quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O QUE REALMENTE É O MERCADO

As características da economia de mercado.

A economia de mercado é o sistema social baseado na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.

Este sistema é guiado pelo mercado. O mercado orienta as atividades dos indivíduos por caminhos que possibilitam melhor servir as necessidades de seus semelhantes. Não há, no funcionamento do mercado, nem compulsão nem coerção. O estado, o aparato social de coerção e compulsão, não interfere nas atividades dos cidadãos, as quais são dirigidas pelo mercado. O estado utiliza o seu poder exclusivamente com o propósito de evitar que as pessoas empreendam ações lesivas à preservação e ao funcionamento da economia de mercado. Protege a vida, a saúde e a propriedade do indivíduo contra a agressão violenta ou fraudulenta por parte de malfeitores internos e de inimigos externos. Assim, o estado se limita a criar e a preservar o ambiente onde a economia de mercado pode funcionar em segurança.

O slogan marxista "produção anárquica" retrata corretamente essa estrutura social como um sistema econômico que não é dirigido por um ditador, um czar da produção que pode atribuir a cada um uma tarefa e obrigá-lo a obedecer a esse comando. Todos os homens são livres; ninguém tem de se submeter a um déspota. O indivíduo, por vontade própria, se integra num sistema de cooperação. O mercado o orienta e lhe indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem estar, bem como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado.

O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo, impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho. As forças que determinam a — sempre variável — situação do mercado são os julgamentos de valor dos indivíduos e suas ações baseadas nesses julgamentos de valor. A situação do mercado em um determinado momento é a estrutura de preços, isto é, o conjunto de relações de troca estabelecido pela interação daqueles que estão desejosos de vender com aqueles que estão desejosos de comprar. Não há nada, em relação ao mercado, que não seja humano, que seja místico. O processo de mercado resulta exclusivamente das ações humanas. Todo fenômeno de mercado pode ser rastreado até as escolhas específicas feitas pelos membros da sociedade de mercado.

O processo de mercado é o ajustamento das ações individuais dos vários membros da sociedade aos requisitos da cooperação mútua. Os preços de mercado informam aos produtores o que produzir como produzir e em que quantidade. O mercado é o ponto focal para onde convergem e de onde se irradiam as atividades dos indivíduos.

A economia de mercado deve ser estritamente diferenciada do segundo sistema imaginável — embora não realizável — de cooperação social sob um regime de divisão de trabalho: o sistema de propriedade governamental ou social dos meios de produção. Esse segundo sistema é comumente chamado de socialismo, comunismo, economia planificada ou capitalismo de estado. A economia de mercado e a economia socialista (ou o capitalismo de estado) são mutuamente excludentes. Não há mistura possível ou imaginável dos dois sistemas; não há algo que se possa chamar de economia mista, um sistema que seria parcialmente socialista. A produção ou é dirigida pelo mercado, ou o é por decretos de um czar da produção, ou de um comitê de czares da produção.

Nada que seja, de alguma forma, relacionado com o funcionamento do mercado pode, no sentido praxeológico ou econômico do termo, ser chamado de socialismo. A noção de socialismo, tal como é concebida e definida por todos os socialistas, implica a ausência de um mercado para os fatores de produção e a ausência de preços para esses fatores. A "socialização" de instalações industriais, comerciais e agrícolas — isto é, a transferência de sua propriedade de privada para pública — é um método de conduzir pouco a pouco ao socialismo. 

É um passo na direção do socialismo, mas não é em si mesmo o socialismo. (Marx e os marxistas ortodoxos negaram claramente a possibilidade dessa aproximação gradual para o socialismo. Segundo suas doutrinas, a evolução do capitalismo atingirá inevitavelmente um estágio no qual, de um só golpe, ele se transformaria em socialismo).

As empresas públicas operadas pelo governo, bem como a economia da Rússia Soviética, pelo simples fato de comprarem e venderem em mercados, estão conectadas ao sistema capitalista. Dão testemunho dessa conexão ao utilizarem a moeda em seus cálculos. Assim, fazem uso dos métodos intelectuais do sistema capitalista que fanaticamente condenam.

Isto porque o cálculo econômico é a base intelectual da economia de mercado. Os objetivos perseguidos pela ação em qualquer sistema baseado na divisão do trabalho não podem ser alcançados sem o cálculo econômico. A economia de mercado calcula em termos de preços em moeda. Ser capaz de efetuar tal cálculo foi determinante na sua evolução e condiciona seu funcionamento nos dias de hoje. A economia de mercado é uma realidade porque é capaz de calcular.

Capitalismo

Todas as civilizações, até os dias de hoje, foram baseadas na propriedade privada dos meios de produção. No passado, civilização e propriedade privada sempre andaram juntas.

Aqueles que sustentam que a economia é uma ciência experimental, e apesar disso recomendam o controle estatal dos meios de produção, se contradizem lamentavelmente. Se pudéssemos extrair algum ensinamento da experiência histórica, este seria o de que a propriedade privada está inextricavelmente ligada à civilização. Não há nenhuma experiência que mostre que o socialismo poderia proporcionar um padrão de vida tão elevado quanto o que é proporcionado pelo capitalismo.

O sistema de economia de mercado nunca chegou a ser tentado de forma completa e pura. Mas, na civilização ocidental, desde a Idade Média, de um modo geral, prevaleceu uma tendência no sentido de abolir as instituições que obstruíam o funcionamento da economia de mercado. O constante progresso dessa tendência permitiu o crescimento populacional e a elevação do padrão de vida das massas a um nível sem precedente e até então inimaginável. O cidadão médio desfruta hoje de comodidades que fariam inveja a Cresus, Crasso, aos Médici e a Luís XIV.

Os problemas suscitados pela crítica socialista e intervencionista à economia de mercado são puramente de ordem econômica e só podem ser tratados por uma análise profunda da ação humana e de todos os sistemas imagináveis de cooperação social. O problema psicológico, em decorrência do qual as pessoas desprezam e menoscabam o capitalismo e chamam de "capitalista" tudo o que lhes desagrada, e de "socialista" tudo o que lhes agrada, é um problema que diz respeito à história e deve ser deixado a cargo dos historiadores. 

Os defensores do totalitarismo consideram o "capitalismo" um mal tenebroso, uma doença terrível que se abateu sobre a humanidade. Aos olhos de Marx, o capitalismo era um estágio inevitável da evolução do gênero humano, mas, ainda assim, o pior dos males; felizmente a salvação estava iminente e livraria o homem definitivamente deste desastre. Na opinião de outras pessoas, teria sido possível evitar o capitalismo se ao menos os homens fossem mais virtuosos ou mais habilidosos na escolha de políticas econômicas.

Todas essas lucubrações têm um traço comum. Consideram o capitalismo como um fenômeno ocidental que poderia ser eliminado sem alterar condições que são essenciais ao pensamento e à ação do homem civilizado. Como elas não se preocupam com o problema do cálculo econômico, não chegam a perceber as consequências que seriam produzidas pela abolição desse cálculo. Não chegam a se dar conta de que o homem socialista, para cujo planejamento a aritmética não terá nenhuma utilidade, seria, na sua mentalidade e no seu modo de pensar, inteiramente diferente dos nossos contemporâneos. Ao lidar com o socialismo, não devemos subestimar essa transformação mental, mesmo se estivéssemos dispostos a suportar silenciosamente as desastrosas consequências que adviriam para o bem estar material da humanidade.

A economia de mercado é um modo de agir, fruto da ação do homem sob a divisão do trabalho. Todavia, isto não significa que seja algo acidental ou artificial, algo que possa ser substituído por outro modo de agir qualquer. A economia de mercado é o produto de um longo processo evolucionário. É o resultado dos esforços do homem para ajustar sua ação, da melhor maneira possível, às condições dadas de um meio ambiente que ele não pode modificar. É, por assim dizer, a estratégia cuja aplicação permitiu ao homem progredir triunfalmente do estado selvagem à civilização.

Muitos autores raciocinam da seguinte forma: o capitalismo foi o sistema econômico que possibilitou as realizações maravilhosas dos últimos duzentos anos; portanto, está liquidado porque o que foi benéfico no passado não pode continuar sendo benéfico nos nosso tempo nem no futuro. Tal raciocínio está em contradição flagrante com os princípios do conhecimento experimental. Não é necessário, a essa altura, retornar novamente à questão de saber se a ciência da ação humana pode ou não adotar os métodos experimentais das ciências naturais. Mesmo se fosse possível responder afirmativamente a esta questão, seria absurdo questionar como esses experimentalistas o fazem ao inverso. A ciência experimental argumenta que, se a foi válido no passado, será válido também no futuro. Não tem cabimento afirmar o contrário: se a foi válido no passado, não o será no futuro.

A economia não é, evidentemente, um ramo da história ou de qualquer outra ciência histórica. É a teoria de toda ação humana, a ciência geral das imutáveis categorias da ação e do seu funcionamento em quaisquer condições imagináveis sob as quais o homem age. Por assim ser, constitui a ferramenta mental indispensável para lidar com os problemas históricos e etnográficos. Um historiador ou um etnógrafo que, no seu trabalho, não aproveita da melhor maneira possível todos os ensinamentos da economia, está trabalhando mal. Na realidade, ele não aborda o objeto de sua pesquisa sem estar influenciado por aquilo que despreza como teoria. Está, em cada instante de sua coleta de fatos pretensamente puros, quando os ordena e deles extrai conclusões, guiado por remanescentes confusos e deturpados de doutrinas econômicas perfunctórias, construídas desleixadamente ao longo dos séculos que precederam a elaboração de uma ciência econômica; ciência econômica esta que refutou de forma definitiva aquelas doutrinas superficiais.

Não são os economistas, e sim os seus críticos, que carecem de "senso histórico" e ignoram o fator evolução. Os economistas sempre tiveram consciência do fato de que a economia de mercado é o produto de um longo processo histórico que começou quando a raça humana emergiu dos grupos de outros primatas. Os defensores do que erroneamente é chamado de "historicismo" pretendem desfazer os efeitos das mudanças evolucionárias. A seu ver, tudo aquilo cuja existência não possa ser rastreada até um passado remoto, ou não possa ter sua origem identificada nos costumes de alguma tribo primitiva da Polinésia, é artificial, ou mesmo decadente. Consideram como prova de inutilidade e podridão de uma instituição o fato de ela ser desconhecida para os selvagens. Marx e Engels, e os professores alemães da Escola Historicista, exultaram quando tomaram conhecimento de que a propriedade privada é "apenas" um fenômeno histórico. Para eles, esta era a prova de que os seus planos socialistas eram realizáveis.

O gênio criador está em contradição com os seus contemporâneos. Enquanto pioneiro das coisas novas e das quais nunca se ouviu falar, ele está em conflito com a aceitação cega de critérios e valores tradicionais. A seu ver, a rotina de um cidadão normal, do homem médio e comum, não passa de uma estupidez. Para ele, "burguês" é sinônimo de imbecilidade. Os artistas frustrados que se satisfazem em imitar os maneirismos do gênio, a fim de esquecer e de dissimular sua própria impotência, adotam essa terminologia. Esses boêmios chamam tudo o que lhes desagrada de "burguês". Desde que Marx tornou o termo "capitalista" equivalente a "burguês", estas palavras são empregadas como sinônimas. Nos vocabulários de todas as línguas as palavras "capitalistas" e "burgueses" significam hoje tudo o que há de vergonhoso, degradante e infame. Por outro lado, chamam tudo aquilo de que gostam ou que prezam de "socialista". O esquema de raciocínio é o seguinte: um homem, arbitrariamente, chama de "capitalista" tudo o que lhe desagrada e depois deduz dessa designação que aquilo que lhe desagrada é mau.

