quinta-feira, 24 de outubro de 2013

OS PÓS-ESCOLÁSTICOS E JUAN DE MARIANA, UM AUSTRÍACO POLITICAMENTE INCORRETO

Este artigo é uma continuação deste outro

4. O Cardeal Gaetano, Tommaso de Vio

A Escolástica tardia – o período dos pós-escolásticos - foi um produto do século XVI, o século que deu início à Reforma Protestante e à Contra Reforma Católica. Se o século XIII foi bem descrito como a idade de Ouro da filosofia escolástica, o século XVI foi a sua Era de Prata, a era de um renascimento brilhante do pensamento escolástico, antes de seu fim. Nos séculos XIV e XV surgiu o nominalismo e o enfraquecimento da ideia de uma lei racional, incluindo uma lei natural ética, descobertos pela razão do homem. Mas o século XVI assistiu a um tomismo renascente, liderado por um dos maiores homens da Igreja de sua época, Tommaso de Vio (1469 -1534), o Cardeal Gaetano (ou Caetano, em português).

Ele não foi apenas o filósofo tomista e teólogo eminente de sua época, pois também era um dominicano italiano que se tornou Geral da Ordem em 1508. Como cardeal da Igreja, foi o defensor favorito do Papa em debates com o fundador do protestantismo, Martinho Lutero. Em seu comentário sobre a Summa de São Tomás de Aquino, Caetano, é claro, endossou a visão escolástica de que o preço justo é o preço comum de mercado, refletindo a estimativa dos compradores e considerou que esse preço vai flutuar em decorrência de mudanças nas condições de oferta e demanda. Na tentativa de expurgar da economia escolástica qualquer vestígio da teoria da "estação da vida" de Langenstein, Caetano foi mais longe ao criticar Aquino por este ter denunciado a acumulação de riqueza além de certo nível como pecado de avareza. Pelo contrário, declarou Caetano, é legítimo que pessoas altamente capazes subam na escada social de uma forma que corresponda ao seu trabalho, sua inteligência, sua capacidade e suas realizações.

Em seu tratado abrangente sobre câmbio, "De Cambiis", de 1499, Caetano fez uma defesa completa, firme, contundente e incondicional do mercado de divisas. Uma vez que o papel do comerciante é legítimo, então assim também deve ser o do banqueiro de câmbio, que simplesmente é quem se engaja numa certa espécie de transação mercantil. Além disso, o comércio moderno não poderia funcionar sem o mercado de câmbio e as cidades não poderiam existir sem comércio. Por isso, inferiu, é necessário e justo que o mercado de câmbio exista. Como em outros mercados, o preço de mercado habitual é o preço justo.

No curso de sua defesa do mercado de câmbio, Caetano começou a avançar o estado da arte na teoria monetária: mostrou incisivamente que a moeda é uma mercadoria, particularmente quando os agentes se deslocam de uma cidade para outra, e, portanto, sujeita às leis de oferta e demanda que regem os preços das commodities. Neste ponto, Caetano fez um grande avanço na teoria monetária, em particular, e na própria teoria econômica em geral, ao ressaltar que o valor do dinheiro não depende apenas da demanda existente e das condições de oferta, mas também da expectativa atual do estado futuro do mercado. Expectativas de guerras e fome e de futuras mudanças na oferta de dinheiro – mostrou - afetam o seu valor atual. Assim, o Cardeal Caetano, um príncipe da Igreja do século XVI, pode ser considerado o fundador da teoria das expectativas na economia. Antecipou Menger e Robert Lucas (da Escola de Expectativas Racionais) em 450 e 550 anos, respectivamente.

Adicionalmente, Caetano distinguia dois tipos de "valor da moeda": o seu poder de compra em termos de bens, quando o ouro ou prata são "equiparados" com mercadorias compradas e vendidas, e o valor de uma moeda em termos de outra moeda no mercado de câmbio. Segundo ele, cada tipo de moeda tenderia a se deslocar para a região onde o seu valor é mais alto, e afastar-se da região onde o seu valor é mais baixo.

Quanto à polêmica questão da usura, embora Caetano não tenha sido tão radical como seu contemporâneo Summenhart em praticamente erradicar a proibição da usura, ele se juntou a ele na defesa da doutrina da intenção implícita, e foi ainda mais radical em uma área onde Summenhart tinha recuado: lucrum cessans (lucros cessantes). A "intenção implícita" significa que se alguém realmente acredita que seu contrato não é um empréstimo, então não é um usurário, embora possa ser um empréstimo na prática. Isto, obviamente, abriu o caminho para a eliminação prática da proibição da usura. Além disso, Caetano também se juntou a seus colegas liberais ao aprovar o contrato de investimento garantido. Mas seu grande avanço no campo da usura foi sua reivindicação de lucrum cessans. Empunhando a poderosa autoridade de ser o maior tomista desde o próprio "Boi Mudo" (que era como os colegas chamavam Tomás de Aquino, devido a ser corpulento e a manter-se quase sempre calado), Caetano ofereceu uma crítica minuciosa em que rejeita seu mestre. Ele, então, justifica, na verdade, não apenas os lucros cessantes, mas quaisquer empréstimos.

Dessa forma, um credor pode cobrar juros sobre qualquer empréstimo como forma de pagamento de lucros perdidos em outros investimentos, desde que o empréstimo seja para um homem de negócios. Essa divisão entre empréstimos para empresários e para consumidores foi feita pela primeira vez como um meio de justificar todos os empréstimos comerciais. A lógica era que o dinheiro retinha seu valor mais alto nas mãos dos homens de negócios em relação aos tomadores de empréstimos para consumo. Assim, pela primeira vez na era cristã, o Cardeal Caetano justificou o ato de emprestar dinheiro como um negócio, desde que os empréstimos fossem feitos a empresas. Antes dele, todos os escritores, mesmo os mais liberais, como Conrad Summenhart, justificavam a cobrança de juros apenas quando fundada em lucros cessantes e somente para empréstimos de caridade ad hoc. Agora, o grande Caetano estava justificando o negócio em si de emprestar dinheiro a juros.

Com Caetano, o caminho para o movimento dos escolásticos tardios estava aberto. Restava, agora, calçá-lo.

5. As ideias do grande Juan de Mariana: "austríaco", "politicamente incorreto" e "polêmico"

E quem mais contribuiu para essa tarefa, embora não fosse o único a fazê-lo, foi Juan de Mariana, nascido em 1536 na pequena cidade de Talavera, na diocese de Toledo. De acordo com John Laures, um padre jesuíta que publicou em 1928 o interessante livro The Political Economy of Juan de Mariana (Fordham University Press, New York), 



Tudo o que sabemos sobre suas origens é que ele nasceu no ano de 1536, como o filho de pais pobres e simples. Mesmo este fato é apenas relativamente certo. Na idade de dezessete anos Mariana era um estudante na famosa Universidade de Alcalá, e em 1º de Janeiro de 1554 ele foi recebido na Sociedade de Jesus, [recentemente fundada por São Francisco Xavier, um ex-soldado espanhol que fora ferido em uma das pernas em combate e que se convertera ao Cristianismo]. Ele completou o noviciado em Simancas, em parte sob a direção de Francisco Borgia, o Duque de Gandia aposentado, que um dia seria o Geral da Ordem dos Jesuítas.

Prossegue Laures relatando que no início de 1561 o jovem Juan foi chamado para o recém-construído Colégio Romano, para ensinar Filosofia e Teologia. Um de seus alunos foi Robert Belarmino, destinado a ser um grande polemista e, posteriormente, um cardeal. Depois de quatro anos de ensino, o jovem professor foi enviado à Sicília para ensinar Teologia e introduzir um novo plano de estudos na faculdade lá estabelecida por sua Ordem. Enquanto isso, ganhou reputação como teólogo e em 1569 foi chamado para lecionar na Sorbonne, em Paris, na época a mais famosa universidade do mundo. No entanto, sua precária saúde obrigou-o a deixar Paris quatro anos depois e voltar ao seu país natal, onde viveu durante o resto de sua longa vida, em Toledo.

Mesmo tendo se retirado do mundo, Mariana exerceu forte influência sobre a história contemporânea de Espanha e, até certo ponto, mundial. Sua reputação como teólogo e seu vasto conhecimento em quase todos os campos de aprendizagem deram-lhe um prestígio verdadeiramente extraordinário. Era frequentemente procurado por comerciantes e por autoridades temporais e eclesiásticas em busca de conselhos. Questões importantes esperavam por sua aprovação e eram realizadas sob a sua direção e seus conselhos. Seu lazer deu-lhe tempo para aprofundar e ampliar seus conhecimentos e desenvolver uma atividade literária bastante frutífera.

A segunda obra mais conhecida de Mariana, De Rege et Regis Institutione, surgiu em 1599 em Toledo, tendo sido elaborada por sugestão do tutor dos príncipes reais e publicada sob o patrocínio de Filipe II. É neste livro que Mariana discute a questão de saber se é lícito depor e até mesmo matar um monarca que se comporte como um tirano, uma pergunta à qual ele responde afirmativamente, como se verá mais pormenorizadamente adiante.

