais de 0,5 ponto percentual, arrastando nesse movimento as Bolsas de Valores no mundo todo e as moedas dos países emergentes.

Na rudimentar opinião dos mercados, uma normalização dos juros nos EUA vai fazer com que a maior parte do dinheiro que circula hoje em países como o Brasil volte correndo para Wall Street, deixando à míngua essas economias.

Mas números do PIB norte-americano, divulgados anteontem, trouxeram um pouco de bom-senso aos espíritos dos mais afobados ao mostrar que a tão cantada normalização dos juros vai ter que esperar dias melhores na maior economia do mundo.

Com isso, certa calma voltou aos mercados emergentes, com queda nos juros, fortalecimento das moedas desses países e uma tímida recuperação dos preços das ações.

Minha expectativa é que nas próximas semanas essa percepção de que o dia do ajuste final só ocorrerá em 2014 consolide esse movimento de recuperação dos mercados emergentes.
Por: Luiz Carlos Mendonça de Barros Folha de SP

quarta-feira, 3 de julho de 2013

O GOLPE DO PT

É claro que a reforma política é fundamental para avançarmos no processo democrático, e não é à toa que há anos buscam-se fórmulas para aperfeiçoar nosso sistema político-partidário, responsável principal pelas distorções na atividade política.


Quando os manifestantes nas ruas dizem que não se sentem representados pelos partidos políticos, e criticam a defasagem entre representante e representado, estão falando principalmente da reforma política.

Mas há apenas uma razão para que o tema tenha se tornado o centro dos debates: uma manobra diversionista do governo para tentar assumir o comando da situação, transferindo para o Congresso a maior parte da culpa pela situação que as manifestações criticam.

O governo prefere apresentar o plebiscito sobre a reforma política como a solução para todos os males do país e insistir em que as eventuais novas regras passem já a valer na eleição de 2014, mesmo sabendo que dificilmente haverá condições de ser realizado a tempo, se não pela dificuldade de se chegar a um consenso sobre sua montagem, no mínimo por questões de logística.

A presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Ministra Cármen Lúcia, convocou para terça-feira uma reunião com todos os presidentes dos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) para começar a organizar a logística para um possível plebiscito.

Ao mesmo tempo, a diretoria de Tecnologia do TSE já começou a estudar qual a maneira mais rápida de montar uma consulta popular nas urnas eletrônicas. Só depois dessas reuniões, o TSE terá condições de estimar o tempo previsto para implementar o plebiscito, e até mesmo sua viabilidade, já que o sistema binário (de sim ou não) pode não ser suficiente para a definição de temas tão complexos quanto o sistema eleitoral e partidário.

Mas já há movimentos dentro do governo no sentido de que o prazo mínimo de um ano para mudanças nas regras eleitorais, definido pela Constituição, seja reduzido se assim o povo decidir no plebiscito. Ora, isso é uma tentativa de golpe antidemocrático que pode abrir caminho para outras decisões através de consultas populares, transformando- nos em um arremedo de república bolivariana.

A questão certamente acabará no Supremo, por inconstitucional.

A insistência na pressa tem boas razões. O sonho de consumo do PT seria mudar as regras do jogo com a aprovação das candidaturas em listas fechadas, em que o eleitor vota apenas na legenda, enquanto a direção partidária indica os candidatos eleitos.

Como o partido com maior apelo de legenda, o PT teoricamente seria o de maior votação.

Mas, se as mudanças não acontecerem dentro do cronograma estabelecido pelo Palácio do Planalto, será fácil culpar o Congresso pela inviabilização da reforma política, ou o TSE.

Já no 3º Congresso do PT, em 2007, o documento final - que Reinaldo Azevedo, da "Veja", desencavou - defende exatamente os pontos anunciados pela presidente Dilma em seu discurso diante dos governadores e prefeitos.

Ela própria admitiu que gostaria que do plebiscito saíssem o voto em lista e o financiamento público de campanha. Até mesmo a Constituinte exclusiva, que acabou sendo abortada, está entre as reivindicações do PT desde 2007. "Para que isso seja possível, a reforma política deve assumir um estatuto de movimento e luta social, ganhando as ruas com um sentido de conquista e ampliação de direitos políticos e democráticos", diz o documento do PT.

Para os petistas, "a reforma política não pode ser um debate restrito ao Congresso Nacional, que já demonstrou ser incapaz de aprovar medidas que prejudiquem os interesses estabelecidos dos seus integrantes".

A ideia de levar a reforma para uma Constituinte exclusiva tem como objetivo impedir que "setores conservadores" do Congresso introduzam medidas como o voto distrital e o voto facultativo, "de sentido claramente conservador", segundo o PT.

De acordo com o mesmo documento, "a implantação, no Brasil, do financiamento público exclusivo de campanhas, combinado com o voto em listas preordenadas, permitirá contemplar a representação de gênero, raça e etnia".

Portanto, a presidente Dilma está fazendo nada menos que o jogo do seu partido político, com o agravante de ser candidata à Presidência da República na eleição cujas regras pretende alterar.
Por: Merval Pereira O Globo

terça-feira, 2 de julho de 2013

DEMOFOBIA EM MARCHA

Norberto Bobbio, em artigo muito lúcido, mostra que a democracia surge dos choques entre a praça e o palácio. Ele cita Guicciardini: "Entre o palácio e a praça existe uma densa névoa ou um muro tão grande que pouco sabe o povo sobre o que fazemos governantes e por que o fazem, como se o assunto dos dirigentes fosse algo feito na Índia". Atualizando a reflexão, Bobbio adianta que ainda não contamos com uma eficaz sociologia da praça.

Manifestações de rua significam a multidão de pessoas indignadas com os palácios. A praça reúne muitos indivíduos, a sua forma aberta permite livres discussões. Quem para ela se dirige tem alvo comum: reivindicar direitos, ouvir líderes. "Na democracia representativa (...) a praça é amais visível consequência do direito de reunião ilimitado quanto ao número de pessoas que possam exercitá-lo juntas e ao mesmo tempo" (Bobbio). Finaliza o pensador: "Palácio e praça são expressões polêmicas para designar, respectivamente, governantes e governados, sobretudo o seu relacionamento de incompreensão recíproca,estranheza, rivalidade, ainda hoje como no trecho de Guicciardini. (...)Vista do palácio a praça é o lugar da liberdade licenciosa; visto da praça o palácio é o lugar do poder arbitrário. Se caia praça, o palácio também é destinado a cair" (Il Palazzo e la Piazza).

