quarta-feira, 13 de novembro de 2013

OS MÉDICOS E OS BEAGLES

Todo mundo tem alguma opinião sobre o caso do Instituto Royal. Eu não tenho nenhuma. Vejo nele, no entanto, uma amostra didaticamente clara do quanto os debates correntes na vida diária, hoje em dia, são ecos meio inconscientes de conflitos internos do movimento revolucionário mundial.

Entrar numa discussão sem saber qual a origem histórica das ideias que defendemos e atacamos é a melhor maneira de fortalecer ou debilitar correntes ideológico-políticas que desconhecemos. Assim ajudamos a produzir resultados que, se deles tivéssemos antecipadamente alguma consciência, talvez nos parecessem horríveis.

Nesses confrontos de opinião, cada um acredita piamente falar em nome de puros valores universais, em si mesmos inquestionáveis. No caso em questão, é o dever de piedade para com os animais contra o dever médico de salvar vidas humanas.

Acontece que, colocada assim, a questão só pode ser decidida pela adesão aos “direitos dos animais”, tal como formulados pelo filósofo Peter Singer, ou pela proclamação da prioridade absoluta da autoridade científica.

Os valores que legitimam os argumentos são, em si mesmos, universais e abstratos, mas as escolhas práticas incumbidas de traduzi-los em ações no mundo real não são nem abstratas nem universais: são propostas ideológicas nascidas dentro do movimento revolucionário em duas épocas distintas do seu desenvolvimento.

Você pode argumentar em nome de valores puros, mas, sem saber, está pondo lenha na fogueira em que a mentalidade revolucionária vem queimando o mundo há mais de dois séculos.

Até os tempos de Luís XIV pelo menos, os médicos eram funcionários subalternos como os cozinheiros, os adestradores de cavalos e os pintores (mesmo ilustres como Velásquez ou Michelangelo).

Foi a Revolução Francesa que, na esteira do Iluminismo, fez deles uma classe de sábios e como que sacerdotes, investidos de um papel de relevo no guiamento moral da espécie humana. 

O positivismo de Augusto Comte – cujos netos e bisnetos ainda andam pelo mundo, sob nomes diversos – completou o rito de sagração mediante a idéia da "política científica", segundo a qual o mundo só teria paz quando as decisões políticas fossem tomadas racionalmente por uma elite científica, eliminado todo direito às divergências subjetivas e às "razões do coração" (o melhor livro que conheço a respeito é Régénérer l’Espèce Humaine. Utopie Médicale et Lumières, do historiador Xavier Martin, Paris, 2008).

A partir de então, muitas questões de natureza filosófica e religiosa foram transferidas para a alçada da classe médico-científica, que, naturalmente, fazia abstração dos seus aspectos mais problemáticos e sutis, reduzindo tudo aos parâmetros do seu método especializado e, em última análise, à distinção do "normal" e do "patológico". 

Até hoje, no entanto, essa dupla de conceitos é alvo de dissensões ferozes, contrastando com a nitidez pacífica da antiga distinção religiosa entre vícios e virtudes, que, nominalmente, ela veio substituir pela racionalidade de conceitos "claros e distintos".

Por exemplo, o homossexualismo é normal ou é doença? O gayzismo tem hoje o prestígio de uma causa revolucionária, mas houve um tempo em que o profeta mesmo da "liberação sexual", o psiquiatra alemão Wilhelm Reich, via nas práticas homossexuais uma perversão típica da sociedade capitalista, destinada a desaparecer da face da Terra tão logo a energia sexual fosse liberada da repressão burguesa e todos fossem felizes para sempre no paraíso heterossexual socialista.

A transferência da autoridade moral para a classe científica resultou na dissolução de inúmeros conceitos científicos na massa amorfa de infindáveis debates ideológicos mais confusos e mais insolúveis do que qualquer disputa teológica do século13.

O direito ao uso praticamente ilimitado de animais na experimentação científica é algo que teria escandalizado um escolástico da Idade Média – para não mencionar os franciscanos, que conversavam com passarinhos; mas, no século 19, isso pareceu inteiramente normal, porque era simplesmente um passo a mais na progressiva concentração revolucionária do poder nas mãos de uma elite iluminada, e incumbida de "regenerar a espécie humana".

Não demorou muito para que, corroída pelo debate científico, a antiga noção bíblica do homem como imagem de Deus cedesse lugar à concepção da humanidade como uma simples espécie animal entre outras, tornando portanto aceitável a idéia de usar os próprios seres humanos como cobaias de laboratório ou de tratá-los com eletrochoques caso divergissem "patologicamente" da ideologia governamental.

