quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O USO DO CONHECIMENTO NA SOCIEDADE

Qual é o problema que buscamos resolver quando tentamos construir uma ordem econômica racional? Partindo de alguns pressupostos amplamente aceitos, a resposta é bastante simples. Se detivéssemos todas as informações relevantes, se pudéssemos tomar como ponto de partida um sistema de preferências estabelecido, e se tivéssemos completo conhecimento dos meios disponíveis, o resto do problema seria simplesmente uma questão de lógica. Ou seja, a resposta para a pergunta por qual é o melhor uso dos meios disponíveis está implícita em nossos pressupostos. As condições que devem ser satisfeitas para a solução desse problema ideal foram completamente analisadas e podem ser melhor expostas em um modelo matemático: sucintamente, diríamos que as taxas marginais de substituição entre quaisquer dois bens ou fatores devem ser as mesmas independentemente dos seus diferentes usos.

Este, no entanto, decididamente não é o problema econômico que a sociedade enfrenta; e o cálculo econômico que desenvolvemos para resolver esse problema lógico, embora seja um importante passo na direção da solução do problema econômico da sociedade, não oferece ainda uma resposta para ele. O motivo disto é que os "dados" totais da sociedade a partir dos quais são feitos os cálculos econômicos nunca são "dados" a uma única mente para que pudesse analisar as suas implicações — e nunca serão.

O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional se caracteriza justamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias sob as quais temos de agir nunca existe de forma concentrada e integrada, mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e frequentemente contraditório, distribuídos por diversos indivíduos independentes. O problema econômico da sociedade, portanto, não é meramente um problema de como alocar "determinados" recursos — se por "determinados" entendermos algo que esteja disponível a uma única mente que possa deliberadamente resolver o problema com base nessas informações. Em vez disso, o problema é como garantir que qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos recursos conhecidos, para fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem. Ou, colocando sucintamente, o problema é a utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua totalidade.

O caráter fundamental desse problema tem sido, infelizmente, obscurecido, e não iluminado, por muitos dos recentes refinamentos na teoria econômica, e em particular pelos usos variados da matemática. Embora o problema de que eu queira tratar primordialmente nesse artigo seja o problema da organização de uma economia racional, para seguir esse caminho precisarei de repetidamente chamar atenção para as ligações íntimas que esse problema possui com certas questões metodológicas. Muitos dos argumentos que pretendo apresentar são, de fato, conclusões alcançadas por meio de diferentes caminhos de raciocínio que inesperadamente convergiram. Mas, do modo como eu hoje entendo essas questões, essa convergência não é uma coincidência. Parece-me que muitas das divergências que surgem tanto no campo da teoria econômica quanto no da política econômica possuem uma origem comum em uma má compreensão da natureza do problema econômico da sociedade. Essa má compreensão, por sua vez, se deve a uma aplicação indevida de hábitos mentais desenvolvidos para lidar com problemas da natureza aos fenômenos sociais.

II

Na linguagem comum, definimos a palavra "planejar" como o conjunto das decisões inter-relacionadas relativas à alocação dos nossos recursos disponíveis. Toda atividade econômica, nesse sentido, é planejamento; e, em qualquer sociedade em que várias pessoas colaborem, o planejamento, independentemente de quem o faça, terá de basear-se em certos conhecimentos; e esses conhecimentos não estarão disponíveis em primeira instância para o planejador, mas antes para alguém que deverá retransmiti-los ao planejador. Os vários modos pelos quais o conhecimento chega às pessoas que o utilizam para elaborar seus planos é um problema crucial para qualquer teoria que almeje explicar o processo de mercado; e o problema de qual é melhor meio de utilizar o conhecimento que está inicialmente disperso entre várias pessoas independentes é pelo menos um dos principais problemas para a política econômica — ou para qualquer tentativa de conceber um sistema econômico eficiente.

A resposta para essa pergunta está intimamente relacionada com outra questão que emerge aqui: a de quem está planejando. Toda a divergência sobre "planejamento econômico" parte dessa questão. Não está em discussão se se deve planejar ou não, mas sim se o planejamento deve ser feito de forma centralizada, por uma autoridade única para todo o sistema econômico, ou se ele deve ser dividido entre vários indivíduos. No sentido específico em que o termo é utilizado nas controvérsias contemporâneas, planejamento significa necessariamente planejamento central — direcionar todo o sistema econômico de acordo com um projeto unificado. A competição, por outro lado, significa uma descentralização do planejamento, que será realizado por muitas pessoas independentes. O caminho do meio entre essas duas posições — muito falado, mas pouco apreciado quando visto em prática — é a delegação do planejamento para certas indústrias organizadas, isto é, a instituição de monopólios.

A questão de qual desses sistemas será mais eficiente depende principalmente da questão de qual deles podemos esperar um uso mais completo do conhecimento existente. E isto, por sua vez, depende de se nós temos uma probabilidade maior de conseguir colocar todo o conhecimento que está disperso entre vários indivíduos à disposição de uma autoridade central, ou de dar aos indivíduos um conhecimento adicional suficiente para que eles se tornem capazes de integrar os seus planos aos dos outros.

III

Ficará imediatamente evidente que, neste ponto, a resposta será diferente de acordo com os diferentes tipos de conhecimento; e a resposta para a nossa pergunta irá, consequentemente, voltar-se para a importância relativa de diferentes tipos de conhecimento; aqueles que mais provavelmente estarão à disposição de indivíduos particulares, e aqueles que teríamos mais certeza de encontrar na posse de um órgão constituído por especialistas bem escolhidos. Se hoje em dia é tão amplamente aceito que a segunda opção é preferível, isto ocorre porque um tipo de conhecimento — o conhecimento científico — ocupa nos dias de hoje um lugar tão proeminente na imaginação pública que chegamos a esquecer que esse não é o único tipo de conhecimento relevante. Pode-se admitir que, em relação ao conhecimento científico, um órgão com um punhado de especialistas bem escolhidos seja a melhor opção para melhor dominar o conhecimento disponível — embora isso, obviamente, seja meramente trocar um problema por outro: o problema de como escolher esses especialistas. O que desejo frisar é que, mesmo presumindo que esse problema pudesse ser imediatamente resolvido, ele seria apenas parte de um problema maior.

Hoje é quase uma heresia sugerir que o conhecimento científico não corresponde à totalidade do conhecimento. Mas um pouco de reflexão irá mostrar que, sem sombra de dúvida, existe um corpo importantíssimo de conhecimento desorganizado que não pode ser chamado de científico, entendendo "científico" como o conhecimento de certas regras gerais: o conhecimento de certas circunstâncias particulares de tempo e lugar. É em relação a isso que praticamente todo indivíduo tem alguma vantagem comparativa em relação a todos os outros, pois ele possui informações únicas sobre que tipos de usos benéficos podem ser feitos com certos recursos; usos estes que só acontecerão se a decisão de como utilizá-los for deixada nas mãos desse indivíduo ou for tomada com sua cooperação ativa.

Basta apenas nos lembrarmos do quanto precisamos aprender em qualquer profissão depois de termos completado nossa formação teórica, quão grande é a parte da nossa vida profissional em que passamos aprendendo habilidades específicas, e quão valioso, em todas as circunstâncias da vida, é o conhecimento das pessoas, das condições locais e de certas circunstâncias especiais. Conhecer e saber operar uma máquina que não estava sendo adequadamente explorada, ou explorar a habilidade de alguém que poderia ser mais bem aproveitado, ou estar consciente de um excedente de reservas que pode ser usado durante uma interrupção temporária do fornecimento é tão útil socialmente quanto o conhecimento das melhores técnicas alternativas. O transportador que ganha sua vida descobrindo como melhor aproveitar seu espaço de carga que ficaria vazio, o agente imobiliário cujo conhecimento consiste quase que exclusivamente em encontrar oportunidades temporárias, ou o indivíduo que faz arbitragem, que lucra a partir das diferenças locais entre os preços de certos bens — todos eles realizam trabalhos eminentemente úteis que são baseados em um conhecimento especial das circunstâncias de um momento fugidio, desconhecido por outros.

É curioso que nos dias de hoje esse tipo de conhecimento seja amplamente menosprezado, e que as pessoas que fazem uso dele para alcançarem privilégios sobre pessoas com melhor preparo teórico ou técnico sejam vistas quase como se estivessem fazendo algo desonrado. Mas, embora conquistar privilégios usando um conhecimento superior quanto às condições de comunicação e transporte seja visto como algo quase desonesto, a verdade é que, para a sociedade, é quase tão importante fazer o melhor uso possível dessas oportunidades quanto das últimas descobertas científicas.

Esse preconceito tem uma influência considerável sobre o fato de as pessoas costumarem adotar uma atitude mais desfavorável em relação ao comércio do que em relação às atividades produtivas. Mesmos os economistas que se crêem totalmente imunes às rasas falácias materialistas do passado constantemente cometem os mesmos erros em relação às atividades relacionadas à aquisição de conhecimento prático — e o motivo disso parece ser que, segundo o modo como eles vêem o mundo, esse tipo de conhecimento já deveria estar "dado" em vez de ser algo que precise ser buscado. A idéia mais comum na atualidade parece ser a de que todo conhecimento desse tipo deveria estar constantemente disponível para todo mundo e, como isso não ocorre, critica-se a ordem econômica atual por ser supostamente irracional. Essa concepção ignora o fato de que o método de tornar esse conhecimento amplamente disponível é precisamente o problema que precisamos resolver.

IV

Se hoje em dia está na moda minimizar a importância do conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e espaço, isso se deve em grande medida à pouca importância dada à questão da incerteza em si mesma. De fato, parte dos pressupostos (que geralmente estão apenas implícitos) adotados pelos "planejadores" diferem dos seus oponentes tanto em relação à capacidade de mudanças imprevistas causarem alterações substanciais nos planos de produção quanto em relação à frequência com que isso ocorre. Evidentemente, se fosse possível fazer previamente planos econômicos detalhados para períodos significativamente longos, e depois segui-los à risca, de modo que nenhuma outra decisão econômica importante fosse necessária, a tarefa de elaborar um planejamento completo para toda a atividade econômica não seria algo tão inatingível.