No ofício de analisar as formas de atuação coletiva, leio com frequência políticos, colegas da universidade, estudantes, sindicalistas, profissionais da imprensa. Fiquei preocupado com as visões da praça expressas em várias entrevistas e textos. O foco dado à baderna e ao vandalismo diminuiu muito a percepção do importante fenômeno. Terra onde o Estado domina a sociedade e se põe a serviço de setores diminutos nas políticas públicas, o Brasil demonstra, desde sua origem histórica, a demofobia que preside o absolutismo. A certidão política de batismo vem do século 16, quando a razão de Estado está no auge. Para os governantes e intelectuais que defendem a razão estatal, o mundo divide-se, como expõe Guicciardini, citado por Bobbio, entre quem merece respeito, porque vive nos palácios, e a plebe que habita a praça. Tal assimetria estabelece uma divisão na ordem coletiva (acima os dirigentes, abaixo os "cidadãos comuns"). Ela é a marca dos Estados que ainda não conhecem os efeitos das revoluções democráticas. Neles a multidão dos que pagam impostos obedece sem questionar. E quem controla os impostos manda sem prestar contas. A força democrática de um país é medida pelo vigor, nele, da prática cunhada pelos revolucionários ingleses, a accountability. As revoluções modernas ensinaram aos soberanos lições básicas de responsabilidade.

Os conservadores atacam os "simples cidadãos", neles vendo ameaças ao poder estabelecido. Eles exorcizam o "perigo" representado pela soberania popular. Sempre que o elo político é invocado, do Renascimento ao século 21, o povo,com seus conflitos, é posto fora dos escalões estatais porque, na lição platônica, ele segue o contrário da harmonia. François Hotmann, jurista e autor do tratado intitulado Franco Galia, teme o Her omnes (Senhor Todo Mundo), apelido dado por Lutero à massa. Os documentos gerados na literatura grega ou romana mostram desconfiança no povo.Este,para os latinos, é o "populo exturbato ex profugo", o "vulgus credulum, imprudens vel impudens, stolidum", etc. (Zvi Yavetz:La Plèbe et le Prince). "O povo", diz Etienne de la Boétie, "não tem meios para bem julgar porque é desprovido do que fornece ou confirma o bom juízo, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita nos outros. A multidão acredita mais nas pessoas do que nas coisas, ela é persuadida pela autoridade de quem fala, e não pelas razões ditas" (Mémoires touchant l'Édit de Janvier 1562).

Gabriel Naudé, teórico do maquiavelismo que norteia o governo de Mazarino, diz ser preciso cautela com a "fera de múltiplas cabeças, vagabunda, errante,louca,estulta, sem freio, sem espírito nem julgamento. O juízo do povo sempre é tolo e seu intelecto, fraco. A populaça, fera cruel, enfurece e morde com frequência. Ela odeia as coisas presentes, deseja as futuras, celebra as pretéritas, sendo inconstante,sediciosa,briguenta, famélica de boatos, inimiga do repouso e da tranquilidade". A massa, arremata, é "inferior às feras, pior do que as feras e mil vezes mais tola dos que as feras" (Considérations Politiques sur les Coups d'État).

Donoso Cortés, fonte de terríveis governos, não enxerga na pobreza a origem das massas revoltas. A inveja e o desejo de poder atravessam a praça, açulada pelos demagogos: "O germe revolucionário reside nos desejos superexcitados da multidão pelos tribunos que a exploram e beneficiam. 'Sereis como os ricos', vejam aí a fórmula das revoluções socialistas contra as classes médias. 'Sereis como os nobres', vejam aí a fórmula das revoluções das classes médias contra os nobres. 'Sereis como os reis', vejam aí a fórmula das revoluções dos nobres contra os reis".

As manifestações que abalam o Brasil seriam expressões do ressentimento invejoso conduzido por ambiciosos e delirantes.

O juízo negativo sobre a praça gerou o Brasil de Vargas, de 1964 e do AI-5. A esquerda clássica ostenta idêntica ojeriza à rua.Basta recordar a doutrina leninista sobre a "consciência vinda de fora". No Partido, máquina feita para derrubar o Estado burguês e construir a ditadura "proletária", intelectuais superiores definiriam o destino das massas. Caso contrário, Sibéria nelas.

É tempo de mudar a visão da praça. É tempo de saudar a democracia, apesar dos seus percalços.É tempo de recusar regimes plebiscitários que reduzem a praça ao monossilábico"sim", ou "não". É tempo de iniciar o diálogo democrático. A etimologia e a semântica proclamam: democracia é poder do povo, não de privilegiados e palacianos operadores do poder estatal. Se cair a praça, ensina Bobbio, tombam os palácios. E o remédio é oferecido por Donoso Cortés: a ditadura. 
Por: Roberto Romano O Estado de S. Paulo

SÓ HÁ UMA CURA: A POLÍTICA

Para os males da Polis, a política é sempre o remédio, mesmo quando é também a doença.


Só se cura a política, seja qual for o estágio da anomalia, com mais política.

A voz das ruas, em regra invocada como sintoma de rejeição à política, nada mais é que o grito primal da política.

Mesmo os que fazem da antipolítica estandarte servem-se da mais antiga e desonesta das formas de ação política: o falso moralismo. Veem o mar revolto e lançam sua rede na expectativa não de acalmá-lo, mas de fisgar alguns cardumes.

É preciso cuidado com os rufiões da revolta alheia. A antipolítica, que criminaliza a política para comandá-la, deságua sempre em ditadura -ou seja, nada mais do que a política em sua manifestação mais odiosa e atrasada.

O Brasil já viveu algumas vezes essa experiência; já cansou-se da dobradinha formada por populismo e autoritarismo, cuja consequência é viciar e desmoralizar as instituições. O Brasil sabe que por aí não há soluções, senão mais e mais problemas.

O que as ruas nos dizem é que é necessário um basta à demagogia e à desonestidade, que resultam naquilo que os protestos expressam: a má qualidade dos serviços públicos -nos transportes, na saúde, na educação, na segurança, na justiça-, a corrupção dos agentes públicos, os temores com a alta da inflação.

Não se pede revolução, mas decência.

Fala-se em insatisfação difusa. Espremendo-se, porém, os slogans, chega-se ao vilão da história: o Estado -aí compreendidos os três Poderes, que de fato merecem o que estão recebendo.

Afinal, falamos de um Congresso dissociado da vontade popular, de líderes políticos contestados por seus representados, de serviços públicos de má qualidade e de uma Justiça morosa.

O Legislativo fica sempre com a maior carga, não por ser o pior, mas o mais transparente. E é o menos problemático, já que, de quatro em quatro anos, renova sua composição nas urnas.

O Executivo renova apenas seu comando -Presidência, governos estaduais e prefeituras-, mas não seu estamento burocrático, em grande parte aparelhado pelos partidos políticos.
O Poder Judiciário, por sua vez, renova-se muito lentamente, dada a vitaliciedade dos seus cargos.

Parece-me, portanto, evidente que também este Poder tem de ouvir a voz das ruas. Não para ser reverente a gritos contingentes, mas para se submeter a seu valor permanente, que é a observância do Estado Democrático de Direito.

Enquanto os parlamentares e os chefes de executivos têm seus nomes e fotos publicados diariamente nos jornais e são apontados nas ruas, os membros do Judiciário são desconhecidos da população.

Não fosse a cobertura intensa do julgamento do processo do mensalão, aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) saborearia o anonimato.

A impunidade é a expressão mais perversa da injustiça. E não se trata de fenômeno recente. Registre-se que este debate se mantém, há mais de um século, atualíssimo.
Mudou alguma coisa? As ruas sabem que não.