Esta confusão semântica vai ainda mais longe. Sismondi, os apologistas românticos da Idade Média, todos os autores socialistas, a Escola Historicista prussiana e os Institucionalistas americanos ensinaram que o capitalismo é um sistema injusto de exploração que sacrifica os interesses vitais da maioria da população em benefício exclusivo de um pequeno grupo de aproveitadores. Nenhum homem decente pode defender esse sistema "insensato". Os economistas que sustentam que o capitalismo é benéfico não apenas a um pequeno grupo, mas a todas as pessoas, são "sicofantas da burguesia". Ou são obtusos demais para perceber a realidade, ou então são apologistas vendidos aos interesses egoístas da classe dos exploradores.

O capitalismo, no entender desses inimigos da liberdade e da economia de mercado, significa a política econômica defendida pelas grandes empresas e pelos milionários. Diante do fato de que alguns — certamente não todos — capitalistas e empresários ricos, nos dias de hoje, são favoráveis a medidas que restringem o livre comércio e a livre concorrência, e que resultam em monopólio, os críticos dizem: o capitalismo contemporâneo defende o protecionismo, os cartéis e a abolição da competição. E ainda acrescentam que, em um certo período do passado, o capitalismo inglês era favorável ao comércio livre, tanto no mercado interno como nas relações internacionais. Isto ocorria porque, naquela época, os interesses de classe da burguesia inglesa eram mais bem atendidos por essa política. Entretanto, as condições mudaram e, hoje, o capitalismo, isto é, a doutrina defendida pelos exploradores, é favorável a outra política.

Essa tese deforma grosseiramente tanto a teoria econômica como os fatos históricos. Houve e sempre haverá pessoas cujos interesses próprios exigem proteção para situações já estabelecidas, e que esperam obter vantagens de medidas que restringem a concorrência. Empresários envelhecidos e cansados, bem como os herdeiros decadentes de pessoas que foram bem sucedidas no passado, não gostam de empreendedores novos e ágeis que ameaçam a sua riqueza e posição social eminente. Seu desejo de tornar rígidas as condições econômicas e de impedir o progresso pode ou não ser realizado, dependendo do clima da opinião pública.

A estrutura ideológica do século XIX, influenciada pelo prestígio dos ensinamentos dos economistas liberais, tornava inúteis esses desejos. Quando os melhoramentos tecnológicos da era do liberalismo revolucionaram os métodos tradicionais de produção, transporte e comércio, aqueles cujos interesses estabelecidos foram atingidos não pediram proteção porque teria sido inútil. Mas, hoje, impedir um homem eficiente de competir com um menos eficiente é considerada uma tarefa legítima do governo. A opinião pública simpatiza com as solicitações de grupos poderosos para impedir o progresso. Não é de estranhar que, em tal ambiente, empresários menos eficientes busquem proteção contra concorrentes mais eficientes.

Seria correto descrever este estado de coisas da seguinte forma: hoje, muitos ou alguns setores empresariais não são mais liberais; não defendem uma autêntica economia de mercado, mas, ao contrário, solicitam ao governo medidas intervencionistas. Mas é inteiramente errado dizer que o significado do conceito de capitalismo mudou e que o atual capitalismo ou "capitalismo tardio" — como é chamado pelos marxistas — seja caracterizado por políticas restritivas que visem a proteger interesses constituídos de assalariados, agricultores, lojistas, artesãos e também, às vezes, de capitalistas e empresários. O conceito de capitalismo, como conceito econômico, é imutável; se tem algum significado, significa economia de mercado.

Se aquiescermos em usar uma terminologia diferente, ficaremos privados das ferramentas semânticas próprias para lidar adequadamente com os problemas da história contemporânea e das políticas econômicas. Essa nomenclatura defeituosa só se torna compreensível quando percebemos que os pseudoeconomistas e os políticos que a utilizam querem evitar que as pessoas saibam o que é realmente a economia de mercado. Querem que as pessoas acreditem que todas as medidas repulsivas de intervenção estatal são provocadas pelo "capitalismo".

Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

terça-feira, 20 de agosto de 2013

DETROIT, A CIDADE QUEBRADA


As lições a serem aprendidas com a falência de Detroit, uma cidade que já foi o exemplo cintilante do poderio industrial americano, estão sendo ignoradas pela mídia e por políticos mundo a fora. Embora a espiral de morte da cidade do automóvel possa parecer extrema em relação às condições de outros governos, a diferença é apenas de grau, e não de organização. A falência de Detroit é produto de uma combinação entre decadência produtiva, governos incompetentes, sindicatos agressivos e endividamento incontrolável. 

Como que para comprovar que políticos só pensam em contar mentiras reconfortantes para eleitores, o atual candidato a prefeito de Detroit, Tom Barrow, garantiu de maneira vigorosa que a crise fiscal da cidade não passa de pura ficção. Em uma recente entrevista, ele descreveu uma conspiração de longo prazo entre forças do Partido Republicano e do setor privado para roubar os ativos dos cidadãos de Detroit, destruir os sindicatos e acabar com os direitos civis dos eleitores. Detalhe: a cidade está sob inteiro controle do Partido Democrata desde o início da década de 1960.

Graças a anos de excessivos e generosos gastos governamentais, a cidade não possui hoje recursos para financiar nem mesmo os serviços mais básicos para sua população. Não são poucos os que afirmam que Detroit é tão digna de socorro federal quanto aquelas cidades devastadas por desastres naturais, como furacões e terremotos. A questão é que não há nada de "natural" no desastre fiscal de Detroit.

A verdadeira história de Detroit é que seus problemas, em vez de naturais, foram totalmente 'criados pelo homem', e podem ser resumidos em sete palavras: o setor privado construiu, o governo destruiu. Essa é a manchete percuciente que infelizmente está ausente da cobertura midiática.

Na primeira metade do século XX, Detroit oferecia empregos industriais para aproximadamente 200.000 trabalhadores. O efervescente mercado de trabalho fez com que a população da cidade crescesse para 1,8 milhão de pessoas até a década de 1950. E os empregos não vieram de programas governamentais ou de "investimentos" públicos em educação e programas de treinamento; eles foram criados pela vitalidade do capitalismo americano, pela visão estratégica e voltada para o longo prazo de industrialistas, pela forte ética do trabalho da população, e pela relativa ausência de interferência do governo e dos sindicatos. (As três grandes fabricantes de automóveis — GM, Ford e Chrysler — só começariam a lidar com o poderoso sindicato United Auto Workers em 1941).

Qualquer um que já teve o prazer de encontrar um carro americano clássico, como um Oldsmobile 8 Convesível de 1934 ou um Chrysler Town & Country de 1941, é capaz de entender por que Detroit prosperou da forma como prosperou. Não apenas estes carros eram impressionantes obras de engenharia e de perícia profissional, como também eram surpreendentemente acessíveis para vários americanos de classe média. A riqueza gerada pelos grandes fabricantes destes automóveis, bem como pela variedade de pequenos fabricantes que lhes forneciam peças e serviços, fluía para todas as classes de pessoas em Detroit, permitindo à cidade construir imponentes prédios e espaços cívicos, estabelecer instituições artísticas de nível internacional, e contribuir enormemente para as realizações culturais do país.

Porém, quando a cidade atingiu seu apogeu, toda a sua riqueza se tornou tentadora demais para as organizações sindicais e para todas as esferas de governo (federal, estadual, municipal). Embora Detroit continuasse a produzir e a prosperar durante toda a década de 1950, foi na década de 1960, mais especificamente após a guerra do Vietnã, que ocorreu a inflexão da indústria automotiva e da cidade que a representava. Não obstante a própria indústria automotiva ter a sua parcela de culpa — sua estrutura burocrática e sua arrogância míope a deixaram despreparadas para a concorrência estrangeira, o que certamente contribuiu para seu próprio declínio nos anos pós-guerra —, a real culpa deve ser atribuída diretamente aos sindicatos e ao governo. Tendo de enfrentar o inabalável poder de uma força de trabalho monopolizada e protegida pela poderosa máquina política controlada pelo Partido Democrata, que comanda a cidade desde a década de 1960, as fabricantes de automóveis tiveram de aquiescer com seguidos aumentos salariais, com leis trabalhistas restritivas, e com generosas e crescentes pensões, o que inviabilizou totalmente sua capacidade de investimento. Era simplesmente impossível sobreviver a esse conjunto de demandas.

Politicamente, a própria dinâmica eleitoral de uma cidade fortemente sindicalizada criou uma tempestade perfeita para Detroit. Prefeitos e vereadores passaram a ser eleitos exclusivamente de acordo com sua capacidade de prometer cada vez mais benesses para os sindicatos e seus membros, os quais, obviamente, irrigavam seus políticos preferidos com nababescas doações de campanha. E, embora as fabricantes fossem livres para apoiar os candidatos que quisessem, não havia como concorrer em número com os reais eleitores, que eram os sindicatos, os operários e suas famílias. Como resultado, desde a década de 1960, Detroit passou a sofrer com gerações de governos corruptos e incompetentes financiados por sindicatos corruptos e incompetentes. Ambos os lados não possuem a mais mínima compreensão de como sua cidade foi construída e de como as promessas que estavam fazendo para as gerações futuras jamais poderiam ser mantidas tão logo as indústrias sucumbissem sob a pesada mão da tributação, das regulações e da coerção sindical.

No final da década de 1950, a população caucasiana começou a sair da cidade, mudando-se para a região norte, acima da mítica 8 Mile (veja o filme homônimo com o rapper Eminem). Os violentos distúrbios de 1967 intensificaram ainda mais este êxodo, o qual a mídia rotulou de "fuga dos brancos". Em 1974, foi eleito o prefeito Coleman A. Young, com um forte discurso anti-brancos, que ficaria no poder por incríveis 20 anos e intensificaria ainda mais a "fuga dos brancos". O legado de Young foi desastroso. Durante seu reinado, a cidade foi imersa em inúmeros escândalos de corrupção ao mesmo tempo em que a administração, com sua retórica fortemente racial, foi criando um verdadeiro e profundo apartheid urbano. Dentre os principais "feitos" de Young estão a adoção de políticas de ação afirmativa como critério padrão para se preencher empregos municipais; um departamento de polícia chafurdado em escândalos e ligado ao narcotráfico, o que culminou com o chefe de polícia indo para a cadeia; a terceirização de obras públicas exclusivamente para empresas formadas por minorias, independentemente de sua qualificação; e a imposição de que todas as empreiteiras que fizessem obras com dinheiro da prefeitura contratassem nativos de Detroit.

Tudo isso gerou um enorme êxodo populacional, o que encolheu ainda mais a base tributária. Atualmente, a população de Detroit é de apenas 40% do que era em seu auge, e o número de empregos na indústria caiu 90%, para menos de 20.000. Enquanto isso, a dívida municipal é de mais de US$18 bilhões, o que equivale a aproximadamente de US$25.000 por cidadão. E isso em uma cidade em que menos da metade da população adulta está empregada e praticamente metade é formada por analfabetos funcionais. 