O movimento revolucionário evolui, ao mesmo tempo, por expansão e por autonegação. O horror totalitário que ele próprio criou cedeu lugar, assim, ao discurso dos "direitos das minorias". Mas foi daí mesmo que, na fase seguinte do debate revolucionário, o professor Peter Singer tirou a conclusão de que devia condenar como delito de "especismo" a prioridade dos direitos humanos sobre os "direitos dos animais" e proclamar que é mais justo, num experimento científico, sacrificar antes um bebê mongolóide do que um macaco-prego inteligente.

Eis aí o pano-de-fundo ideológico sobre o qual se desenrola, sem esperança de solução, o debate entre os advogados dos Beagles e os defensores do Instituto Royal.

O mandamento cristão da piedade, aplicado com critério e inteligência, seria suficiente para dirimir todas as dúvidas e orientar o procedimento em cada caso concreto. Mas quem quer voltar a essas velharias em pleno século 21?

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.

SEM COMPLACÊNCIA

Temos assistido ultimamente ao encolhimento do Estado diante da fúria de vândalos, aos quais aderem agora facções do crime organizado


As notícias da semana que terminou não foram auspiciosas, nem no plano internacional nem no local. Uma decisão da Corte Suprema da Argentina, sob forte pressão do governo, sancionou uma lei que regula a concessão de meios de comunicação. Em tese, nada de extraordinário haveria em fazê-lo. No caso, entretanto, trata-se de medida tomada especificamente contra o grupo que controla o jornal “El Clarín”, ferrenho adversário do kirchnerismo. Cerceou um grupo de comunicação opositor ao governo sob pretexto de assegurar pluralidade nas normas de concessão. Há, contudo, tratamento privilegiado para o Estado e para as empresas amigas do governo.

Da Venezuela, vem-nos uma patuscada incrível: as cidades do país apareceram cobertas de cartazes contra a “trilogia do mal”, ou seja, os principais líderes opositores, aos quais se debitam as falências do governo! Seria por causa deles que há desabastecimento, falta de energia e crise de divisas, além da inflação. Tudo para incitar ódio popular aos adversários políticos do governo, apresentando-os como inimigos do povo.

O lamentável é que os governos democráticos da região assistem a tudo isso como se fosse normal e como se as eleições majoritárias, ainda que com acusações de fraudes, fossem suficientes para dar o passaporte democrático a regimes que são coveiros das liberdades.

No Brasil, também há sinais preocupantes. Às manifestações espontâneas de junho se têm seguido demonstrações de violência, desconectadas dos anseios populares, que paralisam a vida de milhões de pessoas nas grandes cidades. A estas se somam às vezes atos violentos da própria polícia. Com isso, deixa-se de ressaltar que nem toda ação coercitiva da polícia ultrapassa as regras da democracia. Pelo contrário, se nas democracias não houver autoridade legítima que coíba os abusos, estes minam a crença do povo na eficácia do regime e preparam o terreno para aventuras demagógicas de tipo autoritário.

Temos assistido ao encolhimento do Estado diante da fúria de vândalos, aos quais aderem agora facções do crime organizado. Por isso, é de lamentar que o secretário-geral da Presidência se lamurie pedindo mais “diálogo” com os black blocs, como se eles ecoassem as reivindicações populares. Não: eles expressam explosões de violência anárquica desconectadas de valores democráticos, uma espécie de magma de direita, ao estilo dos movimentos que existiram no passado no Japão e na Alemanha pós-nazista.

Esses atos vandálicos dão vazão de modo irracional ao mal-estar que se encontra disseminado, principalmente nas grandes cidades, como produto da insensatez da ocupação do espaço urbano com pouca ou nenhuma infraestrutura e baixa qualidade de vida para uma aglomeração de pessoas em rápido crescimento. O acesso caótico aos transportes, o abastecimento de água deficiente e a rede de serviços (educação, saúde e segurança) insuficiente não atendem às crescentes demandas da população. Sem mencionar que a corrupção escancarada irrita o povo. Não é de estranhar que, conectados aos meios de comunicação, que tudo informam, os cidadãos queiram dispor de serviços de países avançados ou de padrão Fifa, como dizem. Sendo assim, mesmo que a situação de emprego e salário não seja ruim, a qualidade de vida é insatisfatória. Quando, ainda por cima, a propaganda do governo apresenta um mundo de conto da Carochinha, e o cotidiano é outro, muito mais pesado, explicam-se as manifestações, mas não se justificam os vandalismos.

Menos ainda quando o crime organizado se aproveita desse clima para esparramar terror e coagir as autoridades a não fazer o que deve ser feito. Estas precisam assumir suas responsabilidades e atuar construtivamente. É necessário dialogar com as manifestações espontâneas, conectadas pela internet, e dar respostas às questões de fundo que dão motivos aos protestos. A percepção de onde o calo aperta pode sair do diálogo, mas as soluções dependem da seriedade, da competência técnica, do apoio político e da visão dos agentes públicos.