Talvez valha a pena frisar que os problemas econômicos surgem sempre e exclusivamente em decorrência de mudanças. Enquanto as coisas continuam exatamente como estavam antes — ou ao menos quando elas prosseguem de acordo com o que se esperava delas — então não surgirão novos problemas que exijam soluções, não havendo, portanto, necessidade de que se elabore um novo planejamento. A crença de que a mudança — ou ao menos os pequenos ajustes cotidianos — se tornou menos importante nos tempos modernos parte do princípio de que a contenção dos problemas econômicos também se tornou menos importante. Por esse motivo, as pessoas que costumam menosprezar a importância da incerteza são as mesmas que argumentam que as questões econômicas já não são tão importantes quanto o conhecimento tecnológico.

Será verdade que, graças ao sofisticado aparato da indústria moderna, só é preciso tomar decisões econômicas em intervalos longos; como na hora de decidir se uma nova fábrica deve ser construída, ou um novo procedimento deve ser introduzido? É verdade que, uma vez que uma fábrica tenha sido construída, o resto é mais ou menos mecânico, determinado por suas características, deixando pouco a ser mudado para adaptar-se às eternas flutuações de cada momento?

A experiência prática dos empreendedores, até onde eu a conheço, não sustenta essa crença amplamente aceita. Pelo menos nas áreas que são competitivas — e apenas essas áreas servem de modelo para essa questão — a tarefa de impedir os custos de subir exige um luta constante, que absorve grande parte da energia do administrador. É fácil para um administrador ineficiente gastar as pequenas sobras de onde saem os lucros; é um lugar-comum da experiência empresarial que, com as mesmas condições técnicas, a mesma produção pode ser feita dentro de uma variedade enorme de custos — mas isso não é igualmente conhecido pelos que estudam apenas economia. O próprio desejo — frequentemente declarado pelos produtores e engenheiros — de ser autorizado a fazer seus projetos sem considerações financeiras é um testemunho eloquente do poder que esses fatores exercem sobre seu trabalho diário.

Um dos motivos para a crescente incapacidade dos economistas de atentarem para as constantes pequenas mudanças que compõem o todo da atividade econômica é provavelmente o fato de que eles estão cada vez mais preocupados com dados estatísticos, que passam uma imagem muito mais estável da economia do que os pequenos movimentos diários. No entanto, a relativa estabilidade dos grandes dados estatísticos não pode ser explicada — como os estatísticos frequentemente querem fazer crer — pelas "leis dos grandes números" ou pela mútua compensação de pequenas mudanças aleatórias. O número dos elementos com que eles lidam não é grande o suficiente para que essas forças acidentais produzam estabilidade. O contínuo fluxo de bens e serviços é mantido por ajustes deliberados e constantes, por novas decisões tomadas diariamente à luz de circunstâncias que eram desconhecidas até o dia anterior, pela decisão de B de entrar em cena quando A deixa de executar o seu papel. Mesmo a maior e mais mecânica das fábricas segue adiante em grande parte por causa de um ambiente que pode lhe prover todas as suas demandas inesperadas: novas telhas para seu telhado, papéis para seus documentos, e todos os mil e um tipos de equipamentos que não podem ser produzidos pela própria fábrica, mas que, para que ela continue a funcionar, precisam estar facilmente disponíveis no mercado.

Nesse instante, devo brevemente observar que o tipo de conhecimento de que tenho tratado é de um tipo que, por sua própria natureza, não pode ser transposto para dados estatísticos e que, por isso, não pode ser colocado à disposição de uma autoridade central que delibere a partir de levantamentos estatísticos. As estatísticas que essa autoridade teria de utilizar surgiriam exatamente por meio das abstrações das pequenas diferenças entre as coisas, juntando como se fossem elementos de um só tipo itens com diferentes características de lugar, qualidade e outras características particulares, que seriam muito importantes para tomar uma decisão específica. Consequentemente, planejamento central baseado em informações estatísticas, por sua própria natureza, não pode levar em consideração diretamente as circunstâncias de tempo e lugar, precisando encontrar algum jeito de essas decisões serem deixadas para alguém que esteja no local.

V

Se pudermos convir que o problema econômico da sociedade é basicamente uma questão de se adaptar rapidamente às mudanças das circunstâncias particulares de tempo e lugar, parece ser evidente que, por consequência, as decisões fundamentais devem ser deixadas a cargo de pessoas que estejam familiarizadas com essas circunstâncias, que possam conhecer diretamente as mudanças relevantes e os recursos imediatamente disponíveis para lidar com elas. Não podemos esperar que essa problema seja resolvido por meio da transmissão de todo esse conhecimento para um diretório central que, depois de ter integrado todo esse saber, emita uma ordem. Precisamos da descentralização porque apenas assim podemos garantir que o conhecimento das circunstâncias particulares de tempo e lugar sejam prontamente utilizados. Mas o homem que está dentro de uma situação particular não pode tomar decisões com base apenas em seu conhecimento dos fatos relativos aos seus arredores imediatos, pois, apesar de este ser um conhecimento íntimo, é também limitado. No entanto, persiste o problema de como transmitir a esse homem informações suficientes para que ele seja capaz de encaixar suas decisões no padrão geral das mudanças do sistema econômico como um todo.

De quanto conhecimento ele precisa para ser bem sucedido nisso? Quais dos eventos que acontecerão além do seu horizonte imediato de conhecimento são relevantes para sua decisão imediata, e quão bem ele precisa conhecer esses eventos?

Praticamente não há nada que ocorra no mundo que não possa influenciar a decisão que ele precisa tomar. Mas ele não precisa conhecer esses eventos em si mesmos, nem precisa conhecer todos os seus efeitos. Para ele, não é importante saber o porquê de um certo tipo de parafuso estar sendo mais procurado em uma época específica, ou por que os sacos de papéis estão mais facilmente disponíveis que os sacos de lona, ou por que trabalhadores especializados ou máquinas específicas momentaneamente se tornaram difíceis de encontrar. Tudo que ele precisa saber é quão mais ou menos difícil está a aquisição de certas coisas em relação a outras coisas que também lhe interessam, ou se a demanda por outras coisas que ele produz ou usa é mais ou menos urgente. Ele sempre está preocupado com a importância relativa de coisas particulares, enquanto os fatores que alteram essa importância relativa não lhe interessam de forma alguma, exceto na medida dos próprios efeitos causados sobre as coisas concretas do seu ambiente.

É em relação a isso que aquilo que chamei de "cálculo econômico" nos ajuda, ao menos por analogia, a entender como esse problema pode ser resolvido — na verdade, como ele já está sendo resolvido — pelo sistema de preços. Mesmo se existisse uma única mente controladora que possuísse todos os dados sobre um sistema econômico pequeno e restrito, ela não iria dar-se ao trabalho de repassar por todas as relações entre fins e meios que talvez possam ser afetadas a cada vez que algum pequeno ajuste na alocação recursos fosse feito. De fato, uma das grandes contribuições da lógica pura da escolha é ter demonstrado conclusivamente que mesmo uma única mente onisciente só poderia resolver esse tipo de problema por meio da construção e da constante utilização de taxas de equivalência (ou "valores" ou "taxas marginais de substituição"), ou seja, por meio da atribuição de um índice numérico a cada tipo de recurso que, sem ser derivado de nenhuma propriedade dessa coisa em particular, ainda refletisse ou condensasse sua relevância na estrutura total dos meios e fins. Para cada pequena mudança, ela teria que considerar apenas esses índices quantitativos (ou "valores"), no qual a informação relevante estaria concentrada; e, ao ajustar as quantidades uma a uma, ela poderia reorganizar todos os elementos sem precisar retomar todo o quebra-cabeça desde o início nem precisar parar a cada etapa para analisar novamente todos os elementos e suas ramificações.

Basicamente, em um sistema no qual o conhecimento dos fatos relevantes está disperso entre várias pessoas, os preços podem servir para coordenar as diferentes ações de várias pessoas do mesmo modo como os valores subjetivos ajudariam aquela mente onisciente a coordenar as diferentes partes do seu plano. Vale a pena contemplar por um instante um exemplo muito simples e comum do sistema de preços em ação para ver exatamente o que ele pode fazer. Suponha por um instante que, em algum lugar do mundo, uma nova oportunidade de usar alguma matéria prima surgiu — tomemos o estanho como exemplo — ou então que alguma das fontes de estanho tenha sido eliminada. Para o nosso exemplo não importa — e é muito significativo que isso não importe — qual dessas duas causas tenham aumentado a escassez de estanho. Tudo que os usuários de estanho precisam saber é que parte do estanho que eles costumavam consumir agora está sendo usado com mais proveito em outro lugar e, em decorrência disto, eles precisam ser mais econômicos em seu uso.

Não é preciso nem que boa parte deles saiba de onde essa demanda mais urgentemente surgiu, nem mesmo em prol de quê eles irão poupar esses recursos. Basta que alguns deles saibam diretamente da existência da nova demanda e transfiram recursos para ela, que algumas outras pessoas percebam o vazio que foi então criado e ajam para preenchê-lo com recursos de outras fontes, e então o efeito irá rapidamente se espalhar por todo o sistema econômico, influenciando não apenas todos os usos do estanho, mas também os usos dos seus substitutos, e dos substitutos desses substitutos, assim como a oferta de todas as coisas feitas de estanho, e a dos seus substitutos dessas coisas, e assim por diante; e tudo isso ocorre sem que a grande maioria daqueles que realizam essas substituições saiba nada sobre a causa original dessas mudanças. O todo age como se fosse um único mercado, mas isso não ocorre porque cada um dos seus membros pôde analisá-lo como um todo, mas sim porque os campos limitados da visão de cada um tinham alcance suficiente para que, através de inúmeros intermediários, a informação relevante fosse comunicada para todos. O mero fato de que há um preço para cada bem — ou, melhor dizendo, que cada preço local está ligado de certa forma com o custo de transportá-lo para esse local, e assim por diante — traz a mesma solução que uma única mente dotada de todas as informações (embora ela seja apenas uma possibilidade imaginária) teria alcançado, ainda que essas informações na verdade estejam dispersas entre todas as pessoas envolvidas no processo.