No ano de 1610 estourou uma tempestade de indignação contra o livro e contra a Companhia de Jesus em geral. Henrique IV foi assassinado por François Ravaillac (1577-1610) e os inimigos da Sociedade acusaram os jesuítas de serem os supostos autores do crime. Ravaillac foi questionado sobre se ele havia sido induzido a cometer o regicídio pelo livro de Mariana sobre a realeza, mas ele negou até mesmo qualquer familiaridade com ele. No entanto, muitos ainda sustentavam que a doutrina jesuíta teria sido responsável pelo atentado e De Rege foi queimado em público por um carrasco. Desde então, as ideias de Mariana sobre tiranicídio têm sido imputadas a toda a Companhia de Jesus, apesar de nenhum outro jesuíta, seja em seu tempo ou mais tarde, ter aderido a essa doutrina perigosa. O Geral da Ordem, Cláudio Aquaviva, enfaticamente protestou contra o livro, proibindo todos os seus subordinados, de todos os tempos, a ensinar aquela doutrina.

As autoridades francesas pressionaram o rei da Espanha para tirar o livro de circulação, mas não obtiveram êxito e a obra continuou muito popular. Hoje se pode dizer que, embora o autor de De Rege estivesse muito equivocado em alguns aspectos, mesmo para os hábitos culturais da época, sua obra, dentre todos os tratados sobre a realeza, é uma das publicações mais marcantes do século XVI.

Ainda segundo o Padre Laures, De Rege trata não só da Filosofia Política e da arte de governo, mas apresenta muitas ideias econômicas. Outro tratado econômico de Mariana foi De Ponderibus et Mensuris, publicado pela primeira vez em 1599 e que em edições posteriores apareceu juntamente com De Rege em um único volume. É uma discussão histórica de várias moedas: grega, romana, hebraica e espanhola. Um tratado estritamente econômico, De monetae Mutatione, apareceu em Colônia em 1609, como o quarto número do Tractatus VII. Ele foi escrito como uma crítica à adulteração da cunhagem de cobre espanhol por Felipe III. Naquele panfleto Mariana critica severamente o rei e os seus conselheiros, por roubarem as pessoas e perturbarem o equilíbrio do comércio. Ele também desenvolve com rigor naquela obra os princípios científicos da moeda e comprova suas afirmações acerca da história espanhola.

Assim que este pequeno livro apareceu, denunciaram Mariana ao rei pelo crime de lesa-majestade e também imputaram a ele erros em questões de fé. Imediatamente após o aparecimento do Tractatus VII, o rei ordenou aos seus oficiais e embaixadores que comprassem todos os exemplares do livro que pudessem e seu pedido foi prontamente atendido. Pouquíssimos exemplares escaparam de suas mãos, e em tudo o que puderam achar encontraram cortes nas páginas 189-221, ou seja, o tratado De Monetae Mutatione.

Após a morte de Mariana o Tractatus VII foi, aliás, expurgado pela Inquisição espanhola. Muitas frases foram excluídas e colunas inteiras e páginas cobertas com tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas noIndex Librorum Prohibitorum et Expurgandorum espanhol, e a maioria dos exemplares sobreviventes foram expurgados por decretos de 1632 e 1640. Como resultado, poucos exemplares completos do Tractatus VIIsobreviveram.

Mariana, como historiador, afirmou que a sociedade primitiva foi formada por consentimento mútuo. Alguns o criticaram, afirmando que todos os grandes impérios resultaram de conquistas e violência. Ele não nega o fato de que alguns estados passaram a existir desta forma, porém afirma que a maioria surgiu por mútuo consentimento e que estenderam suas fronteiras por guerras que considerava justas. Acreditava firmemente que os impérios baseados em violência e injustiça nunca podem tornar-se legítimos, mesmo através de legislações posteriores. Esta é a síntese da teoria da origem e do fim do estado de Mariana, que se mostra, por assim dizer, contraditória.

Tal como seu colega jesuíta Francisco Suarez, ele justifica a necessidade de existência do estado pela impossibilidade do indivíduo e da família de suprir todas as necessidades da vida. Seus argumentos são: (1) a sociedade política é necessária porque nenhuma família é autossuficiente; (2) se existiam divisões entre as várias famílias, não poderia haver paz e, portanto, elas deveriam ser unidas em uma sociedade. E desde que o homem precisa de uma sociedade política, ele também precisa de um poder político, pois uma sociedade sem tal poder não poderia realizar o seu fim.

Para Mariana, a sabedoria divina permite que o homem, apesar de fraco por natureza e exposto aos seus próprios recursos, possa tornar-se forte se estiver unido com os demais em uma sociedade. A partir disso é que Mariana considera a sociedade política necessária para a natureza humana. Tão logo o homem formou um corpo político, Deus concedeu-lhe o que era necessário para a vida em sociedade, ou seja, o poder político. Este poder, então, não é uma criação do homem ou algo que existia desde o princípio, mas algo acrescentado por Deus à natureza humana imperfeita e, logo, era necessário, a partir do momento em que os homens fizeram as suas mentes funcionarem para formar uma sociedade política.

Mariana foi um ardoroso oponente da crescente onda de absolutismo na Europa e da doutrina do rei James I da Inglaterra, em que os reis governam de maneira absoluta por direito divino. Ele converteu a doutrina escolástica da tirania de um conceito abstrato em uma arma para ferir monarcas reais do passado, denunciando como tiranos antigos governantes tais como Ciro, o Grande, Alexandre o Grande e Júlio César, que adquiriram seu poder pela injustiça e roubo. Os escolásticos anteriores, incluindo Suarez, acreditavam que as pessoas pudessem ratificar tal usurpação injusta por seu consentimento após o fato, e, assim, tornar o seu próprio domínio legítimo. Mas Mariana não aceitava esse consentimento das pessoas. Era um defensor das liberdades individuais. Em contraste com outros escolásticos, que colocaram a "propriedade" do poder no rei, ele ressaltou que as pessoas têm o direito de recuperar seu poder político sempre que o rei abusar dele.

Na verdade, Mariana acreditava que, na transferência de seu poder político do estado de natureza original para um rei, o povo necessariamente deveria reservar direitos importantes para si: além do direito de reclamar a soberania, também poderes vitais como a tributação, o direito de veto a leis, bem como o direito de determinar a sucessão se o rei não tiver herdeiro. Portanto, Mariana, ao invés de Suarez, é que deve ser considerado um antecessor da teoria do consentimento popular e da superioridade do povo frente ao governo de John Locke. E também antecipou Locke, ao considerar que os homens deixam o estado de natureza para formar governos, a fim de preservar os seus direitos de propriedade privada. Mariana também foi muito além de Suarez ao postular um estado de natureza — a sociedade —, anterior à instituição do governo, tese abraçada por muitos liberais do século XX.

Mas a característica mais interessante do "extremismo" da teoria política de Mariana era a sua inovação criativa na teoria escolástica do tiranicídio. Que um tirano podia ser justamente morto pelas pessoas havia sido doutrina padrão, mas Mariana a ampliou muito, em duas maneiras significativas. Primeiro, ele expandiu a definição de tirania: um tirano era qualquer governante que violasse as leis da religião, que impusesse impostos sem o consentimento do povo, ou que impedisse uma reunião de um parlamento democrático. Todos os outros escolásticos, em contrapartida, tinham considerado apenas a imposição injusta de impostos como regra de tirania. Adicionalmente, para Mariana qualquer cidadão podia justamente assassinar um tirano e podia fazê-lo por quaisquer meios necessários. Para ele, esse assassinato não exigiria nenhum tipo de decisão coletiva da parte de todo o povo. Porém, para ter certeza de sua decisão de assassinar algum tirano, os indivíduos não deveriam se envolver em tal propósito de ânimo leve, sem um prévio exame de consciência: primeiro, deveriam tentar reunir as pessoas para tomar essa decisão crucial, mas, se isso fosse impossível, ele deveria pelo menos consultar alguns "homens eruditos e graves", a menos que o clamor do povo contra o tirano fosse tão cruamente manifesto que a consulta se tornasse desnecessária.

Ele foi mais longe — antecipando Locke e a Declaração da Independência — na justificação do direito de rebelião, afirmando que não nos precisamos preocupar com a perturbação da ordem pública causada pelo tiranicídio, pois esta é uma ação sempre perigosa e, portanto, muito poucos estão prontos para arriscar suas vidas dessa maneira. Pelo contrário — prosseguiu —, a maioria dos tiranos não morreu mortes violentas e os tiranicídios foram quase sempre saudados pelas populações como atos de heroísmo.

Um tirano — escreveu ele — necessariamente teme que aqueles a que aterroriza e mantém como escravos venham tentar derrubá-lo e, por isso, ele proíbe os cidadãos de se reunirem em assembleias e discutirem, tirando deles, por métodos de polícia secreta, a oportunidade de falar e de se queixar livremente.