Os governos petistas puseram em marcha uma estratégia de alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e efeitos colaterais negativos a prazo mais longo. O futuro chegou, na esteira da falta de investimento em infraestrutura, do estímulo à compra de carros, do incentivo ao consumo de gasolina, em detrimento do etanol, e do gasto das famílias via crédito fácil, empurrado pela Caixa Econômica Federal. Os reflexos aparecem nas grandes cidades pelo país afora: congestionamentos, transporte público deficiente, aumento do nível de poluição atmosférica etc.

De repente caiu a ficha do governo: tudo pela infraestrutura, na base da improvisação e da irresponsabilidade fiscal. Primeiro, o governo federal subtraiu receitas de estados e municípios para cobrir de incentivos a produção e compra de carros. Depois, em vista do “caos urbano” e da proximidade das eleições, afagou governadores e prefeitos, permitindo-lhes a contratação de novos empréstimos, sobretudo para gastos em infraestrutura. A mão que os afaga é a mesma que apedreja a Lei de Responsabilidade Fiscal, ferida gravemente pela destruição de uma de suas cláusulas pétreas: a vedação ao refinanciamento de dívidas dentro do setor público. Mais uma medida, esta especialmente funesta, que alegra o presente e compromete o futuro.

Não haverá solução isolada e pontual para os problemas que o país atravessa e as grandes cidades sentem mais do que quaisquer outras. Os problemas estão interconectados, assim como as manifestações e demandas. Não basta melhor infraestrutura se o crime organizado continua a campear, nem ter mais hospitais e escolas se a qualidade da Saúde e da Educação não melhora. As soluções terão de ser iluminadas por uma visão nova do que queremos para o Brasil. Precisamos propor um futuro não apenas materialmente mais rico, mas mais decente e de melhor qualidade humana. Quem sabe assim possamos devolver aos jovens e a todos nós causas dignas de serem aceitas, que sirvam como antídoto aos impulsos vândalos e à complacência com eles.

Por: Fernando Henrique Cardoso O Globo

terça-feira, 12 de novembro de 2013

DIREITA E ESQUERDA

Visitei Praga em 1989, às vésperas da Revolução de Veludo. Naquela cidade, "comunista" era estigma. No Brasil, a ditadura militar definiu a palavra "direita". "O cara é de direita." Impossibilitado de internar dissidentes em instituições psiquiátricas, o lulopetismo almeja isolá-los num campo de concentração virtual. No processo, devasta o sentido histórico dos termos até virá-los pelo avesso: eles é que são "de direita"; eu sou "de esquerda".

Eles financiaram com dinheiro público a bolha Eike Batista. Na fogueira do Império X, queimam-se US$ 5,2 bilhões do povo brasileiro. "O BNDES para os altos empresários; o mercado para os demais": eis o estandarte do capitalismo de Estado lulopetista. Anteontem, Lula elogiou o "planejamento de longo prazo" de Geisel; ontem, sentou-se no helicóptero de Eike para articular um expediente de salvamento do megaempresário de estimação. O lobista do capital espectral é "de direita"; eu, não.

Eles são fetichistas: adoram estatais de energia e telecomunicações, chaves mágicas do castelo das altas finanças. Mas não contemplam a hipótese de criar empresas públicas destinadas a prestar serviços essenciais à população. Na França, os transportes coletivos, que funcionam, são controlados pelo Estado. Eu defendo esse modelo para setores intrinsecamente não-concorrenciais. O Partido prefere reiterar a tradição política brasileira, cobrando de empresários de ônibus o pedágio das contribuições eleitorais para perpetuar concessões com lucros garantidos. "De esquerda"? Esse sou eu, não eles.

Eles são corporativistas. No governo, modernizaram a CLT varguista, um híbrido do salazarismo com o fascismo italiano, para integrar as centrais sindicais ao aparato do sindicalismo estatal. Eles são restauracionistas. Na década do lulismo, inflaram com seu sopro os cadáveres políticos de Sarney, Calheiros, Collor e Maluf, oferecendo-lhes uma segunda vida. O PT converteu-se no esteio de um sistema político hostil ao interesse público: a concha que protege uma elite patrimonialista. "De direita"? Isso são eles.

Eles são racialistas; a esquerda é universalista. O chão histórico do pensamento de esquerda está forrado pelo princípio da igualdade perante a lei, a fonte filosófica das lutas populares que universalizaram os direitos políticos e sociais no Ocidente. Na contramão dessa herança, o lulopetismo replicou no Brasil as políticas de preferências raciais introduzidas nos EUA pelo governo Nixon. Inscrevendo a raça na lei, eles desenham, todos os anos, nas inscrições para o Enem, uma fronteira racial que atravessa as classes de aula das escolas públicas. Esses plagiários são o túmulo da esquerda.