VI

Precisamos entender o sistema de preços como um mecanismo de transmissão de informações para podermos entender sua verdadeira função — uma função que ele cumpre evidentemente com menos perfeição na medida em que os preços se tornam mais rígidos. (Mas mesmo quando preços tabelados se tornam extremamente rígidos, as forças que normalmente atuariam causando mudanças no preço permanecem agindo, exercendo uma influência considerável sobre as mudanças em outros aspectos dos contratos). O principal aspecto desse sistema é a economia de conhecimento com que ele opera; ou, em outros termos, é quão pouco os participantes individuais precisam saber para ser capazes de tomar as decisões corretas. De forma abreviada, por meio de um certo tipo de símbolo, apenas a informação mais essencial é transmitida adiante, e apenas para aqueles que estão interessados nela. Não seria apenas uma metáfora se disséssemos que o sistema de preços é tipo um caixa registrador, ou um sistema de telecomunicações que permite aos produtores individuais observar apenas o movimento de alguns fatores — do mesmo modo como um engenheiro pode se concentrar apenas nos consoles de alguns mostradores — para adaptar as suas atividades às mudanças que eles conhecem apenas a partir do que é mostrado pelo movimento dos preços.

Evidentemente, esses ajustes provavelmente nunca são "perfeitos" no sentido de perfeição que os economistas utilizam em suas análises sobre o equilíbrio econômico. No entanto, temo que nosso hábito teórico de abordar cada problema com a presunção de um conhecimento mais ou menos perfeito da parte de quase todos os envolvidos quase nos tenha cegado para a verdadeira função do mecanismo de preço, levando-nos a aplicar de forma enganosa padrões inadequados para julgar sua eficiência. É maravilhoso que em uma situação na qual haja escassez de um tipo de matéria prima, sem que nenhuma ordem seja dada, sem que talvez não mais que um punhado de pessoas saibam a causa dessa escassez, dezenas de milhares de pessoas cujas identidades jamais serão conhecidas, mesmo depois de meses de investigação, começam então a utilizar essa matéria ou seus subprodutos de maneira mais econômica; ou seja, todas elas agem na direção correta. Isto, em si mesmo, é suficientemente maravilhoso; mesmo que, em um mundo de incertezas constantes, nem tudo consiga se organizar tão perfeitamente para que suas porcentagens de lucros se mantenham constantemente no mesmo nível considerado "normal".

Usei deliberadamente a palavra "maravilha" para chocar o leitor e retirá-lo da complacência com que costumamos dar como certo o funcionamento desse mecanismo. Estou convencido de que se isso fosse o resultado de um projeto humano consciente, e que as pessoas guiadas pelas mudanças dos preços soubessem que suas decisões possuem uma importância muito maior do que a realização dos seus fins imediatos, então esse mecanismo seria louvado como um dos maiores triunfos da mente humana. O seu azar é duplo: nem ele é o fruto de um projeto humano, nem as pessoas guiadas por ele costumam entender por que elas fazem as coisas que são levadas a fazer. Mas aqueles que clamam por uma "direção consciente" — e que não podem acreditar que algo que tenha sido criado sem um planejamento (e, de fato, sem que nem mesmo alguém o compreendesse como um todo) possa resolver problemas que nós mesmos não podemos resolver conscientemente — devem lembrar-se do seguinte: o problema é precisamente de como expandir a extensão da utilização dos recursos além da extensão do entendimento de um único indivíduo; e, portanto, trata-se de um problema de como administrar a necessidade de controle consciente, e de como dar incentivos para os indivíduos tomarem as decisões desejáveis sem que alguém lhes diga o que fazer.

O problema de que estamos tratando aqui de forma alguma diz respeito exclusivamente à economia, pois ele surge junto com quase todos os outros verdadeiros fenômenos sociais, com a linguagem e boa parte da nossa herança cultural, constituindo de fato o problema central de toda ciência social. Como Alfred Whitehead disse, em relação a outra coisa, "Um truísmo profundamente falso, repetido por todos os manuais e nos discursos das pessoas eminentes, diz que devemos cultivar o hábito de pensar sobre o que estamos fazendo. O oposto é que é verdadeiro. A civilização progride quando aumentamos o número de trabalhos importantes que podemos realizar sem pensar neles". Isso possui uma profunda importância no campo social. Usamos constantemente fórmulas, símbolos e regras cujo significado não entendemos, mas por meio dos quais podemos ter acesso a conhecimentos que, individualmente, não possuímos. Criamos essas práticas e instituições tomando como base os hábitos e instituições que se mostraram bem sucedidos em suas próprias esferas e que se tornaram a fundação em cima da qual construímos a civilização.

O sistema de preços é apenas uma dessas criações que o homem aprendeu a usar (embora ele ainda esteja longe de ter aprendido a usá-lo perfeitamente), depois que se deparou com ele, mesmo antes de entendê-lo. Por meio dele não apenas a divisão de trabalho, mas também o uso coordenado de recursos baseado em conhecimentos amplamente divulgados se tornam possíveis. As pessoas que gostam de ridicularizar qualquer sugestão de que é assim que as coisas funcionam distorcem nosso argumento ao insinuar que estamos dizendo que é por algum milagre que um sistema como esse se desenvolveu espontaneamente, tornando-se o mais adequado para a civilização moderna. Trata-se exatamente do contrário: o homem pode criar essa divisão do trabalho sobre a qual a nossa civilização se sustenta justamente porque ele se deparou com um método que a tornou possível. Caso isso não tivesse ocorrido, ele talvez tivesse desenvolvido um tipo inteiramente diferente de civilização, talvez o "Estado" dos cupins, ou outra coisa totalmente inimaginável. Tudo que podemos dizer é que até agora ninguém conseguiu produzir um sistema alternativo no qual certas características do sistema existente — que são respeitadas mesmo por aqueles que o atacam violentamente — possam ser preservadas, especialmente em relação à capacidade do indivíduo de escolher seus objetivos e, consequentemente, de dispor livremente de suas habilidades e conhecimento.

VII

Por vários motivos, é ótimo que a necessidade do sistema de preços para qualquer cálculo racional em uma sociedade complexa já não seja mais objeto de discussão apenas entre grupos com opiniões políticas distintas. A tese segundo a qual sem o sistema de preços nós não poderíamos preservar uma sociedade baseada numa divisão de trabalho tão extensiva quanto a nossa foi recebida com gritos de chacota quando Mises a apresentou há vinte e cinco anos. Hoje os argumentos que alguns ainda apresentam para rejeitar essa tese não são mais exclusivamente políticos, e isso cria uma atmosfera muito mais receptível a discussões ponderadas. Quando vemos Leon Trostky argumentando que o "cálculo econômico é inimaginável sem as relações de mercado"; quando o professor Oscar Lange promete ao professor von Mises uma estátua de mármore no futuro Diretório de Planejamento Central, e quando o professor Abba P. Lerner redescobre Adam Smith, enfatizando que a utilidade essencial do sistema de preços consiste em induzir o indivíduo a fazer aquilo que é do interesse geral no instante em que busca realizar seus próprios interesses, então, as divergências já não podem ser atribuídas a preconceitos políticos. Os dissidentes restantes parecem claramente divergir dessa posição por motivos puramente intelectuais e, mais particularmente, por causa de diferenças metodológicas.

Uma declaração recente do professor Joseph Schumpeter em seu "Capitalismo, socialismo e democracia" fornece um exemplo perfeito dessas diferenças metodológicas que tenho em mente. O autor é um dos economistas mais proeminentes entre aqueles que analisam o fenômeno econômico a partir de algum ramo do positivismo. Para ele, esses fenômenos surgem por consequência do mútuo efeito exercido por certas quantidades objetivas de bens, quase como se não houvesse intervenção alguma de mentes humanas. Apenas por causa desses pressupostos, posso compreender a declaração seguinte — e, para mim, espantosa. O professor Schumpeter argumenta que a possibilidade do cálculo racional na ausência de um mercado para os fatores de produção é uma decorrência da proposição teórica segundo a qual "os consumidores que estão avaliando (demandando) os bens de consumo ipso facto também estão avaliando os meios de produção que entram na produção daqueles bens".[1]

Tomada literalmente, essa declaração é simplesmente falsa. Os consumidores não fazem nada disso. O que o "ipso facto" do professor Schumpeter provavelmente significa é que a avaliação dos fatores de produção está implícita, ou que se segue necessariamente, da avaliação dos bens de consumo. Mas isso também não é verdadeiro. A implicação é uma relação lógica que só pode ser afirmada com segurança a partir de pressupostos que estejam para o mesmo indivíduo. É evidente, no entanto, que os valores dos fatores de produção não dependem exclusivamente da avaliação dos bens de consumo, mas também das condições de fornecimento dos vários fatores de produção. Apenas um único indivíduo que conhecesse todos esses fatores simultaneamente poderia encontrar uma resposta derivada diretamente desses dados. O problema prático surge, no entanto, precisamente porque esses dados nunca estão inteiramente disponíveis para um único indivíduo, e porque, por consequência, é necessária para resolver esse problema a utilização de conhecimentos que estão dispersos por vários indivíduos.

O problema, portanto, não estaria de forma alguma resolvido se demonstrássemos que todos os dados, se estivessem disponíveis para uma única mente (como hipoteticamente estariam para o economista que observasse o problema), iriam por si mesmos determinar a solução; ao invés disso, precisaríamos demonstrar como uma solução poderia ser produzida pela interação entre as pessoas que, individualmente, possuem apenas um conhecimento parcial. Presumir que todo o conhecimento possa ser colocado à disposição de uma única mente, do modo como presumimos que ele pode estar disponível para nós, como economistas dedicados a analisar uma questão, equivale a fugir do problema e menosprezar tudo que é importante e relevante no mundo real.

Que um economista da estatura do professor Schumpeter tenha caído em tal armadilha por causa da ambiguidade que o termo "dado" tem para os incautos dificilmente poderia ser considerado um simples erro. Isto sugere, de fato, que há algo de fundamentalmente errado com uma abordagem que frequentemente despreza uma parte essencial dos fenômenos com os quais temos que lidar:a inevitável imperfeição do conhecimento humano e a necessidade decorrente de um processo por meio do qual o conhecimento seja constantemente adquirido e transmitido. Qualquer abordagem — como grande parte da economia matemática com suas várias equações simultâneas — que parta do pressuposto de que o conhecimento das pessoas corresponde aos fatos objetivo de cada situação, irá sistematicamente deixar de lado aquilo que é a nossa principal tarefa explicar. Estou longe de negar que, em nosso sistema, a análise do equilíbrio econômico tem uma atividade útil a desempenhar, mas quando chega o ponto em que ela ofusca nossos principais intelectuais, fazendo-os acreditar que a situação que estão descrevendo tem uma relevância direta para a solução de problemas práticos, está mais que na hora de nos lembrarmos que esse tipo de análise não lida com o processo social de forma alguma, e de que isso não é mais do que uma etapa preliminar para a investigação do problema principal.