Este "homem erudito e grave", Juan de Mariana, não deixou nenhuma dúvida a respeito de sua opinião sobre o mais recente e famoso tiranicídio: o do rei francês Henrique III. Em 1588, Henrique III tinha sido preparado para nomear como seu sucessor Henrique de Navarra (que assumiria o trono como Henrique IV), um calvinista que estaria governando uma nação fortemente católica. Diante de uma rebelião de nobres católicos, liderados pelo duque de Guise, apoiado pelos cidadãos católicos devotos de Paris, Henrique III chamou o duque e seu irmão, o cardeal, para um pacto de paz em seu acampamento e assassinou os dois. No ano seguinte, a ponto de conquistar a cidade de Paris, Henrique III foi assassinado, por sua vez, por um jovem frade dominicano e membro da Liga Católica, Jacques Clement. Para Mariana, desta forma "o sangue foi expiado com sangue e o duque de Guise foi vingado com sangue real". E o regicídio foi saudado pelo Papa Sisto V e pelos padres de Paris.

As autoridades francesas estavam compreensivelmente nervosas com as teorias de Mariana e seu livro De Rege. Finalmente, em 1610, Henrique IV (ex-Henrique de Navarra, que havia se convertido do calvinismo à fé católica, a fim de tornar-se rei da França), foi assassinado pelo católico François Ravaillac, que desprezava o egocentrismo religioso e o absolutismo estatal imposto pelo rei. Nesse ponto, a França entrou em erupção, em uma onda de indignação contra Mariana e o Parlamento de Paris — como escrevemos linhas atrás — fez um carrasco queimar De Rege publicamente.

Antes de ser executado, Ravaillac foi questionado quanto a se a leitura de Mariana o levara a assassinar o rei, mas ele negou, afirmando que jamais havia ouvido falar dele. A respeito do assassinato de Henrique IV e daexecução de Ravaillac, assim se expressa a Wikipedia:



Em 14 de maio de 1610, Ravaillac rouba uma faca de um albergue. Esconde-se na Rua de la Ferronnerie, em Paris (no atual Quartier des Halles ; as armas de Henrique IV, esculpidas no chão, indicam hoje o local exato do regicídio). Aí espera pela passagem da carruagem real, já que o rei havia decidido dirigir-se ao Arsenal para visitar seu ministro Sully que estava enfermo.

Às quatro horas da tarde, o rei chega. De repente, o cortejo fica bloqueado devido a um congestionamento: Ravaillac aproveita a chance e atira-se sobre o rei. Dá-lhe dois golpes de faca : o primeiro desliza entre duas costelas, o outro atinge a carótida direita.

Ravaillac refugia-se em seguida em um porão na Rua des Lombards, bem próxima do local do atentado, mas é rapidamente encontrado e subjugado. É levado ao Hôtel de Retz para evitar um linchamento e conduzido à Conciergerie.

Tortura e execução: Antes do interrogatório, Ravaillac é preso à roda. A roda é girada e Ravaillac agredido. Suas pernas são esmagadas para fazê-lo falar e são feitos cortes em seu torso, braços e costas. Uma mistura de chumbo derretido, óleo, vinagre e sal foi derramada sobre seu corpo para fechar as feridas. Colocaram-lhe a seguir um culote úmido e o aproximaram do fogo. O culote encolhe, para fazer com que os ossos das pernas, já quebrados, movam-se; toda sua pele é retirada e ele é queimado vivo. Na verdade, Ravaillac ainda permaneceu vivo e nunca confessou seu crime. Foi, a seguir, esquartejado por quatro cavalos.

Seus parentes foram condenados ao exílio e um édito foi promulgado proibindo a qualquer pessoa do reino de se chamar Ravaillac.

Este assassinato desencadeou uma enorme polêmica. Por um lado, levantou-se a suspeita de que os jesuítas teriam incitado Ravaillac ao regicídio. Por outro lado, este ato teria sido inspirado por uma conspiração de que teriam participado Maria de Médicis (esposa do rei), Henriqueta d'Entrages (Marquesa de Verneuil) e o Duque d'Epernon; teriam agido em nome da Espanha.

Enquanto o rei da Espanha se recusou a atender aos apelos franceses para suprimir o trabalho "subversivo" de Mariana, o Geral da Ordem dos Jesuítas emitiu um decreto proibindo os membros da Cia. de Jesus de ensinar que é lícito matar tiranos. Este estratagema, no entanto, não impediu a eclosão na França de uma campanha bem sucedida contra a Ordem Jesuíta, bem como a sua perda de influência política e teológica.

Juan de Mariana foi um pensador fascinante sob todos os aspectos – sua Teologia, Filosofia Política e Economia Política têm bastante claras as marcas registradas de seu temperamento, um jesuíta ascético e que amava a sua Espanha, um homem absolutamente sem medo e que não mostrava qualquer constrangimento em nadar contra a corrente. Se vivesse nos nossos dias, certamente seria taxado de "politicamente incorreto" e de "polêmico". Mas foi, antes de qualquer outro adjetivo, um homem corajoso. Vale a pena conhecermos um pouco mais a seu respeito e de seu pensamento.

Embora enfatizasse a importância da agricultura, ele estava ciente de que ela não é o único fator importante para o bem-estar nacional. O comércio e as trocas voluntárias também são absolutamente necessários para a prosperidade de um país. É verdade que é um pouco crítico quando o comércio é voltado excessivamente para a mera questão do lucro, o que mostra que ele é um teólogo e moralista. O objetivo do comércio, para Mariana, é efetuar um equilíbrio entre as necessidades e os produtos excedentes dos países, de modo que cada um terá o que necessitar. A função importante do comércio, então, é fornecer abundância para todos os países.

Deve, portanto, ser incentivado em todos os sentidos e nada deve interferir nele. Isto é tanto mais verdadeiro porque o comércio é um processo mais delicado e é o mais afetado pela menor perturbação. É - como observou - como o leite, que é estragado pela menor brisa.

Altas tarifas são, acima de tudo, prejudiciais ao comércio exterior, pois seu fardo é deslocado para o comprador, com um consequente aumento nos preços. Logo, as tarifas sobre as necessidades da vida devem ser moderadas, de modo a incentivar e facilitar as importações do exterior. Mariana se opõe, assim, às altas receitas de tarifas, pelo menos na medida em que estão em causa necessidades importantes. Os comerciantes devem aproveitar a proteção especial da lei, porque é necessária para o bem-estar do estado.

A adulteração da moeda é outro grande inconveniente, tanto para o comércio interno quanto para o externo. Estrangeiros serão desencorajados a trazer seus produtos para a Espanha, se não receberem nada em troca, a não ser moeda fraca. Rebaixar o teor de metal na cunhagem resultará em preços mais elevados. Se o rei tentar fixar um preço menor ninguém irá vender e surgirá uma perturbação geral do comércio.

Assim, Mariana, embora não sendo um defensor ardoroso do livre comércio, foi um precursor, que percebeu que altas tarifas são uma forma nefanda de enriquecer um país em detrimento dos estrangeiros. Se nosso autor defendeu um imposto alto sobre bens de luxo isto foi principalmente pela razão de que eles destroem a boa e velha simplicidade que deve reger a vida (lembremos que Mariana era um asceta).

Encontramos ainda outra ideia moderna e também cabível na discussão de nosso autor sobre comércio. A descoberta da América e do caminho marítimo para as Índias Orientais tinha trazido um enorme aumento no comércio internacional. Mercadorias passaram a ser trocadas entre os países mais distantes e parecia que as distâncias tinham desaparecido. Esta relação comercial crescente aparece para Mariana como um símbolo de crescente caridade e um meio de unir as diversas nações do mundo.

É como um moralista que ele concorda com os outros escolásticos que um "preço justo" deve servir de base nas transações comerciais. Este preço foi fixado em tempos medievais pelo governo e foi considerado por ele errado exigir mais do que o montante legalmente fixado. Mariana vê, no entanto, que, na prática, nem sempre é possível determinar os preços de forma satisfatória e que se não estão de acordo com a estimativa popular comum (ou seja, com o mercado), eles não podem ser impostos. Para ser justo um preço não deve ser fixado uma vez e para sempre, deve levar em conta várias condições que mudam com a demanda e a oferta dos artigos em questão. Os preços devem, portanto, serem revistos de tempos em tempos.

Mariana comprova sua afirmação a partir da história da Espanha. Toda vez que os reis espanhóis adulteraram a cunhagem, seguiu-se um aumento geral dos preços, e toda interferência do governo para solucionar o problema provou ser inútil. Mariana também afirma que é praticamente impossível fixar preços para tudo. Aqui, então, vemos que o nosso autor aplica o princípio econômico muito importante de que os preços regulam-se de acordo com a demanda e oferta de bens e da quantidade de dinheiro em circulação. Se a moeda é genuína (metal de bom teor) e escassa, os preços vão diminuir e se ela for adulterada e abundante os preços vão necessariamente subir. Esta é uma aplicação da Teoria Quantitativa da Moeda, que é o princípio fundamental de Irving Fisher para estabilizar a unidade monetária, bem como, naturalmente, uma premonição do que os austríacos nos ensinaram sobre a inflação e a deflação.