A política vai mal, o povo não se sente representado pelos partidos -e isso precisa mudar. Mas, no Brasil de hoje, nenhum Poder está em condições de puxar a orelha do outro.
Não podemos, no entanto, encarar a nossa história, a nossa formação, como um fatalismo. Podemos e devemos mudar essa escrita.

O passado não existe para oprimir a nossa inteligência, mas para nos instruir rumo ao futuro, para nos advertir sobre os erros que já foram cometidos.

Todos navegam nas mesmas águas, turvas e poluídas. O saneamento requer humildade, bom senso e ação conjunta, para que o parágrafo único, do artigo 1º da Constituição -"todo o poder emana do povo"- seja honrado. Por: Kátia Abreu Folha de SP


segunda-feira, 1 de julho de 2013

QUANDO SER NAZISTA É SER DE ESQUERDA

Triste sina a da direita no Brasil – escrevia eu há oito anos. Em países mais civilizados, ser de direita é apenas não concordar com as propostas da esquerda, direito legítimo de todo cidadão. No Brasil, direita significa portar toda a infâmia do mundo. Que o diga Clóvis Rossi. Em crônica de 2005, afirmou: “É um caso de estudo para a ciência política universal. Já escrevi neste espaço uma e outra vez que o PT fez a mais radical e rápida guinada para a direita de que se tem notícia na história partidária do planeta”. 


Isto é: se o PT se revela corrupto, ele não é mais esquerda. É direita, porque só a direita é corrupta. Mesmo que o PT seja hoje o mesmo desde que nasceu, mesmo que os grandes implicados na corrupção – Genoíno, Mercadante, Zé Dirceu, Lula – sejam seus pais fundadores. Segundo Rossi, o PT guinou para a direita. E por que guinou para a direita? Porque suas falcatruas foram trazidas à tona. Permanecessem submersas, o partido continuaria sendo de esquerda. 

Há uma boa década venho falando naquilo que os franceses chamam de glissement idéologique. O conceito de esquerda sempre muda, à medida em que se corrompe. A direita é o repositório de todos os males do mundo, inclusive os das esquerdas. Pois quando as esquerdas cometem crimes – ou “erros”, como preferem seus líderes – é que não eram de esquerda, mas de direita.

Jornalista pode ser corrupto, canalha e até mesmo medíocre. Mas sempre tem espírito de síntese, ou não é jornalista. Tomei conhecimento há pouco de um vídeo antigo, de 2008, onde Mino Carta, este impoluto porta-voz oficioso do PT, revela notável espírito de síntese. Ser de esquerda, para Mino, é defender a liberdade e igualdade. Mas se o regime vira ditatura, mesmo tendo partido das melhores intenções, o regime é de extrema-direita.

Trocando em miúdos: ditadura de esquerda não existe. É o que o jornalista quis dizer mas não ousou dizer. Talvez porque tal afirmação soe um tanto pornográfica nos dias que passam. Temos então que tanto Stalin como Fidel Castro eram de direita. Segundo Clóvis Rossi, o PT também. E as esquerdas permanecem intactas no sétimo céu das intenções sublimes. 

Já o inverso é permissível. Você pode ter sido de direita a vida toda. Mas se se converte ao socialismo, vira esquerda desde criancinha. Que o diga Luís Fernando Verissimo. Em sua crônica no Estadão de hoje, comenta uma entrevista de Daniel Cohn-Bendit para o último Journal du Dimanche, sobre o que acontece no Brasil, na Turquia e o que aconteceu nas recentes "primaveras" árabes e em 68 em Paris: “Forçando um pouco a cronologia, Cohn-Bendit diz que 68 foi o preâmbulo de 81, quando a esquerda chegou ao poder na França”. E bota forçar a cronologia nisso, pois o presidente logo após 68 foi Georges Pompidou.

Refere-se a François Mitterrand, político arrivista condecorado pelo nazismo que, após ter optado pelo socialismo, virou esquerdista desde criancinha. Hoje, o episódio é pouco conhecido até mesmo pelos franceses, e já perdi alguns amigos por tê-lo relembrado. Relembro então de novo. 

Retornemos 33 anos atrás. Eu voltava da Inglaterra com uma amiga. Seriam seis da tarde. Em Paris, mal cheguei em casa, liguei a televisão. Na tela, aos poucos foi surgindo uma imagem. Começou pela testa e foi descendo, em fatias. Antes que tivesse chegado aos cílios, percebi que não era a careca de Giscard d’Estaing. O vencedor das eleições na França, naquele 10 de maio, era Mitterrand. Mesmo a imprensa internacional foi surpreendida. Havia apostado na vitória de Giscard. Só quando caminhões de champanhe começaram a abandonar o QG de Giscard, os jornalistas perceberam que a notícia estava ailleurs.

Minha amiga, gaúcha em trânsito pela Europa, apavorou-se. Confundida pela associação que a imprensa brasileira fazia entre o socialismo francês e o socialismo soviético, queria pegar passaporte e voltar ao Brasil antes que o novo governo fechasse as fronteiras. Verdade que nem só ela se confundiu. Empresários franceses empacotaram seus dinheiros e tentaram sair do país através de discretas fronteiras suíças. Medo bobo. Como bom francês, Mitterrand não iria sacrificar o bem-estar de seus conterrâneos em nome de um ideal besta. Socialismo mesmo - le vrai - a França só recomenda para o Terceiro Mundo.

A eleição de Mitterrand é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês. Defensor de uma Argélia francesa, Miterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra". 

Um golpe de imprensa empanava sua trajetória, o falso atentado nas cercanias do Luxembourg. Na noite de 15 de outubro de 59, ao sair da brasserie Lipp, Mitterrand, então senador pela Nièvre, sentiu-se perseguido por um carro. Ele faz um desvio pela avenue de l’Observatoire, pára sua 403, pula uma cerca viva e se joga de bruços na grama. Uma rajada de metralhadora é disparada sobre seu carro. No dia seguinte, o fato está na primeira página de todos os jornais, do Le Monde ao Humanité, o jornal oficial do PC francês.

Aos 43 anos, o político ambicioso vira herói. A glória é efêmera. Três dias depois, o jornal Rivarol, entrevista um dos agressores de Mitterrand, que afirma ter sido o próprio Mitterrand que encomendara o atentado, para fazer subir sua cota de popularidade. O desmonte da farsa caiu no vazio. Processado por ultraje à magistratura, após a cassação de sua imunidade parlamentar, Mitterrand será beneficiado por um non-lieu, como também seus "agressores".

Ex-colaborador de um governo pró-nazista, condecorado por este mesmo governo, mentor da guerra na Argélia e responsável pela tortura de milhares de argelinos, anticomunista ferrenho numa França que sempre nutriu simpatias pelo regime soviético, farsante vulgar capaz de forjar um atentado para ganhar votos, nada disto impediu Mitterrand de derrotar Giscard em 81, com 52,22% dos votos expressos, e de eleger-se por mais um setenato em 88.