[1] Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia [Capitalism, Socialism, and Democracy (New York; Harper, 1942), p. 175]. O professor Schumpeter é, me parece, o responsável pela criação do mito segundo o qual Pareto e Barone teriam "resolvido" o problema do cálculo econômico no socialismo. O que eles e muitos outros fizeram foi apenas elencar as condições que deveriam ser satisfeitas para uma alocação racional de recursos, e observar que essas condições eram essencialmente as mesmas do estado de equilíbrio de um mercado competitivo. Isso é inteiramente diferente de saber como a alocação de recursos segundo essas condições pode ser observada na prática. O próprio Pareto (de quem Barone praticamente tomou quase tudo que tinha a dizer), longe de declarar ter resolvido esse problema prático, de fato, negou explicitamente que ele poderia ser resolvido sem o auxílio do mercado. Vejam o seu Manuel d'économie pure (2d ed., 1927), pp. 233–34, ["Manual de economia pura"]. As passagens relevantes estão citadas em uma tradução inglese no início do meu artigo Socialist Calculation: The Competitive 'Solution' ["O cálculo socialista: a 'solução' competitiva"] in Economica, New Series, Vol. VIII, No. 26 (May, 1940), p. 125.].



Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais". Seus livros estão disponíveis na loja virtual do Mises Institute.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

AINDA VALE A PENA LUTAR PELA LIBERDADE NO BRASIL

Entrevista publicada originalmente na edição impressa da revista Vila Nova, em dezembro de 2012

O advogado e professor André Luiz Ramos é autor dos best-sellers "Direito Empresarial Esquematizado" e "O Direito de Empresa no Código Civil", publicados pela Editora Método. André é Procurador Federal da Advocacia Geral da União (AGU) e atualmente assessora um Ministro do STJ. Na conversa que teve com a Revista, o advogado falou sobre sua carreira, opiniões políticas e também, é claro, sobre Direito.

1. Conte-nos um pouco sobre você: quem é André Luiz Santa Cruz Ramos?

Tenho 34 anos, sou pernambucano, formado na vetusta Casa de Tobias Barreto, a Faculdade de Direito do Recife (UFPE), e há aproximadamente uma década me dedico às ciências jurídicas, mais especificamente ao direito empresarial, como advogado, professor e autor. Moro atualmente em Brasília, em razão do cargo público que ocupo. Como jurista, tenho me preocupado em difundir o pensamento liberal no direito, por entender que essa área do conhecimento está, sobretudo no Brasil, muito dominada por uma cultura estatista/coletivista que é, na minha modesta opinião, extremamente nociva ao desenvolvimento econômico e social do país, ao contrário do que pensam os seus defensores, os quais pautam os debates no mainstream acadêmico.

2. Como era o seu trabalho na Advocacia Geral da União?

Estou afastado das minhas funções de Procurador Federal há pouco mais de um ano, desde que fui cedido ao Superior Tribunal de Justiça. Na AGU, atuei na assessoria do Advogado-Geral da União em 2005/2006, na Procuradoria do INSS de Pernambuco em 2007/2008 e na Procuradoria do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica, a autoridade antitruste brasileira) em 2009/2011. A advocacia pública é muito parecida com a advocacia privada, com a diferença de que o cliente do advogado público é o estado, o que traz vantagens (prazos processuais mais longos, por exemplo) e desvantagens (necessidade de defender em juízo ações estatais com as quais você, muitas vezes, não concorda pessoalmente).

O estado é um litigante contumaz, e o professor Hans-Hermann Hoppe, autor que tenho lido muito ultimamente, tem uma explicação muito convincente para esse fenômeno: se o estado tem o monopólio jurisdicional, sendo o julgador de última instância em qualquer litígio, inclusive naqueles em que o próprio estado é parte, ele não tem incentivos para reduzir conflitos, mas para criar conflitos, na expectativa de que sejam decididos em seu favor. Essa é a principal causa do assoberbamento do Poder Judiciário e da morosidade da justiça estatal. E o pior é que, para corrigir esse problema, o estado oferece que solução? Supressão de direitos e garantias processuais do jurisdicionado. O estado, "empresário monopolista" da jurisdição, cria o problema e propõe resolvê-lo, sempre de forma ineficiente, prejudicando o "consumidor" dos serviços judiciários. Por isso eu tenho defendido tanto a arbitragem, que felizmente tem crescido e funcionado, sobretudo para as empresas, como um eficiente meio alternativo de solução de litígios. Somente com a quebra efetiva do monopólio da jurisdição estatal, de tal forma que o Poder Judiciário se veja obrigado a competir com tribunais arbitrais privados nos mais variadas ramos do direito, é que o cidadão terá acesso a serviços judiciários baratos e eficientes. É preciso que a arbitragem deixe de ser privilégio das grandes empresas e se torne acessível também aos pobres, especialmente em ramos como o direito do trabalho e o direito do consumidor.

3. Você é também assessor de um Ministro do STJ. Deve ser uma experiência interessante estar em um dos centros de poder do país, não?

O STJ é conhecido como "Tribunal da cidadania". Por ser responsável pela uniformização da interpretação da legislação infraconstitucional, decide cotidianamente lides que envolvem os mais variados assuntos, de simplórias questões de vizinhança a complexas questões ambientais, de conflitos familiares a grandes contratos administrativos, de relevantes litígios societários a intrincadas discussões tributárias. As decisões do Supremo Tribunal Federal têm mais visibilidade, mas eu me arrisco a dizer que as decisões do STJ são muito mais impactantes na vida das pessoas e das empresas. No meu caso, como assessoro um Ministro que atua numa das Turmas da Segunda Seção, que cuida das questões de direito privado (direito civil e direito empresarial, basicamente), é um trabalho muito gratificante e prazeroso, porque lido exatamente com os ramos do direito que são objeto de minha investigação acadêmica.

4. Fale-nos sobre sua posição política?

Quem me conhece há muito tempo sabe que nunca fui de esquerda. Quem me conhece há pouco tempo sabe que não sou direita. Antes que pensem que sou o Kassab (risos), explico: há alguns anos eu conheci o libertarianismo e rapidamente me tornei um libertário.

Os libertários, em sua maioria, rejeitam a divisão esquerda x direita, tal qual difundida por Norberto Bobbio, e preferem a classificação baseada no diagrama de Nolan, que leva em conta a defesa das liberdades econômicas e individuais. O esquerdista geralmente é um defensor da liberdade individual, rejeitando a intromissão excessiva do estado quanto aos costumes. O direitista, por outro lado, defende mais a liberdade econômica, criticando a excessiva intervenção estatal no mercado. O libertário, por sua vez, defende tanto a liberdade individual quanto a liberdade econômica, de forma ainda mais radical que esquerdistas e direitistas. Assim, o libertário rejeita a esquerda e a direita porque ambas padecem do mesmo mal: põem o estado acima do indivíduo.

Para o libertarianismo, que tem como princípio fundamental a não-iniciação de agressão, o problema do estado não se resume à sua ineficiência (sim, o mercado pode fornecer qualquer bem ou serviço de forma mais eficiente que o estado), mas tem a ver, sobretudo, com a sua ilegitimidade, já que o estado se sustenta no uso sistematizado da coerção, instrumentalizada especialmente via tributação. A existência do estado é incompatível, portanto, com uma sociedade livre, a qual deve ser construída sob os pilares da propriedade privada, do livre mercado e da ordem espontânea decorrente da interação voluntária entre as pessoas.

E, para que fique claro, libertários não gostam de desordem, mas apenas entendem que o mercado pode fornecer, de forma mais eficiente e mais ética, qualquer produto ou serviço demandado pelas pessoas, inclusive os serviços de segurança e justiça, que tanto preocupam aqueles liberais que ainda ficam "com um pé atrás" em relação ao libertarianismo.

Libertários também não são libertinos. Eu, por exemplo, sou católico e comungo de muitos valores da pauta dos chamados conservadores. Apenas não entendo legítimo o uso do estado para impor tais valores à sociedade. A difusão de tais valores deve ser feita pacificamente, por meio da livre persuasão, e tal tarefa cabe aos grupos familiares, às igrejas, às associações civis etc., e jamais ao estado.

5. E quais os reflexos de uma posição deste tipo no Direito? Há espaço para ela, especialmente aqui no Brasil?

Não apenas no direito, mas em todas as áreas das ciências humanas e sociais o libertarianismo é pouquíssimo conhecido, e mesmo assim muito criticado (talvez até por não o conhecerem corretamente). Em minhas obras, aulas e palestras tenho defendido idéias libertárias, e a reação, na maioria das vezes, é de espanto. Algumas pessoas até dizem: "André, eu concordo com muita coisa que você fala, mas acho que você peca pelo radicalismo". Ora, mas eu não vejo o radicalismo como um defeito per se, sobretudo se o radical tem convicção do acerto das idéias que defende.

No direito, o pensamento liberal/libertário ou é solenemente ignorado ou é impunemente agredido, nos mais variados ramos. O estado é endeusado. O binômio função social/justiça social é uma espécie de mantra. O primado liberal da igualdade formal (igualdade perante a lei) foi substituído pela defesa da igualdade material, e o estado é visto como o instrumento para a imposição desse inatingível igualitarismo, o qual, como bem disse Murray Rothbard, é uma revolta contra a natureza.

Até no direito privado o pensamento estatista é dominante. Toda a doutrina contratualista, por exemplo, foi revista, e os princípios da autonomia privada e da força obrigatória das avenças (pacta sunt servanda) foram submetidos a uma perniciosa relativização. O contrato agora tem que atingir sua função social, seja lá o que isso signifique, e o tal dirigismo contratual está na moda: "a lei liberta e a liberdade escraviza", bradam os artífices dessa nova teoria geral dos contratos, a qual se baseia na intervenção estatal para suposta proteção dos contratantes mais fracos. É um absurdo. Até no direito empresarial, em que os contratantes são empresários, é difícil defender a liberdade negocial hodiernamente.

