domingo, 18 de agosto de 2013

A REVOLUÇÃO CULTURAL SOCIALISTA

A América Latina caminha a passos largos rumo ao socialismo, tendo como principal exemplo a Venezuela de Hugo Chávez. São 15 países com governos alinhados ao Foro de São Paulo, cuja meta é resgatar na região aquilo que se perdeu no Leste Europeu. A "revolução bolivariana" vai se alastrando pelo continente, turbinada pelos petrodólares venezuelanos. No Brasil, encontrou alguns obstáculos institucionais mais sólidos, o que não impediu algum progresso na meta socialista. Não é possível compreender corretamente o fenômeno sem levar em conta a questão cultural, a verdadeira revolução arquitetada no campo das idéias. E quando se fala em revolução cultural, o nome de Gramsci merece destaque.

Nascido na Itália em 1891, Antônio Gramsci foi um marxista intelectual membro do Partido Socialista Italiano. Gramsci era um simpatizante da revolução bolchevique de 1917, e foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano. Preso pelo regime fascista de Mussolini, ele começa a escrever notas na prisão que mais tarde se tornarão os Cadernos do Cárcere. O tema central presente em seus escritos será sua estratégia de tomada do poder, distinta do modelo leninista. Para Gramsci, o "assalto ao poder" de Lênin não seria o método adequado nos países ocidentais. A estratégia gramscista de transição para o socialismo contará com aspectos mais graduais, alterando a cultura para permitir a conquista final do poder pelas classes subalternas. Esta tem sido a receita praticada na América Latina nas últimas décadas, com resultados claramente positivos do ponto de vista dos marxistas.

Fazendo sua parte na tentativa de esclarecer melhor este fenômeno, o general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho escreveu o livro A Revolução Gramscista no Ocidente, que faz um didático resumo da concepção revolucionária de Gramsci. Conforme o próprio autor afirma, o objetivo do livro é tentar "traduzir" Gramsci, decodificar seu pensamento. Esta é uma valiosa contribuição para a causa da liberdade, justamente porque a estratégia gramscista de tomada do poder parece eficaz e está em estágio avançado na região. Conhecer melhor o inimigo é fundamental para combatê-lo de forma eficiente. E quem não entender melhor a amplitude do fenômeno, que se alastra em inúmeros aspectos culturais, ficará impotente diante do avanço socialista, do "caminho da servidão", como dizia Hayek.

Muitos preferem acreditar inclusive no óbito da ideologia socialista depois da queda do Muro de Berlim e da União Soviética. Doce ilusão! O moribundo apenas recuou um pouco, fez algumas plásticas superficiais, mudou a embalagem, mas continua bastante vivo. As idéias de Gramsci serviram justamente para esta mudança tática, para a adaptação dos socialistas à nova realidade. Mas a meta continua a mesma: conquistar o poder e criar o "novo homem" e o "novo mundo", onde a necessidade é coisa do passado burguês, as classes desaparecem e todos vivem felizes para sempre. Pode parecer incrível para alguns que esta utopia ainda possa conquistar tantos adeptos. Mas basta um olhar mais atento em volta para constatar que isso é fato: o socialismo ainda encanta muita gente. E com os instrumentos estratégicos fornecidos por Gramsci, o perigo aumenta exponencialmente.

Como explica o general Avellar Coutinho, o conceito de "sociedade civil" é central entre as categorias desenvolvidas por Gramsci. Trata-se de um espaço social público onde as pessoas se organizam em aparelhos voluntários privados para exercer a hegemonia. Seria "o lugar onde as classes subalternas são chamadas a desenvolver suas convicções, a formar o consenso e a lutar por um projeto hegemônico mais avançado". Essa hegemonia, por sua vez, seria a capacidade de influência e de direção política e cultural de um grupo social. O grupo dirigente seria justamente aquele que tem a hegemonia, ou seja, "que tem capacidade de influir e de orientar a ação política, sem uso da coerção". O que torna a estratégia gramscista tão perigosa é exatamente o fato de ela apodrecer os pilares democráticos de dentro da própria democracia, subvertendo seus valores e corroendo esses pilares.

Democracia, etimologicamente falando, quer dizer "governo do povo". No pensamento gramsciano, a burguesia é "não-povo". Portanto, a democracia seria o governo do proletariado e dos camponeses, excluindo os burgueses. Os gramscistas faltam em "democracia radical" ou "radicalismo democrático" para se referir a este modelo. Basta lembrar que o presidente Lula chegou a afirmar que na Venezuela de Chávez havia um "excesso de democracia". Essa deturpação da idéia de democracia é útil para a causa socialista, pois eles podem falar em "socialismo democrático", distanciando-se no imaginário popular do regime ditatorial adotado na União Soviética. Isso garante o respaldo de legalidade, evitando assim eventuais resistências e reações da sociedade.

Além disso, Gramsci defende o "pluralismo das esquerdas", admitindo as alianças dos partidos e das organizações de massa, principalmente para enfraquecer e neutralizar as "trincheiras" burguesas. Como explica o autor, "ele admite até alianças com partidos adversários em certas circunstâncias que contribuam para o êxito do movimento". Esse pragmatismo, uma herança maquiavélica, ajuda a manter a imagem democrática também, em relação ao modelo de partido único dos bolcheviques. O partido, o "moderno príncipe", realizará as transformações radicais que estabelecerão o socialismo, após a fase da luta hegemônica, que terá criado o clima adequado para a revolução, subvertendo os valores tradicionais da sociedade burguesa e condicionando toda a população para o socialismo.

Na estratégia gramscista, o papel dos intelectuais orgânicos é crucial. O novo intelectual não é apenas um orador eloqüente, mas um dirigente que orienta, influencia e conscientiza as massas. O grupo de luta deve lutar também pela assimilação e conquista ideológica dos intelectuais tradicionais. Estes terão participação consciente ou inconsciente, podendo assumir o papel de intelectual orgânico por convencimento e adesão, ou por ingenuidade, acomodação ou até por capitulação. Para Gramsci, todos os membros do partido, em todos os níveis, são intelectuais. Eles devem realizar na sociedade civil uma profunda transformação política e cultural, "amestrando" as classes burguesas também, levando-a a aceitar as mudanças intelectuais e morais como parte de uma natural e moderna evolução da sociedade. Para tanto, eles contam com o apoio dos organismos privados, como sindicatos e organizações não-governamentais.

Será criado na sociedade um novo senso comum, que irá destruir a capacidade individual de bom senso. Alguns velhos conceitos podem ser preservados se forem "instrumentais", bastando aprimorá-los para contribuírem também para a formação da nova mentalidade. Os meios de comunicação social (imprensa, radio e televisão) serão os principais canais de difusão do novo senso comum. Além destes, o setor editorial, a cátedra, o magistério, a expressão artística e o meio intelectual tradicional serão importantes veículos dessa transformação. Assim como a estratégia atribuída a Goebbels no nazismo, os argumentos serão repetidos ad nauseam, através de uma "orquestração".

O sistema defensivo da burguesia deverá ser neutralizado. Entre as principais instituições alvos, estão os partidos políticos, o parlamento, a classe empresarial, a Igreja, as forças armadas, o aparelho policial e a família. Como explica o autor, "o empreendimento de neutralização é complexo e é conduzido pelo amplo trabalho psicológico, político e ideológico que realiza o esvaziamento do moral do elemento humano das organizações burguesas, de tal modo que elas perdem o seu valor funcional e ético perante a sociedade civil". Serão utilizadas táticas como o "denuncismo", isolamento, constrangimento e inibição, patrulhamento, penetração ideológica e infiltração de intelectuais. Trata-se de uma batalha longa, que exige paciência, mas que cria as condições necessárias para a tomada do poder.

O uso das crises a favor do movimento também faz parte das estratégias de tomada do poder. As crises econômicas não provocam imediatamente a crise institucional, mas "permitem a difusão de certas idéias e pensamentos que se podem encaminhar para um subseqüente agravamento da crise". Como disse Roberto Campos, "os comunistas sempre souberam chacoalhar as árvores para apanhar no chão os frutos". E acrescentou: "O que não sabem é plantá-las". O fato é que os comunistas sempre exploraram as crises para expandir sua ideologia e tentar conquistar mais poder. As classes subalternas podem se apresentar como única solução institucional. O presidente Lula já usou este argumento em relação aos invasores do MST, alegando ser o único capaz de "conversar" com o movimento. Além disso, a crise parlamentar pode representar uma oportunidade interessante de tomada do poder, pois mantém todas as aparências de fidelidade ao jogo político democrático.

O objetivo final de Gramsci é o comunismo, abolindo o Estado e as classes. O meio defendido para isso é a concentração absurda de poder no Estado ampliado. A ingenuidade de quem leva a sério este tipo de coisa é realmente espantosa. Ignoram o alerta de Lord Acton, de que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Para chegar à "liberdade", vão antes criar uma ditadura totalitária, e esperar que os todo-poderosos simplesmente decidam abrir mão de todo este poder. Para abolir as classes, vão criar uma enorme classe privilegiada, a "nomenklatura", e aguardar o momento em que esses privilegiados resolvam acabar com todos os privilégios. Que tipo de observador medíocre da natureza humana poderia aceitar tais premissas? Não é à toa que o comunismo parece uma nova religião, dependente da fé acima da lógica. Um "paraíso" terrestre é oferecido, prometendo o fim das necessidades, enquanto os intermediários demandam mais que o dízimo: a submissão completa do indivíduo!

Ao término do livro, o general Avellar Coutinho oferece alguns sinais do avanço da estratégia gramscista no Brasil, que não podem fugir aos olhares mais atentos. Os mais jovens não notam a mudança cultural porque não conheceram os valores antigos, e os mais velhos encaram as modificações como "naturais" ou "espontâneas", ignorando a "penetração cultural" bem conduzida pelos intelectuais orgânicos. Em primeiro lugar, temos o conceito de "politicamente correto", que passou a dominar qualquer debate e ofuscar a livre opinião ou independência intelectual. Trata-se de "socialização" da opinião, e o patrulhamento ideológico é uma poderosa arma nesse sentido. Além disso, o conceito de legalidade está sendo substituído pelo de "legitimidade", esvaziando as normas e leis em troca das "reivindicações justas". Invadir terras ou saquear estabelecimentos passam a ser atos "legítimos", pois representam um passo na luta pela "justiça social".