Eles são atavicamente conservadores. Os programas de transferência de renda implantados no Brasil por FHC e expandidos por Lula têm raízes intelectuais nas estratégias de combate à pobreza formuladas pelo Banco Mundial. Na concepção de FHC, eram compressas civilizatórias temporárias aplicadas sobre as feridas de um sistema econômico excludente. Nos discursos de Lula, saltaram da condição de "bolsa-esmola" à de redenção histórica dos pobres. Quando os manifestantes das "jornadas de junho" pronunciaram as palavras "saúde" e "educação", o Partido orwelliano sacou o carimbo usual, rotulando-os como "de direita". Eles destroem a linguagem política para esvaziar a praça do debate público. Mas, apesar deles, não desapareceu a diferença entre "esquerda" e "direita" --e eles são "de direita".

"Esquerda"? O lulopetismo calunia a esquerda democrática enquanto celebra a ditadura cubana. Fidel Castro colou a Ordem José Martí no peito de Leonid Brejnev, Nicolau Ceausescu, Robert Mugabe e Erich Honecker, entre outros tiranos nefastos. Da esquerda, eles conservam apenas uma renitente nostalgia do stalinismo. Sorte deles que Praga é tão longe daqui.

Por: Demétrio Magnoli Folha de SP

O FIM DOS ROMANOV: DA INFÂNCIA AO TEROR

A revolução Russa de 1917 não foi a luta do bem contra o mal que certa historiografia ideológica vendeu durante décadas de forma bem-sucedida. O embate entre o czarismo e os revolucionários (mencheviques e bolcheviques) foi uma batalha do mal contra o mal que fez dos russos suas maiores vítimas. A infame execução do czar Nicolau II junto com a sua família foi a consagração de uma utopia política que, fundida aos ideais revolucionários, prometia erigir uma sociedade ideal e um futuro perfeito, mas que conspurcou a Rússia com o sangue e os corpos de seus filhos.

Uma das várias virtudes de Os Últimos Dias dos Romanov (Record, 335 páginas, tradução de Luís Henrique Valdetaro) é narrar os dias de cárcere da família até a execução sem se deixar conduzir pela natural crueldade dos eventos e por formas obtusas de sentimentalismo. A historiadora inglesa Helen Rappaport, também autora de um valioso livro sobre Lenin (Conspirator: Lenin in Exile), reconstrói a tensão e o sofrimento da família com a dose precisa de frieza. Aqui, o rigor da historiadora e o estilo da escritora tendem a evitar que a humana compaixão que sentimos ao acompanhar o sofrimento dos Romanov não se converta num afeto capaz de eximir o czar do regime que impunha aos russos.

Por séculos submetida a um sistema político e social rígidos, que reservava os benefícios e as riquezas a um grupo privilegiado da corte czarista, a sociedade da Rússia se movimentava dentro das regras estritas de servidão voluntária e compulsória. A derrubada do czar pelos revolucionários viera com a promessa de libertar o povo do regime de Nicolau II, qualificado por Lenin como um “carrasco sanguinário” , “o inimigo mais diabólico do povo russo”. O terror imputado ao czar seria mais tarde ampliado e institucionalizado por Lenin e potencializado por Stalin, ambos com a singularidade de não escolher vítimas: qualquer um poderia ser acusado de inimigo do povo e executado. Na boca de Lenin, a palavra liberdade expelia o cheiro da morte.

A história da prisão e execução da família Romanov é conhecida e foi tema de vários livros, filmes e documentários. O que diferencia o trabalho de Rappaport é o recorte: a descrição dos últimos 14 dias de vida passados no cárcere, numa recriação fabulosa do ambiente claustrofóbico e enervante, a relação tênue e tensa com os carcereiros, o papel de Lenin no comando dos assassinatos.

Os dias de prisão na casa Ipatiev, localizada em Ecaterimburgo, estraçalharam os nervos do czar e da czarina Alexandra. O titubeante e fraco Nicolau II transformou sua impassibilidade num refúgio interior para preservar alguma força e assim cuidar dos quatro filhos, especialmente do caçula hemofílico, Alexei. A Czarina, por sua vez, manteve até o fim uma arrogância natural que a tornara impopular no império.