Empunhando a bandeira do socialismo, Mitterrand, político de extração nazista e queridinho de Pétain, enganou não só os franceses como o mundo todo. Na época, também se falou em mudanças. Mudou algo na França de 1981 para cá? Estruturalmente, nada. Mudaram apenas fatores que nada têm a ver com orientação política, mas dependem da economia e imigração, como maior desemprego e avanço do islamismo. Se algo novo ocorreu na França de lá para cá foi sua adesão ao euro, mas isso nada tem a ver com socialismo ou Mitterrand.

Para Verissimo, quando opta pelo socialismo, até nazista é de esquerda.

Por: Janer Cristaldo 


domingo, 30 de junho de 2013

EXPLORAÇÃO DA MISÉRIA: SERVIÇO SOCIAL

Mais uma seca no Nordeste, e lá está a infame "indústria da seca". Em seu sentido próprio, ela designa a relação doentia entre os estados atingidos pela seca e o governo federal. A seca faz com que renda da União seja transferida para os governos dos estados afetados, supostamente para saná-la. Esses governos passam então a ter o incentivo de perpetuar a seca para garantir esse fluxo indefinido de recursos pagos pelo resto do país. Na mentalidade popular e na mídia, contudo, a "indústria da seca" adquiriu um sentido mais amplo: todos aqueles que de alguma maneira se beneficiam da existência da seca; mesmo quem vende água aos agricultores.

Vejam que crime terrível: em uma região que está desesperadoramente sem água, e que precisa dela para viver e produzir, chegam pessoas... vendendo água! E pior: o preço dessa água vendida no coração do semiárido, onde não se vê uma boa chuva há anos e onde o gado morre de sede, é maior do que o preço d'água no meio de uma cidade em que ela abunda nos mercados e via tubulação. Sórdido, né? Bem, seria sórdido se os vendedores fossem culpados pela seca que os faz lucrar. Mas não são. Na verdade, eles são parte do mecanismo de combate aos efeitos da seca.

Primeiro, o óbvio: o valor de um bem, tudo o mais constante, é maior onde ele é mais escasso. Escassez aqui não se refere à quantidade objetiva, mas à relação dessa quantidade com os desejos dos consumidores. Essa é a velha lição que Menger nos ensinou em 1871: o valor de uma unidade de um bem para um dado indivíduo (e o preço de mercado é a resultante das transações entre indivíduos guiados por suas escalas de valor) é o valor que ele atribui à necessidade menos importante que aquela unidade pode satisfazer. Do que terei de abrir mão se não tiver acesso àquela unidade do bem? Esse é o valor daquele bem para mim. No meio da cidade, perder 100 litros d'água é um pequeno inconveniente, pois o desejo que se deixa de satisfazer é pouco importante: uma pessoa toma um banho a menos, por exemplo (graças ao dinheiro, a perda d'água não precisa significar menor uso d'água; podemos comprar água extra e sacrificar o uso de algum outro bem com o mesmo preço). No meio do sertão durante a seca, é calamitoso, pois pode significar a morte prematura de um boi ou cavalo necessários à sobrevivência de uma família.

A necessidade menos importante que 100 litros d'água satisfazem no sertão é muito importante se comparada àquela que é satisfeita pelos mesmos 100 litros na cidade; por isso, o preço da água é mais alto no sertão. Isso cria uma oportunidade de lucro. Alguns empreendedores, conhecendo a situação no sertão, inferiram que os agricultores estariam dispostos a pagar mais pela água do que ela custa em outros lugares. Estavam certos, como o preço de suas vendas mostrou. Essa diferença de preços envia um sinal para os demais participantes do mercado: há relativamente pouca água chegando aos moradores do sertão. O "pouco" aí, assim como todo termo avaliativo usado em economia, não é uma medida física, e sim relativa aos desejos da população. Para quem mora mais perto de locais com água em abundância, por que não alugar um caminhão-tanque e levá-la para ser vendida no interior? Muitos já o vem fazendo; levar água para o sertão, diz a reportagem acima linkada, "virou um negócio tão rentável, que há pessoas vendendo até automóveis para comprar caminhões-tanque".

É justamente esse processo que ameniza a carestia. Os diversos agricultores que compraram a água estão melhor agora do que se não tivessem comprado e passado por um aperto ainda maior — a prova disso é que aceitaram pagar o preço cobrado. Outros fizeram o juízo contrário e não aceitaram o preço; para esses a presença dos vendedores àquele preço é indiferente. Conforme o processo se intensifica — conforme mais gente tenta lucrar bolando meios de satisfazer essa demanda por água — os problemas oriundos da seca são reduzidos, podendo, no limite, ser sanados. Sabendo que a seca é recorrente, faria sentido instalar uma operação regular de envio d'água ao sertão. Quem sabe até uma tubulação para irrigar campos? Seria uma possibilidade de empreendedorismo, se os custos não forem ainda maiores do que a receita esperada, e se o estado o permitir.

A tendência desse processo é fazer com que o preço d'água fique estável — oscile menos — no tempo e no espaço, eliminando assim as possibilidades de lucro. A diferença grande dos preços atualmente faz com que os comerciantes, buscando o lucro, levem novos caminhões-pipa ao sertão, aumentando a oferta d'água, e baixando assim seu preço. Enquanto for lucrativo levar água para lá, haverá um incentivo a se fazê-lo. Ao mesmo tempo, essa água que está sendo levada para o sertão está sendo comprada em outros lugares, onde ela é mais barata. Com o aumento de demanda, seu preço nesses lugares subirá. O negócio de comprar água na cidade e levá-la para os fazendeiros valerá a pena até que a receita conseguida com a venda da água equivalha aos gastos de se comprá-la, armazená-la e se transportá-la ao sertão corrigidos por uma taxa de desconto relativa ao tempo que essa operação demora (e, só pra não faltar nada, corrigida também por um fator de risco associado ao negócio: por exemplo, o risco do carro quebrar ou colidir no caminho).

No mundo real, mudanças ocorrem a todo o momento e todo mundo tem informações parciais e opiniões diferentes sobre o estado do mercado. Esse preço de equilíbrio mítico, portanto, nunca é alcançado, pois muda a todo instante. Se voltar a chover, os fazendeiros não estarão dispostos a pagar tão caro pela água trazida de longe, o preço dela no sertão cairá, e os donos de carro-pipa procurarão outra coisa para fazer. Sejam quais forem as condições da realidade ou quão rápidas suas mudanças, o processo de mercado, ou seja, a organização da produção via preços definidos pela escassez relativa dos diversos bens na estimação dos consumidores, está sempre gerando as informações e os incentivos para que as demandas dos consumidores sejam atendidas da forma mais eficiente possível.

Pelo preço atual, vale a pena levar água de carro ao sertão; mas provavelmente não vale a pena ser um fazendeiro tendo que pagar o preço dessa água; sua fazenda fica deficitária. Conforme o processo de mercado faça os preços caírem, talvez a atividade agrícola torne-se lucrativa. Por outro lado, é também possível que os custos envolvidos nesse transporte superem o valor que permitiria aos fazendeiros ter uma lavoura ou pecuária lucrativas. Se esse for o caso, qual a solução?