A cidade prometeu mais de US$3 bilhões para 20.000 pensionistas municipais (US$150.000 para cada um), um dinheiro que simplesmente não existe. Kevin Orr, escolhido para administrar o processo de falência de Detroit, recentemente veio a público mostrar que a cidade gasta 38 cents de cada dólar de imposto com estes "custos herdados", e a previsão é que tal cifra irá crescer para 65 cents. Isso significa simplesmente que não sobrou nenhum dinheiro para administrar a cidade. E em vez de reconhecer estes problemas, os políticos de Detroit, bem como o atual candidato a prefeito, preferem apenas fingir que eles não existem.

A boa notícia é que as mesmas forças que construíram Detroit podem ajudar a reerguer a cidade, desde que deixadas livres para atuar. Em primeiro lugar, Detroit tem de declarar moratória em sua dívida. Isso significa que aqueles indivíduos que contavam com suas pensões nababescas, investidores que compraram títulos municipais e demais cidadãos comuns irão sofrer. O governo municipal, por sua vez, se tornará totalmente indigno de crédito, o que significa que investidores não mais irão retirar dinheiro do setor produtivo para emprestar para a burocracia municipal. Tão logo esse processo doloroso esteja completo, Detroit passará a apresentar várias vantagens. Seus imóveis estarão inacreditavelmente baratos e a cidade terá uma mão-de-obra desesperada por trabalho. Se o governo relaxar as regulamentações e as leis trabalhistas, cortar impostos, adotar uma linha dura com relação às táticas de intimidação dos sindicatos, e abolir o salário mínimo, empreendedores poderão vislumbrar ali uma oportunidade e voltar para a cidade.

Muito embora a indústria não possa oferecer os altos salários que oferecia no passado, Detroit ao menos voltaria a fornecer empregos. E embora a cidade fosse retroceder gerações, ela ao menos estaria apresentando algum dinamismo. Mas a verdade é que a esquerda entraria em erupção e irromperia em fúria. Estamos programados para interpretar tais medidas de mercado como sendo apenas um exemplo cruel de 'exploração gananciosa' em vez de entendê-las como sendo a maneira natural como o capitalismo cura os excessos do intervencionismo e recomeça o jogo. A esquerda prefere ver os desempregados em sua situação atual a permitir que eles voltem a trabalhar mais horas e recebendo salários menores. 

Portanto, em vez de uma cura honesta, é de se esperar que Detroit tente sair da crise aumentando seu endividamento, reforçando suas promessas irrealistas e suplicando por socorros do governo federal, ao mesmo tempo em que seus políticos fingem estar atacando os problemas crônicos. 

No final, Detroit é apenas mais um exemplo do que ocorre quando governo e sindicatos se unem e impõem pensões dadivosas, legislações trabalhistas draconianas, regulamentações irrealistas e privilégios dignos de realeza. Acrescente a isso uma forte dose de discurso racial anti-brancos, ações afirmativas, medidas que afastam empreendedores e endividamento crescente, e você entenderá a situação atual. Embora as contas públicas de Detroit não tenham correspondentes, a cidade do automóvel é apenas um exemplo mais avançado de uma tendência que pode vir a afetar governos de todo o mundo caso eles não controlem seus gastos e seu endividamento, e não restrinjam as demandas de seus funcionários públicos e de seus sindicatos favoritos.
Por: Peter Schiff  presidente da Euro Pacific Capital e autor dos livros The Little Book of Bull Moves in Bear Markets, Crash Proof: How to Profit from the Coming Economic Collapse e How an Economy Grows and Why It Crashes. Ficou famoso por ter previsto com grande acurácia o atual cataclisma econômico. Veja o vídeo. Veja também sua palestra definitiva sobre a crise americana -- com legendas em português 
Tradução de Leandro Roque

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O PARADOXO LIBERTÁRIO - AQUILO QUE QUALQUER CRIANÇA ENTENDE, MENOS ALGUNS ADULTOS

Sempre que os libertários tentam persuadir outras pessoas, explicando a eles o que defendem, eles se deparam com um interessante paradoxo. De um lado, a mensagem libertária é simples. Ela envolve premissas morais e intuições que, em princípio, são compartilhadas por praticamente todo mundo, inclusive crianças. Não agrida ninguém. Não roube ninguém. Cuide de sua própria vida.

Uma criança diria: "Eu peguei primeiro; é meu!". Há uma noção intuitiva segundo a qual o primeiro usuário de um bem que até então não tinha proprietário adquire uma prioridade moral em relação aos retardatários. Este, também, é um aspecto central da teoria libertária.

Seguindo a tradição iniciada por Locke, Murray Rothbard e outros filósofos libertários procuraram estabelecer um relato que fosse filosófica e moralmente defensável sobre como surge a propriedade, isto é, como um bem se torna propriedade de um indivíduo. Locke afirmava que, no início dos tempos, os bens existentes na terra eram propriedade comunal, ao passo que Rothbard, mais plausivelmente, afirmava que, no início, todos os bens simplesmente não possuíam donos. Mas essa diferença não afeta a análise de ambos. Locke estava tentando justificar como alguém pode retirar um bem de sua até então propriedade comunal e passar a utilizá-lo exclusivamente, e Rothbard estava interessado em explicar como alguém pode se apropriar de um bem até então sem dono e reivindicar exclusividade sobre seu uso individual.

A resposta de Locke nos é familiar. Ele observou que, antes de tudo, cada indivíduo é o dono de seu próprio corpo. Por conseguinte, cada indivíduo se torna o proprietário de direito daqueles bens aos quais ele 'misturou' seu trabalho. Cultivar uma terra, apanhar uma maçã — qualquer que seja o exemplo, dizemos que a primeira pessoa a se apropriar de algo até então sem dono, algo que estava inerte na natureza sem nenhum proprietário e sem ter recebido nenhum tipo de trabalho, pode se autoproclamar seu proprietário legítimo. Esta é a teoria da 'apropriação original'.

Tão logo um bem que até então estava em seu estado natural é apropriado originalmente por um indivíduo, seu proprietário não mais precisa continuar trabalhando nele ou fazendo transformações para manter seu título de propriedade. Uma vez que o processo de apropriação original já ocorreu, futuros proprietários não mais poderão adquirir esta propriedade específica ao simplesmente 'misturar' seu trabalho nela — isso seria uma transgressão. As únicas maneiras, portanto, de futuros proprietários adquirirem esta propriedade específica são por meio de uma transação comercial voluntária (compra e venda) ou por meio de doação por parte de seu proprietário legítimo.

Como dito no início, todos nós intuitivamente percebemos a justiça e a moralidade imbuídas no cerne desta regra. Se o indivíduo não é o dono de si mesmo, então qual outro ser humano seria o proprietário? Se o indivíduo que transforma algum bem que até então não era propriedade de ninguém não possui um direito sobre este bem, então qual outra pessoa possui?

Além de ser justa, esta regra também serve para minimizar os conflitos. Trata-se de uma regra que todos são capazes de entender, pois é baseada em um princípio que se aplica igualmente a todas as pessoas. Ela não diz que apenas os membros de uma determinada raça ou de um determinado nível de inteligência podem ser proprietários. Trata-se de uma regra que definitivamente demarca títulos de propriedade de uma forma lógica e compreensível para todos, a qual reduz as contendas a um mínimo.

Alternativas a esse princípio do 'primeiro apropriador, primeiro usuário' são poucas e inócuas. Se não for o primeiro usuário, então quem? O quarto usuário? O décimo segundo? Mas se apenas o quarto ou o décimo segundo usuário for o proprietário de direito, então somente o quarto ou o décimo segundo usuário tem o direito de fazer alguma coisa com o bem. É isso o que significa propriedade: capacidade de fazer o que quiser com um bem, desde que, ao agir assim, o proprietário não cause danos a nenhum outro indivíduo. Atribuir títulos de propriedade por meio de algum outro método — como, por exemplo, declaração verbal — não teria efeito algum em minimizar conflitos; as pessoas simplesmente iriam gritar em vão umas com as outras, cada qual reivindicando a propriedade do bem em questão, de modo que a resolução pacífica do conflito resultante seria impossível.

Estes princípios são fáceis de entender, e, como dito, envolvem constatações de cunho moral com as quais praticamente todas as pessoas afirmam concordar e ser adeptas.

E é justamente aí que surge o paradoxo libertário. Libertários partem destes princípios básicos e universalmente entendidos e aceitos por todas as pessoas, e procuram apenas aplicá-los de forma consistente e de maneira uniforme a todas as pessoas. Porém, mesmo que as pessoas aleguem apoiar estes princípios, e mesmo que a maioria alegue acreditar na igualdade — que é o que o libertário está defendendo ao aplicar princípios morais a todas as pessoas, de maneira uniforme e sem exceção —, a mensagem libertária repentinamente se torna extremada, desarrazoada e inaceitável.

Por que é tão difícil persuadir as pessoas daquilo em que elas implicitamente já acreditam?

Não é difícil descobrir o motivo. As pessoas herdaram uma esquizofrenia intelectual do sistema educacional controlado pelo estado, da mídia que diligentemente cria entretenimentos para aliená-las, e dos intelectuais que despejam propaganda em sua cabeça.

Foi a isso que Murray Rothbard se referiu quando descreveu a relação entre o estado e os intelectuais. "A elite dominante", escreveu ele, seja ela os monarcas de outrora ou os partidos comunistas de hoje, necessita desesperadamente de elites intelectuais que criem apologias para o poder estatal. O estado governa por decreto divino; o estado assegura o bem comum e o bem-estar geral; o estado nos protege dos malvados atrás das colinas; o estado garante o pleno emprego; o estado aciona o efeito multiplicador keynesiano; o estado garante a justiça social, e por aí vai. As apologias foram se diversificando com o passar dos séculos; o efeito sempre é o mesmo.

Por que, afinal, os intelectuais fornecem seus serviços ao estado? Por que eles são tão ávidos em defender, legitimar e criar desculpas para os corredores do poder?

Rothbard tinha uma resposta:

Podemos ver o que os soberanos do estado ganham com sua aliança com os intelectuais; mas o que os intelectuais ganham com essa aliança? Intelectuais são o tipo de pessoa que acredita que, no livre mercado, eles ganham muito menos do que sua sabedoria realmente vale. Já o estado está disposto a pagar a eles salários magnânimos, seja para fazer apologias ao poder estatal, seja para lotar a miríade de cargos no aparato regulatório e redistributivo.

Adicionalmente, a classe intelectual com a qual estamos lidando quer impor sua visão, seu padrão de moralidade, à sociedade. Frédéric Bastiat dedicou boa parte de seu clássico livro A Lei a este impulso: o intelectual e o político são vistos como escultores, e a raça humana é vista como uma argila.

O que todas as instituições oficiais nos ensinam, portanto, é algo mais ou menos assim: em nome do bem-estar e do progresso da humanidade, alguns indivíduos têm de exercer poder sobre os outros. Se deixados por nossa conta, não teríamos praticamente nenhum instinto filantrópico. Todos nós cometeríamos os mais abjetos tipos de crime. O comércio se estancaria por completo, não mais haveria quaisquer inovações, e as artes e a ciência seriam negligenciadas. A raça humana se afundaria e se degeneraria em condições inomináveis, impossíveis sequer de serem contempladas.