Como ressalta Rothbard, Juan de Mariana possuía uma das personalidades mais fascinantes da história do pensamento político e econômico. Honesto, valente e destemido, Mariana esteve em polêmicas durante quase toda a sua longa vida, até mesmo por seus escritos econômicos.

Voltando sua atenção para a teoria e prática monetária, Mariana, em seu breve tratado De Monetae Mutatione(Sobre a Alteração da Moeda, de 1609) denunciou seu soberano, Felipe III, por roubar as pessoas e prejudicar o comércio através da degradação da cunhagem de cobre. Ele ressaltou que esta degradação também causou inflação crônica na Espanha, aumentando a quantidade de dinheiro no país. Felipe tinha dizimado sua dívida pública por rebaixar suas moedas de cobre em dois terços, triplicando assim a oferta de moeda de cobre. Mariana notou que o aviltamento do metal e a interferência do governo no mercado só poderiam causar graves problemas econômicos.

Só um tolo, segundo ele, tentaria separar esses valores de tal forma que o preço legal devesse ser diferente do natural. O mau governante – ponderou - ordena que uma coisa cujo valor é cinco deve ser vendida por dez. Os homens são guiados nesta matéria pela estimativa comum fundada em considerações sobre a qualidade das coisas e de sua abundância ou escassez. Seria vão para um príncipe procurar minar esses princípios de comércio. É melhor deixá-los intactos, sustentava, ao invés de agredi-los pela força em detrimento do bem comum.

Mas nosso personagem meteu-se em real enrascada, em dois sentidos: porque a questão era grave e porque a referida questão era contra o próprio rei! Mariana começa De Monetae com a sinceridade que lhe era característica escrevendo ter ciência de que sua crítica ao rei lhe traria grande impopularidade, mas completa afirmando que o povo está "gemendo" sob as agruras resultantes da degradação monetária e que ainda ninguém teve a coragem de criticar a ação do rei publicamente. Assim, a justiça requer que pelo menos um homem deve expressar a queixa comum do público. Quando uma combinação de medo e suborno conspira para silenciar os críticos, deve haver pelo menos um homem no país que sabe a verdade e tem a coragem de mostrá-la a todos. Mariana então começa a demonstrar que a degradação monetária é um imposto oculto muito pesado, uma senhoriagem, sobre a propriedade privada de seus súditos, e que nenhum rei tem o direito de cobrar impostos sem o consentimento do povo. Uma vez que o poder político se originou do povo, o rei não tem direitos sobre a propriedade privada de seus súditos, nem pode apropriar-se de sua riqueza por puro capricho e vontade. Mariana defende a bula papal Coena Domini, que havia decretado a excomunhão de qualquer governante que impusesse novos impostos.

Para ele, a qualquer rei que pratica aviltamento monetário deve se aplicar a mesma punição, como no caso de qualquer monopólio legal imposto pelo estado sem o consentimento do povo. Sob tais monopólios, o próprio estado, ou seu beneficiário, pode vender um produto para o público a um preço superior ao seu valor de mercado e isso é certamente uma taxação! Ele relata historicamente a degradação da moeda e seus efeitos infelizes e ressalta que os governos devem manter todos os padrões de peso e medida, não só de dinheiro, e que seu ato de adulterar esses padrões é vergonhoso. Castela, por exemplo, tinha mudado suas medidas de azeite e vinho, a fim de cobrar um imposto oculto, e isso levou a uma grande confusão e agitação popular. O livro de Mariana, ao atacar a degradação do rei, levou o monarca a mandar o já idoso padre, então com 73 anos, para a prisão, pelo grave crime de lesa-majestade. Os juízes condenaram Mariana por crime contra o rei, mas o Papa recusou-se a puni-lo e Mariana foi finalmente solto depois de quatro meses, com a condição de que iria cortar as passagens ofensivas de seu livro e de que seria mais cuidadoso no futuro.

Mas o rei, bem conhecendo o padre e, portanto, sabendo que este ficaria apenas com as promessas, ordenou a seus funcionários que comprassem todas as cópias publicadas de De Monetae Mutatione e as destruíssem. Não só isso, depois da morte de Mariana, a Inquisição espanhola, como relatamos anteriormente, expurgou as cópias restantes, excluindo muitas frases e manchando páginas inteiras de tinta. Todas as cópias não expurgadas foram colocadas no Índice da Inquisição espanhola, e estas, por sua vez, foram destruídas durante o século XVII. Como resultado desta campanha selvagem de censura, a existência do texto latino deste importante livro permaneceu desconhecida durante 250 anos, e ele só foi redescoberto porque o texto em espanhol foi incorporado a uma coleção de ensaios clássicos espanhóis do século XIX. Por isso, poucas cópias completas do livreto sobreviveram, das quais a única disponível nos Estados Unidos, segundo Rothbard, está na Biblioteca Pública de Boston.

Mas Mariana aparentemente não estava com problemas suficientes para acalmar seu temperamento: depois que ele foi preso pelo rei, as autoridades, ao apreenderem suas notas e papéis, acharam um manuscrito atacando os poderes que regem a Companhia de Jesus. Um individualista sem medo de pensar por si mesmo, Mariana claramente não concordava com o fato de ser a Cia. de Jesus quase que um corpo militar, tal a disciplina imposta a seus membros. Neste livro, Discurso de las Enfermedades de fa Compania, criticou a Ordem Jesuíta, sua administração e sua formação de noviços e julgou que seus superiores na Ordem eram todos impróprios para a governarem. Acima de tudo, Mariana criticou a hierarquia de estilo militar, apontando que o Geral gozava de muito poder, enquanto os provinciais e outros jesuítas detinham quase nenhuma autonomia. Os jesuítas, afirmou, deveriam ter pelo menos uma voz na seleção de seus superiores imediatos.

Quando o Geral da Ordem Jesuíta, Cláudio Aquaviva, descobriu que cópias do trabalho de Mariana estavam circulando clandestinamente, tanto dentro como fora da ordem, ordenou a Mariana que pedisse desculpas pelo escândalo. O mal-humorado — porém repleto de sólidos princípios morais — Mariana, no entanto, recusou-se a fazê-lo e Aquaviva, talvez movido por prudência ou mesmo por receio de um escândalo mais grave, preferiu não agravar o problema. Mas assim que Mariana morreu, a legião de inimigos da Ordem dos Jesuítas publicou oDiscurso simultaneamente em francês, latim e italiano. Como no caso de todas as organizações burocráticas, os jesuítas, desde então, ficaram mais preocupados com o escândalo e com não lavar roupa suja em público do que em promover a liberdade de investigação, a autocrítica, ou corrigir quaisquer defeitos reais que Mariana pudesse ter descoberto. Mas a Ordem nunca expulsou o seu membro eminente e este nunca a deixou. Ainda assim, ele foi durante toda a sua vida considerado como um criador de problemas, mal-humorado e sempre rebelde em não querer se curvar a ordens ou pressões de seus pares.

O Padre Antonio Astrain, na sua história da Ordem dos Jesuítas, observa que "acima de tudo, devemos ter em mente que o personagem dele [Mariana] foi muito áspero e não mortificado". Pessoalmente, de forma semelhante aos santos italianos franciscanos São Bernardino de Sena e Santo Antonino de Florença, do século XV, Mariana foi uma figura ascética e austera. Nunca frequentou o teatro e afirmou que padres e monges nunca deveriam prejudicar seu caráter sagrado, ouvindo e vendo atores. Ele também denunciou o esporte popular espanhol das touradas, o que diminuiu bastante sua popularidade. Melancolicamente, Mariana costumava enfatizar que a vida era curta, precária e cheia de aflição. No entanto, apesar de sua austeridade, possuía uma sagacidade impressionante. Assim, é famosa uma frase sua sobre o casamento: "Alguém habilmente disse que o primeiro e o último dia do casamento são desejáveis, mas que o resto é terrível". Outra opinião sua parecia antecipar o que Mises, no século XX, declarou a respeito dos economistas: "não há nada tão absurdo que não seja defendido por alguns teólogos".

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

A IMPORTÂNCIA DOS PÓS-ESCOLÁSTICOS PARA A ESCOLA AUSTRÍACA

1. Introdução

O primeiro capítulo do excelente livro editado por Randall G. Holcombe, "The Great Austrian Economists" (Ludwig von Mises Institute, 1999, iBooks), escrito por Jesús Huerta de Soto, começa com a seguinte frase: 

A pré-história da escola austríaca de economia pode ser encontrada nas obras dos escolásticos espanhóis, mais especificamente em seus escritos no período conhecido como o "Século de Ouro espanhol", que decorreu de meados do século XVI até o século XVII.