De duas, uma: ou a lavoura dos fazendeiros, embora deficitária nas épocas de seca, ainda é, no longo prazo (levando também em conta as épocas de chuva), lucrativa. Nesse caso, vale a pena enfrentar a seca e esperar a bonança voltar. Ou então a agricultura deles é deficitária no longo prazo, e daí a melhor opção é abandonar o investimento e procurar outra maneira de se sustentar. É essa a escolha que fizeram e fazem os retirantes nordestinos que vão às grandes cidades em busca de trabalho.

Se essa hipótese se comprovar, então os produtos que os agricultores do semiárido produzem não pagam os custos da água (e demais insumos) de que eles precisam. Em outras palavras, a demanda pelo produto desses insumos nessa linha de produção é menor do que a demanda pelos produtos que esses insumos poderiam produzir em outras linhas de produção — e é por isso mesmo que eles custam caro. O benefício da água talvez não justifique os custos de transportá-la, ou talvez justifique. Provavelmente justificará para uns e não para outros. Felizmente, essa decisão cabe apenas aos envolvidos nessas trocas, e apenas no que diz respeito a suas propriedades. Os preços servem como indicadores e incentivos nessa tomada de decisão.

As falhas da alternativa estatal

É aí que a verdadeira indústria da seca — a estatal — entra em jogo. E vem para atrapalhar o processo. O estado mantém os agricultores sob a eterna promessa de que trará água de graça ou subsidiada, destinando bilhões de reais para sustentar empreendimentos caríssimos, quando talvez a melhor solução para muitos deles fosse fazer o que tantos outros já fizeram: deixar a região. O custo de se criar animais em zonas secas pode ser proibitivo. Qual é o intuito em se manter gente lá especificamente para esse fim, sendo que isso requer desviar recursos que poderiam ser destinados a outros fins, produzindo bens e serviços demandados com mais urgência?

Em épocas remotas, quando a produtividade humana dentro e fora das fazendas era baixa, valia a pena ter um roçado no meio do semiárido (e talvez ele fosse menos árido? Mudanças no clima geram mudanças econômicas). Hoje em dia, com o aumento da produtividade do trabalho e da agricultura moderna, ficar no antigo roçado é uma decisão que pode valer a pena do ponto de vista afetivo e sentimental (ou seja, como opção de consumo, e não de investimento), mas que certamente terá custos pesados para o nível de consumo de outros bens desses agricultores. E não há nada de errado nisso, se for o que elas quiserem. Mas também não é razoável que o resto da sociedade tenha que gastar parte de sua produção para sustentar essa escolha de consumo.

Água em meio à seca do sertão custa caro em dinheiro; em votos ela sai barata. O governo gasta o que não produz para levar água de graça e prolongar o problema crônico de pessoas que vivem em lugares onde a produção de alimento custa mais do que vale. Fazendo-o, os políticos garantem seus votos; são vistos ainda como benfeitores.

Imagine se o governo egípcio decidisse bancar uma migração em massa para o meio do deserto, com fins de plantar tomates. Dá para fazer? Dá. Custa muito dinheiro, mas dá. A questão é que, para a sociedade, o saldo é negativo: para manter esses pobres agricultores em estado crônico de precariedade e dependência, gasta-se um valor maior do que eles são capazes de produzir ali. Não fosse assim, a intervenção do estado não seria necessária, pois o processo de mercado, com seus lucros e prejuízos, daria conta.

Mesmo com essas considerações, muitas pessoas se revoltam com a ideia de água sendo vendida caro a fazendeiros pobres. Ora, e quem disse que o preço é caro? O preço é caro, leitor, apenas se comparado ao o preço que você paga, numa cidade com toda uma infraestrutura para abastecê-lo d'água. Se essa infraestrutura por algum motivo ruísse, o preço seria outro. A experiência pessoal de muitos, e o desejo por um mundo de abundância, fazem-nos vítimas fáceis de uma ideia equivocada: a do preço justo. A ideia de que todo bem teria um valor cognoscível, calculável e imutável, que existiria fora do processo de compras e vendas. Um valor "razoável", que parecesse vantajoso para compradores e vendedores sempre.

O mito do preço justo

Não existe um preço justo. O que existe são os diversos preços que emergem das trocas entre pessoas. Mesmo o preço único, homogêneo, que vale para diversas unidades do mesmo bem dentro de um supermercado, é, ele próprio, apenas uma maneira que o comércio inventou de facilitar as trocas. Para não ter que negociar com cada novo comprador, o dono do estabelecimento oferece o bem sempre àquele preço. Microvendedores como camelôs ou feirantes muitas vezes não adotam essa estratégia, e preferem a flexibilidade de negociar seus preços a cada transação. Cada troca é um evento único e irrepetível, cujas condições podem ser muito diferentes de uma para outra. No fim de uma feira livre, uma dúzia de maçãs perfeitamente boas pode sair bem mais barato do que maçãs similares no supermercado a três quarteirões dali. É tudo uma questão das diferentes oportunidades e avaliações do mesmo bem pelas partes envolvidas. O máximo que podemos fazer é falar de um preço médio que vigora num local num determinado período. Mas esse preço médio é uma medida aproximada, antes um efeito do que uma causa, dos preços negociados em cada transação pelos participantes do mercado (que podem, contudo, usar a informação do preço médio passado para chegar a um preço atual; aposta que, como qualquer outra, pode dar certo ou errado).

Fora desse processo, é possível que algum governante queira determinar um preço considerado "justo"; o preço do mesmo bem em outras condições, por exemplo. Decreta-se que o preço justo da água é o preço dela naqueles meses em que chove em abundância e os poços estão cheios, ou o preço da água nos últimos anos numa cidade próxima. Pior ainda: o critério do preço justo pode ser o desejo louvável de que todos possam usar muita água e pagar pouco.

O que ocorrerá na seca? Ninguém quererá vender água no meio rural — ao menos legalmente — pois o lucro a ser auferido será muito pequeno ou nulo. Além disso, os próprios usuários da água não terão incentivo para restringir sua demanda; comprarão e usarão mais água do que se tivessem que arcar com os reais custos da escassez relativa dela. O preço determinado pelo estado comunica uma informação falsa acerca da escassez relativa do bem, levando assim a ações que usam-no de forma irracional.

O fato da troca justa

Não cabe falar em preço justo ou injusto. Podemos, contudo, falar em trocas justas e injustas. Quando um comerciante engana um consumidor acerca de seu produto, ou quando uma das partes é obrigada a realizar uma transação contra sua vontade, temos uma troca injusta. A venda d'água acima comentada não tem nada disso.

O critério primordial para saber se uma troca é justa é simples: nela, ambas as partes consideram que sairão ganhando; isto é, que estarão melhores com a troca do que sem ela. E como sabemos se alguém se beneficiou de uma troca? Para o vendedor d'água, é fácil comprová-lo: ele saiu com um bom lucro. E para o agricultor? A escolha dele era entre comprar aquela água ou passar ainda mais tempo sem ela, comprometendo assim uma parcela maior de seu rebanho ou plantio. Se ele escolheu comprar, é porque considerou vantajoso abrir mão daquele valor em dinheiro e garantir a sobrevida de sua fazenda. Ele também saiu ganhando.