A execução de Nicolau II, de Alexandra, dos filhos Alexei, Olga, Tatiana, Maria e Anastasia, do médico dr. Botkin e dos ajudantes Trupp, Kharitonov e Demidova foram uma explosão de ressentimento daqueles que, aparentemente, agiam em nome de uma ideia. Quem disparou os tiros e espetou os corpos com baionetas foram homens que viam representada no czar a razão do seu fracasso e o reflexo daquilo que se transformaram. A ideologia cumpria a sua função de combustível a motivar a luta e justificar a violência. Os nomes dos mortos no início do parágrafo não são um detalhe desimportante. São o atestado público de que aqueles que morrem são os indivíduos, mesmo quando o que se quer aniquilar é que aquilo que representam.

Helen Rappaport escreveu um livro notável porque humanizou o relato de uma história desumana sem mergulhar nos infortúnios de uma perspectiva dualista. Seria um equívoco posicionar-se a favor de um dos lados porque czarismo e bolchevismo violentaram sem misericórdia a sociedade que diziam representar.

O jornalista russo-judeu Herman Bernstein, um anticzarista e entusiasta inicial da revolução que trabalhava como correspondente do Washington Post, definiu com exatidão a mudança política ao ver os resultados do governo de Lenin: a Rússia czarista, onde qualquer aspiração por liberdade era cortada pela raiz, foi convertida pelos revolucionários num imenso laboratório onde os indivíduos eram as cobaias de um infame experimento social. O extermínio dos Romanov foi o esboço do que estava por vir.

Publicado no site Ordem Livre.

Bruno Garschagen é cientista político pelo Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica de Lisboa e University of Oxford, e podcaster do Instituto Ludwig von Mises.



A VERDADE QUE JOHNNY DEPP QUER ESCONDER SOBRE OS ÍNDIOS COMANCHES


Os índios comanches foram responsáveis pelos assassinatos mais brutais da história do Velho Oeste.
No entanto, Johnny Depp quer representar o índio Tonto em uma roupagem mais simpática.

O rosto da menina de 16 anos, antes atraente, estava grotesco. 

Havia sido desfigurada ao ponto de estar irreconhecível durante os 18 meses em que foi mantida prisioneira pelos índios comanches.

Agora, estava sendo oferecida de volta às autoridades do Texas pelos chefes indígenas como parte de uma negociação de paz.

Diante de suspiros de choque da audiência, os índios a apresentaram na sede conselho do povoado de San Antonio em 1840, ano em que a Rainha Vitória do Reino Unido se casou com o Príncipe Albert.

“Sua cabeça, seus braços e seu rosto estavam cheios de ferimentos e feridas”, escreveu uma testemunha, Mary Maverick. “E seu nariz estava queimado até o osso. As narinas estavam escancaradas e sem carne”.

Assim que foi entregue, Matilda Lockhart entrou em desespero ao descrever os horrores que teve que suportar — os estupros, a contínua humilhação sexual e a forma como as mulheres comanches a torturavam com fogo. Não foi somente o nariz, seu corpo magro havia sido cruelmente marcado dos pés á cabeça com queimaduras.

Quando ela mencionou acreditar que havia 15 outros prisioneiros brancos no campo dos índios, todos sendo submetidos a condições similares, os legisladores e as autoridades texanas disseram que iriam deter os líderes comanches até resgatarem os outros.

Foi uma decisão que desencadeou uma das matanças mais brutais da história do Velho Oeste, e mostrou quão sanguinários os comanches poderiam ser na sua vingança.

S. C. Gwynne, autor de "Empire Of The Summer Moon about the rise and fall of the Comanche” (Império da Lua de Verão sobre a ascensão e queda dos comanches), afirma simplesmente que: “Nenhuma tribo na história das ocupações espanholas, francesas, mexicanas, texanas e americanas desta terra causaram tanta destruição e morte. Nenhum outro sequer chegou perto”.

Ele menciona a “imoralidade demoníaca” dos ataques comanches nos assentamentos dos brancos e da forma como torturas, assassinatos e estupros coletivos eram rotina. “A lógica dos ataques comanches era objetiva”, ele explica. 

“Todos os homens eram mortos, qualquer homem capturado vivo era torturado, e as mulheres prisioneiras eram estupradas. Os bebês sempre eram mortos”.

Você não saberia disso pelo novo filme O Cavaleiro Solitário, que estrela Johnny Depp como o índio Tonto.

Por razões que só eles sabem, os produtores mudaram a tribo de Tonto para Comanche. No seriado de TV, ele era membro da tribo Potowatomi, relativamente passiva.

No entanto, ele e seus conterrâneos nativos são apresentados no filme como angelicais vítimas de um Velho Oeste onde eram os colonizadores brancos, os homens que construíram a América, que representam nada a não ser exploração, brutalidade, destruição ambiental e genocídio.

Depp teria dito que queria atuar como Tonto para retratar os americanos nativos com uma roupagem mais simpática. Mas os próprios comanches nunca demonstraram simpatia.