E prossegue:
Quem eram estes precursores intelectuais espanhóis da Escola Austríaca de Economia? A maioria deles era formada por escolásticos que ensinavam moral e teologia na Universidade de Salamanca, cidade espanhola medieval localizada a 150 km a noroeste de Madri, perto da fronteira da Espanha com Portugal. Esses escolásticos, principalmente dominicanos e jesuítas, articularam a tradição subjetivista, dinâmica e libertária a que, duzentos e cinquenta anos depois, Carl Menger e seus seguidores iriam dedicar tanta importância. Talvez o mais libertário de todos os escolásticos, especialmente em seus últimos trabalhos, tenha sido o padre jesuíta Juan de Mariana. [pp. 41-73]

Soto tem razão: de fato, Juan de Mariana, para os padrões de seu tempo e levando em conta que era um padre, um jesuíta, foi um autêntico revolucionário. Neste artigo, farei um pequeno resumo das contribuições dos chamados pós-escolásticos para a teoria econômica e enfatizarei as ideias de Mariana. Não tenho nem longinquamente a pretensão de ser original ao escrevê-lo. Trata-se, na verdade, de um survey de alguns dos melhores e mais conhecidos trabalhos sobre o tema da Escolástica Tardia, acrescido de algum material que encontrei na Internet e que julguei confiável e de algumas reflexões pessoais oriundas do interesse pela tradição e os desenvolvimentos mais recentes da Escola Austríaca, que tem direcionado meus trabalhos, pesquisas, aulas e palestras ao longo das últimas duas décadas.

2. Aspectos históricos

Infelizmente, é um lugar comum, sempre que alguém se refere à Idade Média, se ouvir falar em trevas e barbárie, quase sempre com uma expressão de escárnio e desprezo. Mas, ao contrário do mau odor que exala este preconceito herdado dos iluministas, tanto a Filosofia quanto a ciência moderna devem muito — muito mais do que se pode imaginar! — à Idade Média e à sua monumental Escolástica.

Ao final do século V, o que restava do outrora poderoso Império Romano era uma multidão dispersa de povos bárbaros e alguns fragmentos da cultura clássica, que só não desapareceram devido aos esforços dos monges copistas e de alguns grandes pensadores. Os primeiros e conturbados séculos da Idade Média europeia foram dominados pelo pensamento de Santo Agostinho de Hipona, responsável por solidificar a fé cristã, calcado em elementos platônicos. O Bispo de Hipona influenciou pensadores como Boécio, Dionísio, o Areopagita e Escoto Erigena.

Na verdade, Dionísio usava este pseudônimo em alusão à vicissitude narrada por São Lucas no capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, onde escreveu que Paulo pregou em Atenas, no Areópago, para uma elite do grande mundo intelectual grego, mas no final a maior parte dos ouvintes mostrou-se desinteressada e afastou-se, ridicularizando-o; todavia alguns, poucos, diz-nos São Lucas, aproximaram-se de Paulo, abrindo-se à fé e entre estes poucos Lucas oferece-nos dois nomes: Dionísio, membro do Areópago e uma mulher, Damaris.

No século V, Pseudo-Dionísio — como também ficou conhecido — escreveu o Corpus Areopagiticum, com o intuito de colocar a sabedoria grega ao serviço do Evangelho e ajudar no encontro entre a cultura e a inteligência gregas e o anúncio de Cristo, fazendo com que o pensamento grego se encontrasse com o anúncio da Boa Nova de São Paulo. Já Escoto Erígena, nasceu na Irlanda em 810 e foi um expoente do "renascimento carolíngio", bem como da tradição das artes liberais que fundamentaram o ensino medieval e também concentrou seus estudos nas relações entre a filosofia grega e os princípios do Cristianismo.

A palavra "escolástica" tem duplo significado. O primeiro, um tanto limitado, quando se refere apenas às disciplinas ministradas nas escolas medievais, a saber, o trívio, formado por gramática, retórica e dialética e oquadrívio, composto por aritmética, geometria, astronomia e música. E o segundo tem conotação mais ampla, reportando-se à linha filosófica adotada pela Igreja na Idade Média. Esta modalidade de pensamento era essencialmente cristã e procurava respostas que justificassem a fé na doutrina ensinada pelo clero, o depositário das verdades espirituais e o orientador das ações humanas virtuosas.

O dicionário Aurélio on line apresenta três acepções:

1. Fil. Doutrina e filosofia cristã da Idade Média, que procurou combinar a razão platônica e aristotélica com a fé e a revelação dos Evangelhos, alcançando seu auge com Santo Tomás de Aquino; ESCOLASTICISMO.: "Cria... uma Universidade de ciências maiores, pedindo ao Pe. Francisco de Borja que lhe mande bons mestres para as cadeiras de teologia, escolástica, positiva, moral..." (Antero de Figueiredo, D. Sebastião)

2. P.ext. Teol. Qualquer doutrina ou filosofia fundamentadas a partir de uma crença religiosa

3. P.ext. Pej. Qualquer doutrina que pregue o tradicionalismo ou o pensamento ortodoxo.

[F.: Do lat. scholastica.]

É difícil delimitar a origem da Escolástica porque ela nunca se estabeleceu como uma doutrina filosófica restrita. Havia no ambiente católico uma divergência muito viva em questões teológicas e foi esse espírito de debate que acabou dando origem à corrente de atividades intelectuais, artísticas e filosóficas a que se convencionou chamar de Escolástica.

No século XII, essa valorização do saber refletiu-se na criação das universidades e na ascensão de uma classe letrada e o monge agostiniano Santo Anselmo é apontado como tendo sido o primeiro escolástico, seguido por Pedro Abelardo, Pedro Lombardo e Hugo de São Vítor.

Na segunda metade do século XII chegaram às universidades as traduções hispânicas de versões árabes das obras de Aristóteles, um grande choque cultural que mudou o rumo do Ocidente e que conduziu a Escolástica para a sua "Era de Ouro", no século XIII, quando Santo Agostinho deixou de ser o eixo do pensamento cristão e a Filosofia Natural aristotélica cresceu diante da Teologia.

Os professores universitários passaram a ter fama e importância, os livros — sempre escritos em latim — se multiplicaram e com isso o modelo de ciência antiga começou a ser questionado e a desabar. Robert Grosseteste e seu discípulo Roger Bacon lançaram as primeiras sementes da pesquisa científica, idealizando experimentos. As universidades de Paris, Oxford e Colônia testemunharam os grandes debates e o surgimento de obras gigantescas. É o século do grande São Tomás de Aquino, de Alberto Magno, de São Boaventura e de Duns Scotus.

A grande contribuição da Escolástica à Filosofia foi sua preocupação com o rigor metodológico e dialético. Os estudantes das principais universidades precisavam passar por exames que envolviam disputas orais de argumentos, sempre regidas pela aplicação da lógica formal e a supervisão rigorosa de um mestre.

Como sugere Renan Santos, 

Pedro Abelardo se inspirou nesse método dialético e o aprofundou em sua obra Sic et Non, que virou referência para a resolução de problemas a partir da sucessão de afirmações e negações sobre um mesmo tópico. Para isso, era imprescindível uma definição satisfatória dos termos, que evitasse ambiguidades. Tiveram muito sucesso nesse sentido os escolásticos, chegando a criar palavras totalmente novas a partir das raízes do grego e do latim, o que acabou resultando no latim escolástico. A própria evolução das ciências se deve em grande parte ao desenvolvimento desse rigor terminológico.

Entre os renascentistas e iluministas, criou-se a ideia de que a Escolástica havia se submetido a Aristóteles como um servo feudal se curva ao seu mestre, o que os estudos do século XX mostraram ser uma afirmação absurda. A verdade é que, com a chegada da imensa obra de Aristóteles, foram surgindo naturalmente dois partidos nas universidades: os tradicionais, agostinianos e platônicos, que não admitiam a ideia de ciências autônomas em relação à teologia, e os "modernos" aristotelistas, fascinados a tal ponto com a investigação da Filosofia Natural que buscaram tornar as ciências independentes da Teologia.

Essa discussão levou a grandes e memoráveis contendas acerca da relação entre fé e razão, cuja ruptura definitiva ficaria a cargo do franciscano inglês Guilherme de Ockam, no século XIV.

Na assim denominada "querela dos universais", na esteira das traduções que abalaram o Ocidente, encontrou-se a Isagoga, obra do filósofo antigo Porfírio, expondo o problema dos universais em Aristóteles. Iniciava-se assim um dos mais longos debates da história da Filosofia. Recorrendo ainda a Santos: 

Quando olhamos para duas maçãs, vemos algo de comum entre elas? Ou elas são completamente diferentes? Há uma substância "maçã" separada delas, ou ela está em cada uma das maçãs? Ou a substância "maçã" não existe de forma alguma? Perguntas desse tipo é que dirigiram o debate dos universais.

Os ultrarrealistas, de índole platônica, como Santo Anselmo, Odo de Tournai e Bernard de Chartres, diziam que sim, que há uma substância, um universal "maçã" separado de todas as maçãs e que lhes serve de modelo. Os realistas, moderados e mais aristotélicos, como Pedro Abelardo, João de Salisbury e o grande Aquinate, afirmavam que o universal "maçã" existe somente nas maçãs e nunca fora delas. Já os nominalistas, como Roscelin e Guilherme de Ockham, negariam que houvesse qualquer universal, já que "maçã" não seria nada mais que um simples nome. Esta discussão ecoaria no confronto entre empiristas e racionalistas modernos.