Em tempos de chuva, é verdade, ele nunca aceitaria tal transação. Mas a situação atual não é de chuva, e sim de uma seca de intensidade inédita. Dada essa condição, vale a pena, para muitos, comprar água a R$ 180 o carro-pipa. A prova disso é que eles têm, de fato, comprado. Se o caminhão pipa oferecesse água dez vezes mais caro, não estariam dispostos a comprá-la. O ofertante, mesmo na situação de uma demanda aguda, não é o senhor sobre o preço: ou seu preço se adequa às condições atuais de oferta e demanda, ou ele não vende. O vendedor de água não está fazendo nenhum favor ao agricultor; este também não está, por outro lado, sendo enganado ou injustiçado. Ele sem dúvida preferiria ter água de graça; mas, naquelas condições, era mais vantajoso pagar caro por ela do que passar sem. O vendedor, por sua vez, preferiria vender o conteúdo de seu carro-pipa a mais de R$ 1,8 mil. Teve que se contentar com R$ 180.

O vendedor d'água não está fazendo caridade (embora ele possa também fazê-la). Ao mesmo tempo, a transação não é injusta. Ela está estritamente dentro dos limites da justiça nas trocas, que determina que ambas as partes saiam beneficiadas. Para isso, é necessário que elas não mintam acerca das características daquilo que oferecem e não obriguem a outra parte a aceitar os termos. Sendo assim, a troca cria valor para ambas, e a prova disso é que ela foi livremente aceita.

Caridade não é solução

A raiz da revolta contra os "exploradores da miséria" surge parcialmente, creio, de um sentimento bom: quando alguém passa uma necessidade muito maior do que o patamar que se considera normal, o bom, o virtuoso, o generoso, é ajudar a pessoa. Não tenho dúvida de que a melhor ação num caso desses seria, de fato, prestar ajuda gratuitamente. Os vendedores "poderiam" cobrar menos e se contentar com um lucro menor, ou mesmo doar água gratuitamente. É verdade; assim como você "poderia", gentilmente, pedir uma redução salarial em seu emprego para baratear o produto final e ajudar os consumidores. É uma boa ação, mas que seria contraprodutiva se desempenhada por todos sempre. Pensemos nas implicações dessa caridade unilateral caso ela virasse política universal dos empreendedores.

Imagine se adotássemos a caridade como princípio básico na relação com os desafortunados; isto é, com aqueles que por algum motivo têm um nível de consumo inferior ao considerado aceitável pela sociedade em que vivem (e isso pode variar muito! O pobre europeu tem um nível de consumo invejável para o pobre brasileiro, que por sua vez é rico se comparado ao pobre zimbabuano). Alguém passa necessidade? Então que receba prontamente aquilo de que carece. O efeito dessa caridade automática voltada a bens de capital (como a água usada para a produção agrícola) em larga escala seria impossibilitar, ou ao menos dificultar, que se sanassem as causas da pobreza.

A causa da pobreza é o fato de alguém encontrar-se impossibilitado de produzir o valor de que precisaria para atingir um nível de consumo considerado adequado. Se mantivermos, por caridade, os bens de capital artificialmente baratos (ou mesmo gratuitos), garantiríamos ao produtor um lucro artificial, sem resolver as causas de sua baixa produtividade. E mais: esses preços subsidiados criariam um incentivo espúrio para que mais pessoas entrassem nessa linha de produção deficitária, que destrói valor. Isso pode até agradar ao ego de alguns benfeitores, que teriam vítimas cativas para sua caridade; mas não seria uma solução para o problema. Seria um processo custoso manter esses agricultores produzindo, arcando caridosamente com os prejuízos de sua produção, e perpetuando o uso ineficiente dos recursos. É o que ocorre sempre que o estado oferece recursos ou capital abaixo do preço de mercado a um empreendimento (que pode ser um pequeno agricultor do sertão ou uma megaempresa que recebe empréstimo do BNDES).

Imaginemos agora o resultado que se segue para uma empresa específica se ela tentar adotar a caridade como a política primária de sua operação.

Se uma empresa tem lucro, isso significa que o preço dos bens de capital por ela utilizados é inferior ao preço do produto final que ela vende. Como o preço dos bens de capital é determinado pelo preço esperado dos produtos finais que com eles podem ser produzidos, o uso lucrativo deles tenderá a aumentar o preço dos bens de capital usados naquela linha produtiva. O sujeito lucra vendendo água: então mais gente quererá vender água também; os meios de produção desse empreendimento (automóveis, combustível e água) serão mais demandados, e seu preço subirá. Seu preço subirá até o ponto em que o lucro do empreendimento cesse, pois a partir desse ponto não valerá a pena demandar mais unidades desses bens de capital para usar nesse processo produtivo.

Conforme esse processo se desenrolar, o lucro das empresas que praticam o preço de mercado tenderá a zero. Dado que a empresa caridosa em questão pratica um preço inferior ao do mercado (supondo que essa seja sua política constante), ela será levada ao prejuízo. Um processo deficitário ou morre por falta de recursos ou depende de recursos vindos de alguma outra fonte para perpetuar-se. Esses recursos só podem vir de uma fonte lucrativa, pois se não fosse lucrativa, não teria com o que manter-se em existência e ainda doar dinheiro para outras causas. A instituição que vive de fazer caridade vira dependente, ela própria, da caridade alheia. Isso não é uma crítica, pois não há nada de errado em viver de caridade, especialmente se se fizer coisas boas. É apenas uma observação.

Conclusão: toda atividade caridosa depende da existência de atividades lucrativas (isto é, não caridosas) para existir, e só existe enquanto financiada por elas. Uma mesma pessoa pode fazer caridade num momento e exercer uma atividade lucrativa em outro; ele é financiador num momento e financiado em outro. Isso não muda o resultado: caridade de um lado requer lucro de outro. Frades católicos, que realizam muitas obras de caridade pelo mundo, dependem de doações de outros fieis. ONGs dependem de patrocínios. E o estado depende de impostos. Em todos os casos, há uma fonte lucrativa (ou seja, que busca o lucro ao preço de mercado, pois se não o fizesse não seria lucrativa) que, com parte de seu excedente, sustenta a atividade caridosa.

A caridade é necessária para a vida humana neste mundo, e é com razão que apela para nosso lado generoso. No entanto, não é e nem pode ser a base da interação social; ela própria depende de um sistema de trocas (ou seja, um mercado) no qual agentes busquem o lucro. Ela nunca será um substituto do mercado e da busca pelo lucro, pois sem eles ela também não existiria.

Indignação arbitrária

Há uma boa dose de manipulação emocional nessa história de condenar alguns empreendedores, seletivamente, como exploradores da miséria. A rigor, todo e qualquer prestador de serviço remunerado é um "explorador da miséria". Os supermercados e restaurantes exploram a minha miséria; sabem que eu careço de meios para produzir minha própria comida; por isso vendem-na para mim. Deles dependo para não morrer de fome, e não pensem que cobram barato. Cobram o preço condizente com a escassez relativa das comidas que compro; quando um vegetal sofre quebra de safra, seu preço aumenta.