6. Muito se tem falado no Direito sobre Neoconstitucialismo. Você poderia nos explicar o que é?

Vou falar como um leigo, porque o direito constitucional nunca foi objeto de minhas pesquisas acadêmicas. Não vejo o neoconstitucionalismo com bons olhos. Li recentemente um bom artigo do Daniel Sarmento sobre o tema, no qual ele diz que há quem aplauda entusiasmadamente as mudanças no direito trazidas pelo neoconstitucionalismo, e há quem as critique com veemência. Eu me incluo no segundo grupo. O neoconstitucionalismo, grosso modo, significa a constitucionalização de todo o direito (fala-se até na constitucionalização do direito civil, um absurdo descomunal!). Ora, como liberal, não gosto da nossa Constituição socialista de 88, então jamais poderia apoiar um movimento que visa a espalhar os valores socialistas de nossa Carta Magna a todo o ordenamento jurídico.

Também não me agrada essa moda da "principialização" de tudo e da consequente idéia de que o choque entre princípios se resolve pela tal "ponderação de interesses". Isso tem dado margem para que os princípios liberais, como autonomia privada, força obrigatória dos contratos, livre iniciativa, livre concorrência, propriedade privada, etc., sejam relativizados ou mesmo solapados de forma quase despercebida. Quando quaisquer desses princípios se chocam com outros princípios ditos sociais, estes vencem com larga folga. Mostrei isso recentemente num artigo intitulado "a mentalidade anticapitalista do STF", publicado no site do Instituto Ludwig von Mises Brasil, no qual analisei alguns julgados da nossa Suprema Corte.

7. E o ativismo judicial? A seu ver, é um movimento benéfico?

Essa me parece ser outra característica nociva desse movimento denominado neoconstitucionalismo: a excessiva judicialização da política e das relações econômicas e sociais. Isso acarreta um aumento do poder do estado sobre os indivíduos, algo que, para um liberal, é muito preocupante.

8. Você tem se dedicado a divulgar as noções de liberdade e propriedade pelo país. É um desafio hoje?

É um trabalho hercúleo. Vivemos numa sociedade estatólatra, que acredita em soluções de cima pra baixo. Como disse Bastiat, todos querem viver às custas de todos. E erra feio quem pensa que o estatismo é uma característica restrita às classes mais baixas da população, educadas e mantidas na estado-dependência. Aliás, o que o estado gasta para sustentar grupos privilegiados é impressionante: de artistas a atletas, de empreiteiras a bancos, a estado-dependência é um mal quase universal.

Em palestras recentes pelo Nordeste, defendi a ideia de que nós, liberais, temos que mostrar que o capitalismo beneficia principalmente os pobres e fugir desse rótulo de que somos elitistas e sem "consciência social". Ao contrário! Os pobres, sim, serão os maiores beneficiários de uma real abertura da economia brasileira.

Protecionismo, regulamentação de profissões, salário mínimo, etc., são imposições estatais que só impedem que pobres ascendam social e economicamente. Para provar isso, os liberais têm a seu favor a boa teoria econômica e a experiência prática: afinal, os países que ostentam os melhores índices de liberdade econômica são também os que apresentam os melhores índices de desenvolvimento social.

9. Parece que as pessoas se acostumaram a ter suas vidas mais presas… Você tem essa impressão? O que fazer?

Sim, eu compartilho dessa opinião. É a cultura do estado-babá que se impregnou em nossa sociedade. Em vez de os cidadãos vigiarem o estado, é o estado quem os vigia. Trata-se de uma inversão de valores perigosíssima.

O que fazer? Travar uma verdadeira guerra no campo das idéias, como Mises sempre defendeu: a única forma de combater idéias ruins é com idéias boas. E essa guerra deve ser travada em um front estratégico: o sistema educacional. O controle do estado sobre a educação é sua principal arma. É assim que ele consegue manter a maior parte da população numa eterna "servidão voluntária", para lembrar o famoso ensaio de Étienne de La Boétie. Formas alternativas de educação, que fujam ao controle estatal (como ohomeschooling, por exemplo, hoje muito mais viável por causa da internet), podem contribuir muito para que num futuro próximo as pessoas comecem a sair do "caminho da servidão".

10. Há um crescimento do intervencionismo no Brasil e no mundo como um todo?

Eu não conheço a realidade do mundo todo, mas no Brasil acho que esse maior intervencionismo é visto com facilidade. Além do aumento exponencial da intervenção estatal na economia nos últimos anos, estamos vendo uma excessiva intromissão do estado na vida privada. Grupos de pressão barulhentos tomam conta do aparelho estatal e o usam para impor a todos um modo de vida: são os eco-chatos, que querem ruas sem carros e supermercados sem sacolas plásticas; os devotos de Dráuzio Varela, que querem controlar nossos hábitos sociais e alimentares; os desarmamentistas, que querem os cidadãos de bem reféns da bandidagem; os politicamente corretos, que querem criminalizar a expressão de pensamentos e idéias. É isso o que vejo, e a reação, na minha opinião, não tem sido satisfatória.

11. E como ficam as liberdades individuais e os direitos fundamentais, conquistados a tão duras penas?

Para um liberal, direitos fundamentais são a vida, a liberdade e a propriedade, isto é, "direitos negativos", que não exigem um fazer estatal. Aprendi lendo Bastiat que a verdadeira e genuína lei é a que protege o indivíduo contra ataques a esses direitos. Hoje, porém, a lei foi pervertida, e o estado, que para os liberais clássicos deveria existir apenas para garantir esses direitos, é o seu maior agressor.

Uma série de supostos "direitos positivos", que exigem um fazer estatal, foram criados do nada (moradia, saúde, educação, emprego etc.), como se não vivêssemos num mundo de escassez, como se tais "direitos" pudessem ser criados com uma canetada, e não por meio de acordos consensuais. Para dar esses novos "direitos" a todos, o estado se agiganta e tem que agredir aqueles direitos fundamentais verdadeiros, fazendo uso cada vez mais intenso da regulação e da tributação, por exemplo.

12. Quem são seus autores preferidos e suas maiores influências?

Há aproximadamente três anos sigo a linha do que se tem chamado de austro-libertarianismo, numa alusão à tradicional escola austríaca de economia (Mises, Hayek etc.) e à filosofia política libertária (Rothbard, Hoppe etc.). Considero-me um neófito ainda, mas se tivesse que apontar um autor preferido, diria que é o Murray Rothbard. Atualmente, como estou escrevendo minha tese de doutorado, que é na área do direito antitruste, estou lendo autores como Dominick Armentano e Thomas DiLorenzo, ambos ligados à nova geração de "austríacos" do Mises Institute, sediado no Alabama, que tive o prazer imenso de conhecer ano passado, quando fui bolsista de um programa de intercâmbio deles chamado Mises University.

13. Por que escolheu o Direito?

Sinceramente, não sei dizer. Meu pai e meus dois irmãos são engenheiros, mas acho que eu não tinha inteligência o bastante para seguir a mesma carreira que eles, então me restou o Direito (risos).

14. Arrepende-se de algo nessa jornada em defesa da liberdade?

Um arrependimento que tenho é de ter conhecido tarde demais as idéias liberais e libertárias. Queria ter feito o curso de direito com o conhecimento do liberalismo e libertarianismo que tenho hoje. É muito ruim ter que correr contra o tempo.

Outro arrependimento é o de ter entrado para o serviço público. Se pudesse voltar no tempo, não teria tomado essa decisão. Enquanto não sair, terei que ouvir calado as justas críticas de que a defesa radical e intransigente de minhas idéias é incoerente com minha atuação. Isso me perturba, não posso negar. Para compensar, tento exercer minhas atribuições atuais sempre em defesa da liberdade, na medida do possível.

15. Você é autor de um best-seller sobre Direito Empresarial, o livro "Direito Empresarial Esquematizado". Por que esse ramo? Qual sua importância e o que se pode esperar do Direito Empresarial hoje, na conjuntura política que vivemos?

Meu mestrado foi na área do direito processual civil, mas o primeiro emprego de professor que me foi oferecido, numa faculdade privada de Recife, foi na área do direito empresarial, e eu aceitei. Coisas do destino. Um ano depois, fui morar em Brasília e o destino voltou a me aproximar do direito empresarial, já que meu chefe não pôde aceitar um emprego de professor nessa área e me indicou. Mergulhei de cabeça nesse ramo do direito, fiz duas pós-graduações na FGV e iniciei o doutorado na PUC-SP. Nesse ínterim, percebi que o mercado editorial carecia de um manual de direito empresarial com linguagem mais simples e didática. Pelo fato de a editora que aceitou publicar a primeira edição ser voltada para as pessoas que se preparam para concursos públicos, o livro vendeu muito bem. Mais uma vez, o destino me ajudou.

O direito empresarial vive um momento delicado. A tentativa de unificação do direito privado levada a efeito pelo Código Civil de 2002 não foi boa para ele. A onda "socializante" e "publicizante" das ciências jurídicas atingiu o direito empresarial em cheio; logo ele, o regime jurídico dos empresários, que precisa, pois, ser mais liberal e menos intervencionista.

No momento, um projeto de lei em trâmite na Câmara prevê a instituição de um novo Código Comercial brasileiro, que revogaria todas as regras do Código Civil de 2002 que cuidam da matéria, bem como as regras remanescentes do Código Comercial de 1850. A idéia de um novo Código Comercial, em si, é boa, mas traz consigo o perigo de que regras ainda mais intervencionistas sejam aprovadas. Por isso, o meio empresarial e os defensores do livre mercado devem acompanhar com bastante atenção a tramitação desse projeto de lei. Como eu escrevi em artigo recente, o novo Código Comercial é a "última trincheira" em defesa do livre mercado em nosso ordenamento jurídico.

16. Que dizer a quem está um pouco decepcionado com os rumos do país?

Que vale a pena lutar pela liberdade, como tantos grandes homens e mulheres fizeram ao longo de toda a história. E lutar pela liberdade é, em última instância, defender o indivíduo contra a opressão estatal. Não pode haver luta mais nobre e glorificante.

André Luiz Santa Cruz Ramos é Procurador Federal, mestre e doutorando em Direito Empresarial, e autor bestseller na área jurídica, sendo o autor de livros como Curso de Direito Empresarial (JusPodivm) e Direito Empresarial Esquematizado (Método). Ouça sua entrevista concedida ao IMB.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A MENTALIDADE DA ESQUERDA E SEUS ESTRAGOS SOBRE OS MAIS POBRES


Quando adolescentes criminosos e assassinos são rotulados de "jovens problemáticos" por pessoas que se identificam como sendo de esquerda, isso nos diz mais sobre a mentalidade da própria esquerda do que sobre esses criminosos violentos propriamente ditos.