Sendo assim, é necessário haver uma única instituição que detenha o monopólio da iniciação de força física e do poder de expropriar indivíduos. Tal instituição irá garantir que a sociedade seja moldada de acordo com os padrões adequados, que a "justiça social" seja alcançada, e que as aspirações mais profundas da humanidade tenham alguma chance de ser concretizadas.

Tão arraigadas em nossa mente estão essas ideias, que dificilmente ocorreria a alguém pensar nelas como mera propaganda. Esta simplesmente é a verdade sobre o mundo, imaginam as pessoas. É assim que as coisas são. Não podem ser de outra forma.

Mas e se elas puderem? E se realmente houver uma outra maneira de se viver? E se afinal não houver nenhum motivo para a liberdade ser tão confinada? Mais ainda: e se ela puder se expandir sem limites? E se a aversão que as pessoas nutrem ao monopólio também for aplicável ao governo assim como se aplica a todo o resto? E se o livre mercado, o mais extraordinário criador de riqueza e inovação já concebido, e o mais confiável e eficiente mecanismo de alocação de recursos escassos, for também o melhor meio de fornecer aqueles serviços cuja oferta nos foi dita que deve ficar a cargo do governo? E se o estado, o maior homicida em massa da história humana, o maior fardo ao progresso econômico e a instituição que joga uns contra outros em um jogo de soma zero baseado na pilhagem mútua, estiver retardando em vez de estimulando o bem-estar humano?

É somente quando percebemos algumas das implicações desta filosofia política, que seu poder libertador se torna claro.

Ela significa que tributação é uma afronta moral, uma vez que envolve a expropriação violenta de indivíduos pacíficos. Significa que agências reguladoras e burocracia são proibições diretas à livre iniciativa e ao ato de se empreender em busca do próprio sustento. Significa que tarifas protecionistas existem apenas para proteger os incompetentes e proibir consumidores — especialmente os mais pobres — de obter bens mais baratos e de maior qualidade. Significa que o recrutamento militar obrigatório é apenas um termo elegante e nacionalista para sequestro estatal. Significa que guerras são exemplos de homicídio em massa. Significa que o estado não é o glorioso garantidor do bem comum, mas, ao contrário, um parasita que se alimenta dos indivíduos que ele governa. 

Os anarquistas de esquerda estavam grotescamente errados ao condenarem o estado como o protetor da propriedade privada. O fato é que o estado simplesmente não sobreviveria caso não agredisse a propriedade privada. O estado não produz nada, e só sobrevive por causa do trabalho produtivo daqueles que ele expropria.

O estado é o exato oposto do livre mercado em questão de ética e de comportamento. No entanto, ainda assim são poucos os defensores do mercado que se dão ao trabalho de examinar suas premissas. Eles continuam acreditando nas seguintes ideias:

(1) O melhor sistema social é aquele em que a propriedade privada é respeitada, as pessoas são livres para incorrer em transações comerciais entre si, e não há uso de coerção.

(2) Isto, no entanto, se aplica até que a produção de determinados bens esteja em questão. Aí então é necessário haver monopólio, coerção, expropriação e decisões burocráticas — em outras palavras, a mais egrégia contradição dos princípios que alegamos defender.

Para sermos honestos, pode não ser tão fácil imaginar, a princípio, como o livre mercado ofertaria determinados bens e serviços. Além do mais, não é verdade que sempre necessitamos de que haja alguém "no comando"?

No entanto, por esse mesmo raciocínio, deveria ser igualmente difícil imaginar o sucesso do próprio livre mercado: sem alguém dando ordens centralizadamente e comandando todas as decisões de produção, como podemos esperar que agentes privados produzam justamente aquilo que as pessoas querem, especialmente quando têm de lidar com um número virtualmente infinito de possíveis combinações de recursos, cada qual sendo demandado em variados graus de intensidade por um número inimaginável de possíveis processos de produção? E é exatamente isso o que o ocorre diariamente no mercado, sem nenhuma fanfarra.

Pensadores libertários apresentaram a mais radical crítica já feita ao estado. É verdade que os marxistas alegam defender o fim do estado, mas tal defesa dificilmente pode ser levada a sério. O poder coercivo do estado possui uma função central na transição marxista do capitalismo para o socialismo. Como disse Rothbard, "É completamente absurdo tentar alcançar um arranjo sem estado por meio da mais absoluta maximização do poder estatal, a qual ocorreria em um uma ditadura totalitária do proletariado (ou, de maneira mais realista, de uma seleta vanguarda do suposto proletariado). O resultado será apenas a estatização máxima e, por conseguinte, a escravidão máxima."

E, sem a propriedade privada, como seriam tomadas as decisões de produção? Por um estado, é claro. A diferença é que os marxistas não o rotulariam de estado. Segundo Rothbard:

Com a propriedade privada misteriosamente abolida, a eliminação do estado sob o comunismo seria necessariamente uma mera camuflagem para um novo estado que surgiria para controlar e tomar as decisões sobre os recursos que agora seriam de propriedade comunal. Exceto que o estado não mais seria chamado de 'estado', mas sim renomeado para algo como "departamento estatístico popular". ... Será de pouca consolação para as futuras vítimas, encarceradas ou assassinadas por cometerem "atos capitalistas entre adultos em comum acordo" (citando uma frase tornada popular por Robert Nozick), o fato de seus opressores não serem o estado, mas sim um departamento estatístico popular. O estado, sob qualquer outro nome, continuará exalando um odor igualmente fétido.

Já aqueles conservadores que defendem um "governo limitado" querem reformar o sistema. Se tentarmos isso ou aquilo, dizem eles, podemos transformar um monopólio da violência e da expropriação em um manancial de ordem e civilização.

Nós libertários estamos a milhões de léguas de ambas essas visões. Não vemos os empregados do governo como "servidores públicos". Como é deprimente ouvir conservadores ingênuos sonhar com um retorno àquela época "nostálgica" quando o governo respondia às pessoas, e os políticos eleitos buscavam o bem comum. A situação que vivenciamos hoje, ao contrário do que estes conservadores querem acreditar, não é nenhuma aberração lamentável. É apenas a deplorável norma de um ambiente em que há um ente com o monopólio da violência e da tomada de decisões supremas.

Existem duas, e somente duas, versões desta história sobre liberdade e poder. Uma olha para o poder oriundo do estado como a fonte do progresso, da prosperidade e da ordem. A outra credita a liberdade como a responsável por essas coisas boas, bem como pelo comércio, pelas invenções, pela prosperidade, pelas artes e pela ciência, pela subjugação das doenças e da miséria extrema, e por muito mais. Para nós, a liberdade é a mãe, e não a filha, da ordem.

Alguns irão contra-argumentar dizendo que há uma terceira opção: uma criteriosa combinação entre estado e liberdade seria necessária para o desenvolvimento humano. Mas isso nada mais é do que uma apologia ao estado, uma vez que tal postura aceita como fato consumado exatamente aquilo que nós libertários questionamos: que o estado é a indispensável fonte de ordem, dentro da qual a liberdade prospera. Ao contrário, a liberdade prospera apesar do estado, e seus frutos que observamos ao nosso redor seriam ainda mais abundantes não fosse a mão pesada e morta do estado.

E eis aí um outro lado do paradoxo libertário: embora nossa filosofia advenha de uma única proposição — o princípio da não-agressão —, todo o desenvolvimento e elaboração deste princípio fornece uma inexaurível fonte de prazer intelectual à medida que exploramos como as características inerentes à sociedade humana podem se entrelaçar para atuar de forma conjunta e harmoniosa na ausência de uma coerção.

A classe intelectual tem sua tarefa e nós temos a nossa. A deles é continuar confundindo e ofuscando a mente do público; a nossa é esclarecer e explicar. A deles é escurecer; a nossa é iluminar. A deles é subjugar o indivíduo à dominação daqueles que violam os princípios morais que todas as pessoas civilizadas alegam defender e seguir; a nossa é emancipá-lo desta submissão.

Termino aqui com o paradoxo libertário final: se, por um lado, somos professores da filosofia da liberdade, por outro, enquanto continuarmos estimando e apreciando estas grandes ideias, seremos para sempre alunos. Você, libertário, continue explorando e descobrindo, lendo e escrevendo, argumentando e persuadindo. A violência é a arma do estado e de indivíduos moralmente sórdidos. O conhecimento e a mente são as ferramentas dos indivíduos livres.

Por: Lew Rockwell  presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State
Tradução de Leandro Roque

domingo, 18 de agosto de 2013

A REVOLUÇÃO CULTURAL SOCIALISTA

A América Latina caminha a passos largos rumo ao socialismo, tendo como principal exemplo a Venezuela de Hugo Chávez. São 15 países com governos alinhados ao Foro de São Paulo, cuja meta é resgatar na região aquilo que se perdeu no Leste Europeu. A "revolução bolivariana" vai se alastrando pelo continente, turbinada pelos petrodólares venezuelanos. No Brasil, encontrou alguns obstáculos institucionais mais sólidos, o que não impediu algum progresso na meta socialista. Não é possível compreender corretamente o fenômeno sem levar em conta a questão cultural, a verdadeira revolução arquitetada no campo das idéias. E quando se fala em revolução cultural, o nome de Gramsci merece destaque.

Nascido na Itália em 1891, Antônio Gramsci foi um marxista intelectual membro do Partido Socialista Italiano. Gramsci era um simpatizante da revolução bolchevique de 1917, e foi um dos fundadores do Partido Comunista Italiano. Preso pelo regime fascista de Mussolini, ele começa a escrever notas na prisão que mais tarde se tornarão os Cadernos do Cárcere. O tema central presente em seus escritos será sua estratégia de tomada do poder, distinta do modelo leninista. Para Gramsci, o "assalto ao poder" de Lênin não seria o método adequado nos países ocidentais. A estratégia gramscista de transição para o socialismo contará com aspectos mais graduais, alterando a cultura para permitir a conquista final do poder pelas classes subalternas. Esta tem sido a receita praticada na América Latina nas últimas décadas, com resultados claramente positivos do ponto de vista dos marxistas.

Fazendo sua parte na tentativa de esclarecer melhor este fenômeno, o general Sérgio Augusto de Avellar Coutinho escreveu o livro A Revolução Gramscista no Ocidente, que faz um didático resumo da concepção revolucionária de Gramsci. Conforme o próprio autor afirma, o objetivo do livro é tentar "traduzir" Gramsci, decodificar seu pensamento. Esta é uma valiosa contribuição para a causa da liberdade, justamente porque a estratégia gramscista de tomada do poder parece eficaz e está em estágio avançado na região. Conhecer melhor o inimigo é fundamental para combatê-lo de forma eficiente. E quem não entender melhor a amplitude do fenômeno, que se alastra em inúmeros aspectos culturais, ficará impotente diante do avanço socialista, do "caminho da servidão", como dizia Hayek.

Muitos preferem acreditar inclusive no óbito da ideologia socialista depois da queda do Muro de Berlim e da União Soviética. Doce ilusão! O moribundo apenas recuou um pouco, fez algumas plásticas superficiais, mudou a embalagem, mas continua bastante vivo. As idéias de Gramsci serviram justamente para esta mudança tática, para a adaptação dos socialistas à nova realidade. Mas a meta continua a mesma: conquistar o poder e criar o "novo homem" e o "novo mundo", onde a necessidade é coisa do passado burguês, as classes desaparecem e todos vivem felizes para sempre. Pode parecer incrível para alguns que esta utopia ainda possa conquistar tantos adeptos. Mas basta um olhar mais atento em volta para constatar que isso é fato: o socialismo ainda encanta muita gente. E com os instrumentos estratégicos fornecidos por Gramsci, o perigo aumenta exponencialmente.