Há até mesmo exploradores de miséria que são universalmente amados. Na verdade, um dos maiores exploradores da miséria alheia é também uma das figuras mais respeitadas do mundo. Aquela pessoa a quem recorremos nos momentos de maior fragilidade, quando nossa própria vida, ou a de nossos entes queridos, está em risco; momento no qual ele aproveita pra oferecer seus serviços e cobrar um preço alto por eles: o médico.

Um bom médico provê serviços bastante escassos no mercado; e por isso cobra caro. Ou melhor: cobrava caro. O motivo que levou os serviços médicos a baixarem de preço, de modo que cada vez mais gente tenha acesso à saúde privada, não foi a caridade dos médicos, mas a lei do mercado: quanto maior a oferta, menor o preço. Quanto mais gente buscando a remuneração de ser médico, menor essa remuneração. É o mercado em funcionamento, aumentando a oferta do que era escasso.

Dado que a miséria, ou seja, a necessidade extrema por algum bem, existe, aqueles que fornecem justamente esse bem aos miseráveis deveriam ser incentivados ou perseguidos? Os liberais e libertários dizem, sem sombra de dúvida, que devem ser incentivados. Devem ser louvados como heróis ou santos? Não; ao menos não por isso. Mas também não fazem nada de injusto; oferecem trocas mutuamente vantajosas para aqueles que querem os bens que eles oferecem. Beneficiam-se da miséria alheia? Seria mais correto dizer que se beneficiam justamente porque ajudam a sanar a miséria alheia.

É graças a esses e todos os outros exploradores de miséria que nossa vida é menos miserável. Por sorte, a maioria de nós vive em lugares nos quais há tanta gente explorando nossa sede que já não passamos sede. Que o mesmo possa ocorrer no sertão do Nordeste; que a indústria estatal da seca ceda lugar à indústria privada de combate à seca!

Joel Pinheiro da Fonseca é mestrando em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta e escreve no blog Ad Hominem.

sábado, 29 de junho de 2013

DEU A LOUCA NA VEJA

Deus morto, escreve Albert Camus, é preciso transformar e organizar o mundo com as forças do homem. A partir deste dado, começa suas reflexões sobre a revolta histórica. Urge fazer uma distinção entre a revolução e o movimento de revolta. Spartacus não é um revolucionário, ele não quer mudar os princípios da sociedade romana. Ele se bate para que o escravo tenha direitos iguais aos do senhor, recusa a servidão e quer a igualdade com seu amo. Esta vontade de igualdade o conduzirá ao desejo de tomar o lugar do amo.


A revolução, por sua vez, é a mudança total. A partir da concepção astronômica de revolução – movimento que fecha um ciclo, que passa de um regime a outro após uma translação completa – Camus precisa sua definição. A revolução implica uma mudança do regime de governo. Para que uma mudança econômica seja uma revolução econômica é preciso que ela seja ao mesmo tempo política. Sejam seus meios sangrentos ou pacíficos, é a mudança política, a mudança de governo, que distinguirá a revolução da revolta. Esta dicotomia fundamental é posta em relevo pela frase célebre, citada por Camus: "Não, Sir, não se trata de uma revolta, mas de uma revolução".

Comentei esta distinção feita por Camus há dois anos, quando Tunísia e Egito derrubaram suas ditaduras e o movimento tendia a espalhar-se por outros países árabes e africanos. As manchetes todas falavam em revoluções democráticas. Quem hoje ousa falar em revoluções democráticas no mundo árabe? 

Pelo jeito, deu a louca na Veja. Em edição que intitula como histórica, tem como chamada de capa:

OS SETE DIAS QUE MUDARAM O BRASIL 

Salvo engano, Brasil é este país em que vivo e no qual agora escrevo. Para qualquer lado que olhe, não vejo mudança alguma. Salvo alguns prédios e carros depredados, mas isso nada tem de novo no país. Verdade que uma dúzia de cidades andaram baixando em alguns centavos a tarifa do transporte coletivo. Mas isto está longe de mudar qualquer país. Procuro a reportagem para ver o que mudou. Vamos lá:

“O PT acreditava que a paixão dos brasileiros pelo futebol seria exacerbada pelas Copas, de tal forma que ninguém mais notaria a corrupção e a ineficiência do governo. Errou feio. Os cartazes das ruas fizeram das Copas símbolos odiados do gasto público de péssima qualidade, do desvio de dinheiro e do abuso de poder”.

Símbolos odiados? Odiados por alguns gatos pingados. Os estádios estiveram lotados nesta Copa e isso que nem é a Copa do mundo, a que de fato inflama paixões. Veja superestima a multidão das ruas. Consta que foram um milhão na quinta-feira passada. 

A situação não é tão grave como parece ser – comentei ontem -. Um milhão de pessoas nas ruas é 0,5 da população. A transmissão contínua das televisões dá a idéia de um país em chamas. Ora, longe disso. Meu bairro continua em seu mesmo ritmo. Todo mundo comprando, trabalhando, comendo, bebendo. O mesmo ocorrerá em dezenas, centenas de outros bairros, em São Paulo e no país todo. Vistas pela televisão, as cidades parecem ser puro caos. Não são. Caos só em dois ou três pontos do centro e nas avenidas onde os “jovens” se concentram.

Se o país mudou, não fui avisado. Veja continua insistindo em sua tese: 

“Em 1992, em gesto de desespero, o então presidente Fernando Collor convocou os brasileiros a sair às ruas de verde e amarelo. O povo saiu de preto e ele saiu do palácio do Planalto. (...) Lula mandou os sindicalistas se fingirem de povo e o resultado foi o mesmo. Cascudos nos intrusos e bandeiras queimadas e rasgadas. Os esquerdistas tiveram de ouvir um dos mais elegantes xingamentos da história mundial das manifestações: “Oportunistas, oportunistas”.

Veja endossa a tese de que foram os cara-pintadas que derrubaram Collor. Ora, quem derrubou Collor foi o Congresso. Foram os deputados que Collor, jovem e arrogante, se recusou a comprar. Lula foi mais hábil. Esteve perto de um impeachment, mas o Congresso já estava regiamente pago. Os mensaleiros que o digam. A revista também acha que alguns cascudos e algumas bandeiras queimadas em meio a uma confusão significam uma mudança no país. 

No texto seguinte, Veja compara a baderna generalizada chez nous com a queda do muro de Berlim e a invasão da Áustria pelos húngaros em 89. Compara a rebelião de nações escravizadas por meio século pela União Soviética com o levante de uma meninada que até agora não soube dizer a que vem. “O comunismo acabou e a Alemanha se reunificou”, salienta a revista, para confirmar sua tese de que o petismo acabou. Ora, o petismo pode estar surpreso com o episódio, mas continua vivo e pujante enquanto houver uma nação a saquear. A União Soviética morreu de vez, dois anos depois da queda do Muro. Dona Dilma lidera as preferências dos eleitores para o próximo pleito.

Veja lembra que a frase que intitula a reportagem é de Lênin. “Até ele ficaria sem palpite se tivesse presenciado as mudanças as mudanças dos últimos dias no Brasil”. Sim, Lênin, que fuzilou o czar e sua família, que exterminou kulaks e criou gulags, certamente ficaria perplexo ao ver jornalistas chamando de revolução uns cascudos distribuídos em militantes de um partido corrupto. 