Raramente há alguma evidência de que os criminosos sejam meramente 'problemáticos', e frequentemente abundam evidências de que eles na realidade estão apenas se divertindo enormemente ao cometer seus atos criminosos sobre terceiros.

Por que então essa desculpa já arraigada? Por que rotular adolescentes criminosos de "jovens problemáticos" e supor que maníacos homicidas são meros "doentes"?

Pelo menos desde o século XVIII a esquerda vem se esforçando para não lidar com o simples fato de que a maldade existe — que algumas pessoas simplesmente optam por fazer coisas que elas sabem de antemão serem erradas. Todo o tipo de desculpa, desde pobreza até adolescência infeliz, é utilizada pela esquerda para explicar, justificar e isentar a maldade. 

Todas as pessoas que saíram da pobreza ou que tiveram uma infância infeliz, ou ambas, e que se tornaram seres humanos decentes e produtivos, sem jamais praticarem atos violentos, são ignoradas pela esquerda, que também ignora o fato de que a maldade independe da renda e das origens, uma vez que ela também é cometida por gente criada na riqueza e no privilégio, como reis, conquistadores e escravocratas.

Logo, por que a existência do mal sempre foi um conceito tão difícil para ser aceito por muitos da esquerda? O objetivo básico da esquerda sempre foi o de mudar as condições externas da humanidade. Mas e se o problema for interno? E se o verdadeiro problema for a perversidade dos seres humanos?

Rousseau negou esta hipótese no século XVIII e a esquerda a vem negando desde então. Por quê? Autopreservação. Afinal, se as coisas que a esquerda quer controlar — instituições e políticas governamentais — não são os fatores definidores dos problemas do mundo, então qual função restaria à esquerda?

E se fatores como a família, a cultura e as tradições exercerem mais influência positiva do que as novas e iluminadas "soluções" governamentais que a esquerda está constantemente inventando? E se a busca pelas "raízes da criminalidade" não for nem minimamente tão eficaz quanto retirar criminosos de circulação? As estatísticas ao redor do mundo mostram que as taxas de homicídio estavam em declínio durante as décadas em que vigoravam as velhas e tradicionais práticas tão desdenhadas pela intelligentsia esquerdista. Já quando as novas e brilhantes ideias da esquerda ganharam influência, no final da década de 1960, a criminalidade e violência urbana dispararam.

O que houve quando ideias antiquadas sobre sexo foram substituídas, ainda na década de 1960, pelas novas e brilhantes ideias da esquerda, as quais foram introduzidas nas escolas sob a alcunha de "educação sexual" e que supostamente deveriam reduzir a gravidez na adolescência e as doenças sexualmente transmissíveis? Tanto a gravidez na adolescência quanto as doenças sexualmente transmissíveis vinham caindo havia anos. No entanto, esta tendência foi subitamente revertida na década de 1960 e atingiu recordes históricos.

Desarmamento

Uma das mais antigas e mais dogmáticas cruzadas da esquerda é aquela em prol do desarmamento. Aqui, novamente, o enfoque está nas questões externas — no caso, nas armas.

Se as armas de fato fossem o problema, então leis de controle de armas poderiam ser a resposta. Mas se o verdadeiro problema são aquelas pessoas malvadas que não se importam com a vida de outras pessoas — e nem muito menos para as leis —, então o desarmamento, na prática, fará apenas com que pessoas decentes e cumpridoras da lei se tornem ainda mais vulneráveis perante pessoas perversas.

Dado que a crença no desarmamento sempre foi uma grande característica da esquerda desde o século XVIII, em todos os países ao redor do mundo, seria de se imaginar que, a esta altura, já haveria incontáveis evidências dando sustentação a esta crença. No entanto, evidências de que o desarmamento de fato reduz as taxas de criminalidade em geral, ou as taxas de homicídio em particular, raramente são mencionadas por defensores do controle de armas. Simplesmente se pressupõe, de passagem, que é óbvio que leis mais rigorosas de controle de armas irão reduzir os homicídios e a criminalidade.

No entanto, a crua realidade não dá sustento a esta pressuposição. É por isso que são os críticos do desarmamento que se baseiam em evidências empíricas, todas elas magnificamente coletadas nos livros "More Guns, Less Crime", de John Lott, e "Guns and Violence", de Joyce Lee Malcolm. [Veja nossos artigos sobre desarmamento]. Mas que importância têm os fatos perante a visão inebriante e emotiva da esquerda?

Pobres

A esquerda sempre se arrogou a função de protetora dos "pobres". Está é uma de suas principais reivindicações morais para adquirir poder político. Porém, qual a real veracidade desta alegação?

É verdade que líderes de esquerda em vários países adotaram políticas assistencialistas que permitem aos pobres viverem mais confortavelmente em sua pobreza. Mas isso nos leva a uma questão fundamental: quem realmente são "os pobres"?

Se você se baseia em uma definição de pobreza inventada por burocratas, como aquela que inclui um número de indivíduos ou de famílias abaixo de algum nível de renda arbitrariamente estipulado pelo governo, então realmente é fácil conseguir estatísticas sobre "os pobres". Elas são rotineiramente divulgadas pela mídia e gostosamente adotadas por políticos. Mas será que tais estatísticas têm muita relação com a realidade?

Houve um tempo em que "pobreza" tinha um significado concreto — uma quantidade insuficiente de comida para se manter vivo, ou roupas e abrigos incapazes de proteger um indivíduo dos elementos da natureza. Hoje, "pobreza" significa qualquer coisa que os burocratas do governo, que inventam os critérios estatísticos, queiram que signifique. E eles têm todos os incentivos para definir pobreza de uma maneira que abranja um número suficientemente alto de pessoas, pois isso justifica mais gastos assistencialistas e, consequentemente, mais votos e mais poder político.

Em vários países do mundo, não são poucas as pessoas que são consideradas pobres, mas que, além de terem acesso a vários bens de consumo que outrora seriam considerados luxuosos — como televisão, computador e carro —, são também muito bem alimentadas (em alguns casos, até mesmo apresentam sobrepeso). No entanto, uma definição arbitrária de palavras e números concede a essas pessoas livre acesso ao dinheiro dos pagadores de impostos.

Esse tipo de "pobreza" pode facilmente vir a se tornar um modo de vida, não apenas para os "pobres" de hoje, mas também para seus filhos e netos.

Mesmo quando esses indivíduos classificados como "pobres" têm o potencial de se tornar membros produtivos da sociedade, a simples ameaça de perder os benefícios assistencialistas caso consigam um emprego funciona como uma espécie de "imposto implícito" sobre sua renda futura, imposto este que, em termos relativos, seria maior do que o imposto explícito que incide sobre o aumento da renda de um milionário.

Em suma, as políticas assistencialistas defendidas pela esquerda tornam a pobreza mais confortável ao mesmo tempo em que penalizam tentativas de se sair da pobreza. Exceto para aqueles que acreditam que algumas pessoas nascem predestinadas a serem pobres para sempre, o fato é que a agenda da esquerda é um desserviço para os mais pobres, bem como para toda a sociedade. Ao contrário do que outros dizem, a enorme quantia de dinheiro desperdiçada no aparato burocrático necessário para gerenciar todas as políticas sociais não é nem de longe o pior problema dessa questão.

Se o objetivo é retirar pessoas da pobreza, há vários exemplos encorajadores de indivíduos e de grupos que lograram este feito, e nos mais diferentes países do mundo.

Milhões de "chineses expatriados" emigraram da China completamente destituídos e quase sempre iletrados. E isso ocorreu ao longo dos séculos. Independentemente de para onde tenham ido — se para outros países do Sudeste Asiático ou para os EUA —, eles sempre começaram lá embaixo, aceitando empregos duros, sujos e frequentemente perigosos.

Mesmo sendo frequentemente mal pagos, estes chineses expatriados sempre trabalhavam duro e poupavam o pouco que recebiam. Era uma questão cultural. Vários deles conseguiram, com sua poupança, abrir pequenos empreendimentos comerciais. Por trabalharem longas horas e viverem frugalmente, eles foram capazes de transformar pequenos negócios em empreendimentos maiores e mais prósperos. Eles se esforçaram para dar a seus filhos a educação que eles próprios não conseguiram obter.

Já em 1994, os 57 milhões de chineses expatriados haviam criado praticamente a mesma riqueza que o bilhão de pessoas que viviam na China.

Variações deste padrão social podem ser encontradas nas histórias de judeus, armênios, libaneses e outros emigrantes que se estabeleceram em vários países ao redor do mundo — inicialmente pobres, foram crescendo ao longo de gerações até atingirem a prosperidade. Raramente recorreram ao governo, e quase sempre evitaram a política ao longo de sua ascensão social.

Tais grupos se concentraram em desenvolver aquilo que economistas chamam de "capital humano" — seus talentos, habilidades, aptidões e disciplina. Seus êxitos frequentemente ocorreram em decorrência daquela palavra que a esquerda raramente utiliza em seus círculos refinados: "trabalho".

Em praticamente todos os grupos sociais e étnicos, existem indivíduos que seguem padrões similares para ascenderem da pobreza à prosperidade. Mas o número desses indivíduos em cada grupo faz uma grande diferença para a prosperidade ou a pobreza destes grupos como um todo.

A agenda da esquerda — promover a inveja e o ressentimento ao mesmo tempo em que vocifera exigindo ter "direitos" sobre o que outras pessoas produziram — é um padrão que tem se difundido em vários países ao redor do mundo.

Esta agenda raramente teve êxito em retirar os pobres da pobreza. O que ela de fato logrou foi elevar a esquerda a cargos de poder e a posições de autoexaltação — ao mesmo tempo em que promovem políticas com resultados socialmente contraproducentes.

A arrogância

É difícil encontrar um esquerdista que ainda não tenha inventado uma nova "solução" para os "problemas" da sociedade. Com frequência, tem-se a impressão de que existem mais soluções do que problemas. A realidade, no entanto, é que vários dos problemas de hoje são resultado das soluções de ontem.

No cerne da visão de mundo da esquerda jaz a tácita presunção de que pessoas imbuídas de elevados ideais e princípios morais — como os esquerdistas — sabem como tomar decisões para outras pessoas de forma melhor e mais eficaz do que estas próprias pessoas.