Como explica o general Avellar Coutinho, o conceito de "sociedade civil" é central entre as categorias desenvolvidas por Gramsci. Trata-se de um espaço social público onde as pessoas se organizam em aparelhos voluntários privados para exercer a hegemonia. Seria "o lugar onde as classes subalternas são chamadas a desenvolver suas convicções, a formar o consenso e a lutar por um projeto hegemônico mais avançado". Essa hegemonia, por sua vez, seria a capacidade de influência e de direção política e cultural de um grupo social. O grupo dirigente seria justamente aquele que tem a hegemonia, ou seja, "que tem capacidade de influir e de orientar a ação política, sem uso da coerção". O que torna a estratégia gramscista tão perigosa é exatamente o fato de ela apodrecer os pilares democráticos de dentro da própria democracia, subvertendo seus valores e corroendo esses pilares.

Democracia, etimologicamente falando, quer dizer "governo do povo". No pensamento gramsciano, a burguesia é "não-povo". Portanto, a democracia seria o governo do proletariado e dos camponeses, excluindo os burgueses. Os gramscistas faltam em "democracia radical" ou "radicalismo democrático" para se referir a este modelo. Basta lembrar que o presidente Lula chegou a afirmar que na Venezuela de Chávez havia um "excesso de democracia". Essa deturpação da idéia de democracia é útil para a causa socialista, pois eles podem falar em "socialismo democrático", distanciando-se no imaginário popular do regime ditatorial adotado na União Soviética. Isso garante o respaldo de legalidade, evitando assim eventuais resistências e reações da sociedade.

Além disso, Gramsci defende o "pluralismo das esquerdas", admitindo as alianças dos partidos e das organizações de massa, principalmente para enfraquecer e neutralizar as "trincheiras" burguesas. Como explica o autor, "ele admite até alianças com partidos adversários em certas circunstâncias que contribuam para o êxito do movimento". Esse pragmatismo, uma herança maquiavélica, ajuda a manter a imagem democrática também, em relação ao modelo de partido único dos bolcheviques. O partido, o "moderno príncipe", realizará as transformações radicais que estabelecerão o socialismo, após a fase da luta hegemônica, que terá criado o clima adequado para a revolução, subvertendo os valores tradicionais da sociedade burguesa e condicionando toda a população para o socialismo.

Na estratégia gramscista, o papel dos intelectuais orgânicos é crucial. O novo intelectual não é apenas um orador eloqüente, mas um dirigente que orienta, influencia e conscientiza as massas. O grupo de luta deve lutar também pela assimilação e conquista ideológica dos intelectuais tradicionais. Estes terão participação consciente ou inconsciente, podendo assumir o papel de intelectual orgânico por convencimento e adesão, ou por ingenuidade, acomodação ou até por capitulação. Para Gramsci, todos os membros do partido, em todos os níveis, são intelectuais. Eles devem realizar na sociedade civil uma profunda transformação política e cultural, "amestrando" as classes burguesas também, levando-a a aceitar as mudanças intelectuais e morais como parte de uma natural e moderna evolução da sociedade. Para tanto, eles contam com o apoio dos organismos privados, como sindicatos e organizações não-governamentais.

Será criado na sociedade um novo senso comum, que irá destruir a capacidade individual de bom senso. Alguns velhos conceitos podem ser preservados se forem "instrumentais", bastando aprimorá-los para contribuírem também para a formação da nova mentalidade. Os meios de comunicação social (imprensa, radio e televisão) serão os principais canais de difusão do novo senso comum. Além destes, o setor editorial, a cátedra, o magistério, a expressão artística e o meio intelectual tradicional serão importantes veículos dessa transformação. Assim como a estratégia atribuída a Goebbels no nazismo, os argumentos serão repetidos ad nauseam, através de uma "orquestração".

O sistema defensivo da burguesia deverá ser neutralizado. Entre as principais instituições alvos, estão os partidos políticos, o parlamento, a classe empresarial, a Igreja, as forças armadas, o aparelho policial e a família. Como explica o autor, "o empreendimento de neutralização é complexo e é conduzido pelo amplo trabalho psicológico, político e ideológico que realiza o esvaziamento do moral do elemento humano das organizações burguesas, de tal modo que elas perdem o seu valor funcional e ético perante a sociedade civil". Serão utilizadas táticas como o "denuncismo", isolamento, constrangimento e inibição, patrulhamento, penetração ideológica e infiltração de intelectuais. Trata-se de uma batalha longa, que exige paciência, mas que cria as condições necessárias para a tomada do poder.

O uso das crises a favor do movimento também faz parte das estratégias de tomada do poder. As crises econômicas não provocam imediatamente a crise institucional, mas "permitem a difusão de certas idéias e pensamentos que se podem encaminhar para um subseqüente agravamento da crise". Como disse Roberto Campos, "os comunistas sempre souberam chacoalhar as árvores para apanhar no chão os frutos". E acrescentou: "O que não sabem é plantá-las". O fato é que os comunistas sempre exploraram as crises para expandir sua ideologia e tentar conquistar mais poder. As classes subalternas podem se apresentar como única solução institucional. O presidente Lula já usou este argumento em relação aos invasores do MST, alegando ser o único capaz de "conversar" com o movimento. Além disso, a crise parlamentar pode representar uma oportunidade interessante de tomada do poder, pois mantém todas as aparências de fidelidade ao jogo político democrático.

O objetivo final de Gramsci é o comunismo, abolindo o Estado e as classes. O meio defendido para isso é a concentração absurda de poder no Estado ampliado. A ingenuidade de quem leva a sério este tipo de coisa é realmente espantosa. Ignoram o alerta de Lord Acton, de que o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente. Para chegar à "liberdade", vão antes criar uma ditadura totalitária, e esperar que os todo-poderosos simplesmente decidam abrir mão de todo este poder. Para abolir as classes, vão criar uma enorme classe privilegiada, a "nomenklatura", e aguardar o momento em que esses privilegiados resolvam acabar com todos os privilégios. Que tipo de observador medíocre da natureza humana poderia aceitar tais premissas? Não é à toa que o comunismo parece uma nova religião, dependente da fé acima da lógica. Um "paraíso" terrestre é oferecido, prometendo o fim das necessidades, enquanto os intermediários demandam mais que o dízimo: a submissão completa do indivíduo!

Ao término do livro, o general Avellar Coutinho oferece alguns sinais do avanço da estratégia gramscista no Brasil, que não podem fugir aos olhares mais atentos. Os mais jovens não notam a mudança cultural porque não conheceram os valores antigos, e os mais velhos encaram as modificações como "naturais" ou "espontâneas", ignorando a "penetração cultural" bem conduzida pelos intelectuais orgânicos. Em primeiro lugar, temos o conceito de "politicamente correto", que passou a dominar qualquer debate e ofuscar a livre opinião ou independência intelectual. Trata-se de "socialização" da opinião, e o patrulhamento ideológico é uma poderosa arma nesse sentido. Além disso, o conceito de legalidade está sendo substituído pelo de "legitimidade", esvaziando as normas e leis em troca das "reivindicações justas". Invadir terras ou saquear estabelecimentos passam a ser atos "legítimos", pois representam um passo na luta pela "justiça social".

Existem outros exemplos, como o ataque aos valores familiares tradicionais, o uso manipulado da questão racial para negar a tolerância multirracial burguesa, o uso dos "direitos humanos" como proteção ao criminoso, identificado como vítima da "sociedade burguesa", enquanto a vítima real é tratada com indiferença por ser identificada geralmente como burguês privilegiado, a "satanização" do "bandido de colarinho branco", identificado como burguês corrupto e fraudador do povo, a utilização da "opinião pública" como critério de verdade maior que a própria lógica, o uso da ecologia como projeto superior ao desenvolvimento econômico ou mesmo o eco-terrorismo para atacar o progresso capitalista, etc.

Em suma, o projeto de conquista do poder pelos comunistas, calcados nas contribuições de Gramsci, parece estar em um estágio bem avançado na América Latina. Hugo Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, e tantos outros governantes vão conquistando cada vez mais poder. Mesmo o governo Lula conseguiu avanços nessa direção, sem falar das tentativas fracassadas como o Ancinav, Conselho Nacional de Jornalismo, etc. O próprio Lula teria dito que dirige um Fusca enquanto Chávez dirige uma Ferrari rumo ao socialismo. Mas a meta é a mesma. O pior é que, por se tratar de uma verdadeira revolução cultural, suas raízes são profundas, e dificilmente serão revertidas rapidamente. A luta pela liberdade será árdua. Mas algo precisa ser feito. Como teria dito Confúcio, "é melhor acender uma pequena vela do que praguejar contra a escuridão".
Por: Rodrigo Constantino  Resenha publicada originalmente em 2009


sábado, 17 de agosto de 2013

TUDO COMO DANTES NO CARTEL DE ABRANTES

Em junho, as multidões saíram às ruas para reclamar de tudo o que está aí – a inflação que corrói o valor da moeda com que é pago o salário do trabalhador, a corrupção desenfreada, a péssima gestão pública (principalmente na saúde, na educação e na segurança pública, mas não apenas nesses setores) e outras mazelas institucionais. Eram todos contra tudo. Em julho, milhões foram à praia de Copacabana se encantar com o papa humilde que carrega a própria maleta de mão, é favorável aos humildes e tolerante com os casais divorciados e os homossexuais. Agosto entrou com Francisco no Vaticano e os brasileiros em casa, deixando ao papa o que é do papa e aos políticos o que dos políticos é. Entre mortos e feridos salvaram-se quase todos.

De início, os políticos assustaram-se. A presidente Dilma Rousseff, de estilo bruto, embora oscilante, choramingou em particular e despejou ideias em público para “atender ao clamor das massas”. Nada do que ela propôs pegou. Tentou dar o golpe da Constituinte exclusiva para a reforma política para consolidar na Constituição ações para fazer o próprio partido crescer e prosperar: cobrar as contas pesadas das campanhas eleitorais pegando dinheiro do bolso furado do contribuinte extenuado e transferir do cidadão a escolha de seu representante para a zelite dirigente partidária pelo voto de lista. O resto – acabar com os suplentes no Senado e com as votações sigilosas nos plenários do Congresso Nacional – era a perfumaria para disfarçar o odor desagradável do oportunismo golpista sem disfarce do que só interessava de fato ao seu Partido dos Trabalhadores (PT). Ninguém havia exigido na rua a reforma política, mas o cinismo passou batido, de vez que a fábrica de factoides dos marqueteiros do Planalto trouxe à baila o plebiscito, uma consulta prévia ao povo para fazer o que não salvaria um paciente mal atendido num hospital público nem educaria uma criança no ensino público, que continua não apenas indigente como sempre foi, mas só faz piorar.

E em resposta às queixas contra a saúde pública Dilma propôs aumentar de seis para oito anos a duração dos cursos de Medicina, restaurando os trabalhos forçados extintos no século 19 no Brasil por outra mulher, a princesa Isabel. A ideia absurda foi abandonada, mas o alvo, não. Aproveitando-se do fato de os médicos muitas vezes não se comportarem à altura do que deles é exigido no cumprimento do juramento que fazem repetindo as palavras de Hipócrates, o governo transferiu para eles toda a culpa pelo péssimo atendimento, aproveitando-se do contato direto que eles têm com os pacientes, ao contrário dos gestores públicos, que ficam a confortável distância dos doentes.