Existem outros exemplos, como o ataque aos valores familiares tradicionais, o uso manipulado da questão racial para negar a tolerância multirracial burguesa, o uso dos "direitos humanos" como proteção ao criminoso, identificado como vítima da "sociedade burguesa", enquanto a vítima real é tratada com indiferença por ser identificada geralmente como burguês privilegiado, a "satanização" do "bandido de colarinho branco", identificado como burguês corrupto e fraudador do povo, a utilização da "opinião pública" como critério de verdade maior que a própria lógica, o uso da ecologia como projeto superior ao desenvolvimento econômico ou mesmo o eco-terrorismo para atacar o progresso capitalista, etc.

Em suma, o projeto de conquista do poder pelos comunistas, calcados nas contribuições de Gramsci, parece estar em um estágio bem avançado na América Latina. Hugo Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, e tantos outros governantes vão conquistando cada vez mais poder. Mesmo o governo Lula conseguiu avanços nessa direção, sem falar das tentativas fracassadas como o Ancinav, Conselho Nacional de Jornalismo, etc. O próprio Lula teria dito que dirige um Fusca enquanto Chávez dirige uma Ferrari rumo ao socialismo. Mas a meta é a mesma. O pior é que, por se tratar de uma verdadeira revolução cultural, suas raízes são profundas, e dificilmente serão revertidas rapidamente. A luta pela liberdade será árdua. Mas algo precisa ser feito. Como teria dito Confúcio, "é melhor acender uma pequena vela do que praguejar contra a escuridão".
Por: Rodrigo Constantino  Resenha publicada originalmente em 2009


sábado, 17 de agosto de 2013

TUDO COMO DANTES NO CARTEL DE ABRANTES

Em junho, as multidões saíram às ruas para reclamar de tudo o que está aí – a inflação que corrói o valor da moeda com que é pago o salário do trabalhador, a corrupção desenfreada, a péssima gestão pública (principalmente na saúde, na educação e na segurança pública, mas não apenas nesses setores) e outras mazelas institucionais. Eram todos contra tudo. Em julho, milhões foram à praia de Copacabana se encantar com o papa humilde que carrega a própria maleta de mão, é favorável aos humildes e tolerante com os casais divorciados e os homossexuais. Agosto entrou com Francisco no Vaticano e os brasileiros em casa, deixando ao papa o que é do papa e aos políticos o que dos políticos é. Entre mortos e feridos salvaram-se quase todos.

De início, os políticos assustaram-se. A presidente Dilma Rousseff, de estilo bruto, embora oscilante, choramingou em particular e despejou ideias em público para “atender ao clamor das massas”. Nada do que ela propôs pegou. Tentou dar o golpe da Constituinte exclusiva para a reforma política para consolidar na Constituição ações para fazer o próprio partido crescer e prosperar: cobrar as contas pesadas das campanhas eleitorais pegando dinheiro do bolso furado do contribuinte extenuado e transferir do cidadão a escolha de seu representante para a zelite dirigente partidária pelo voto de lista. O resto – acabar com os suplentes no Senado e com as votações sigilosas nos plenários do Congresso Nacional – era a perfumaria para disfarçar o odor desagradável do oportunismo golpista sem disfarce do que só interessava de fato ao seu Partido dos Trabalhadores (PT). Ninguém havia exigido na rua a reforma política, mas o cinismo passou batido, de vez que a fábrica de factoides dos marqueteiros do Planalto trouxe à baila o plebiscito, uma consulta prévia ao povo para fazer o que não salvaria um paciente mal atendido num hospital público nem educaria uma criança no ensino público, que continua não apenas indigente como sempre foi, mas só faz piorar.

E em resposta às queixas contra a saúde pública Dilma propôs aumentar de seis para oito anos a duração dos cursos de Medicina, restaurando os trabalhos forçados extintos no século 19 no Brasil por outra mulher, a princesa Isabel. A ideia absurda foi abandonada, mas o alvo, não. Aproveitando-se do fato de os médicos muitas vezes não se comportarem à altura do que deles é exigido no cumprimento do juramento que fazem repetindo as palavras de Hipócrates, o governo transferiu para eles toda a culpa pelo péssimo atendimento, aproveitando-se do contato direto que eles têm com os pacientes, ao contrário dos gestores públicos, que ficam a confortável distância dos doentes.

Nada do que ela propôs deu solução a nada. E com a queda espetacular de 28 pontos porcentuais na preferência do voto para sua reeleição na pesquisa Datafolha em três meses (de 58% em 20 e 21 de março para 30% em 27 e 28 de junho), seus aliados se viram em condições de aumentar o preço do próprio passe, enquanto os opositores passaram a sonhar com o milagre da vitória em 2014. Mas em 7 e 9 de agosto o índice dela subiu cinco pontos e os áulicos agora aguardam a nova rodada da pesquisa para decidir se continuam mamando nas tetas oficias e permanecem em seu palanque ou lhe viram as costas em busca de perspectivas mais alvissareiras.

A pesquisa da Datafolha publicada no domingo foi uma ducha gelada no ânimo dos ingênuos que acreditam que o povo seja um coletivo virtuoso de uma massa composta por ingredientes diversos e imperfeitos de uma multidão disforme. Esta reclamou de tudo o que está ruim, mas está longe de ter a mínima ideia do que se fazer para melhorar. Dilma é o que é e a alternativa ao governo chinfrim não é algum opositor sem nada melhor a oferecer nem o ex-aliado indeciso entre os sobejos do ágape governista ou o jejum do deserto sem poder.

Ora, ora, a alternativa a Dilma é Lula, que também ganhou cinco pontinhos entre o clamor das massas e a fria calma da ressaca atual, mas passou para 51% da preferência, ou seja, mantém a perspectiva da vitória em primeiro turno. O ex-presidente não é candidato, mas continua seu padrinho e basta que transfira o cacife dele – feito de que já se mostrou capaz há três anos – para levá-la a uma inédita vitória petista no primeiro turno. E se isso não ocorresse, ela levaria vantagem sobre todos os eventuais adversários no provável segundo turno, conforme a pesquisa.

Fora do palácio, Marina Silva, da Rede, é a que mais se aproxima da favorita, mas não tão próxima assim (46% a 41%) e ainda sem condições sequer de disputar, pois não tem partido formalizado. Outro sem partido, Joaquim Barbosa, ficou em terceiro lugar, 23 pontos abaixo de Dilma (53% a 30%), com índice bem semelhante ao do tucano José Serra (52% a 31%), que deixou o correligionário Aécio Neves na poeira (53% a 29%). O desempenho de Eduardo Campos (55% a 23%) indica que o melhor que ele tem a fazer é esperar 2018.

Tudo ficou como dantes no cartel de Abrantes, o que não surpreende quem aprendeu com o Barão de Itararé que “de onde nada se espera é de onde nada virá”. Tendo perdido uma eleição municipal para o neófito Fernando Haddad, Serra nada acrescentou ao que já se sabe: ele quer ser presidente, mas não convence eleitores suficientes de que merece seu voto. Em vez disso, protagoniza o escândalo de um eventual cartel para licitações no Metrô e em trens suburbanos, que permitiu aos adversários um neologismo cruel (o trensalão) e uma dúvida nunca esclarecida de que tucanos e petistas seriam “farinha do mesmo saco”. E a presidência nacional do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de nada serviu para o senador Aécio Neves provar que é melhor do que Dilma.

As ruas calaram por falta do que propor e a sucessão não saiu da mesmice pela falta de quem proponha algo melhor. 
Por: José Nêumanne Pinto  Fonte: O Estado de S. Paulo, 14/08/2013

O STF CORRE PERIGO

No julgamento do mensalão o Supremo Tribunal Federal (STF) está decidindo a sua sorte. Mas não só: estará decidindo também a sorte da democracia brasileira. A Corte deve servir de exemplo não só para o restante do Poder Judiciário, mas para todo cidadão. O que estamos assistindo, contudo, é a um triste espetáculo marcado pela desorganização, pelo desrespeito entre seus membros, pela prolixidade das intervenções dos juízes e por manobras jurídicas.

Diferentemente do que ocorreu em 2007, quando do recebimento do Inquérito 2.245 – que se transformou na Ação Penal 470 -, o presidente Carlos Ayres Britto deixou de organizar reuniões administrativas preparatórias, que facilitariam o bom andamento dos trabalhos. Assim, tudo passou a ser decidido no calor da hora, sem que tenha havido um planejamento minimamente aceitável. Essa insegurança transformou o processo numa arena de disputa política e aumentou, desnecessariamente, a temperatura dos debates.

Desde o primeiro dia, quando toda uma sessão do Supremo foi ocupada por uma simples questão de ordem, já se sinalizou que o julgamento seria tumultuado. Isso porque não interessava aos petistas que fosse tomada uma decisão sobre o processo ainda neste ano. Tudo porque haverá eleições municipais e o PT teme que a condenação dos mensaleiros possa ter algum tipo de influência no eleitorado mais politizado, principalmente nas grandes cidades. São conhecidas as pressões contra os ministros do STF lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-presidente agiu de forma indigna. Se estivesse no exercício do cargo, como bem disse o ministro Celso de Mello, seria caso de abertura de um processo de impeachment.

A lentidão do julgamento reforça ainda mais a péssima imagem do Judiciário. Quando o juiz não consegue apresentar brevemente um simples voto, está sinalizando para o grande público que é melhor evitar procurar aquela instância de poder. O desprezo pela Justiça enfraquece a consolidação da democracia. Quando não se entende a linguagem dos juízes, também é um mau sinal. No momento em que observa que um processo acaba se estendendo por anos e anos – sempre havendo algum recurso postergando a decisão final – a descrença toma conta do cidadão.