Porém, historicamente, podemos dividir a Escolástica em três períodos: Escolástica Primitiva (sécs. IX ao XII); Escolástica Média (sécs. XII e XIII) e Escolástica Tardia (sécs. XIV e XV e início do séc. XVI).

A Escolástica Primitiva teve início com o renascimento carolíngio e com o ressurgimento da escola que então se verificou e que desenvolveu um método de ensino que posteriormente foi elaborado pormenorizadamente, formado pelas quaestiones (problemas sujeitos a exame) e disputationes (exposição de argumentos a favor ou contra). As grandes disputas centravam-se em torno de dois problemas fundamentais: o problema da relação entre a fé e razão, ou seja, entre dialéticos partidários da razão e antidialéticos, defensores da fé e o problema da polêmica dos universais.

Na Escolástica Média surgiram diversos tipos de escolas, incluindo as primeiras universidades e iniciou-se um intenso trabalho de tradução, especialmente na Península Ibérica, que possibilitou o conhecimento dos clássicos gregos e latinos, a Filosofia Natural e a Metafísica de Aristóteles, bem como as obras de seus estudiosos gregos e árabes. 

No século XIII, com a introdução, em Paris, da filosofia árabe, representada pela contribuição de Averróis, um especialista em Aristóteles, iniciou-se uma tendência denominada averroísmo latino, que preconizava a defesa da tese da dupla verdade, isto é, de que fé e razão são verdades independentes e igualmente legítimas. Com a criação das ordens franciscana e dominicana, a Escolástica alcançou o seu ponto culminante com a obra de São Tomás de Aquino, da escola dominicana, que adaptou, seguindo de perto Averróis, a filosofia de Aristóteles ao pensamento cristão. De outra parte, a escola franciscana, de que São Boaventura é o expoente maior, inspirou-se no neoplatonismo e na filosofia de Santo Agostinho. 

A Escolástica Tardia (o período dos pós-escolásticos) começou no séc. XIV e se caracterizou pela separação definitiva entre a Filosofia e a Teologia. A Teologia manteve-se em vigor na escola franciscana, representada por Escoto e Occam e a Filosofia concentrou-se no empírico, no particular e no sensível. A Escolástica conheceu então um notável florescimento na Espanha e em Portugal, comandado pelas ordens dominicana e jesuíta, orientadas para a nova interpretação que se fez da teoria de São Tomás na Itália, especialmente por Santo Antonino de Florença e São Bernardino de Siena. O dominicano Francisco de Vitoria fundou uma escola em Salamanca, em que se formaram notáveis teólogos tomistas que, juntamente com os jesuítas de Coimbra e Francisco Suárez, em polêmica com o escotismo e o nominalismo, defenderam uma síntese escolástica tradicional, porém de acordo com as novas tendências de pensamento da época. 

No final desta série de artigos, você encontrará um apêndice mostrando o quadro evolutivo da Filosofia Moral e Política da Idade Média, desde São Justino de Cesareia, o Mártir (100-165) até nosso "herói" Juan de Mariana. O quadro foi elaborado cuidadosamente por Alex Catharino para o II Ciclo sobre Pensamento Ético, Político e Econômico, módulo I: Antiguidade e Idade Média, A Filosofia Moral e a Teoria Política de Santo Tomás de Aquino, curso promovido pelo Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista - Cieep, em parceria com a Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro.

3. A Escola de Salamanca e os pós-escolásticos (ou escolásticos tardios)

Feita essa pequena digressão histórica, imprescindível para os fins a que me proponho neste artigo, posso agora ir ao em tema principal, a Escolástica Tardia, os pós-escolásticos com destaque para Juan de Mariana e sua importância para a Escola Austríaca de Economia.

Murray Rothbard, em seu excepcional tratado de História do Pensamento Econômico, "Economic Thought Before Adam Smith - An Austrian Perspective on the History of Economic Thought", dedica o capítulo 4 do volume I a uma minuciosa descrição da importância daqueles pensadores dos séculos XIV, XV e XVI. Inicia mostrando que agrande depressão de longo prazo do século XIV e da primeira metade do século XV começou a dar lugar para a recuperação econômica na segunda metade do século XV. Espanha e Portugal, os exploradores líderes dos novos continentes, tornaram-se estados nações dominantes e impérios no século XVI.

Lentamente, porém inexoravelmente, as cidades-estados italianas, que representavam a vanguarda do progresso econômico e da cultura no período do Renascimento, começaram a ser deixadas para trás frente ao avanço do poder econômico e político ibérico derivado da era dos grandes descobrimentos.

Mas, junto com a expansão comercial veio a inflação, alimentada pelo aumento imenso de ouro e prata levados para a Europa pelos espanhóis das minas recém-descobertas do hemisfério ocidental. Uma triplicação aproximada do estoque da espécie na Europa resultou em um século de inflação, com os preços também triplicando durante o século XVI. O novo dinheiro fluiu pela primeira vez no Velho Continente no principal porto espanhol de Sevilha e, em seguida, espalhou-se para os outros países da Europa, e a geografia dos aumentos de preços seguiu, naturalmente, em conformidade com essa expansão.

Inglaterra e França cresceram em força junto com as outras nações atlânticas da Europa ocidental, o que foi bastante facilitado pelo fim da Guerra dos Cem Anos entre os dois países, que na verdade teve a duração de 116 anos, de 1337 a 1453. As doutrinas do estado absoluto, anteriormente limitadas em grande parte aos teóricos e governantes das cidades estados italianas, agora se espalhavam por todos os estados e nações da Europa. O absolutismo triunfou em toda a Europa no início do século XVII e Rothbard mostra que essa vitória foi alimentada pela ascensão do protestantismo e, um pouco mais tarde, pelo secularismo, a partir do século XVI.

Para compreendermos mais precisamente o ethos dos pós-escolásticos, é conveniente visualizarmos, na tabela seguinte, como evoluiu o pensamento econômico desde os escolásticos medievais até os nossos dias.


O nominalismo, derivado da Escolástica Medieval, consistia em uma abordagem reducionista de problemas sobre a existência e natureza de entidades abstratas e opunha-se ao platonismo e ao realismo. Enquanto o platônico defende um enquadramento ontológico em que coisas como propriedades, gêneros, relações, proposições, conjuntos e estados de coisas são assumidos como primitivos e irredutíveis, o nominalista, por definição e maneira de enxergar o mundo, nega a existência de entidades abstratas e procura mostrar que o discurso sobre essas entidades é analisável em termos do discurso sobre concretos particulares da experiência comum. Seus autores mais expressivos foram Guilherme de Ockam (1290-1350), Jean Buridan de Bethune (1300-1358), Nicole Oresme (1325-1382) e Heinrich von Langenstein (1325-1397).

Apesar de influenciarem também o positivismo e François Quesnay (o fundador do fisiocratismo) e de se oporem ao tomismo, os nominalistas contribuíram para o desenvolvimento da Escolástica Tardia ao abordarem, principalmente, três temas: a teoria do valor (dando a ela enfoque subjetivista); a defesa do livre comércio e a defesa da propriedade privada (a defesa franciscana de que se deve abrir mão das riquezas exige que se possuam essas riquezas, o que conduz à defesa do direito de propriedade). Oresme defendeu também a conhecida "Lei de Gresham", segundo a qual "a moeda má expulsa a moeda boa", bem como o padrão-metálico.

Vejamos agora o quadro sinóptico que mostra as origens a as influências dos escolásticos tardios, com alguns aspectos das ideias defendidas por seus principais nomes. Trata-se de um quadro semelhante ao elaborado por Alejandro Chafuen, em seu celebrado livro Economia y Etica: Raices Cristianas de La Economia de Libre Mercado, de 1991.


Escolástica Tardia na Itália

São Bernardino de Siena (1380-1444), franciscano, sistematizou, na Toscana, a herança intelectual econômica de São Tomás, sendo o primeiro teólogo, depois de Olivi, a escrever um livro inteiro dedicado à teoria econômica escolástica. Os pontos principais de sua doutrina foram a defesa da propriedade privada (embora a considerasse artificial e não natural), a defesa do empreendedorismo, a defesa do livre comércio, a legitimação dos lucros, a teoria do valor, em que o "preço justo" é definido como sendo o preço de mercado e os perigos da tributação excessiva.

Santo Antonino de Florença (1389-1459), um discípulo de S. Bernardino, seguiu a mesma análise de seu preceptor, mas enfatizou um ponto crucial da filosofia do Aquinate, o de que qualquer transação no mercado traz benefícios mútuos para ambas as partes, pois estas resultam melhores do que antes, em termos de ficarem mais satisfeitas.

Ambos foram contra a usura, contudo, o que contribuiu para manter esse aspecto da teoria econômica obscuro, cercado de mistérios e quase que proibido.

Escolástica Tardia na Espanha

Especialmente em Salamanca, a partir dos sécs. XV e XVI, diversos autores, inicialmente dominicanos e mais tarde jesuítas, abordaram temas ligados à teoria monetária, propriedade privada, juros, inflação e tributação. Vejamos sucintamente (já que nosso personagem principal neste artigo é Juan de Mariana) como avançaram.