Nada do que ela propôs deu solução a nada. E com a queda espetacular de 28 pontos porcentuais na preferência do voto para sua reeleição na pesquisa Datafolha em três meses (de 58% em 20 e 21 de março para 30% em 27 e 28 de junho), seus aliados se viram em condições de aumentar o preço do próprio passe, enquanto os opositores passaram a sonhar com o milagre da vitória em 2014. Mas em 7 e 9 de agosto o índice dela subiu cinco pontos e os áulicos agora aguardam a nova rodada da pesquisa para decidir se continuam mamando nas tetas oficias e permanecem em seu palanque ou lhe viram as costas em busca de perspectivas mais alvissareiras.

A pesquisa da Datafolha publicada no domingo foi uma ducha gelada no ânimo dos ingênuos que acreditam que o povo seja um coletivo virtuoso de uma massa composta por ingredientes diversos e imperfeitos de uma multidão disforme. Esta reclamou de tudo o que está ruim, mas está longe de ter a mínima ideia do que se fazer para melhorar. Dilma é o que é e a alternativa ao governo chinfrim não é algum opositor sem nada melhor a oferecer nem o ex-aliado indeciso entre os sobejos do ágape governista ou o jejum do deserto sem poder.

Ora, ora, a alternativa a Dilma é Lula, que também ganhou cinco pontinhos entre o clamor das massas e a fria calma da ressaca atual, mas passou para 51% da preferência, ou seja, mantém a perspectiva da vitória em primeiro turno. O ex-presidente não é candidato, mas continua seu padrinho e basta que transfira o cacife dele – feito de que já se mostrou capaz há três anos – para levá-la a uma inédita vitória petista no primeiro turno. E se isso não ocorresse, ela levaria vantagem sobre todos os eventuais adversários no provável segundo turno, conforme a pesquisa.

Fora do palácio, Marina Silva, da Rede, é a que mais se aproxima da favorita, mas não tão próxima assim (46% a 41%) e ainda sem condições sequer de disputar, pois não tem partido formalizado. Outro sem partido, Joaquim Barbosa, ficou em terceiro lugar, 23 pontos abaixo de Dilma (53% a 30%), com índice bem semelhante ao do tucano José Serra (52% a 31%), que deixou o correligionário Aécio Neves na poeira (53% a 29%). O desempenho de Eduardo Campos (55% a 23%) indica que o melhor que ele tem a fazer é esperar 2018.

Tudo ficou como dantes no cartel de Abrantes, o que não surpreende quem aprendeu com o Barão de Itararé que “de onde nada se espera é de onde nada virá”. Tendo perdido uma eleição municipal para o neófito Fernando Haddad, Serra nada acrescentou ao que já se sabe: ele quer ser presidente, mas não convence eleitores suficientes de que merece seu voto. Em vez disso, protagoniza o escândalo de um eventual cartel para licitações no Metrô e em trens suburbanos, que permitiu aos adversários um neologismo cruel (o trensalão) e uma dúvida nunca esclarecida de que tucanos e petistas seriam “farinha do mesmo saco”. E a presidência nacional do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de nada serviu para o senador Aécio Neves provar que é melhor do que Dilma.

As ruas calaram por falta do que propor e a sucessão não saiu da mesmice pela falta de quem proponha algo melhor. 
Por: José Nêumanne Pinto  Fonte: O Estado de S. Paulo, 14/08/2013

O STF CORRE PERIGO

No julgamento do mensalão o Supremo Tribunal Federal (STF) está decidindo a sua sorte. Mas não só: estará decidindo também a sorte da democracia brasileira. A Corte deve servir de exemplo não só para o restante do Poder Judiciário, mas para todo cidadão. O que estamos assistindo, contudo, é a um triste espetáculo marcado pela desorganização, pelo desrespeito entre seus membros, pela prolixidade das intervenções dos juízes e por manobras jurídicas.

Diferentemente do que ocorreu em 2007, quando do recebimento do Inquérito 2.245 – que se transformou na Ação Penal 470 -, o presidente Carlos Ayres Britto deixou de organizar reuniões administrativas preparatórias, que facilitariam o bom andamento dos trabalhos. Assim, tudo passou a ser decidido no calor da hora, sem que tenha havido um planejamento minimamente aceitável. Essa insegurança transformou o processo numa arena de disputa política e aumentou, desnecessariamente, a temperatura dos debates.

Desde o primeiro dia, quando toda uma sessão do Supremo foi ocupada por uma simples questão de ordem, já se sinalizou que o julgamento seria tumultuado. Isso porque não interessava aos petistas que fosse tomada uma decisão sobre o processo ainda neste ano. Tudo porque haverá eleições municipais e o PT teme que a condenação dos mensaleiros possa ter algum tipo de influência no eleitorado mais politizado, principalmente nas grandes cidades. São conhecidas as pressões contra os ministros do STF lideradas por Luiz Inácio Lula da Silva. O ex-presidente agiu de forma indigna. Se estivesse no exercício do cargo, como bem disse o ministro Celso de Mello, seria caso de abertura de um processo de impeachment.

A lentidão do julgamento reforça ainda mais a péssima imagem do Judiciário. Quando o juiz não consegue apresentar brevemente um simples voto, está sinalizando para o grande público que é melhor evitar procurar aquela instância de poder. O desprezo pela Justiça enfraquece a consolidação da democracia. Quando não se entende a linguagem dos juízes, também é um mau sinal. No momento em que observa que um processo acaba se estendendo por anos e anos – sempre havendo algum recurso postergando a decisão final – a descrença toma conta do cidadão.

Os ministros mais antigos deveriam dar o exemplo. Teriam de tomar a iniciativa de ordenar o julgamento, diminuir a tensão entre os pares, possibilitar a apreciação serena dos argumentos da acusação e da defesa, garantindo que a Corte possa apreciar o processo e julgá-lo sem delongas. Afinal, se a Ação Penal 470 tem enorme importância, o STF julga por ano 130 mil processos. E no ritmo em que está indo o julgamento é possível estimar – fazendo uma média desde a apresentação de uma pequena parcela do voto do ministro Joaquim Barbosa -, sendo otimista, que deverá terminar no final de outubro.

Esse julgamento pode abrir uma nova era na jovem democracia brasileira, tão enfraquecida pelos sucessivos escândalos de corrupção. A punição exemplar dos mensaleiros serviria como um sinal de alerta de que a impunidade está com os dias contados. Não é possível considerarmos absolutamente natural que a corrupção chegue até a antessala presidencial. Que malotes de dinheiro público sejam instrumento de “convencimento” político. Que uma campanha presidencial – como a de Lula, em 2002 – seja paga com dinheiro de origem desconhecida e no exterior, como foi revelado na CPMI dos Correios e reafirmado na Ação Penal 470.

A estratégia do PT é tentar emparedar o tribunal. Basta observar a ofensiva na internet montada para pressionar os ministros. O PT tem uma vertente que o aproxima dos regimes ditatoriais e, consequentemente, tem enorme dificuldade de conviver com qualquer discurso que se oponha às suas práticas. Considera o equilíbrio e o respeito entre os três Poderes um resquício do que chama de democracia burguesa. Se o STF não condenar o núcleo político da “sofisticada organização criminosa”, como bem definiu a Procuradoria-Geral da República, e desviar as punições para os réus considerados politicamente pouco relevantes, estará reforçando essa linha política.

Porém, como no Brasil o que é ruim sempre pode piorar, com as duas aposentadorias previstas – dos ministros Cezar Peluso, em setembro, e Ayres Britto, em novembro – o STF vai caminhar para ser uma Corte petista. Mais ainda porque pode ocorrer, por sua própria iniciativa, a aposentadoria do ministro Celso de Mello. Haverá, portanto, mais três ministros de extrema confiança do partido – em sã consciência, ninguém imagina que serão designados ministros que tenham um percurso profissional distante do lulopetismo. Porque desta vez a liderança petista deve escolher com muito cuidado os indicados para a Suprema Corte. Quer evitar “traição”, que é a forma como denomina o juiz que deseja votar segundo a sua consciência, e não como delegado do partido.

Em outras palavras, o STF corre perigo. E isso é inaceitável. Precisamos de uma Suprema Corte absolutamente independente. Se, como é sabido, cabe ao presidente da República a escolha dos ministros, sua aprovação é prerrogativa do Senado. E aí mora um dos problemas. Os senadores não sabatinam os indicados. A aprovação é considerada automática. A sessão acaba se transformando numa homenagem aos escolhidos, que antes da sabatina já são considerados nomeados.

Poderemos ter nas duas próximas décadas, independentemente de que partido detenha o Poder Executivo, um controle petista do Estado brasileiro por intermédio do STF, que poderá agir engessando as ações do presidente da República. Dessa forma – e estamos trabalhando no terreno das hipóteses – o petismo poderá assegurar o controle do Estado, independentemente da vontade dos eleitores. E como estamos na América Latina, é bom não duvidar. Por: MARCO ANTONIO VILLA, HISTORIADOR E PROFESSOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS (UFSCAR) – O Estado de S.Paulo Agosto de 2012


sexta-feira, 16 de agosto de 2013

'FALHAS DE MERCADO" E INFORMAÇÕES ASSIMÉTRICAS

O Prêmio Nobel de economia de 2001 foi concedido ao trio George A. Akerlof, Joseph E. Stiglitz e A. Michael Spence por "suas análises sobre mercados com informações assimétricas" e por seus "avanços na análise dos mercados e do controle de informação".

Quando estava no meu primeiro ano da pós-graduação, foi-me concedida a tarefa de ler a famosa monografia de George Akerlof, "O Mercado dos Limões", a qual havia sido publicada no The Quarterly Journal of Economics em 1970, e desde então é tida como um trabalho clássico.

O trabalho é bastante interessante e até mesmo intelectualmente instigante. "Limões" é altamente lido, ao contrário da maioria das coisas que são publicadas hoje nos "principais" periódicos acadêmicos sobre economia. No que mais, o trabalho representou uma bem-vinda ruptura com a tese da "informação perfeita", a qual dominou a economia neoclássica desde a época de Alfred Marshall.

O tema da "informação imperfeita" defendida por economistas é o seguinte: os indivíduos que interagem no mercado não dispõem de toda a "informação perfeita" que é necessária para fazer com que os mercados funcionem de maneira adequada, como indicado pelo ponto de equilíbrio demonstrado na famosa Interseção Marshalliana, em que oferta e demanda sempre se igualam. Considerando-se, portanto, que há essa "falha de mercado", o que os indivíduos devem fazer para que os mercados funcionem?

Ademais, os mercados também são flagelados pela assimetria de informação, que é o que ocorre quando a informação necessária para que compradores e vendedores cheguem ao "equilíbrio" não está igualmente distribuída entre todos os participantes de mercado. Akerlof fornece o exemplo do mercado de carros usados (daí o "limões" do título de sua monografia; "limões" são uma gíria para carros usados em mau estado, mas que apenas os donos sabem dessa condição).