“Esqueçamos os vândalos e os anarquistas, gente que não estava lutando por um governo melhor, mas por governo nenhum. A revolução verdadeira foi a que começou a ser feita pelos brasileiros que foram às ruas protestar por estar sendo mal governados” – escreve a revista, para bem salientar que de revolução se trata. Mais ainda, não é apenas revolução. É revolução verdadeira. Até dona Dilma deve estar rindo dos “revolucionários”. Quando pensava em revolução, em vez de ir para a rua portando cartazes, pegou em armas.

Que mudança de governo, que mudanças políticas, provocaram as multidões nas ruas? Nenhuma. O PT continua no poder, o PMDB também, o PSDB finge ser oposição, corruptos impunes e notórios continuam ocupando cargos no Congresso, corruptos notórios – e condenados – continuam exercendo a deputação. 

De meu conhecimento, nunca a palavrinha foi tão desmoralizada. As revoluções começam com maiúsculas, continuam com minúsculas e acabam entre aspas, escreveu Ernesto Sábato. A revolução decretada por Veja começa pelo fim do caminho, entre aspas.
Por: Janer Cristaldo










QUEM PAGA?

Que uma política inspirada na religião cristã possa ter algum parentesco mesmo longínquo com o nazismo ou com o fascismo é uma crença indefensável sob todos os aspectos.

De uns tempos para cá, as expressões “extrema direita” e “ultradireita” passaram a ser usadas para carimbar com o estigma do nazifascismo qualquer cidadão ou grupo que se oponha ao abortismo, ao casamento gay ou à proibição de opiniões religiosas na vida pública. Opiniões majoritárias, consagradas pelo uso universal e incorporadas de há muito na prática democrática das nações civilizadas, são assim, repentinamente, movidas para as trevas exteriores, para zona do anormal, do inaceitável e do proibido. A elite iluminada se autoconstitui em medida-padrão do normal e do certo, e, como o dr. Simão Bacamarte no “Alienista” de Machado de Assis, condena o povo inteiro como louco, fanático e extremista.

Essa deformação semântica monstruosa, violência simbólica em estado puro, aparece com notável uniformidade tanto no discurso da esquerda em geral quanto na “grande mídia” da qual essa mesma esquerda, com a hipocrisia de quem sabe que domina os cargos de chefia em quase todas as redações do país, se finge de inimiga e vítima indefesa.

O objetivo da operação é, de imediato, mergulhar a população cristã na “espiral do silêncio”, destituí-la dos meios verbais de autodefesa e, portanto, debilitar sua identidade ao ponto de dissolvê-la por completo. Já é, portanto, um genocídio cultural indisfarçado, cínico, criminoso no mais alto grau, que prepara a oficialização do anticristianismo militante como prática nacional obrigatória e a realização do sonho de Lênin: “Varrer o cristianismo da face da Terra”.

Que uma política inspirada na religião cristã possa ter algum parentesco mesmo longínquo com o nazismo ou com o fascismo é uma crença indefensável sob todos os aspectos, quando mais não fosse pela obviedade de que foi precisamente a derrota do nazifascismo que trouxe ao poder, pela primeira vez na história européia, partidos declaradamente cristãos, a Democracia Cristã na Alemanha e na Itália. Mutatis mutandis, foram os conservadores católicos e protestantes que, em toda a Europa, pregaram a resistência a Hitler quando os comunistas e esquerdistas em geral preferiam a acomodação, então favorável aos interesses de Moscou, que partilhava com os nazistas o cadáver da Polônia.

A liderança comunista explora despudoradamente a ignorância histórica de seus militantes quando os induz a crer que são “de extrema direita” precisamente aquelas opiniões majoritárias que trouxeram a paz, o equilíbrio e a normalidade democrática ao mundo após o pesadelo da II Guerra Mundial, enquanto, nas zonas ocupadas pelo comunismo, as instituições repressivas criadas pelo nazismo eram simplesmente modernizadas e adaptadas às necessidades de uma ditadura mais astuta e mais eficiente.

Hoje sabe-se, para além de qualquer dúvida razoável, que o nazismo jamais teria crescido às proporções de uma ameaça mundial se não fosse pela ajuda soviética, passada por baixo do pano por anos a fio e camuflada sob um antinazismo de fachada.

Quando os comunistas tentam associar a imagem de seus inimigos conservadores à lembrança do nazifascismo, não fazem senão repetir o procedimento-padrão, estabelecido desde os tempos de Lênin, que consiste em cometer o crime e apagar as pistas rapidamente, lançando as culpas sobre o primeiro bode expiatório disponível antes que alguém sequer suspeite da verdadeira autoria.

Nunca houve nem nunca haverá um comunista bem intencionado, pela simples razão de que o comunismo nega, na base, todo princípio moral e o substitui por uma nova “ética” em que não há outro Bem Supremo acima dos interesses da Revolução, nem outra obrigação moral superior à de fazer crescer, por todos os meios, o poder do Partido.

Todo comunista, sem exceção, é um canalha e um manipulador, pronto a elevar-se ao estatuto de assassino e genocida tão logo, inchado de orgulho, seja convocado a isso pelo clero revolucionário. Ninguém jamais se tornou comunista por amor aos pobres, por idealismo humanitário ou por qualquer outro motivo elevado. Todos entraram nisso movidos pelo desejo de enobrecer-se e beatificar-se pela prática do mal transfigurada em virtude partidária. O comunismo não explora os sentimentos mais altos, e sim o mais baixo de todos, que é o desejo de inverter o senso moral para que cada um se sinta tanto mais santo quanto mais se emporcalhe na mendacidade e no crime.

Novo e oportuno exemplo dessa inversão vem agora do sr. Tarso Genro, que atribui a “grupos pagos de extrema direita” as depredações ocorridas em várias cidades do Brasil. Esse grotesco arremedo de intelectual e escritor sabe perfeitamente bem que os atos de violência ocorreram sobretudo nos primeiros dias, quando havia praticamente só radicais de esquerda nas ruas – estes sim, pagos pelo sr. George Soros e pelo Foro de São Paulo --, muito antes de que qualquer cristão, conservador ou patriota fosse “melar”, como disseram os esquerdistas, o tão bem planejadinho tumulto destinado a forçar um “upgrade” do processo revolucionário comunista.

É o bom e velho “acuse-os do que você faz, xingue-os do que você é”, que os comunistas seguem à risca desde há um século. Como sempre, essa inversão prepara aquilo que eles mais gostam de fazer: perseguir os inocentes, enviá-los à cadeia, matá-los e depois ainda culpá-los.

Homens que se entregam a esse exercício não merecem que nenhum cidadão honesto lhes dirija a palavra, e por isso não é com eles que estou falando. Estou falando ao que ainda resta de consciência moral entre empresários, juízes, promotores de Justiça, advogados, políticos e militares. E o que tenho a lhes dizer é simples e direto: Auditoria no Foro de São Paulo já! Veremos quem são os arruaceiros pagos. 

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.