Surge a Escolástica Tardia em Espanha com Francisco de Vitoria (1495-1560), em Salamanca, com seus escritos sobre Direito Internacional e suas explicações morais e econômicas da Summa. Os principais pontos de Vitoria são:o "preço justo" é o preço de mercado e a propriedade privada, a justiça e a paz resultam de trocas voluntárias realizadas entre os agentes.

Martin de Azpilcueta, o "Doutor Navarro" (1493-1586), também dominicano, professor em Salamanca e Coimbra, desenvolveu as bases do conceito de "preferência intertemporal" e da "Teoria Quantitativa da Moeda", defendeu preços livres da interferência dos governos, alertou que emissões de moeda sem lastro provocam distorções na economia e na sociedade e criticou o sistema de reservas fracionárias dos bancos.

Diego de Covarrubias y Leiva (1512-1577), Bispo de Segóvia, alertou para os efeitos nocivos de diminuições no teor metálico das moedas, criticou o sistema de reservas fracionárias dos bancos e chegou a esboçar uma teoria subjetiva do valor.

Luís Saravia de la Calle (século XVI) defendeu, em seu Instrucción de Mercaderes, publicado em 1544, as ações dos comerciantes como legítimas e antecipou o que Menger escreveu em 1871, que não são os custos que determinam os preços, mas os preços que determinam os custos:

Los que miden el justo precio de la cosa según el trabajo, costas y peligros del que trata o hace la mercadería yerran mucho; porque el justo precio nace de la abundancia o falta de mercaderías, de mercaderes y dineros, y no de las costas, trabajos y peligros.

Francisco de García, em Tratado Utilíssimo de Todos los Contractos, Quantos en los Negocios Humanos se Pueden Ofrecer, publicado em Valência em 1583, sustentou que a utilidade marginal dos bens, inclusive a da moeda, é decrescente.

Luís de Molina (1531-1601) advogou a liberdade de preços, criticou as regulações excessivas e as distorções provocadas pelas políticas de preços máximos e mínimos, desenvolveu o conceito de lucros cessantes (lucros perdidos de investimentos) e foi o primeiro a perceber, em 1597, que os depósitos bancários fazem parte da oferta monetária.

Genónimo Castillo de Bobadilla, em Politica para Corregidores y Señores de Vassallos (Madri, 1597), defendeu a competição dinâmica como um processo e não como o estudo de casos de equilíbrio, antecipando Menger, Mises, Lachmann e Kirzner em 400/500 anos!

Juan de Mariana (1535-1624), sobre o qual vamos escrever pormenorizadamente no próximo artigo, jesuíta, "politicamente incorreto" e considerado por alguns estudiosos como o mais importante dos escolásticos tardios, destacou que: a propriedade privada é muito importante para o desenvolvimento econômico e social; monopólios são como que impostos cobrados sem autorização, pois distorcem os preços e empobrecem o povo; o orçamento público deve ser equilibrado, já que os déficits orçamentários resultam em mais impostos ou em emissão de moeda, com a consequente inflação; escreveu um tratado sobre a inflação (atualíssimo), mostrando o que é, sua causa e suas consequências; criticou o poder monopolístico de emitir moeda detido pelos governos; criticou também as regulamentações de preços; argumentou que o intervencionismo viola a lei natural e prejudica a coordenação do corpo social; antecipou Hayek em 400 anos, ao sustentar que a informação é dispersa e subjetiva e que não se deve centralizá-la, sob pena de perda da solidez da ordem social; e mostrou que o valor da moeda depende de sua quantidade e de sua qualidade

Francisco Suarez (1548-1617) e Juan de Salas (1553-1612) argumentaram sobre a impossibilidade de modelos de equilíbrio: "el precio que habrá mañana nel mercado solo Dios lo conosce".

E Juan de Lugo (1583-1660) defendeu a natureza dinâmica dos mercados como processos, criticando a visão teórica que os enxergava como algo estático e em equilíbrio.

As ideias desses e de outros autores espalharam-se pela Europa, especialmente, no início, na Itália e em Portugal. Leonardo Léssio (1554-1623) recompilou os escritos econômicos de Salamanca e os difundiu nos Países Baixos e Antonio de Escobar y Mendoza (1589-1669) os difundiu em França.

A Escolástica Tardia gerou dois ramos:

1. Ramo Norte (anglo-saxão)

2. Ramo Continental (menos conhecido)

Leonardo Léssio (na Bélgica), Grocio e Pufendorf influenciaram John Locke, bem como Hutchinson e, portanto, Adam Smith (este, com uma mescla de subjetivismo e objetivismo) e, daí, a "mainstream economics".

Posteriormente, a partir do século XVIII, foram publicados trabalhos muito importantes para a genealogia da Escola Austríaca, dos quais podemos destacar os de:

Jacques Turgot (1727-1781), teólogo, político e ministro, um subjetivista que defendeu o livre comércio e mostrou que o papel do estado não deve ser o de controlar as atividades econômicas; debuxou o princípio da utilidade marginal decrescente; elaborou uma crítica aos modelos de equilíbrio e formulou uma Teoria do Capital que antecipou o austríaco Eugene von Böhm-Bawerk em quase 200 anos.

Ferdinando Galiani (1728-1787), que escreveu, aos 22 anos, o tratado Della Moneta e resolveu o famoso "paradoxo da água e dos diamantes", explicando-o com o conceito de escassez relativa.

Etienne Bonnot, o Abade de Condillac (1714-1780), publicou La Commerce et le Gouvernment - Considerés relativement l´Un à l´Autre, em 1776 (mesmo ano de publicação de A Riqueza das Nações, de Adam Smith), sob os auspícios de Turgot, que era então ministro. Condillac antecedeu o que Bastiat escreveu na primeira metade do século seguinte, ao analisar as diferenças entre os efeitos "que se veem" e os efeitos "que se devem prever"

Esses três autores possuem diversos pontos comuns: o indivíduo como eixo central; o subjetivismo metodológico; o estudo da Teologia; a defesa do livre comércio e a crítica aos "agregados econômicos" (que dois séculos depois ficariam conhecidos como Macroeconomia).

Por sua vez, Turgot, Galiani e Condillac influenciaram Jean Baptiste Say, Bastiat e Molinari em França, bem como os autores alemães da Escola de Valor de Uso, como Wilhelm Roscher, da Universidade de Leipzig, mestre de Carl Menger (que dedicou o seu Princípios de Economia Política a ele e o cita 17 vezes elogiosamente ao longo da obra, que sustentava que os preços é que determinavam os custos (e não o oposto)

Parece interessante, à guisa de parêntesis, observarmos as citações sobre diversos autores de Menger, o fundador da Escola Austríaca de Economia: Hermann (outro pensador alemão, 12 vezes, todas elogiosamente); Adam Smith (12 vezes, 11 para criticá-lo); Say (11 vezes, 10 para criticá-lo), bem como, sempre elogiando, Condillac, Galeani e Covarrubia que, como vimos, eram escolásticos tardios.

Observando como evoluiu o pensamento econômico desde São Tomás e principalmente com os escolásticos tardios, vemos claramente praticamente todas as características da Escola Austríaca de Economia:

- subjetivismo

- individualismo

- inflação e dos ciclos econômicos como fenômenos causados por distúrbios monetários

- propriedade privada

- mercados como processos

- princípio da ação humana

- interdisciplinaridade

- preferências intertemporais

- união entre Ética, Política e Economia (interdisciplinaridade)

- ordens espontâneas

- liberdade de preços

- livre comércio

- informações insuficientes, dispersas e interpretadas subjetivamente

- tempo real (não newtoniano)

Como vemos, São Tomás é a origem de tudo e o mundo latino e católico não tem por que padecer de qualquer complexo de inferioridade quando se trata de Teoria Econômica.

No próximo artigo: Juan de Mariana, um austríaco politicamente incorreto

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.

O MÍNIMO QUE VOCÊ PRECISA SABER PARA NÃO SER UM IDIOTA


Olavo de Carvalho

Folha - O título do livro é um tanto provocativo, até mesmo para atrair o leitor. Mas não seria pouco filosófico chamar de "idiota" quem não compartilha certas ideias?

Olavo de Carvalho - Ninguém é ali chamado de idiota por "não compartilhar certas ideias", e sim por pretender julgar o que não conhece, por ignorar informações elementares indispensáveis e obrigatórias na sua própria área de estudo ou de atuação intelectual. Nesse sentido, creio ter demonstrado meticulosamente, neste e em outros livros, que alguns dos principais líderes intelectuais da esquerda brasileira, assim como uns quantos da direita nascente, são realmente idiotas e fabricantes de idiotas.

O sr. comenta que a normalidade democrática é a concorrência "efetiva, livre, aberta, legal e ordenada" entre direita e esquerda. Mas também que todo esquerdista é "mau, sem exceção". Como é possível equilibrar esses dois aspectos?