Os ministros mais antigos deveriam dar o exemplo. Teriam de tomar a iniciativa de ordenar o julgamento, diminuir a tensão entre os pares, possibilitar a apreciação serena dos argumentos da acusação e da defesa, garantindo que a Corte possa apreciar o processo e julgá-lo sem delongas. Afinal, se a Ação Penal 470 tem enorme importância, o STF julga por ano 130 mil processos. E no ritmo em que está indo o julgamento é possível estimar – fazendo uma média desde a apresentação de uma pequena parcela do voto do ministro Joaquim Barbosa -, sendo otimista, que deverá terminar no final de outubro.

Esse julgamento pode abrir uma nova era na jovem democracia brasileira, tão enfraquecida pelos sucessivos escândalos de corrupção. A punição exemplar dos mensaleiros serviria como um sinal de alerta de que a impunidade está com os dias contados. Não é possível considerarmos absolutamente natural que a corrupção chegue até a antessala presidencial. Que malotes de dinheiro público sejam instrumento de “convencimento” político. Que uma campanha presidencial – como a de Lula, em 2002 – seja paga com dinheiro de origem desconhecida e no exterior, como foi revelado na CPMI dos Correios e reafirmado na Ação Penal 470.

A estratégia do PT é tentar emparedar o tribunal. Basta observar a ofensiva na internet montada para pressionar os ministros. O PT tem uma vertente que o aproxima dos regimes ditatoriais e, consequentemente, tem enorme dificuldade de conviver com qualquer discurso que se oponha às suas práticas. Considera o equilíbrio e o respeito entre os três Poderes um resquício do que chama de democracia burguesa. Se o STF não condenar o núcleo político da “sofisticada organização criminosa”, como bem definiu a Procuradoria-Geral da República, e desviar as punições para os réus considerados politicamente pouco relevantes, estará reforçando essa linha política.

Porém, como no Brasil o que é ruim sempre pode piorar, com as duas aposentadorias previstas – dos ministros Cezar Peluso, em setembro, e Ayres Britto, em novembro – o STF vai caminhar para ser uma Corte petista. Mais ainda porque pode ocorrer, por sua própria iniciativa, a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Haverá, portanto, mais três ministros de extrema confiança do partido – em sã consciência, ninguém imagina que serão designados ministros que tenham um percurso profissional distante do lulopetismo. Porque desta vez a liderança petista deve escolher com muito cuidado os indicados para a Suprema Corte. Quer evitar “traição”, que é a forma como denomina o juiz que deseja votar segundo a sua consciência, e não como delegado do partido.

Em outras palavras, o STF corre perigo. E isso é inaceitável. Precisamos de uma Suprema Corte absolutamente independente. Se, como é sabido, cabe ao presidente da República a escolha dos ministros, sua aprovação é prerrogativa do Senado. E aí mora um dos problemas. Os senadores não sabatinam os indicados. A aprovação é considerada automática. A sessão acaba se transformando numa homenagem aos escolhidos, que antes da sabatina já são considerados nomeados.

Poderemos ter nas duas próximas décadas, independentemente de que partido detenha o Poder Executivo, um controle petista do Estado brasileiro por intermédio do STF, que poderá agir engessando as ações do presidente da República. Dessa forma – e estamos trabalhando no terreno das hipóteses – o petismo poderá assegurar o controle do Estado, independentemente da vontade dos eleitores. E como estamos na América Latina, é bom não duvidar. Por: MARCO ANTONIO VILLA, HISTORIADOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS (UFSCAR) – O Estado de S.Paulo Agosto de 2012


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

'FALHAS DE MERCADO" E INFORMAÇÕES ASSIMÉTRICAS

O Prêmio Nobel de economia de 2001 foi concedido ao trio George A. Akerlof, Joseph E. Stiglitz e A. Michael Spence por "suas análises sobre mercados com informações assimétricas" e por seus "avanços na análise dos mercados e do controle de informação".

Quando estava no meu primeiro ano da pós-graduação, foi-me concedida a tarefa de ler a famosa monografia de George Akerlof, "O Mercado dos Limões", a qual havia sido publicada no The Quarterly Journal of Economics em 1970, e desde então é tida como um trabalho clássico.

O trabalho é bastante interessante e até mesmo intelectualmente instigante. "Limões" é altamente lido, ao contrário da maioria das coisas que são publicadas hoje nos "principais" periódicos acadêmicos sobre economia. No que mais, o trabalho representou uma bem-vinda ruptura com a tese da "informação perfeita", a qual dominou a economia neoclássica desde a época de Alfred Marshall.

O tema da "informação imperfeita" defendida por economistas é o seguinte: os indivíduos que interagem no mercado não dispõem de toda a "informação perfeita" que é necessária para fazer com que os mercados funcionem de maneira adequada, como indicado pelo ponto de equilíbrio demonstrado na famosa Interseção Marshalliana, em que oferta e demanda sempre se igualam. Considerando-se, portanto, que há essa "falha de mercado", o que os indivíduos devem fazer para que os mercados funcionem?

Ademais, os mercados também são flagelados pela assimetria de informação, que é o que ocorre quando a informação necessária para que compradores e vendedores cheguem ao "equilíbrio" não está igualmente distribuída entre todos os participantes de mercado. Akerlof fornece o exemplo do mercado de carros usados (daí o "limões" do título de sua monografia; "limões" são uma gíria para carros usados em mau estado, mas que apenas os donos sabem dessa condição).

De acordo com um ditado popular sobre o mercado de carros usados, quando alguém compra um carro usado, ele "está comprando os problemas de outra pessoa". Os compradores de carros usados possuem muito menos informação do que os vendedores sobre quais carros são "limões". O que parece ser um bom carro no estacionamento da revendedora pode perfeitamente acabar se revelando uma tremenda barca furada tão logo o novo proprietário o estiver dirigindo no centro da cidade. A perspectiva de um carro usado acabar se revelando um limão pode gerar uma espiral catastrófica no mercado de carros usados. Por causa dessa incerteza, compradores serão mais relutantes a pagar bem por um determinado carro usado, sendo que, caso eles de fato soubessem com certeza que o carro que estão comprando não é um limão, estariam dispostos a pagar mais. Em consequência dessa relutância em se pagar mais, os vendedores retirarão seus melhores carros do mercado, dado que consideram que os preços oferecidos são inadequados. Isso, por sua vez, induz os compradores a oferecer preços ainda menores, já que, com os melhores carros fora do mercado, as chances de se adquirir um limão aumentam substancialmente. Essa espiral descendente ameaça destruir esse mercado por completo.

Note que todo o problema se originou de um fato: os compradores desconfiados decidem que não há como saber se o carro é bom ou ruim, e os vendedores são incapazes de persuadi-los do contrário. Daí a teoria da "informação assimétrica": uma situação em que o vendedor ou o comprador possui alguma informação importante que o outro lado não possui.

A solução apresentado pelos economistas seguidores dessa teoria é que o governo imponha novas regulamentações ao mercado. A regulamentação, argumentam eles, obriga todos os lados a fornecerem todas as suas informações. Ademais, "leis antilimões" que obriguem os vendedores a restituir os compradores caso o carro não corresponda ao esperado irá impedir que o mercado entre em colapso.

Essa análise econômica da informação imperfeita foi criada com a intenção de abolir da ciência econômica os modelos irrealistas de "concorrência perfeita", modelos estes nos quais não há "falhas de mercado" e todos os lados obtêm todas as informações necessárias. Akerlof nem de longe foi a primeira pessoa a explorar esta área. Ludwig von Mises, F.A. Hayek, Murray N. Rothbard e Israel Kirzner já escreviam sobre isso antes de Akerlof publicar seu ensaio. (O artigo de Israel Kirzner de 1976, Knowing about Knowledge: A Subjectivist View of the Role of Information, é, em minha opinião, um ensaio bastante superior ao dos limões. Foi publicado no livroPerception, Opportunity, and Profit: Studies in the Theory of Entrepreneurship. Kirzner e os outros austríacos sabem que a informação imperfeita é parte inerente ao processo de mercado, e não um obstáculo ao funcionamento do mercado.)

Não apenas isso, como também a análise austríaca é muito superior a tudo o que foi escrito pelo trio Nobel, pois os austríacos reconhecem o papel do empreendedor em lidar com as realidades da informação imperfeita.

De acordo com Akerlof e outros, os participantes do mercado, ao lidarem com as realidades da informação imperfeita, têm pouco ou nenhum incentivo para adquirir mais informações para si próprios. Eles estão "empacados" em um desequilíbrio que não pode ser corrigido — isto é, não pode ser corrigido a menos que o governo venha ao socorro. No entanto, tanto a teoria quanto uma simples observação prática mostram que Akerlof está errado.

Em primeiro lugar, o livre mercado possui meios para fornecer informações para aqueles que delas precisam. Por exemplo, empresas frequentemente oferecem todos os tipos de suporte aos seus produtos para mostrar que elas creem que seus produtos são dignos de serem adquiridos. Elas oferecem garantias e concedem reembolso para proteger os consumidores contra eventuais defeitos e para garantir que eles fiquem satisfeitos. Se os compradores de carros querem ter mais informações sobre carros usados, por que eles não conseguiriam obtê-la? Há várias maneiras de isso ser feito.

Tenho um conhecido que é especialista em assuntos automotivos. Frequentemente ele é chamado por seus amigos, e por amigos de seus amigos, para acompanhá-los até uma revendedora para analisar os carros lá vendidos. Ele leva consigo algumas ferramentas para testar a qualidade do carro e constatar a veracidade das informações fornecidas pelo vendedor. Dentre outras coisas, ele leva um ímã o qual ele desliza ao longo do carro para descobrir se a lataria já foi danificada e se o vendedor utilizou alguma substância à base de fibra de vidro para cobrir os amassados. Especialistas como esse meu amigo podem ser livremente contratados para ir às revendedoras e "equalizar" um pouco a assimetria de informações.

Ademais, vale notar que o mercado de carros usados nunca entrou em colapso em nenhum lugar do mundo (ao menos, não nas economias razoavelmente desenvolvidas). Em vários locais, inclusive, ele é ainda mais dinâmico do que o mercado de carros novos [como aconteceu no Brasil na década de 1980, durante o Plano Cruzado]. Outra pergunta que vale ser feita é: por que se pressupõe que os vendedores dos melhores carros, ao estabelecerem seus preços, não irão levar em conta a falta da informação dos compradores?