Quando aquela delegação de índios em San Antonio percebeu que iria ser detida, eles lutaram para fugir com flechas e facas, matando todos os texanos que puderam alcançar. Os soldados texanos, por sua vez, abriram fogo, matando 35 comanches, ferindo muitos outros e fazendo 29 prisioneiros.

Mas a resposta furiosa da tribo comanche não tinha limites. Quando os texanos sugeriram uma troca dos prisioneiros comanches pelos seus próprios, os índios preferiram torturar todos até a morte.

“Uma por uma, as crianças e jovens mulheres foram amarradas próximo à fogueira”, segundo um relato da época. “Elas tiveram a pele arrancada, foram cortadas e horrivelmente mutiladas, e finalmente queimadas vivas por mulheres vingativas determinadas a espremer o último grito e a última convulsão de seus corpos agonizantes”. A irmã de Matilda Lockhart, de apenas seis anos, estava entre os desafortunados que morreram aos gritos sob a luz da lua nas altas planícies”.


Vida real: Lobo Branco, chefe comanche, fotografado no final do século XIX

Os comanches não eram somente especialistas em tortura, eram também os guerreiros mais ferozes e bem sucedidos, chegando a ser conhecidos como “Lordes das Planícies”.

Eram tão imperialistas e genocidas quanto os colonos brancos que mais tarde os derrotariam. 

Quando eles migraram para as grandes planícies do sul dos EUA no final do século XVIII vindos das Montanhas Rochosas (Rocky Mountains), eles não somente dominaram as tribos que lá habitaram como quase exterminaram os apaches, que estavam entre os melhores guerreiros montados do mundo.

A chave para o sucesso brutal dos comanches era que eles se adaptaram ao cavalo até mais habilmente que os apaches.

Não havia um cavalo sequer nas Américas até que os conquistadores espanhóis os trouxessem. E os comanches eram uma tribo pequena e relativamente primitiva que vagava pela área onde agora estão os estados de Wyoming e Montana, até por volta de 1700, quando, ao migrarem para o sul, descobriram cavalos espanhóis selvagens que haviam escapado do México.

Sendo os primeiros índios a montarem um cavalo, tinham uma aptidão para cavalgar similar à dos mongóis de Gengis Khan. Somando à sua notável ferocidade, isso lhes permitiu dominar mais território que qualquer outra tribo indígena: o que os espanhóis chamaram de Comancheria se espalhou por pelo menos 400 km.

Eles aterrorizaram o México e contiveram a expansão da colonização espanhola na América. A tribo roubava cavalos para montar e gado para vender, geralmente em troca de armas de fogo.

Qualquer outro tipo de vida era morto, incluindo bebês e idosos (mulheres mais velhas geralmente eram estupradas antes de mortas), deixando o que os mexicanos chamaram de “mil desertos”. Quando seus guerreiros eram mortos, consideravam questão de honra buscar uma vingança que envolvia tortura e morte. 

Os colonos no Texas tinham absoluto pavor dos comanches, que eram capazes de viajar quase 2000 km para matar uma única família branca.

O Historiador T R Fehrenbach, autor de Comanche: The History Of A People (Comanche: A História de um Povo), conta sobre um ataque a uma das primeiras famílias de colonos de sobrenome Parker, que, junto com outras famílias, construíram uma paliçada conhecida como Forte Parker. Em 1836, 100 comanches montados apareceram às portas do forte, um deles segurando uma bandeira branca para enganar os Parkers.

“Benjamin Parker saiu para negociar com os comanches” conta o historiador. “As pessoas dentro do forte viram quando os índios subitamente o cercaram e o crivaram com suas lanças. Depois, aos berros de empolgação, os guerreiros montados correram para a entrada do forte. Silas Parker foi morto antes que pudesse barrar a entrada, e eles se espalharam pelo forte”.

Os sobreviventes descreveram a matança: “Pai e filho da família Frost foram mortos na frente das mulheres; Elder John Parker, sua esposa ‘Granny’ e outros tentaram fugir. Os guerreiros se espalharam e os derrubaram.

“John Parker foi pregado ao chão, depois escalpelado e teve os genitais arrancados. Depois foi morto. Granny Parker foi despida e fixada à terra perfurada por uma lança. Vários guerreiros a estupraram enquanto ela gritava.

A mulher de Silas Parker Lucy, fugiu por um portão com seus quatro filhos pequenos. Mas os comanches os alcançaram perto do rio. Eles jogaram ela e as quatro crianças sobre os cavalos para leva-los como prisioneiros”.

A crueldade comanche era tão intimidadora que quase todos os ataques de nativos eram atribuídos a eles. Texanos, mexicanos e outros índios que viviam na região todos desenvolveram um medo particular com lua cheia (até hoje conhecida como “lua comanche” no Texas) porque era quando os comanches saíam para roubar gado, cavalos e prisioneiros.