De acordo com um ditado popular sobre o mercado de carros usados, quando alguém compra um carro usado, ele "está comprando os problemas de outra pessoa". Os compradores de carros usados possuem muito menos informação do que os vendedores sobre quais carros são "limões". O que parece ser um bom carro no estacionamento da revendedora pode perfeitamente acabar se revelando uma tremenda barca furada tão logo o novo proprietário o estiver dirigindo no centro da cidade. A perspectiva de um carro usado acabar se revelando um limão pode gerar uma espiral catastrófica no mercado de carros usados. Por causa dessa incerteza, compradores serão mais relutantes a pagar bem por um determinado carro usado, sendo que, caso eles de fato soubessem com certeza que o carro que estão comprando não é um limão, estariam dispostos a pagar mais. Em consequência dessa relutância em se pagar mais, os vendedores retirarão seus melhores carros do mercado, dado que consideram que os preços oferecidos são inadequados. Isso, por sua vez, induz os compradores a oferecer preços ainda menores, já que, com os melhores carros fora do mercado, as chances de se adquirir um limão aumentam substancialmente. Essa espiral descendente ameaça destruir esse mercado por completo.

Note que todo o problema se originou de um fato: os compradores desconfiados decidem que não há como saber se o carro é bom ou ruim, e os vendedores são incapazes de persuadi-los do contrário. Daí a teoria da "informação assimétrica": uma situação em que o vendedor ou o comprador possui alguma informação importante que o outro lado não possui.

A solução apresentado pelos economistas seguidores dessa teoria é que o governo imponha novas regulamentações ao mercado. A regulamentação, argumentam eles, obriga todos os lados a fornecerem todas as suas informações. Ademais, "leis antilimões" que obriguem os vendedores a restituir os compradores caso o carro não corresponda ao esperado irá impedir que o mercado entre em colapso.

Essa análise econômica da informação imperfeita foi criada com a intenção de abolir da ciência econômica os modelos irrealistas de "concorrência perfeita", modelos estes nos quais não há "falhas de mercado" e todos os lados obtêm todas as informações necessárias. Akerlof nem de longe foi a primeira pessoa a explorar esta área. Ludwig von Mises, F.A. Hayek, Murray N. Rothbard e Israel Kirzner já escreviam sobre isso antes de Akerlof publicar seu ensaio. (O artigo de Israel Kirzner de 1976, Knowing about Knowledge: A Subjectivist View of the Role of Information, é, em minha opinião, um ensaio bastante superior ao dos limões. Foi publicado no livroPerception, Opportunity, and Profit: Studies in the Theory of Entrepreneurship. Kirzner e os outros austríacos sabem que a informação imperfeita é parte inerente ao processo de mercado, e não um obstáculo ao funcionamento do mercado.)

Não apenas isso, como também a análise austríaca é muito superior a tudo o que foi escrito pelo trio Nobel, pois os austríacos reconhecem o papel do empreendedor em lidar com as realidades da informação imperfeita.

De acordo com Akerlof e outros, os participantes do mercado, ao lidarem com as realidades da informação imperfeita, têm pouco ou nenhum incentivo para adquirir mais informações para si próprios. Eles estão "empacados" em um desequilíbrio que não pode ser corrigido — isto é, não pode ser corrigido a menos que o governo venha ao socorro. No entanto, tanto a teoria quanto uma simples observação prática mostram que Akerlof está errado.

Em primeiro lugar, o livre mercado possui meios para fornecer informações para aqueles que delas precisam. Por exemplo, empresas frequentemente oferecem todos os tipos de suporte aos seus produtos para mostrar que elas creem que seus produtos são dignos de serem adquiridos. Elas oferecem garantias e concedem reembolso para proteger os consumidores contra eventuais defeitos e para garantir que eles fiquem satisfeitos. Se os compradores de carros querem ter mais informações sobre carros usados, por que eles não conseguiriam obtê-la? Há várias maneiras de isso ser feito.

Tenho um conhecido que é especialista em assuntos automotivos. Frequentemente ele é chamado por seus amigos, e por amigos de seus amigos, para acompanhá-los até uma revendedora para analisar os carros lá vendidos. Ele leva consigo algumas ferramentas para testar a qualidade do carro e constatar a veracidade das informações fornecidas pelo vendedor. Dentre outras coisas, ele leva um ímã o qual ele desliza ao longo do carro para descobrir se a lataria já foi danificada e se o vendedor utilizou alguma substância à base de fibra de vidro para cobrir os amassados. Especialistas como esse meu amigo podem ser livremente contratados para ir às revendedoras e "equalizar" um pouco a assimetria de informações.

Ademais, vale notar que o mercado de carros usados nunca entrou em colapso em nenhum lugar do mundo (ao menos, não nas economias razoavelmente desenvolvidas). Em vários locais, inclusive, ele é ainda mais dinâmico do que o mercado de carros novos [como aconteceu no Brasil na década de 1980, durante o Plano Cruzado]. Outra pergunta que vale ser feita é: por que se pressupõe que os vendedores dos melhores carros, ao estabelecerem seus preços, não irão levar em conta a falta da informação dos compradores?

É quase impossível encontrar uma transação na qual os indivíduos possuam exatamente as mesmas informações. Assimetrias de informações estão presentes em todos os lugares, e nenhum critério aceitável já foi proposto para separar as assimetrias "aceitáveis" das "inaceitáveis". Ademais, suponhamos que um determinado mercado realmente entre em colapso, exatamente da maneira como Akerlof descreveu. Tal colapso teria ocorrido em consequência das ações voluntárias dos consumidores, e isso não viola direitos de ninguém. Logo, não haveria nenhuma justificativa para pedir a intervenção governamental em um processo cuja ocorrência se deu justamente de acordo com os desejos do público consumidor — isto é, do mercado.

No mais, empreendedores já criaram na internet vários websites em que consumidores fornecem suas opiniões sobre vários produtos e serviços, atribuindo notas aos vendedores destes produtos e serviços. Há também vários websites em que vendedores e potenciais compradores se "encontram" e fazem ofertas, expandindo desta forma a concorrência e abrindo novos mercados para todos que quiserem participar.

Em outras palavras, as pessoas sabem criar maneiras de lidar com a questão da imperfeição das informações, as quais são, por si sós, uma mercadoria escassa e valiosa. Negar tal fato é se negar a examinar as transações que ocorrem no mundo real.

A crença de que regulamentações governamentais podem "solucionar" o "problema da informação" é risível, para não dizer completamente fora da realidade do mundo. No mínimo, o governo cria problemas de informação, pois várias regulamentações proíbem as pessoas envolvidas em transações de descobrir — ou agir de acordo com — fatos relevantes. Um bom exemplo aconteceu há alguns anos, em Washington, D.C. A câmara municipal promulgou uma lei que proibia os planos de saúde de discriminar potenciais clientes com base em doenças já adquiridas. Isto é, se um indivíduo já doente quisesse fazer um seguro-saúde para ter menos gastos, ele não poderia ser rejeitado (que é exatamente a mesma coisa de um indivíduo querer fazer um seguro anti-incêndio enquanto sua casa está sendo destruída pelo fogo). Com efeito, pela lei, as seguradoras nem sequer poderiam fazer perguntas às pessoas sobre questões relativas à saúde. Algum tempo depois, os vereadores disseram estar "estupefatos e furiosos" com o fato de os planos de saúde terem ameaçado não mais emitir apólices para absolutamente nenhum habitante da cidade.

Portanto, o governo não traz mais certeza às transações; na verdade, ele apenas piora tudo. É impossível os indivíduos saberem tudo sobre tudo. O defeito essencial da literatura sobre informação assimétrica está no fato de ela centrar-se nos incentivos relacionados a dados dispersos sobre produtos e não nas informações sobre as instituições e os procedimentos que nos permitem lidar com essa dispersão. A noção de que autoridades centrais podem corrigir imperfeições de mercado pressupõe que essas autoridades sabem exatamente quais medidas funcionarão melhor mesmo elas estando fora da experiência do mundo real. É só a experiência de mercado, com o sistema de lucros e prejuízos, que pode revelar dados sobre condições econômicas obscuras. E é só assim que podemos saber como melhor lidar com estes problemas.

Em vez de indicar a necessidade de intervenções governamentais, assimetrias de informação fazem com que o livre funcionamento do mercado seja algo ainda mais importante. Tendo como guia a busca por lucros e a aversão a prejuízos, empreendedores irão determinar os métodos menos custosos para lidar com os problemas de informação. Decretos governamentais podem até fazer com que alguns se sintam melhores, na crença de que os problemas foram resolvidos, mas a ausência de cálculos de lucro e prejuízo, para não falar também da pressão de lobistas e grupos de interesse, faz com que a possibilidade de haver resultados economicamente mais eficientes em decorrência das regulamentações esteja apenas no campo das superstições.

A vida é incerta, não importa como ela seja vivida. A ideia de que o processo político, que é uma das coisas mais volúveis da face da terra, pode fornecer as bases para a certeza e para a estabilidade é uma ideia que só pode ser defendida por quem vive em alguma espécie de dimensão paralela.

Por: William L. Anderson é um scholar adjunto do Mises Institute, leciona economia na Frostburg State University. 
Tradução de Leandro Roque

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

COMO O LIVRE MERCADO PROTEGE O MEIO AMBIENTE

A teoria econômica tradicional, baseada em postulados propostos pelo Nobel, Paul Samuelson, defende que não se pode esperar que um mercado livre proteja o meio ambiente. Nessa teoria, o ar e a água limpos são “bens públicos” cujo valor não é bem refletido pelos processos de mercado.

Poluidores potenciais não consideram os custos sociais de suas ações, mas somente os seus próprios custos. Além disso, dado que os esforços para manter o meio ambiente limpo beneficiam mesmo aqueles que não ajudam a pagar por isso, cada individual possui uma forte tentação à não pagar a conta.

Essa análise tornou-se tão aceita que muitas pessoas agora não veem alternativa ao sistema governamental de regulação e controle ambiental que tem sido construído no decorrer das ultimas duas décadas.

Esse sistema, contudo, é repleto de dificuldades. Quando as metas e controles governamentais são politicamente determinados, eles estão sujeitos a um processo que é frequentemente movido por acusações infundadas, defendidas pelo clamor público, e legislados com “interesses especiais” em mente. O sentimento populista e a política feita com fins eleitorais, ao invés de reais perigos ambientais, atualmente determinam as prioridades.

Assim, nós deveríamos estar preparados para reconsiderar a solução de livre mercado para a poluição do meio ambiente a qual funcionou no passado e poderia gerar resultados hoje. No longo prazo, a propriedade privada é a protetora mais efetiva do meio ambiente – contanto que a propriedade seja transferível e amparada pelos tribunais que torna as pessoas responsáveis quando seus poluentes invadem a propriedade de outrem. Esse sistema de propriedade privada protegeria o meio ambiente pela mesma razão que protege outros tipos de propriedade: porque ela encoraja a boa administração.

Direitos de Propriedade e Responsabilidade Final

Quando apoiada por leis de responsabilidade efetivas, os direitos de propriedade privada tendem a funcionar bem. Como propriedade bem administradas tendem a aumentar seu valor, os proprietários privados geralmente tendem a não poluir sua terra.

Essa salvaguarda funciona até melhor quando os proprietários preocupam-se somente com si próprios, não com seus herdeiros. Pois, no primeiro sinal de má administração – as primeiras indicações de erosão do solo, por exemplo – avaliadores e compradores potenciais podem projetar os resultados no futuro, e o valor da propriedade declinará imediatamente.