É quase impossível encontrar uma transação na qual os indivíduos possuam exatamente as mesmas informações. Assimetrias de informações estão presentes em todos os lugares, e nenhum critério aceitável já foi proposto para separar as assimetrias "aceitáveis" das "inaceitáveis". Ademais, suponhamos que um determinado mercado realmente entre em colapso, exatamente da maneira como Akerlof descreveu. Tal colapso teria ocorrido em consequência das ações voluntárias dos consumidores, e isso não viola direitos de ninguém. Logo, não haveria nenhuma justificativa para pedir a intervenção governamental em um processo cuja ocorrência se deu justamente de acordo com os desejos do público consumidor — isto é, do mercado.

No mais, empreendedores já criaram na internet vários websites em que consumidores fornecem suas opiniões sobre vários produtos e serviços, atribuindo notas aos vendedores destes produtos e serviços. Há também vários websites em que vendedores e potenciais compradores se "encontram" e fazem ofertas, expandindo desta forma a concorrência e abrindo novos mercados para todos que quiserem participar.

Em outras palavras, as pessoas sabem criar maneiras de lidar com a questão da imperfeição das informações, as quais são, por si sós, uma mercadoria escassa e valiosa. Negar tal fato é se negar a examinar as transações que ocorrem no mundo real.

A crença de que regulamentações governamentais podem "solucionar" o "problema da informação" é risível, para não dizer completamente fora da realidade do mundo. No mínimo, o governo cria problemas de informação, pois várias regulamentações proíbem as pessoas envolvidas em transações de descobrir — ou agir de acordo com — fatos relevantes. Um bom exemplo aconteceu há alguns anos, em Washington, D.C. A câmara municipal promulgou uma lei que proibia os planos de saúde de discriminar potenciais clientes com base em doenças já adquiridas. Isto é, se um indivíduo já doente quisesse fazer um seguro-saúde para ter menos gastos, ele não poderia ser rejeitado (que é exatamente a mesma coisa de um indivíduo querer fazer um seguro anti-incêndio enquanto sua casa está sendo destruída pelo fogo). Com efeito, pela lei, as seguradoras nem sequer poderiam fazer perguntas às pessoas sobre questões relativas à saúde. Algum tempo depois, os vereadores disseram estar "estupefatos e furiosos" com o fato de os planos de saúde terem ameaçado não mais emitir apólices para absolutamente nenhum habitante da cidade.

Portanto, o governo não traz mais certeza às transações; na verdade, ele apenas piora tudo. É impossível os indivíduos saberem tudo sobre tudo. O defeito essencial da literatura sobre informação assimétrica está no fato de ela centrar-se nos incentivos relacionados a dados dispersos sobre produtos e não nas informações sobre as instituições e os procedimentos que nos permitem lidar com essa dispersão. A noção de que autoridades centrais podem corrigir imperfeições de mercado pressupõe que essas autoridades sabem exatamente quais medidas funcionarão melhor mesmo elas estando fora da experiência do mundo real. É só a experiência de mercado, com o sistema de lucros e prejuízos, que pode revelar dados sobre condições econômicas obscuras. E é só assim que podemos saber como melhor lidar com estes problemas.

Em vez de indicar a necessidade de intervenções governamentais, assimetrias de informação fazem com que o livre funcionamento do mercado seja algo ainda mais importante. Tendo como guia a busca por lucros e a aversão a prejuízos, empreendedores irão determinar os métodos menos custosos para lidar com os problemas de informação. Decretos governamentais podem até fazer com que alguns se sintam melhores, na crença de que os problemas foram resolvidos, mas a ausência de cálculos de lucro e prejuízo, para não falar também da pressão de lobistas e grupos de interesse, faz com que a possibilidade de haver resultados economicamente mais eficientes em decorrência das regulamentações esteja apenas no campo das superstições.

A vida é incerta, não importa como ela seja vivida. A ideia de que o processo político, que é uma das coisas mais volúveis da face da terra, pode fornecer as bases para a certeza e para a estabilidade é uma ideia que só pode ser defendida por quem vive em alguma espécie de dimensão paralela.

Por: William L. Anderson é um scholar adjunto do Mises Institute, leciona economia na Frostburg State University. 
Tradução de Leandro Roque

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

COMO O LIVRE MERCADO PROTEGE O MEIO AMBIENTE

A teoria econômica tradicional, baseada em postulados propostos pelo Nobel, Paul Samuelson, defende que não se pode esperar que um mercado livre proteja o meio ambiente. Nessa teoria, o ar e a água limpos são “bens públicos” cujo valor não é bem refletido pelos processos de mercado.

Poluidores potenciais não consideram os custos sociais de suas ações, mas somente os seus próprios custos. Além disso, dado que os esforços para manter o meio ambiente limpo beneficiam mesmo aqueles que não ajudam a pagar por isso, cada individual possui uma forte tentação à não pagar a conta.

Essa análise tornou-se tão aceita que muitas pessoas agora não veem alternativa ao sistema governamental de regulação e controle ambiental que tem sido construído no decorrer das ultimas duas décadas.

Esse sistema, contudo, é repleto de dificuldades. Quando as metas e controles governamentais são politicamente determinados, eles estão sujeitos a um processo que é frequentemente movido por acusações infundadas, defendidas pelo clamor público, e legislados com “interesses especiais” em mente. O sentimento populista e a política feita com fins eleitorais, ao invés de reais perigos ambientais, atualmente determinam as prioridades.

Assim, nós deveríamos estar preparados para reconsiderar a solução de livre mercado para a poluição do meio ambiente a qual funcionou no passado e poderia gerar resultados hoje. No longo prazo, a propriedade privada é a protetora mais efetiva do meio ambiente – contanto que a propriedade seja transferível e amparada pelos tribunais que torna as pessoas responsáveis quando seus poluentes invadem a propriedade de outrem. Esse sistema de propriedade privada protegeria o meio ambiente pela mesma razão que protege outros tipos de propriedade: porque ela encoraja a boa administração.

Direitos de Propriedade e Responsabilidade Final

Quando apoiada por leis de responsabilidade efetivas, os direitos de propriedade privada tendem a funcionar bem. Como propriedade bem administradas tendem a aumentar seu valor, os proprietários privados geralmente tendem a não poluir sua terra.

Essa salvaguarda funciona até melhor quando os proprietários preocupam-se somente com si próprios, não com seus herdeiros. Pois, no primeiro sinal de má administração – as primeiras indicações de erosão do solo, por exemplo – avaliadores e compradores potenciais podem projetar os resultados no futuro, e o valor da propriedade declinará imediatamente.

Com um regime de responsabilidade efetivo, essas pressões podem também impedir que as corporações espoliam terras e propriedades que não possuem. Embora disputas ocorram, as obrigações daqueles que danificam a propriedade alheia são tão amplamente aceitos que muitas pessoas nem mesmo tem de ir ao tribunal quando seus carros são danificados: as seguradoras geralmente manejam tais casos de modo rotineiro.

Infelizmente, o dano ambiental não é frequentemente tão facilmente identificável quanto um para-brisas amassado. O direito consuetudinário requer que os queixosos provem os danos e identifiquem as partes responsáveis, e embora o ônus da prova não seja tão alto quanto nos casos criminais, permanece substancial.

Para processá-lo de forma exitosa por poluir meus pulmões, eu devo mostrar que eu sofri o dano do qual estou demandando compensação. E eu devo provar que a causa do dano foi a sua poluição do ar.

Sem informações confiáveis, os proprietários não podem adequadamente defender seus direitos de propriedade no tribunal. O ar poderia ter sido contaminado por muitas fontes diferentes, por exemplo, ou os efeitos sobre a saúde são difíceis de mensurar. Dessa forma, a natureza das emissões podem tornar as leis de responsabilidade impraticáveis, particularmente no caso da poluição do ar.

A dificuldade na obtenção de satisfação no tribunal foi, na verdade, um fator importante na criação de pressão por intervenção governamental para o controle da poluição. No entanto, a intervenção governamental não elimina a necessidade de informações precisas.

Problemas do controle governamental

Como muitos indivíduos (privados), o governo tem problemas para saber a fonte e o efeito dos poluentes. Infelizmente, ele, por essa razão, tende a adotar padrões que não demandam evidência sólida conectando as emissões ao dano. Sob o regime atual, a mera suspeita de dano, combinado com adivinhações educadas sobre qual seria a fonte da poluição, estão produzindo políticas que tem custos enormes.

Los Angeles, por exemplo, está prestes a impor medidas para requerer reformulação de produtos tais como desodorantes e tintas, além da conversão de carros de forma que rodem a base de etanol em vez de gasolina.

Não falta somente ao governo a informação necessária para controlar a poluição, mas os políticos frequentemente possuem pouco incentivo para obter mais informações. Os políticos acham mais fácil e mais popular com a maioria dos constituintes simplesmente adotar uma postura de ultraje contra os poluidores. Na verdade, gerar ultraje é uma forma efetiva de gerar votos.

A aprovação do Superfund (Superfundo) melhorou a carreira de um grande número de congressistas, mesmo que tenha sido resultado de desinformação sobre o Love Canal e a conclusão incorreta de que toda a cidade tinha um potencial desastre ambiental prestes a ocorrer (em seu quintal).

As pressões políticas que dominam o governo também funcionam contra a visão de longo prazo. Os oficiais do governo são legalmente impedidos de pessoalmente receber qualquer valor que ajudam a criar; assim sendo, eles não pagam nenhuma penalidade financeira por propriedade deteriorada.

Em contraste, o proprietário privado da terra verá seu valor mudar imediatamente após um grande investimento, pois o valor reflete os benefícios e custos futuros oriundos de sua ação. Dado que nenhum tal “valor capitalizado” existe nos projetos governamentais, os oficiais do governo estão mais interessados em maximizar seu poder político em vez do valor econômico.

Exemplos de má administração governamental

É verdade que os oficiais do governo são sempre bem intencionados. Mas buscar sua missão profissional quase inevitavelmente significa negligenciar alguns objetivos relevantes ao interesse público, focando, em vez disso, em grupos e indivíduos específicos.