Esta presunção arbitrária e infundada pode ser encontrada em praticamente todas as políticas e regulamentações criadas ao longo dos anos, desde renovação urbana até serviços de saúde. Pessoas que nunca gerenciaram nem sequer uma pequena farmácia — muito menos um hospital — saem por aí jubilosamente prescrevendo regras sobre como deve funcionar o sistema de saúde, impondo arbitrariamente seus caprichos e especificidades a médicos, hospitais, empresas farmacêuticas e planos de saúde.

Uma das várias cruzadas internacionais empreendidas por intrometidos de esquerda é a tentativa de limitar as horas de trabalho de pessoas de outros países — especialmente países pobres — em empresas operadas por corporações multinacionais. Um grupo de monitoramento internacional se autoatribuiu a tarefa de garantir que as pessoas na China não trabalhem mais do que as legalmente determinadas 49 horas por semana.

Por que grupos de monitoramento internacional, liderados por americanos e europeus abastados, imaginam ser capazes de saber o que é melhor para pessoas que são muito mais pobres do que eles, e que possuem muito menos opções, é um daqueles insondáveis mistérios que permeiam a intelligentsia.

Na condição de alguém que saiu de casa aos 17 anos de idade, sem ter se formado no colégio, sem experiência no mercado de trabalho, e sem habilidades específicas, passei vários anos de minha vida aprendendo da maneira mais difícil o que realmente é a pobreza. Um dos momentos mais felizes durante aqueles anos ocorreu durante um breve período em que trabalhei 60 horas por semana — 40 horas entregando telegramas durante o dia e 20 horas trabalhando meio período em uma oficina de usinagem à noite.

Por que eu estava feliz? Porque antes de encontrar estes dois empregos eu havia gasto semanas procurando desesperadamente qualquer emprego. Minha escassa poupança já havia evaporado e chegado literalmente ao meu último dólar quando finalmente encontrei o emprego de meio período à noite em uma oficina de usinagem.

Passei vários dias tendo de caminhar vários quilômetros da pensão em que morava no Harlem até a oficina de usinagem, que ficava imediatamente abaixo da Ponte do Brooklyn, e tudo para poupar este último dólar para poder comprar pão até finalmente chegar o dia de receber meu primeiro salário.

Quando então encontrei um emprego de período integral — entregar telegramas durante o dia —, o salário somado dos dois empregos era mais do que tudo que eu já havia ganhado antes. Foi só então que pude pagar a pensão, comer e utilizar o metrô para ir ao trabalho e voltar.

Além de tudo isso, ainda conseguia poupar um pouco para eventuais momentos difíceis. Ter me tornado capaz de fazer isso era, para mim, o mais próximo do nirvana a que já havia chegado. Para a minha sorte, naquela época não havia nenhum intrometido de esquerda querendo me impedir de trabalhar mais horas do que eu gostaria.

Havia um salário mínimo, mas, como o valor deste havia sido estipulado em 1938, e estávamos em 1949, seu valor já havia se tornado insignificante em decorrência da inflação. Por causa desta ausência de um salário mínimo efetivo, o desemprego entre adolescentes negros no ano de 1949, que foi um ano de recessão, era apenas uma fração do que viria a ser até mesmo durante os anos mais prósperos desde a década de 1960 até hoje.

À medida que os moralmente ungidos passaram a elevar o salário mínimo, a partir da década de 1950, o desemprego entre os adolescentes negros disparou. Hoje, já estamos tão acostumados a taxas tragicamente altas de desemprego neste grupo, que várias pessoas não fazem a mais mínima ideia de que as coisas nem sempre foram assim — e muito menos que foram as políticas da esquerda intrometida que geraram tais consequências catastróficas.

Não sei o que teria sido de mim caso tais políticas já estivessem em efeito em 1949 e houvessem me impedido de encontrar um emprego antes de meu último dólar ser gasto.

Minha experiência pessoal é apenas um pequeno exemplo do que ocorre quando suas opções são bastante limitadas. Os prósperos intrometidos da esquerda estão constantemente promovendo políticas — como encargos sociais e trabalhistas — que reduzem ainda mais as poucas opções existentes para os pobres. Quando não reduzem empregos, tais políticas afetam sobremaneira seus salários.

Parece que simplesmente não ocorre aos intrometidos que as corporações multinacionais estão expandindo as opções para os pobres dos países do terceiro mundo, ao passo que as políticas defendidas pela esquerda estão reduzindo suas opções.

Os salários pagos pelas multinacionais nos países pobres normalmente são muito mais altos do que os salários pagos pelos empregadores locais. Ademais, a experiência que os empregados ganham ao trabalhar em empresas modernas transforma-os em mão-de-obra mais valiosa, e fez com que na China, por exemplo, os salários passassem a subir a porcentagens de dois dígitos anualmente.

Nada é mais fácil para pessoas diplomadas do que imaginar que elas sabem mais do que os pobres sobre o que é melhor para eles próprios. Porém, como alguém certa vez disse, "um tolo pode vestir seu casaco com mais facilidade do que se pedisse a ajuda de um homem sábio para fazer isso por ele".

Por: Thomas Sowell , um dos mais influentes economistas americanos, é membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford. Seu website: www.tsowell.com.

Tradução de Leandro Roque

LEIA MAIS E VEJA MENOS TELEVISÃO...


Já sabíamos que o brasileiro não tem no hábito da leitura um de seus hobbies preferidos. Agora isso foi quantificado em pesquisa do IBGE, divulgada pelo GLOBO:

Estudo piloto feito pelo IBGE em quatro estados (Pará, São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco) mais o Distrito Federal, com mais de 5 mil pessoas com 10 anos ou mais, dissecou essa repartição do tempo, e a leitura ocupa fatia residual no dia do brasileiro: apenas seis minutos em média por dia, enquanto ficamos 2h35m na frente da televisão. O estudo, inédito, mostrou também o que a percepção das pessoas já comprovou. Fazemos várias coisas ao mesmo tempo: 61% dos entrevistados praticaram atividades simultâneas, o que aumenta o dia em quatro horas e 52 minutos. 

É tempo demais em frente a TV e de menos em frente a um livro! Isso para não falar da qualidade desse livro, quando, em ato raro, o brasileiro resolve encará-lo. Depois não adianta culpar a TV Globo por seus programas… é o povo brasileiro que escolhe!

A leitura é um hábito maravilhoso. Eu posso atestar que ela muda a nossa vida, para melhor! Uma boa literatura é sinônimo de momentos mágicos imersos em uma história interessante, que engrandece a vida, que alimenta a alma.

Sou suspeito para falar, pois sou viciado em livros, daqueles que ficam muito angustiados quando olham para a estante (ou para o Kindle – sim, eu tive que ceder ao seu “encanto” pela praticidade e falta de espaço nas estantes), pensando em qual será a próxima “viagem”.

Espero que cada vez mais brasileiros possam ser mordidos por essa “mosca” e passem a ler mais. Não vão perder muita coisa se desligarem a TV por mais alguns minutos. Muito pelo contrário.

PS: Essa enorme dispersão de quem faz várias coisas simultâneas é filhote dos tempos modernos, com a tecnologia que produz hiperconectividade e ansiedade nas pessoas (um email não respondido pode até matar alguém do coração!). Há bons artigos e livros sobre o tema. Mas quando o leitor pega um bom livro para ler, o foco e a atenção são cruciais. Se o livro for bom mesmo, normalmente ele prende o leitor automaticamente. Experimente!
Por: Rodrigo Constantino 

domingo, 11 de agosto de 2013

O QUE O GOVERNO FEZ COM O NOSSO DINHEIRO?


A diversidade de temas tratados por Murray Rothbard ao longo de sua vida é realmente notável. Versando sobre economia, filosofia política, história, teoria monetária e bancária e crítica literária, Rothbard produziu obras monumentais. De tratados a livros, ensaios, artigos em revistas acadêmicas e em jornais renomados, sua produtividade no decorrer de toda a sua carreira é digna de admiração — independentemente de afinidades intelectuais.

Sua prosa direta, objetiva, clara e sempre instigante cativa leitores há décadas e faz com que suas obras propiciem uma leitura verdadeiramente prazerosa — sem jamais cair na superficialidade, apesar da linguagem simples e precisa. A presente obra é um excelente exemplo do primor de Rothbard.

A verdade é que ler Murray Rothbard é uma transformação intelectual; você nunca mais será o mesmo. Foi assim comigo e, provavelmente, será assim com você também.

Concluí minha primeira leitura da edição inglesa de "O que o governo fez com o nosso dinheiro?" em meados de 2008, em plena crise financeira mundial. Naquele momento, pouco conhecia sobre economia, muito menos sobre a chamada Escola Austríaca de economia. Mas os argumentos, a lógica, a linha de raciocínio cristalina e a contundência de suas palavras me pareceram simplesmente surpreendentes e arrebatadoras. Ao final da leitura, tive a clara sensação de que finalmente entendia a economia, de que finalmente entendia como o mundo funcionava. Era a peça que faltava no quebra-cabeça.

Entender a natureza do dinheiro é fundamental para qualquer economista — e é surpreendente o fato de que muitas faculdades no mundo sequer tratam do assunto de forma estruturada, quanto mais o estudam com profundidade. Mas não são somente economistas que precisam compreender o dinheiro. Em realidade, todos os indivíduos deveriam ter um mínimo de conhecimento do que é, como surgiu e para que ele serve. Afinal de contas, todos nós o usamos e trabalhamos diariamente para obtê-lo. Sem dúvida alguma, tanto economistas quanto leigos serão beneficiados pela leitura da presente obra.

O livro está dividido em quatro partes. Na primeira, Rothbard trata de explicar o surgimento do dinheiro em uma sociedade livre, demonstrando como o livre intercâmbio de mercadorias entre indivíduos faz com que um produto emerja como o mais líquido, tornando-se, por fim, o meio de troca universalmente aceito. Ou, simplesmente, o dinheiro. O autor prossegue destacando a evolução do dinheiro, suas propriedades, indo até o surgimento do serviço bancário e os efeitos não intencionados oriundos da violação de práticas prudentes por parte dos banqueiros.