Com um regime de responsabilidade efetivo, essas pressões podem também impedir que as corporações espoliam terras e propriedades que não possuem. Embora disputas ocorram, as obrigações daqueles que danificam a propriedade alheia são tão amplamente aceitos que muitas pessoas nem mesmo tem de ir ao tribunal quando seus carros são danificados: as seguradoras geralmente manejam tais casos de modo rotineiro.

Infelizmente, o dano ambiental não é frequentemente tão facilmente identificável quanto um para-brisas amassado. O direito consuetudinário requer que os queixosos provem os danos e identifiquem as partes responsáveis, e embora o ônus da prova não seja tão alto quanto nos casos criminais, permanece substancial.

Para processá-lo de forma exitosa por poluir meus pulmões, eu devo mostrar que eu sofri o dano do qual estou demandando compensação. E eu devo provar que a causa do dano foi a sua poluição do ar.

Sem informações confiáveis, os proprietários não podem adequadamente defender seus direitos de propriedade no tribunal. O ar poderia ter sido contaminado por muitas fontes diferentes, por exemplo, ou os efeitos sobre a saúde são difíceis de mensurar. Dessa forma, a natureza das emissões podem tornar as leis de responsabilidade impraticáveis, particularmente no caso da poluição do ar.

A dificuldade na obtenção de satisfação no tribunal foi, na verdade, um fator importante na criação de pressão por intervenção governamental para o controle da poluição. No entanto, a intervenção governamental não elimina a necessidade de informações precisas.

Problemas do controle governamental

Como muitos indivíduos (privados), o governo tem problemas para saber a fonte e o efeito dos poluentes. Infelizmente, ele, por essa razão, tende a adotar padrões que não demandam evidência sólida conectando as emissões ao dano. Sob o regime atual, a mera suspeita de dano, combinado com adivinhações educadas sobre qual seria a fonte da poluição, estão produzindo políticas que tem custos enormes.

Los Angeles, por exemplo, está prestes a impor medidas para requerer reformulação de produtos tais como desodorantes e tintas, além da conversão de carros de forma que rodem a base de etanol em vez de gasolina.

Não falta somente ao governo a informação necessária para controlar a poluição, mas os políticos frequentemente possuem pouco incentivo para obter mais informações. Os políticos acham mais fácil e mais popular com a maioria dos constituintes simplesmente adotar uma postura de ultraje contra os poluidores. Na verdade, gerar ultraje é uma forma efetiva de gerar votos.

A aprovação do Superfund (Superfundo) melhorou a carreira de um grande número de congressistas, mesmo que tenha sido resultado de desinformação sobre o Love Canal e a conclusão incorreta de que toda a cidade tinha um potencial desastre ambiental prestes a ocorrer (em seu quintal).

As pressões políticas que dominam o governo também funcionam contra a visão de longo prazo. Os oficiais do governo são legalmente impedidos de pessoalmente receber qualquer valor que ajudam a criar; assim sendo, eles não pagam nenhuma penalidade financeira por propriedade deteriorada.

Em contraste, o proprietário privado da terra verá seu valor mudar imediatamente após um grande investimento, pois o valor reflete os benefícios e custos futuros oriundos de sua ação. Dado que nenhum tal “valor capitalizado” existe nos projetos governamentais, os oficiais do governo estão mais interessados em maximizar seu poder político em vez do valor econômico.

Exemplos de má administração governamental

É verdade que os oficiais do governo são sempre bem intencionados. Mas buscar sua missão profissional quase inevitavelmente significa negligenciar alguns objetivos relevantes ao interesse público, focando, em vez disso, em grupos e indivíduos específicos.

Por exemplo, os guardas florestais do Serviço Florestal tendem a ser altamente comprometidos com a colheita e o replantio de árvores, frequentemente negligenciando o valor potencial das florestas nacionais para a recreação.

Esse comprometimento levou o Serviço Florestal a cortar grandes áreas das Montanhas Rochosas, onde o valor por metro de madeira é baixo e onde o dano ambiental advindo do corte extensivo pode ser severo. Um resultado perverso é que as árvores cortadas geram preços inferiores do que o custo que o pagador de imposto incorreu para cortá-las.

A política também afeta nossos parques nacionais. O Serviço do Parque Nacional geralmente segue as diretrizes dos líderes de grupos ambientais de prestígio, mesmo que as políticas que essa pequena maioria expõe não são necessariamente a que a maioria dos norte-americanos deseja.

A decisão de permitir queimadas apesar de décadas de desenvolvimento de combustíveis levou à devastação de grande parte da Yellowstone no verão de 1988. Enquanto os lideres ambientais endossaram essas políticas pois minimizavam a intervenção humana, o desaparecimento da vida selvagem, por exemplo do castor e do urso pardo, incomodam muitas pessoas. Uma razão pela qual o dano é tão severo é que ele sucede décadas do extremo oposto – intervenção extrema, durante a qual os guardas florestais mantaram muitos lobos de Yellowstone e impediram queimadas.

Outros exemplos ações governamentais destrutivas, ou pelo menos questionáveis, abundam. Por muitos anos, o Departamento de Reclamação de Solos construiu represas caríssimas que inundaram milhares de hectares de habitat natural. Hoje, cavalos selvagens e burros estão danificando grandes extensões de terras federais, mas ele não podem ser controlados por oposição dos grupos de direitos dos animais. E até recentemente, o Departamento de Administração das Terras, que controla tais terras, estava utilizando, de forma rotineira, tratores de esteira para transportar arbustos e pequenas árvores em grandes extensões de terras de pastagem, apesar do baixo custo beneficio de grande parte dela.

Melhorando a lei

A lei comum (direito consuetudinário), é claro, também tem suas falhas. Mesmo assim, seus critérios de evidência e sua história de proteção imparcial dos direitos individuais torna-a, na maior parte dos casos, o melhor meio para se fazer justiça contra aqueles que causam danos ao meio ambiente.

Nós deveríamos começar reconhecendo que muitos dos erros da lei comum foram introduzidos pelos ativistas legais que tem trabalhado para mudar o sistema desde a década de 1950. De acordo com várias analistas, hoje, os tribunais tendem a compensar as vítimas de quaisquer “grandes empresas” que possam ser encontradas, mesmo se elas tiverem agido responsavelmente. Essa abordagem destrói a ligação entre a culpabilidade e a responsabilidade, e assim reduz o incentivo à tomar decisões custosas para evitar prejudicar os outros.

Uma ação corretiva iria restaurar a inviolabilidade do contrato, permitindo aos segurados ajudar a controlar os riscos de poluição involuntária. As seguradoras aumentaram a segurança de muitas industrias ao mesmo tempo que o custo-benefício dela.

Adicionalmente, os governos poderiam confiar menos na regulação direta e, em vez disso, requerer que projetos ambientalmente arriscados, tais como um depósito de lixo radioativo, sejam segurados ou financiados por títulos. Ambos os títulos e o seguro podem prover a responsabilidade (contabilidade) que de outra forma é ausente quando a insolvência ou a falência previnem as companhias de compensar as vítimas. Uma empresa que tenha vendido um grande quantidade de títulos para garantir a solvência no caso de responsabilidades civis terá um incentivo muito maior a tratar seus materiais perigosos de modo seguro e eficiente.

O aumento na ênfase da responsabilidade por meio da lei comum poderia levar a outros resultados positivos.

Por exemplo, os produtos químicos que podem contaminar a água ou o ar poderiam ser “marcados” por tintas ou isótopos radioativos para ajudar a identificar sua origem. Companhias responsáveis poderiam se proteger com essa “marcação”, pois estariam livres se os contaminantes que causaram dano não carregassem a sua “marca”.

Além disso, em um ambiente de leis que asseguram a solvência de potenciais poluidores, tornando a responsabilidade mais clara àqueles cujos contaminantes invadam a propriedade alheia, as seguradores e outros responsáveis por danos potenciais proveriam um mercado promissor para o desenvolvimento de melhor tecnologia forense, assim como melhores procedimentos de retenção e descontaminação. Quando a responsabilidade geral – ao invés do comportamento particular – é destacada, o incentivo a evitar danos é maior.

Proteção privada do meio ambiente

Quando falamos de manter a qualidade ambiental, a proteção da beleza da natureza, e a preservação do habitat selvagem, as organizações privadas tem feito, com frequência, um trabalho melhor do que o governo. Uma razão para a sua eficácia é que suas ações não tem de refletir visões majoritárias, as quais frequentemente mudam.

A conservação privada começou muito antes da sociedade norte-americana desenvolver a consciência ambiental ou recrutar o governo para proteger espécies em perigo e executar limpezas (queimadas). A Associação Santuário da Montanha Hawk (Hawk Mountain Sanctuary Association) ao leste da Pensilvânia, por exemplo, foi formado privadamente em 1934, em um tempo quando as águias eram consideradas vermes porque comiam galinhas.

Sea Lion Caves, uma atração turística na costa do Oregon, começou a proteger os leões marinhos na década de 1920, quando o estado de Oregon tinha um estipulado uma recompensa de US$ 5 por cada leão marinho. Naquele tempo, os animais eram vistos como pestes porque comiam peixes e prejudicavam a indústria do salmão; Sea Lion Caves proveu um paraíso até que a opinião pública mudou e leis foram aprovadas para proteger os leões marinhos.

Mesmo hoje, quando se espera que o governo controle o meio ambiente, grupos privados são responsáveis por grande parte da proteção efetiva da vida selvagem.

The Nature Conservancy, uma ONG sem fins lucrativos, tem mais de 1000 santuários naturais, e desde sua fundação em 1951, preservou cerca de 2,4 milhões de acres. A National Audubon Society possui mais de 60 reservas. A Ducks Unlimited protege mais de 1 milhão de acres de terras selvagens todos os anos.

A Operation Stronghold é uma associação nacional de proprietários de terras comprometidos a administrar sua terra de uma forma que proteja e aumente o habitat selvagem. Existem centenas de outros locais nos Estados Unidos provendo refúgio e habitat para todos os tipos de flora e fauna

A beleza desses esforços privados é que as pessoas que não se importam por patos ou garças reais não necessitam pagar sua conservação, como os pagadores de impostos são coagidos quando o governo está no controle. Além disso, dado que as organizações privadas não usam fundos retirados à força de outras pessoas, mas sim de doações, elas tendem a focar seus esforços de forma eficiente.

Conclusão

Como nosso padrão de vida aumentou, nosso desejo por melhores condições ambientais também aumentou. Podemos esperar que essa demanda por beleza natural continue a crescer com o crescimento da renda nacional, pois a atenção em relação ao meio ambiente é correlacionada com rendas mais altas.

Nós podemos esperar que o setor privado – com ou sem fins lucrativos – continue a tomar a frente na busca por maiores padrões ambientais quando assim for permitido.

Isso não significa que as organizações privadas resolverão todos os problemas ambientais. Onde os direitos de propriedade não existem, são mal definidos ou impraticáveis, não haverá nenhum proprietário que insistirá na proteção. Em vez de abandonar a administração privada em favor do controle governamental direto, contudo, devemos tentar encontrar formas de estabelecer responsabilidades (em conjunto com a liberdade e o incentivo à inovar) estabelecer ou fortalecer os direitos de propriedade.

Nós precisamos comparar os problemas advindos de direitos de propriedade imperfeitos com as “soluções” colocadas em prática pelo governo imperfeito. A evidência sugere que o processo político frequentemente causou maior grau de desejos e destruição.

Por: Richard L. Stroup

Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Ivanildo Terceiro.