Por exemplo, os guardas florestais do Serviço Florestal tendem a ser altamente comprometidos com a colheita e o replantio de árvores, frequentemente negligenciando o valor potencial das florestas nacionais para a recreação.

Esse comprometimento levou o Serviço Florestal a cortar grandes áreas das Montanhas Rochosas, onde o valor por metro de madeira é baixo e onde o dano ambiental advindo do corte extensivo pode ser severo. Um resultado perverso é que as árvores cortadas geram preços inferiores do que o custo que o pagador de imposto incorreu para cortá-las.

A política também afeta nossos parques nacionais. O Serviço do Parque Nacional geralmente segue as diretrizes dos líderes de grupos ambientais de prestígio, mesmo que as políticas que essa pequena maioria expõe não são necessariamente a que a maioria dos norte-americanos deseja.

A decisão de permitir queimadas apesar de décadas de desenvolvimento de combustíveis levou à devastação de grande parte da Yellowstone no verão de 1988. Enquanto os lideres ambientais endossaram essas políticas pois minimizavam a intervenção humana, o desaparecimento da vida selvagem, por exemplo do castor e do urso pardo, incomodam muitas pessoas. Uma razão pela qual o dano é tão severo é que ele sucede décadas do extremo oposto – intervenção extrema, durante a qual os guardas florestais mantaram muitos lobos de Yellowstone e impediram queimadas.

Outros exemplos ações governamentais destrutivas, ou pelo menos questionáveis, abundam. Por muitos anos, o Departamento de Reclamação de Solos construiu represas caríssimas que inundaram milhares de hectares de habitat natural. Hoje, cavalos selvagens e burros estão danificando grandes extensões de terras federais, mas ele não podem ser controlados por oposição dos grupos de direitos dos animais. E até recentemente, o Departamento de Administração das Terras, que controla tais terras, estava utilizando, de forma rotineira, tratores de esteira para transportar arbustos e pequenas árvores em grandes extensões de terras de pastagem, apesar do baixo custo beneficio de grande parte dela.

Melhorando a lei

A lei comum (direito consuetudinário), é claro, também tem suas falhas. Mesmo assim, seus critérios de evidência e sua história de proteção imparcial dos direitos individuais torna-a, na maior parte dos casos, o melhor meio para se fazer justiça contra aqueles que causam danos ao meio ambiente.

Nós deveríamos começar reconhecendo que muitos dos erros da lei comum foram introduzidos pelos ativistas legais que tem trabalhado para mudar o sistema desde a década de 1950. De acordo com várias analistas, hoje, os tribunais tendem a compensar as vítimas de quaisquer “grandes empresas” que possam ser encontradas, mesmo se elas tiverem agido responsavelmente. Essa abordagem destrói a ligação entre a culpabilidade e a responsabilidade, e assim reduz o incentivo à tomar decisões custosas para evitar prejudicar os outros.

Uma ação corretiva iria restaurar a inviolabilidade do contrato, permitindo aos segurados ajudar a controlar os riscos de poluição involuntária. As seguradoras aumentaram a segurança de muitas industrias ao mesmo tempo que o custo-benefício dela.

Adicionalmente, os governos poderiam confiar menos na regulação direta e, em vez disso, requerer que projetos ambientalmente arriscados, tais como um depósito de lixo radioativo, sejam segurados ou financiados por títulos. Ambos os títulos e o seguro podem prover a responsabilidade (contabilidade) que de outra forma é ausente quando a insolvência ou a falência previnem as companhias de compensar as vítimas. Uma empresa que tenha vendido um grande quantidade de títulos para garantir a solvência no caso de responsabilidades civis terá um incentivo muito maior a tratar seus materiais perigosos de modo seguro e eficiente.

O aumento na ênfase da responsabilidade por meio da lei comum poderia levar a outros resultados positivos.

Por exemplo, os produtos químicos que podem contaminar a água ou o ar poderiam ser “marcados” por tintas ou isótopos radioativos para ajudar a identificar sua origem. Companhias responsáveis poderiam se proteger com essa “marcação”, pois estariam livres se os contaminantes que causaram dano não carregassem a sua “marca”.

Além disso, em um ambiente de leis que asseguram a solvência de potenciais poluidores, tornando a responsabilidade mais clara àqueles cujos contaminantes invadam a propriedade alheia, as seguradores e outros responsáveis por danos potenciais proveriam um mercado promissor para o desenvolvimento de melhor tecnologia forense, assim como melhores procedimentos de retenção e descontaminação. Quando a responsabilidade geral – ao invés do comportamento particular – é destacada, o incentivo a evitar danos é maior.

Proteção privada do meio ambiente

Quando falamos de manter a qualidade ambiental, a proteção da beleza da natureza, e a preservação do habitat selvagem, as organizações privadas tem feito, com frequência, um trabalho melhor do que o governo. Uma razão para a sua eficácia é que suas ações não tem de refletir visões majoritárias, as quais frequentemente mudam.

A conservação privada começou muito antes da sociedade norte-americana desenvolver a consciência ambiental ou recrutar o governo para proteger espécies em perigo e executar limpezas (queimadas). A Associação Santuário da Montanha Hawk (Hawk Mountain Sanctuary Association) ao leste da Pensilvânia, por exemplo, foi formado privadamente em 1934, em um tempo quando as águias eram consideradas vermes porque comiam galinhas.

Sea Lion Caves, uma atração turística na costa do Oregon, começou a proteger os leões marinhos na década de 1920, quando o estado de Oregon tinha um estipulado uma recompensa de US$ 5 por cada leão marinho. Naquele tempo, os animais eram vistos como pestes porque comiam peixes e prejudicavam a indústria do salmão; Sea Lion Caves proveu um paraíso até que a opinião pública mudou e leis foram aprovadas para proteger os leões marinhos.

Mesmo hoje, quando se espera que o governo controle o meio ambiente, grupos privados são responsáveis por grande parte da proteção efetiva da vida selvagem.

The Nature Conservancy, uma ONG sem fins lucrativos, tem mais de 1000 santuários naturais, e desde sua fundação em 1951, preservou cerca de 2,4 milhões de acres. A National Audubon Society possui mais de 60 reservas. A Ducks Unlimited protege mais de 1 milhão de acres de terras selvagens todos os anos.

A Operation Stronghold é uma associação nacional de proprietários de terras comprometidos a administrar sua terra de uma forma que proteja e aumente o habitat selvagem. Existem centenas de outros locais nos Estados Unidos provendo refúgio e habitat para todos os tipos de flora e fauna

A beleza desses esforços privados é que as pessoas que não se importam por patos ou garças reais não necessitam pagar sua conservação, como os pagadores de impostos são coagidos quando o governo está no controle. Além disso, dado que as organizações privadas não usam fundos retirados à força de outras pessoas, mas sim de doações, elas tendem a focar seus esforços de forma eficiente.

Conclusão

Como nosso padrão de vida aumentou, nosso desejo por melhores condições ambientais também aumentou. Podemos esperar que essa demanda por beleza natural continue a crescer com o crescimento da renda nacional, pois a atenção em relação ao meio ambiente é correlacionada com rendas mais altas.

Nós podemos esperar que o setor privado – com ou sem fins lucrativos – continue a tomar a frente na busca por maiores padrões ambientais quando assim for permitido.

Isso não significa que as organizações privadas resolverão todos os problemas ambientais. Onde os direitos de propriedade não existem, são mal definidos ou impraticáveis, não haverá nenhum proprietário que insistirá na proteção. Em vez de abandonar a administração privada em favor do controle governamental direto, contudo, devemos tentar encontrar formas de estabelecer responsabilidades (em conjunto com a liberdade e o incentivo à inovar) estabelecer ou fortalecer os direitos de propriedade.

Nós precisamos comparar os problemas advindos de direitos de propriedade imperfeitos com as “soluções” colocadas em prática pelo governo imperfeito. A evidência sugere que o processo político frequentemente causou maior grau de desejos e destruição.

Por: Richard L. Stroup

Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Ivanildo Terceiro.


quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

Qual é o problema que buscamos resolver quando tentamos construir uma ordem econômica racional? Partindo de alguns pressupostos amplamente aceitos, a resposta é bastante simples. Se detivéssemos todas as informações relevantes, se pudéssemos tomar como ponto de partida um sistema de preferências estabelecido, e se tivéssemos completo conhecimento dos meios disponíveis, o resto do problema seria simplesmente uma questão de lógica. Ou seja, a resposta para a pergunta por qual é o melhor uso dos meios disponíveis está implícita em nossos pressupostos. As condições que devem ser satisfeitas para a solução desse problema ideal foram completamente analisadas e podem ser melhor expostas em um modelo matemático: sucintamente, diríamos que as taxas marginais de substituição entre quaisquer dois bens ou fatores devem ser as mesmas independentemente dos seus diferentes usos.

Este, no entanto, decididamente não é o problema econômico que a sociedade enfrenta; e o cálculo econômico que desenvolvemos para resolver esse problema lógico, embora seja um importante passo na direção da solução do problema econômico da sociedade, não oferece ainda uma resposta para ele. O motivo disto é que os "dados" totais da sociedade a partir dos quais são feitos os cálculos econômicos nunca são "dados" a uma única mente para que pudesse analisar as suas implicações — e nunca serão.

O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional se caracteriza justamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias sob as quais temos de agir nunca existe de forma concentrada e integrada, mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e frequentemente contraditório, distribuídos por diversos indivíduos independentes. O problema econômico da sociedade, portanto, não é meramente um problema de como alocar "determinados" recursos — se por "determinados" entendermos algo que esteja disponível a uma única mente que possa deliberadamente resolver o problema com base nessas informações. Em vez disso, o problema é como garantir que qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos recursos conhecidos, para fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem. Ou, colocando sucintamente, o problema é a utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua totalidade.