Eram famosos por suas torturas engenhosas, e o processo de tortura geralmente cabia às mulheres.

Os comanches assavam na fogueira soldados americanos e mexicanos até a morte. Outros eram castrados e escalpelados vivos. As torturas comanches mais agonizantes incluíam enterrar prisioneiros até o queixo e cortar suas pálpebras para que seus olhos fossem queimados pelo sol antes de morrerem de fome.

Relatos da época também descrevem que eles colocavam prisioneiros homens com as pernas e os braços abertos sobre ninhos de formigas lava-pés. Às vezes isso era feito depois de cortarem os órgãos genitais da vítima, enfiá-los em sua boca e costurar seus lábios.

Um bando costurou prisioneiros em couro cru e os deixou ao sol. O couro lentamente encolhia e esmagava os prisioneiros até a morte.

T R Fehrenbach cita um relato de espanhóis que descrevia comanches torturando índios tonkawa, segundo o qual eles queimavam as mãos e os pés da vítima até que os nervos estivessem destruídos, depois amputavam essas extremidades e recomeçavam o tratamento de fogo nas feridas vivas. Escalpelados vivos, os Tonkawas tinhas as línguas arrancadas para pararem de gritar.

Representação clássica: Clayton Moore como o Cavaleiro Solitário na década de 50 e Jay Silverheels, que fazia o papel de Tonto.

Os comanches sempre lutaram até a morte, pois esperavam o mesmo tratamento dos seus próprios prisioneiros. Os bebês eram quase sempre mortos nos ataques, embora dissessem que soldados e colonos eram tendentes a matar mulheres e crianças comanches, se deparassem com elas.

Os jovens comanches, incluindo prisioneiros, eram criados para se tornarem guerreiros e tinham que sobreviver a ritos sangrentos de passagem. As mulheres com frequência lutavam ao lado dos homens.

É possível que a violência dos comanches fosse em parte derivada dos seus encontros violentos com colonos espanhóis notoriamente cruéis, além de bandidos e soldados mexicanos.

Mas uma teoria mais convincente é a de que a falta de uma liderança central dos comanches induziu muito dessa crueldade. Os bandos comanches eram associações pouco rígidas de guerreiros/pilhantes, como uma confederação de pequenas gangues.

Em toda sociedade, adolescentes na casa dos vinte são os mais violentos, e mesmo se quisessem, os chefes tribais dos comanches não tinham como impedir seus jovens de cometer ataques.

Mas os comanches encontraram um adversário à altura com os rangers texanos. Brilhantemente retratados nos livros de Larry McMurtry da série Lonesome Dove, os rangers começaram a ser recrutados em 1823, principalmente para lutar contra os comanches e seus aliados. Eles eram uma tenaz força de guerrilha, tão impiedosa quanto seus adversários comanches.

Eles também os respeitavam. Um dos rangers personagens dos livros de McMurtry disse ironicamente a um homem que afirmou ter visto um bando de mil comanches: “Se um dia houvesse mil comanches em um bando, eles teriam tomado Washington”.

Os rangers do Texas muitas vezes saíram em desvantagem contra seus inimigos, até que aprenderam a lutar como eles, e até receberem o novo revolver Colt.

Durante a Guerra Civil, quando os rangers saíram para lutar pelos Estados Confederados, os comanches recuaram a fronteira americana e os assentamentos dos brancos em mais de 150 km.

Mesmo depois que os rangers voltaram e o exército americano se uniu às campanhas contra os comanches, o Texas perdeu uma média de 200 colonos por ano até a Guerra do Rio Vermelho em 1874, quando o exército com toda a sua força, além da destruição dos grandes rebanhos de búfalos dos quais os comanches dependiam, pôs fim às depredações.

Curiosamente, os comanches, embora hostis a todos os outros povos que encontravam, não tinham senso de raça. Eles complementavam seus números com jovens americanos e mexicanos capturados, que se tornavam integralmente membros da tribo se tivessem potencial para a guerra e fossem capazes de sobreviver aos ritos de iniciação.

Os prisioneiros mais fracos podiam ser vendidos a comerciantes mexicanos como escravos, porém geralmente eram mortos. Mas apesar da crueldade, alguns dos jovens capturados que mais tarde eram resgatados se viam incapazes de se adaptar à vida “civilizada” dos colonos e fugiam para se reunir aos seus irmãos.

Um dos grandes chefes comanches, Quanah, era filho de uma branca capturada, Cynthia Ann Parker. Seu pai foi morto em um ataque feito pelos rangers, o que resultou no resgate de sua mãe da tribo. Ela nunca se adaptou à vida na civilização e parou de comer até a morte.
Versão maquiada: Depp disse que queria caracterizar Tonto 
de uma maneira mais simpática.