Depende do que você chama de esquerda. Há uma esquerda que aceita concorrer democraticamente com a direita, sair do poder quando perde as eleições e continuar disputando cargos normalmente sem quebrar as regras do jogo. O Partido Trabalhista inglês é assim. Nosso antigo PTB era assim. Disputavam o poder, mas sabiam que, sem uma oposição de direita, perderiam sua razão de ser. Há uma segunda esquerda que deseja suprimir a direita pela matança dos seus representantes reais ou imaginários. Esta governa Cuba, a China, a Coreia do Norte etc., assim como governou a URSS e os países satélites.
Há uma terceira esquerda que, aliada da segunda, diverge dela em estratégia: pretende conquistar primeiro a hegemonia, de modo que, nos termos de Antonio Gramsci, o seu partido se torne "um poder onipresente e invisível, como um mandamento divino ou um imperativo categórico"; e, em seguida, tendo controlado a sociedade por completo, apossar-se do Estado quando já não haja nem mesmo a possibilidade remota de uma oposição de direita. Só aí virá um toque de violência, para dar acabamento à obra-prima.
A existência da primeira esquerda é essencial ao processo democrático. A segunda e a terceira devem ser expulsas da política e dos canais de cultura porque sua essência mesma é a supressão de todas as oposições pela violência ou pela fraude e porque se infiltram na primeira esquerda, corrompendo-a e prostituindo-a.
Ninguém pode apoiar esse tipo de esquerda por "boa intenção". Você já viu algum militante dessa esquerda sonhar em implantar o socialismo e depois ir para casa e viver como um humilde operário do paraíso socialista? Eu nunca vi.
Cada militante se imagina um futuro primeiro-ministro ou chefe da polícia política. Quando matam, é para conquistar o direito de matar mais, de matar legalmente. São porcos selvagens --sem ofensa aos mimosos animais.

O sr. argumenta que o brasileiro é maciçamente conservador, mas desprovido de representação política. Por que não temos políticos e partidos que tomem tal bandeira?

Já está respondido na pergunta anterior. O método da "ocupação de espaços" realizou no Brasil o ideal gramsciano de fazer com que todo mundo nas classes falantes seja de esquerda mesmo sem sabê-lo, de modo que toda ideia que pareça "de direita" já seja vista, instintivamente, sob uma ótica deformante e caluniosa, com chances mínimas ou nulas de argumentar em defesa própria.
Suas próprias perguntas ilustram o sucesso dessa operação no Brasil. Você pode não ser um militante de esquerda, mas raciocina como se fosse, porque na atmosfera mental criada pela hegemonia esquerdista isso é a única maneira "normal" de pensar, às vezes a única maneira conhecida.
Por isso, você, ao formular as perguntas, fala em nome dos meus críticos de esquerda, como se eles, e não o público que gosta do que escrevo, fossem os juízes abalizados aos quais devo satisfações.

Suas ideias podem ser consideradas de direita?

Algumas sim, outras não. Nem tudo no mundo cabe numa dessas categorias. Você não viu a turma da direita enfezada cair de paus e pedras em cima de mim quando afirmei que homossexualismo não é doença nem "antinatural"? É ridículo tomar uma posição ideológica primeiro e depois julgar tudo com base nela por mero automatismo, embora no Brasil de hoje isso seja obrigatório.

Em quais pontos suas ideias podem ser classificadas de direita e em quais não?

Não tenho a menor ideia, nem me interessa. O coeficiente de esquerdismo ou direitismo está antes nos olhos do observador e varia conforme as épocas e os lugares.
Só gente muito estúpida --isto é, a esquerda brasileira praticamente inteira-- imagina que direita e esquerda são categorias metafísicas imutáveis, a chave suprema para a catalogação de todos os pensamentos.
Outros, principalmente na direita, dizem que direita e esquerda não existem mais, o que é também uma bobagem, porque basta uma corrente se autodefinir como "de esquerda" para que todos os que se opõem a ela passem a ser julgados como se fossem a "direita", querendo ou não. A esquerda define-se a si mesma e define seu adversário, por menos que este se encaixe objetivamente na definição.
Nos EUA, alinho-me nitidamente à direita, porque ela existe como agente histórico, é definida e é autoconsciente, mas no Brasil essas coisas são uma confusão dos diabos na qual prefiro não me meter. O sr. Lula não foi, na mesma semana, homenageado no Fórum Econômico de Davos por sua adesão ao capitalismo e no Foro de São Paulo por sua fidelidade ao comunismo?
A última moda na esquerda nacional é cultuar o russo Alexandre Duguin, que é o suprassumo do reacionarismo, enquanto na "direita liberal" muitos adoram abortismo e casamento gay, pontos essenciais da estratégia esquerdista. Prefiro manter distância da direita brasileira, seja isso lá o que for.

No capítulo sobre o golpe de 64, o senhor diz que Castelo Branco foi "um grande presidente", e Médici, "o melhor administrador que já tivemos". Comenta ainda que está na hora de repensar o governo militar. Qual é sua opinião hoje?

No Brasil de hoje não se pode louvar um mérito específico e limitado sem que imediatamente a plateia idiota transforme isso numa adesão completa e incondicional. Neste país, as pessoas, mesmo com algo que chamam de "formação universitária", só sabem louvar ou condenar em bloco, perderam totalmente o senso das comparações, das proporções e das nuances. Isso é efeito de 30 anos de deseducação.
Os méritos dos governos militares no campo econômico, administrativo e das obras públicas são óbvios e, comparativamente, bem superiores a tudo o que veio depois. Ao mesmo tempo, esses governos destruíram a classe política, infantilizaram os eleitores e, por timidez caipira de entrar na guerra ideológica ostensiva, preferiram matar comunistas no porão (embora em doses incomparavelmente menores do que os próprios comunistas matavam em Cuba ou no Camboja) em vez de mover uma campanha de esclarecimento popular sobre os horrores do comunismo. Tudo isso foi uma miséria.
Foi o que eu sempre disse, mas, hoje em dia, se você reconhece uma pontinha de mérito em alguém, já o transformam em devoto partidário dele. Não distinguem nem mesmo entre aplaudir um governo enquanto ele está no poder e tentar avaliá-lo com algum senso de objetividade histórica depois de extinto, mesmo se você, como foi o meu caso, o combateu enquanto durou. O fanatismo idiota tornou-se obrigatório. É disso que o meu livro fala.

O sr. é bastante crítico ao movimento gay. Não acredita que ele foi o responsável por conquistas importantes?

No começo, quando lutava apenas contra a discriminação e a violência anti-homossexual, esse movimento parecia bom e necessário. Mas isso foi só a fachada, a camuflagem do que viria depois: um projeto de dominação total que proíbe críticas e não descansará enquanto não banir a religião da face da Terra ou criar em lugar dela uma pseudorreligião biônica, dócil às suas exigências.

O que o sr. pensa sobre o projeto da cura gay?

Ninguém pede ajuda a um psicólogo para livrar-se de uma conduta indesejada se é capaz de controlá-la pessoalmente ou se não quer abandoná-la de maneira alguma. Quando alguém vai a uma terapia com o propósito de livrar-se do homossexualismo, é porque não o vivencia como uma tendência natural da sua pessoa, e sim como uma compulsão neurótica que o escraviza.
É bem diferente de alguém que é homossexual porque quer, ou de alguém que deixou de ser homossexual porque quis e teve forças para isso. Proibir o tratamento de uma compulsão é torná-la obrigatória, é fazer de um sintoma neurótico um valor protegido pelo Estado. É uma ideia criada por psicopatas e aplaudida por histéricos.

O sr. apoiou a invasão do Iraque em 2003. Nos anos seguintes, vários abusos e atrocidades dos soldados americanos foram divulgados. Acredita que, no saldo geral, a guerra foi positiva?

Não apoiei a invasão do Iraque. De início fui contra. Foi só depois, quando os americanos começaram a exumar os cadáveres das vítimas de Saddam Hussein e viram que eram mais de 300 mil, que comecei a achar que a guerra era moralmente justificável.
Das tais "atrocidades americanas", a maioria é pura invencionice, e as genuínas, inevitáveis em qualquer guerra, nem de longe se comparam ao que Saddam Hussein fez contra o seu próprio povo em tempo de paz.
A guerra, em si, foi positiva do ponto de vista moral, mas a tentativa de forçar o Iraque a adotar uma democracia de tipo ocidental foi ridícula e suicida. A primeira Guerra do Golfo foi bem-sucedida porque se limitou às metas militares, sem sonhos "neocons" de reformar o mundo.

E como o sr. avalia as recentes manifestações em cidades do Brasil?

Tudo começou como uma tentativa de golpe, planejada pelo Foro de São Paulo [coalizão de partidos de esquerda latino-americanos] e pelo governo federal para fazer um "upgrade" no processo revolucionário nacional, passando da fase de "transição" para a da implantação do socialismo "stricto sensu".
Isso incluía, como foi bem provado, o uso de gente treinada em guerrilha urbana para espalhar a violência e o medo e lançar as culpas na "direita". Aconteceu que os planejadores perderam o controle da coisa quando toda uma massa alheia à esquerda saiu às ruas, e eles decidiram voltar atrás e esperar por uma chance melhor. Isso foi tudo. Não há um só líder da esquerda que não saiba que foi exatamente isso.