O caráter fundamental desse problema tem sido, infelizmente, obscurecido, e não iluminado, por muitos dos recentes refinamentos na teoria econômica, e em particular pelos usos variados da matemática. Embora o problema de que eu queira tratar primordialmente nesse artigo seja o problema da organização de uma economia racional, para seguir esse caminho precisarei de repetidamente chamar atenção para as ligações íntimas que esse problema possui com certas questões metodológicas. Muitos dos argumentos que pretendo apresentar são, de fato, conclusões alcançadas por meio de diferentes caminhos de raciocínio que inesperadamente convergiram. Mas, do modo como eu hoje entendo essas questões, essa convergência não é uma coincidência. Parece-me que muitas das divergências que surgem tanto no campo da teoria econômica quanto no da política econômica possuem uma origem comum em uma má compreensão da natureza do problema econômico da sociedade. Essa má compreensão, por sua vez, se deve a uma aplicação indevida de hábitos mentais desenvolvidos para lidar com problemas da natureza aos fenômenos sociais.

II

Na linguagem comum, definimos a palavra "planejar" como o conjunto das decisões inter-relacionadas relativas à alocação dos nossos recursos disponíveis. Toda atividade econômica, nesse sentido, é planejamento; e, em qualquer sociedade em que várias pessoas colaborem, o planejamento, independentemente de quem o faça, terá de basear-se em certos conhecimentos; e esses conhecimentos não estarão disponíveis em primeira instância para o planejador, mas antes para alguém que deverá retransmiti-los ao planejador. Os vários modos pelos quais o conhecimento chega às pessoas que o utilizam para elaborar seus planos é um problema crucial para qualquer teoria que almeje explicar o processo de mercado; e o problema de qual é melhor meio de utilizar o conhecimento que está inicialmente disperso entre várias pessoas independentes é pelo menos um dos principais problemas para a política econômica — ou para qualquer tentativa de conceber um sistema econômico eficiente.

A resposta para essa pergunta está intimamente relacionada com outra questão que emerge aqui: a de quem está planejando. Toda a divergência sobre "planejamento econômico" parte dessa questão. Não está em discussão se se deve planejar ou não, mas sim se o planejamento deve ser feito de forma centralizada, por uma autoridade única para todo o sistema econômico, ou se ele deve ser dividido entre vários indivíduos. No sentido específico em que o termo é utilizado nas controvérsias contemporâneas, planejamento significa necessariamente planejamento central — direcionar todo o sistema econômico de acordo com um projeto unificado. A competição, por outro lado, significa uma descentralização do planejamento, que será realizado por muitas pessoas independentes. O caminho do meio entre essas duas posições — muito falado, mas pouco apreciado quando visto em prática — é a delegação do planejamento para certas indústrias organizadas, isto é, a instituição de monopólios.

A questão de qual desses sistemas será mais eficiente depende principalmente da questão de qual deles podemos esperar um uso mais completo do conhecimento existente. E isto, por sua vez, depende de se nós temos uma probabilidade maior de conseguir colocar todo o conhecimento que está disperso entre vários indivíduos à disposição de uma autoridade central, ou de dar aos indivíduos um conhecimento adicional suficiente para que eles se tornem capazes de integrar os seus planos aos dos outros.

III

Ficará imediatamente evidente que, neste ponto, a resposta será diferente de acordo com os diferentes tipos de conhecimento; e a resposta para a nossa pergunta irá, consequentemente, voltar-se para a importância relativa de diferentes tipos de conhecimento; aqueles que mais provavelmente estarão à disposição de indivíduos particulares, e aqueles que teríamos mais certeza de encontrar na posse de um órgão constituído por especialistas bem escolhidos. Se hoje em dia é tão amplamente aceito que a segunda opção é preferível, isto ocorre porque um tipo de conhecimento — o conhecimento científico — ocupa nos dias de hoje um lugar tão proeminente na imaginação pública que chegamos a esquecer que esse não é o único tipo de conhecimento relevante. Pode-se admitir que, em relação ao conhecimento científico, um órgão com um punhado de especialistas bem escolhidos seja a melhor opção para melhor dominar o conhecimento disponível — embora isso, obviamente, seja meramente trocar um problema por outro: o problema de como escolher esses especialistas. O que desejo frisar é que, mesmo presumindo que esse problema pudesse ser imediatamente resolvido, ele seria apenas parte de um problema maior.

Hoje é quase uma heresia sugerir que o conhecimento científico não corresponde à totalidade do conhecimento. Mas um pouco de reflexão irá mostrar que, sem sombra de dúvida, existe um corpo importantíssimo de conhecimento desorganizado que não pode ser chamado de científico, entendendo "científico" como o conhecimento de certas regras gerais: o conhecimento de certas circunstâncias particulares de tempo e lugar. É em relação a isso que praticamente todo indivíduo tem alguma vantagem comparativa em relação a todos os outros, pois ele possui informações únicas sobre que tipos de usos benéficos podem ser feitos com certos recursos; usos estes que só acontecerão se a decisão de como utilizá-los for deixada nas mãos desse indivíduo ou for tomada com sua cooperação ativa.

Basta apenas nos lembrarmos do quanto precisamos aprender em qualquer profissão depois de termos completado nossa formação teórica, quão grande é a parte da nossa vida profissional em que passamos aprendendo habilidades específicas, e quão valioso, em todas as circunstâncias da vida, é o conhecimento das pessoas, das condições locais e de certas circunstâncias especiais. Conhecer e saber operar uma máquina que não estava sendo adequadamente explorada, ou explorar a habilidade de alguém que poderia ser mais bem aproveitado, ou estar consciente de um excedente de reservas que pode ser usado durante uma interrupção temporária do fornecimento é tão útil socialmente quanto o conhecimento das melhores técnicas alternativas. O transportador que ganha sua vida descobrindo como melhor aproveitar seu espaço de carga que ficaria vazio, o agente imobiliário cujo conhecimento consiste quase que exclusivamente em encontrar oportunidades temporárias, ou o indivíduo que faz arbitragem, que lucra a partir das diferenças locais entre os preços de certos bens — todos eles realizam trabalhos eminentemente úteis que são baseados em um conhecimento especial das circunstâncias de um momento fugidio, desconhecido por outros.

É curioso que nos dias de hoje esse tipo de conhecimento seja amplamente menosprezado, e que as pessoas que fazem uso dele para alcançarem privilégios sobre pessoas com melhor preparo teórico ou técnico sejam vistas quase como se estivessem fazendo algo desonrado. Mas, embora conquistar privilégios usando um conhecimento superior quanto às condições de comunicação e transporte seja visto como algo quase desonesto, a verdade é que, para a sociedade, é quase tão importante fazer o melhor uso possível dessas oportunidades quanto das últimas descobertas científicas.

Esse preconceito tem uma influência considerável sobre o fato de as pessoas costumarem adotar uma atitude mais desfavorável em relação ao comércio do que em relação às atividades produtivas. Mesmos os economistas que se crêem totalmente imunes às rasas falácias materialistas do passado constantemente cometem os mesmos erros em relação às atividades relacionadas à aquisição de conhecimento prático — e o motivo disso parece ser que, segundo o modo como eles vêem o mundo, esse tipo de conhecimento já deveria estar "dado" em vez de ser algo que precise ser buscado. A idéia mais comum na atualidade parece ser a de que todo conhecimento desse tipo deveria estar constantemente disponível para todo mundo e, como isso não ocorre, critica-se a ordem econômica atual por ser supostamente irracional. Essa concepção ignora o fato de que o método de tornar esse conhecimento amplamente disponível é precisamente o problema que precisamos resolver.

IV

Se hoje em dia está na moda minimizar a importância do conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e espaço, isso se deve em grande medida à pouca importância dada à questão da incerteza em si mesma. De fato, parte dos pressupostos (que geralmente estão apenas implícitos) adotados pelos "planejadores" diferem dos seus oponentes tanto em relação à capacidade de mudanças imprevistas causarem alterações substanciais nos planos de produção quanto em relação à frequência com que isso ocorre. Evidentemente, se fosse possível fazer previamente planos econômicos detalhados para períodos significativamente longos, e depois segui-los à risca, de modo que nenhuma outra decisão econômica importante fosse necessária, a tarefa de elaborar um planejamento completo para toda a atividade econômica não seria algo tão inatingível.

Talvez valha a pena frisar que os problemas econômicos surgem sempre e exclusivamente em decorrência de mudanças. Enquanto as coisas continuam exatamente como estavam antes — ou ao menos quando elas prosseguem de acordo com o que se esperava delas — então não surgirão novos problemas que exijam soluções, não havendo, portanto, necessidade de que se elabore um novo planejamento. A crença de que a mudança — ou ao menos os pequenos ajustes cotidianos — se tornou menos importante nos tempos modernos parte do princípio de que a contenção dos problemas econômicos também se tornou menos importante. Por esse motivo, as pessoas que costumam menosprezar a importância da incerteza são as mesmas que argumentam que as questões econômicas já não são tão importantes quanto o conhecimento tecnológico.

Será verdade que, graças ao sofisticado aparato da indústria moderna, só é preciso tomar decisões econômicas em intervalos longos; como na hora de decidir se uma nova fábrica deve ser construída, ou um novo procedimento deve ser introduzido? É verdade que, uma vez que uma fábrica tenha sido construída, o resto é mais ou menos mecânico, determinado por suas características, deixando pouco a ser mudado para adaptar-se às eternas flutuações de cada momento?

A experiência prática dos empreendedores, até onde eu a conheço, não sustenta essa crença amplamente aceita. Pelo menos nas áreas que são competitivas — e apenas essas áreas servem de modelo para essa questão — a tarefa de impedir os custos de subir exige um luta constante, que absorve grande parte da energia do administrador. É fácil para um administrador ineficiente gastar as pequenas sobras de onde saem os lucros; é um lugar-comum da experiência empresarial que, com as mesmas condições técnicas, a mesma produção pode ser feita dentro de uma variedade enorme de custos — mas isso não é igualmente conhecido pelos que estudam apenas economia. O próprio desejo — frequentemente declarado pelos produtores e engenheiros — de ser autorizado a fazer seus projetos sem considerações financeiras é um testemunho eloquente do poder que esses fatores exercem sobre seu trabalho diário.