A segunda parte lida com os efeitos da interferência governamental no âmbito monetário e bancário. Com muita destreza, Rothbard revela a enorme tentação da qual os governos sofrem de se apropriarem do dinheiro, monopolizando e/ou controlando sua produção para benefício próprio. Expondo todas as facetas das consequências da intervenção estatal, Rothbard desmascara a nociva política de inflação da moeda e seus efeitos sobre os preços dos bens e serviços. Ou, dito de outra forma, como a inflação destrói o poder de compra da moeda.

Aos leitores brasileiros, escaldados por décadas de índices de inflação de dois dígitos ou, em certos períodos, de hiperinflação, a segunda parte será muito importante e merece especial atenção. Muitos leitores, talvez, pela primeira vez entenderão o real significado de inflação. Entenderão como ela é resultado de políticas públicas, e não da ganância de empresários maldosos. Entenderão como a lei de oferta e demanda se aplica igualmente à moeda, percebendo que, quanto mais o governo a emite, menor será o seu valor unitário. Em suma, entenderão que as diversas explicações dos economistas dadas à saga inflacionária brasileira carecem de fundamento. Não há inflação de demanda, tampouco de custos. Não há por que se preocupar com a tal da inércia inflacionária, nem mesmo com o fenômeno da indexação. Basta entender que inflação é o aumento da quantidade de moeda em circulação. Simples assim.[1]

Ainda nessa parte, Rothbard analisa o surgimento — ou a criação — dos bancos centrais e como eles foram frutos diretos de sucessivas intervenções e privilégios legais concedidos pelos governos à prática bancária. Ao leitor, tornar-se-á evidente a relação simbiótica entre os governos e o sistema bancário. Antes de ingressar na terceira parte, Rothbard elucida os perniciosos efeitos de uma moeda totalmente fiduciária, isto é, sem nenhum vínculo com o dinheiro mercadoria além do puro decreto governamental.

Estabelecido o marco teórico na esfera monetária e bancária nas primeiras partes da obra, Rothbard encarrega-se, então, de examinar a história monetária do Ocidente nos últimos dois séculos, dividindo-a em nove fases distintas. Na terceira parte, portanto, o autor discorre sobre a evolução da ordem monetária, apontando as diversas falhas e debilidades de cada sistema experimentado durante esse período e identificando as causas do eventual colapso de cada uma das fases.

Talvez o único ponto fraco desta obra jaza na prematura morte de Murray Rothbard no ano de 1995, o que o impediu de continuar seu estudo acerca do colapso monetário do Ocidente até os dias atuais. Dessa forma, a análise de Rothbard estende-se somente até meados de década de 70, deixando de fora, assim, períodos importantes da ordem monetária ocidental.

Mas, em virtude do turbilhão de acontecimentos dos últimos anos, com especial destaque à crise financeira de 2008, não poderíamos deixar essa enorme lacuna histórica sem ser devidamente analisada. Por isso, temos, na quarta e última parte, uma contribuição de minha autoria, em que procuro completar a obra exatamente onde ela parou. Dando continuidade às fases identificadas por Rothbard, prossigo a analisar o desenrolar do colapso monetário nas décadas seguintes, culminando na grande crise de 2008 e nas medidas extremas e sem precedentes adotadas pelos principais governos e bancos centrais do mundo.

Ao final da obra, o leitor estará munido de um arsenal teórico potente, com pleno conhecimento acerca dos fenômenos monetários e bancários e capaz de discutir com e questionar qualquer economista ou banqueiro central. Ademais, estará imune às explicações estapafúrdias sobre a inflação e suas consequências perversas na economia. E, como complemento, perceberá que a atual crise econômica nada tem a ver com o capitalismo, e sim, na verdade, com o socialismo aplicado ao âmbito monetário. Concluirá, assim, que o livre mercado pode funcionar tão bem para a produção de dinheiro quanto de qualquer outro bem.

Portanto, é com enorme prazer que convido você, leitor, a aproveitar cada página desta magnífica obra de Murray Rothbard, publicada pela primeira vez em língua portuguesa pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil, com a sempre formidável tradução de Leandro Roque, editor do website.

Boa leitura! Por: Fernando Ulrich

Porto Alegre, julho de 2013.

PS:  O falecido senador Roberto Campos costumava enfatizar bastante esse ponto, afirmando que "o entendimento de que inflação é o aumento da emissão de moeda leva a conclusões fundamentais. Porque se entendemos que inflação é o aumento de preços, então o culpado é o empresário, pois é ele quem aumenta os preços. Mas se entendemos que inflação é o aumento da quantidade de dinheiro em circulação, aí o culpado é o governo e a coisa muda completamente de figura". É uma pena que os Fiscais do Sarney jamais entenderam essa constatação.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

CHINA PERDE O CONTROLE DA SUA ECONOMIA FRANKENSTEIN

O mundo aceitou cada vez mais a ideia de que os líderes chineses são administradores hábeis da colossal economia do país.


E parece ter-se enganado, escreveu William Pesek, correspondente em Tóquio do Bloomberg News.

Sucessivas medidas do presidente do Banco da China, Zhou Xiaochuan, de início foram aclamadas como golpes de batuta de um mestre. Mas, quando elas viraram uma espiral de marchas à ré e de mudanças de rumo, semearam mal-estar e sugeriram que as finanças do gigante comunista podem ser comparadas a um Frankestein fora de controle.

Imensas cidades fantasmas novas, rodovias, aeroportos e hidrelétricas inflaram o PIB chinês, obnubilando os investidores estrangeiros otimistas e gerando vertiginosos movimentos bancários.

O perigo, segundo Pesek, é que ninguém realmente sabe como está a saúde dos bancos estatais chineses, ou qual é o tamanho do enorme sistema de financiamento paralelo. Para Stephen Green, da Standard Charteres em Hong Kong, o sistema de crédito da China é uma “enorme e assustadora caixa preta”.

Pesek pergunta:

“Como alguém pode acreditar que a China vem crescendo a uma taxa de 7,7%, como afirma o governo, quando variáveis cruciais na sua tabela de dados são um mistério? O economista Lu Ting, do Bank of America em Hong Kong, expôs-se à ira da China ao afirmar que o superávit comercial do país era um décimo dos US$ 61 bilhões informados a partir de meados de maio. Esse caráter “ninguém sabe” do sistema de crédito da China – quantidade, qualidade, ou excessos – é ainda mais preocupante”.

A hora da verdade da China se aproxima. O governo marxista tenta adiá-la, inoculando ativos equivalentes a um sistema bancário americano a cada cinco anos.

Agora o perigo beira o pânico e os “comunicados padronizados e vagos (do Banco Central chinês) só exacerbam a aflição nos mercados”. A opacidade é método socialista, que agora não mais consegue dissimular um ente monstruoso balançando de modo assustador.

A economia chinesa virou “um monstro como Frankenstein. Uma criatura poderosa e gigantesca nascida de experimentos não ortodoxos, da qual seus criadores perdem cada vez mais o controle”, explica Pesek.

A economia desacelera, há necessidade urgente de reformas cruciais sem provocar pavor repentino nos mercados nem desestabilizar a abalada sociedade chinesa.

Embora uma dolorosa terapia de choque seja indispensável, os criadores do Frankenstein da China não parecem determinados a refreá-lo por razoes ideológicas que não respeitam e até escarnecem das leis econômicas “capitalistas”.
Por: Luis Dufaur, escritor, edita o blog Pesadelo Chinês.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

O PARAÍSO DO BOM SELVAGEM


A jornalista Miriam Leitão e o fotógrafo Sebastião Salgado começaram hoje uma matéria especial sobre os “bravos e vulneráveis” índios Awá, que vivem como caçadores e coletores na Floresta Amazônica no Maranhão. O título da reportagem no GLOBO é “Paraíso sitiado: Eles estão em perigo”. Paraíso?

Sempre chamou bastante a minha atenção essa visão romântica da vida “selvagem”. Foi Rousseau quem popularizou o conceito de “bom selvagem”, como se a vida mais natural fosse sinônimo de “pureza”, “simplicidade” e “felicidade”, sendo que a sociedade acabaria nos corrompendo. Mas a ideia não vem só dele. Até Michel de Montaigne flertou com essa visão romântica de um passado idílico e melhor.

Em seus ensaios, quando ele fala sobre os canibais, podemos notar essa vontade de crer que os “bárbaros” vivem melhor que os “civilizados”. Ele resgata também filósofos que falavam desse éden perdido, desse estágio fantástico antes de os hábitos e costumes serem alterados pela civilização. Diz Montaigne:

É um povo, diria eu a Platão, no qual não há a menor espécie de comércio; nenhum conhecimento das letras; nenhuma ciência dos números; nenhum título de magistrado nem de autoridade política; nenhum uso de servidão, de riqueza ou de pobreza; nem contratos; nem sucessões; nem partilhas; nem ocupações, exceto as ociosas; nem vestimentas; nem agricultura; nem metal; nem uso de vinho ou trigo. Mesmo as palavras que designam a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a maledicência, o perdão são inauditas.

O tom de aprovação vai ficando mais empolgado ainda. Montaigne considera tais características positivas. Mas não são! E desconheço um ser civilizado que queira regressar a esse estágio bárbaro, selvagem, natural. A vida dos índios é dura. Há hierarquia, guerras, miséria. O ser humano não nasce “bonzinho” e é corrompido depois; ele nasce uma pequena besta e precisa ser civilizado, educado. O nosso estágio natural é o da miséria e da ignorância. Quem realmente deseja voltar a isso?

Ninguém. Mas muitos gostam de sonhar que era tudo maravilhoso. Eles romantizam um passado idealizado de perfeição, de fartura, de beleza e contato simbiótico com a linda natureza (esquecendo dos nossos predadores e da dificuldade de se obter alimentos, proteção contra o frio etc). E, mesmo não invejando de fato a vida real dos selvagens, essas pessoas se sentem melhor quando os colocam em redomas e preservam sua “cultura”, seu estágio subdesenvolvido de vida, em uma espécie de “zoológico humano”.

Eu dedico uma maior reflexão a esse fenômeno em meu livro Esquerda Caviar, que será lançado em outubro pela editora Record. Até lá, digo aos leitores apenas que tomem muito cuidado com as lindas fotos que passam a imensa felicidade desses índios isolados na mata, e que redobrem o cuidado quando alguns tentarem incutir culpa no “homem branco malvado” inserido na civilização ocidental. 
Por: Rodrigo Constantino  Fonte: O GLOBO