Um dos motivos para a crescente incapacidade dos economistas de atentarem para as constantes pequenas mudanças que compõem o todo da atividade econômica é provavelmente o fato de que eles estão cada vez mais preocupados com dados estatísticos, que passam uma imagem muito mais estável da economia do que os pequenos movimentos diários. No entanto, a relativa estabilidade dos grandes dados estatísticos não pode ser explicada — como os estatísticos frequentemente querem fazer crer — pelas "leis dos grandes números" ou pela mútua compensação de pequenas mudanças aleatórias. O número dos elementos com que eles lidam não é grande o suficiente para que essas forças acidentais produzam estabilidade. O contínuo fluxo de bens e serviços é mantido por ajustes deliberados e constantes, por novas decisões tomadas diariamente à luz de circunstâncias que eram desconhecidas até o dia anterior, pela decisão de B de entrar em cena quando A deixa de executar o seu papel. Mesmo a maior e mais mecânica das fábricas segue adiante em grande parte por causa de um ambiente que pode lhe prover todas as suas demandas inesperadas: novas telhas para seu telhado, papéis para seus documentos, e todos os mil e um tipos de equipamentos que não podem ser produzidos pela própria fábrica, mas que, para que ela continue a funcionar, precisam estar facilmente disponíveis no mercado.

Nesse instante, devo brevemente observar que o tipo de conhecimento de que tenho tratado é de um tipo que, por sua própria natureza, não pode ser transposto para dados estatísticos e que, por isso, não pode ser colocado à disposição de uma autoridade central que delibere a partir de levantamentos estatísticos. As estatísticas que essa autoridade teria de utilizar surgiriam exatamente por meio das abstrações das pequenas diferenças entre as coisas, juntando como se fossem elementos de um só tipo itens com diferentes características de lugar, qualidade e outras características particulares, que seriam muito importantes para tomar uma decisão específica. Consequentemente, planejamento central baseado em informações estatísticas, por sua própria natureza, não pode levar em consideração diretamente as circunstâncias de tempo e lugar, precisando encontrar algum jeito de essas decisões serem deixadas para alguém que esteja no local.

V

Se pudermos convir que o problema econômico da sociedade é basicamente uma questão de se adaptar rapidamente às mudanças das circunstâncias particulares de tempo e lugar, parece ser evidente que, por consequência, as decisões fundamentais devem ser deixadas a cargo de pessoas que estejam familiarizadas com essas circunstâncias, que possam conhecer diretamente as mudanças relevantes e os recursos imediatamente disponíveis para lidar com elas. Não podemos esperar que essa problema seja resolvido por meio da transmissão de todo esse conhecimento para um diretório central que, depois de ter integrado todo esse saber, emita uma ordem. Precisamos da descentralização porque apenas assim podemos garantir que o conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e lugar sejam prontamente utilizados. Mas o homem que está dentro de uma situação particular não pode tomar decisões com base apenas em seu conhecimento dos fatos relativos aos seus arredores imediatos, pois, apesar de este ser um conhecimento íntimo, é também limitado. No entanto, persiste o problema de como transmitir a esse homem informações suficientes para que ele seja capaz de encaixar suas decisões no padrão geral das mudanças do sistema econômico como um todo.

De quanto conhecimento ele precisa para ser bem sucedido nisso? Quais dos eventos que acontecerão além do seu horizonte imediato de conhecimento são relevantes para sua decisão imediata, e quão bem ele precisa conhecer esses eventos?

Praticamente não há nada que ocorra no mundo que não possa influenciar a decisão que ele precisa tomar. Mas ele não precisa conhecer esses eventos em si mesmos, nem precisa conhecer todos os seus efeitos. Para ele, não é importante saber o porquê de um certo tipo de parafuso estar sendo mais procurado em uma época específica, ou por que os sacos de papéis estão mais facilmente disponíveis que os sacos de lona, ou por que trabalhadores especializados ou máquinas específicas momentaneamente se tornaram difíceis de encontrar. Tudo que ele precisa saber é quão mais ou menos difícil está a aquisição de certas coisas em relação a outras coisas que também lhe interessam, ou se a demanda por outras coisas que ele produz ou usa é mais ou menos urgente. Ele sempre está preocupado com a importância relativa de coisas particulares, enquanto os fatores que alteram essa importância relativa não lhe interessam de forma alguma, exceto na medida dos próprios efeitos causados sobre as coisas concretas do seu ambiente.

É em relação a isso que aquilo que chamei de "cálculo econômico" nos ajuda, ao menos por analogia, a entender como esse problema pode ser resolvido — na verdade, como ele já está sendo resolvido — pelo sistema de preços. Mesmo se existisse uma única mente controladora que possuísse todos os dados sobre um sistema econômico pequeno e restrito, ela não iria dar-se ao trabalho de repassar por todas as relações entre fins e meios que talvez possam ser afetadas a cada vez que algum pequeno ajuste na alocação recursos fosse feito. De fato, uma das grandes contribuições da lógica pura da escolha é ter demonstrado conclusivamente que mesmo uma única mente onisciente só poderia resolver esse tipo de problema por meio da construção e da constante utilização de taxas de equivalência (ou "valores" ou "taxas marginais de substituição"), ou seja, por meio da atribuição de um índice numérico a cada tipo de recurso que, sem ser derivado de nenhuma propriedade dessa coisa em particular, ainda refletisse ou condensasse sua relevância na estrutura total dos meios e fins. Para cada pequena mudança, ela teria que considerar apenas esses índices quantitativos (ou "valores"), no qual a informação relevante estaria concentrada; e, ao ajustar as quantidades uma a uma, ela poderia reorganizar todos os elementos sem precisar retomar todo o quebra-cabeça desde o início nem precisar parar a cada etapa para analisar novamente todos os elementos e suas ramificações.

Basicamente, em um sistema no qual o conhecimento dos fatos relevantes está disperso entre várias pessoas, os preços podem servir para coordenar as diferentes ações de várias pessoas do mesmo modo como os valores subjetivos ajudariam aquela mente onisciente a coordenar as diferentes partes do seu plano. Vale a pena contemplar por um instante um exemplo muito simples e comum do sistema de preços em ação para ver exatamente o que ele pode fazer. Suponha por um instante que, em algum lugar do mundo, uma nova oportunidade de usar alguma matéria prima surgiu — tomemos o estanho como exemplo — ou então que alguma das fontes de estanho tenha sido eliminada. Para o nosso exemplo não importa — e é muito significativo que isso não importe — qual dessas duas causas tenham aumentado a escassez de estanho. Tudo que os usuários de estanho precisam saber é que parte do estanho que eles costumavam consumir agora está sendo usado com mais proveito em outro lugar e, em decorrência disto, eles precisam ser mais econômicos em seu uso.

Não é preciso nem que boa parte deles saiba de onde essa demanda mais urgentemente surgiu, nem mesmo em prol de quê eles irão poupar esses recursos. Basta que alguns deles saibam diretamente da existência da nova demanda e transfiram recursos para ela, que algumas outras pessoas percebam o vazio que foi então criado e ajam para preenchê-lo com recursos de outras fontes, e então o efeito irá rapidamente se espalhar por todo o sistema econômico, influenciando não apenas todos os usos do estanho, mas também os usos dos seus substitutos, e dos substitutos desses substitutos, assim como a oferta de todas as coisas feitas de estanho, e a dos seus substitutos dessas coisas, e assim por diante; e tudo isso ocorre sem que a grande maioria daqueles que realizam essas substituições saiba nada sobre a causa original dessas mudanças. O todo age como se fosse um único mercado, mas isso não ocorre porque cada um dos seus membros pôde analisá-lo como um todo, mas sim porque os campos limitados da visão de cada um tinham alcance suficiente para que, através de inúmeros intermediários, a informação relevante fosse comunicada para todos. O mero fato de que há um preço para cada bem — ou, melhor dizendo, que cada preço local está ligado de certa forma com o custo de transportá-lo para esse local, e assim por diante — traz a mesma solução que uma única mente dotada de todas as informações (embora ela seja apenas uma possibilidade imaginária) teria alcançado, ainda que essas informações na verdade estejam dispersas entre todas as pessoas envolvidas no processo.

VI

Precisamos entender o sistema de preços como um mecanismo de transmissão de informações para podermos entender sua verdadeira função — uma função que ele cumpre evidentemente com menos perfeição na medida em que os preços se tornam mais rígidos. (Mas mesmo quando preços tabelados se tornam extremamente rígidos, as forças que normalmente atuariam causando mudanças no preço permanecem agindo, exercendo uma influência considerável sobre as mudanças em outros aspectos dos contratos). O principal aspecto desse sistema é a economia de conhecimento com que ele opera; ou, em outros termos, é quão pouco os participantes individuais precisam saber para ser capazes de tomar as decisões corretas. De forma abreviada, por meio de um certo tipo de símbolo, apenas a informação mais essencial é transmitida adiante, e apenas para aqueles que estão interessados nela. Não seria apenas uma metáfora se disséssemos que o sistema de preços é tipo um caixa registrador, ou um sistema de telecomunicações que permite aos produtores individuais observar apenas o movimento de alguns fatores — do mesmo modo como um engenheiro pode se concentrar apenas nos consoles de alguns mostradores — para adaptar as suas atividades às mudanças que eles conhecem apenas a partir do que é mostrado pelo movimento dos preços.

Evidentemente, esses ajustes provavelmente nunca são "perfeitos" no sentido de perfeição que os economistas utilizam em suas análises sobre o equilíbrio econômico. No entanto, temo que nosso hábito teórico de abordar cada problema com a presunção de um conhecimento mais ou menos perfeito da parte de quase todos os envolvidos quase nos tenha cegado para a verdadeira função do mecanismo de preço, levando-nos a aplicar de forma enganosa padrões inadequados para julgar sua eficiência. É maravilhoso que em uma situação na qual haja escassez de um tipo de matéria prima, sem que nenhuma ordem seja dada, sem que talvez não mais que um punhado de pessoas saibam a causa dessa escassez, dezenas de milhares de pessoas cujas identidades jamais serão conhecidas, mesmo depois de meses de investigação, começam então a utilizar essa matéria ou seus subprodutos de maneira mais econômica; ou seja, todas elas agem na direção correta. Isto, em si mesmo, é suficientemente maravilhoso; mesmo que, em um mundo de incertezas constantes, nem tudo consiga se organizar tão perfeitamente para que suas porcentagens de lucros se mantenham constantemente no mesmo nível considerado "normal".

Usei deliberadamente a palavra "maravilha" para chocar o leitor e retirá-lo da complacência com que costumamos dar como certo o funcionamento desse mecanismo. Estou convencido de que se isso fosse o resultado de um projeto humano consciente, e que as pessoas guiadas pelas mudanças dos preços soubessem que suas decisões possuem uma importância muito maior do que a realização dos seus fins imediatos, então esse mecanismo seria louvado como um dos maiores triunfos da mente humana. O seu azar é duplo: nem ele é o fruto de um projeto humano, nem as pessoas guiadas por ele costumam entender por que elas fazem as coisas que são levadas a fazer. Mas aqueles que clamam por uma "direção consciente" — e que não podem acreditar que algo que tenha sido criado sem um planejamento (e, de fato, sem que nem mesmo alguém o compreendesse como um todo) possa resolver problemas que nós mesmos não podemos resolver conscientemente — devem lembrar-se do seguinte: o problema é precisamente de como expandir a extensão da utilização dos recursos além da extensão do entendimento de um único indivíduo; e, portanto, trata-se de um problema de como administrar a necessidade de controle consciente, e de como dar incentivos para os indivíduos tomarem as decisões desejáveis sem que alguém lhes diga o que fazer.

O problema de que estamos tratando aqui de forma alguma diz respeito exclusivamente à economia, pois ele surge junto com quase todos os outros verdadeiros fenômenos sociais, com a linguagem e boa parte da nossa herança cultural, constituindo de fato o problema central de toda ciência social. Como Alfred Whitehead disse, em relação a outra coisa, "Um truísmo profundamente falso, repetido por todos os manuais e nos discursos das pessoas eminentes, diz que devemos cultivar o hábito de pensar sobre o que estamos fazendo. O oposto é que é verdadeiro. A civilização progride quando aumentamos o número de trabalhos importantes que podemos realizar sem pensar neles". Isso possui uma profunda importância no campo social. Usamos constantemente fórmulas, símbolos e regras cujo significado não entendemos, mas por meio dos quais podemos ter acesso a conhecimentos que, individualmente, não possuímos. Criamos essas práticas e instituições tomando como base os hábitos e instituições que se mostraram bem sucedidos em suas próprias esferas e que se tornaram a fundação em cima da qual construímos a civilização.

O sistema de preços é apenas uma dessas criações que o homem aprendeu a usar (embora ele ainda esteja longe de ter aprendido a usá-lo perfeitamente), depois que se deparou com ele, mesmo antes de entendê-lo. Por meio dele não apenas a divisão de trabalho, mas também o uso coordenado de recursos baseado em conhecimentos amplamente divulgados se tornam possíveis. As pessoas que gostam de ridicularizar qualquer sugestão de que é assim que as coisas funcionam distorcem nosso argumento ao insinuar que estamos dizendo que é por algum milagre que um sistema como esse se desenvolveu espontaneamente, tornando-se o mais adequado para a civilização moderna. Trata-se exatamente do contrário: o homem pode criar essa divisão do trabalho sobre a qual a nossa civilização se sustenta justamente porque ele se deparou com um método que a tornou possível. Caso isso não tivesse ocorrido, ele talvez tivesse desenvolvido um tipo inteiramente diferente de civilização, talvez o "Estado" dos cupins, ou outra coisa totalmente inimaginável. Tudo que podemos dizer é que até agora ninguém conseguiu produzir um sistema alternativo no qual certas características do sistema existente — que são respeitadas mesmo por aqueles que o atacam violentamente — possam ser preservadas, especialmente em relação à capacidade do indivíduo de escolher seus objetivos e, consequentemente, de dispor livremente de suas habilidades e conhecimento.

VII

Por vários motivos, é ótimo que a necessidade do sistema de preços para qualquer cálculo racional em uma sociedade complexa já não seja mais objeto de discussão apenas entre grupos com opiniões políticas distintas. A tese segundo a qual sem o sistema de preços nós não poderíamos preservar uma sociedade baseada numa divisão de trabalho tão extensiva quanto a nossa foi recebida com gritos de chacota quando Mises a apresentou há vinte e cinco anos. Hoje os argumentos que alguns ainda apresentam para rejeitar essa tese não são mais exclusivamente políticos, e isso cria uma atmosfera muito mais receptível a discussões ponderadas. Quando vemos Leon Trostky argumentando que o "cálculo econômico é inimaginável sem as relações de mercado"; quando o professor Oscar Lange promete ao professor von Mises uma estátua de mármore no futuro Diretório de Planejamento Central, e quando o professor Abba P. Lerner redescobre Adam Smith, enfatizando que a utilidade essencial do sistema de preços consiste em induzir o indivíduo a fazer aquilo que é do interesse geral no instante em que busca realizar seus próprios interesses, então, as divergências já não podem ser atribuídas a preconceitos políticos. Os dissidentes restantes parecem claramente divergir dessa posição por motivos puramente intelectuais e, mais particularmente, por causa de diferenças metodológicas.

Uma declaração recente do professor Joseph Schumpeter em seu "Capitalismo, socialismo e democracia" fornece um exemplo perfeito dessas diferenças metodológicas que tenho em mente. O autor é um dos economistas mais proeminentes entre aqueles que analisam o fenômeno econômico a partir de algum ramo do positivismo. Para ele, esses fenômenos surgem por consequência do mútuo efeito exercido por certas quantidades objetivas de bens, quase como se não houvesse intervenção alguma de mentes humanas. Apenas por causa desses pressupostos, posso compreender a declaração seguinte — e, para mim, espantosa. O professor Schumpeter argumenta que a possibilidade do cálculo racional na ausência de um mercado para os fatores de produção é uma decorrência da proposição teórica segundo a qual "os consumidores que estão avaliando (demandando) os bens de consumo ipso facto também estão avaliando os meios de produção que entram na produção daqueles bens".[1]

Tomada literalmente, essa declaração é simplesmente falsa. Os consumidores não fazem nada disso. O que o "ipso facto" do professor Schumpeter provavelmente significa é que a avaliação dos fatores de produção está implícita, ou que se segue necessariamente, da avaliação dos bens de consumo. Mas isso também não é verdadeiro. A implicação é uma relação lógica que só pode ser afirmada com segurança a partir de pressupostos que estejam para o mesmo indivíduo. É evidente, no entanto, que os valores dos fatores de produção não dependem exclusivamente da avaliação dos bens de consumo, mas também das condições de fornecimento dos vários fatores de produção. Apenas um único indivíduo que conhecesse todos esses fatores simultaneamente poderia encontrar uma resposta derivada diretamente desses dados. O problema prático surge, no entanto, precisamente porque esses dados nunca estão inteiramente disponíveis para um único indivíduo, e porque, por consequência, é necessária para resolver esse problema a utilização de conhecimentos que estão dispersos por vários indivíduos.

O problema, portanto, não estaria de forma alguma resolvido se demonstrássemos que todos os dados, se estivessem disponíveis para uma única mente (como hipoteticamente estariam para o economista que observasse o problema), iriam por si mesmos determinar a solução; ao invés disso, precisaríamos demonstrar como uma solução poderia ser produzida pela interação entre as pessoas que, individualmente, possuem apenas um conhecimento parcial. Presumir que todo o conhecimento possa ser colocado à disposição de uma única mente, do modo como presumimos que ele pode estar disponível para nós, como economistas dedicados a analisar uma questão, equivale a fugir do problema e menosprezar tudo que é importante e relevante no mundo real.

Que um economista da estatura do professor Schumpeter tenha caído em tal armadilha por causa da ambiguidade que o termo "dado" tem para os incautos dificilmente poderia ser considerado um simples erro. Isto sugere, de fato, que há algo de fundamentalmente errado com uma abordagem que frequentemente despreza uma parte essencial dos fenômenos com os quais temos que lidar:a inevitável imperfeição do conhecimento humano e a necessidade decorrente de um processo por meio do qual o conhecimento seja constantemente adquirido e transmitido. Qualquer abordagem — como grande parte da economia matemática com suas várias equações simultâneas — que parta do pressuposto de que o conhecimento das pessoas corresponde aos fatos objetivo de cada situação, irá sistematicamente deixar de lado aquilo que é a nossa principal tarefa explicar. Estou longe de negar que, em nosso sistema, a análise do equilíbrio econômico tem uma atividade útil a desempenhar, mas quando chega o ponto em que ela ofusca nossos principais intelectuais, fazendo-os acreditar que a situação que estão descrevendo tem uma relevância direta para a solução de problemas práticos, está mais que na hora de nos lembrarmos que esse tipo de análise não lida com o processo social de forma alguma, e de que isso não é mais do que uma etapa preliminar para a investigação do problema principal.



[1] Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia [Capitalism, Socialism, and Democracy (New York; Harper, 1942), p. 175]. O professor Schumpeter é, me parece, o responsável pela criação do mito segundo o qual Pareto e Barone teriam "resolvido" o problema do cálculo econômico no socialismo. O que eles e muitos outros fizeram foi apenas elencar as condições que deveriam ser satisfeitas para uma alocação racional de recursos, e observar que essas condições eram essencialmente as mesmas do estado de equilíbrio de um mercado competitivo. Isso é inteiramente diferente de saber como a alocação de recursos segundo essas condições pode ser observada na prática. O próprio Pareto (de quem Barone praticamente tomou quase tudo que tinha a dizer), longe de declarar ter resolvido esse problema prático, de fato, negou explicitamente que ele poderia ser resolvido sem o auxílio do mercado. Vejam o seu Manuel d'économie pure (2d ed., 1927), pp. 233–34, ["Manual de economia pura"]. As passagens relevantes estão citadas em uma tradução inglese no início do meu artigo Socialist Calculation: The Competitive 'Solution' ["O cálculo socialista: a 'solução' competitiva"] in Economica, New Series, Vol. VIII, No. 26 (May, 1940), p. 125.].



Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais". Seus livros estão disponíveis na loja virtual do Mises Institute.