Quanah se rendeu ao exército americano em 1874. Ele se adaptou bem à vida em uma reserva, e os comanches, surpreendentemente, se tornaram uma das tribos mais economicamente bem-sucedidas e assimiladas.

Como resultado, as principais reservas comanches foram fechadas em 1901, e os soldados comanches serviram no exército americano com distinção nas Guerras Mundiais. Até hoje eles estão entre os americanos nativos mais prósperos, notórios pela educação.

Ao interpretar a tribo indígena mais cruel e agressiva como meros inocentes vítimas da opressão, Johnny Depp perpetua o mito condescendente e ignorante do “bom selvagem”.

Isso não só é uma caricatura da realidade, mas não ajuda em nada os índios que Depp quer tão avidamente apoiar.


ESCRITO POR JONATHAN FOREMAN
Tradução: Luis Gustavo Gentil 


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

BEIJO DA MORTE

Embora o deficit externo de setembro, US$ 2,6 bilhões, tenha sido o mais baixo registrado no ano, as contas do país acumulam nos últimos 12 meses deficit pouco superior a US$ 80 bilhões (3,6% do PIB), aumento expressivo em relação aos US$ 50 bilhões (2,2% do PIB) registrados nos 12 meses anteriores.

Números ainda mais altos não podem ser descartados no ano que vem, pois os fatores determinantes da sua expansão ainda estão em pleno funcionamento e nada indica uma interrupção desse processo.

A começar pela discrepância entre o desempenho da demanda interna (consumo, investimento e, é claro, os gastos do governo) e o PIB. Aquela cresce à frente deste há nada menos do que 32 trimestres (sem contar o terceiro deste ano), tendo ultrapassado o valor absoluto da produção doméstica desde meados de 2010.

Como venho apontando há algum tempo, a capacidade de produção enfrenta gargalos dos mais variados, seja em razão do mercado de trabalho apertado, seja pela insuficiência da infraestrutura, seja ainda por outros fatores que se expressam no baixo crescimento do produto por trabalhador.

Nesse contexto, adotar –como tem feito o governo– políticas de expansão da demanda interna, impulsionadas pelo gasto público e pelo crédito oficial, pouco adiciona ao crescimento do produto.

Pelo contrário, nos setores em que a concorrência externa é escassa (tipicamente serviços), os estímulos têm se transformado em combustível para a inflação, que já se aproxima de 9% nesse segmento nos últimos 12 meses.

Não por acaso a quantidade física de importações aumentou pouco menos de 11% até agosto (ante crescimento de apenas 1% das exportações), o que não pode ser explicado apenas pela contabilização em 2013 de importações de petróleo realizadas no ano passado.Já nos setores mais sujeitos à competição internacional (tipicamente manufaturados) o que se observa é o aumento das importações à frente das exportações, de modo a adequar a oferta total (produção interna mais importações líquidas) ao consumo doméstico.

Incapaz, portanto, de atender simultaneamente o consumo crescente de manufaturas e serviços, a produção se volta para os últimos, diante da impossibilidade da sua importação, enquanto a redução do saldo comercial cuida de aumentar a disponibilidade doméstica de manufaturas. Nesse sentido, o aumento do deficit externo não é uma anomalia: é o resultado natural de uma política de estímulo à demanda quando a oferta enfrenta restrições variadas.

O problema só não apareceu antes porque o mundo jogou a nosso favor (na verdade, continua jogando, apenas não tanto quanto há dois anos). Os preços dos produtos que exportamos (commodities) ainda permanecem 25% acima de seu nível histórico relativa- mente aos preços das importações (manufaturas).

Trata-se uma perda considerável em comparação ao observado em meados de 2011, quando essa relação encontrava-se 40% acima da média histórica, colaborando para a redução recente do saldo comercial.

Mesmo assim é bom notar que a contribuição ainda é positiva, correspondendo a algo como 2,7% do PIB nos 12 meses até agosto, ante 3,1% do PIB em 2011.

Posto de outra forma, embora a contribuição menos favorável dos preços externos possa explicar uma parte da queda do saldo comercial, a maior parcela resulta mesmo da evolução díspar da produção e da demanda internas.

Considerando ainda que o atual arranjo de política não deve se alterar (pelo contrário, a recente mudança retroativa do indexador da dívida de Estados e municípios deve induzir a um forte aumento do gasto público à frente), é apenas lógico esperar deficit externos crescentes no curto e médio prazos.

Reconciliar esse desenvolvimento com fluxos mais escassos de capitais será o grande desafio em breve e o provável beijo de morte para nossa mal formulada “nova matriz macroeconômica”.

Por: Alexandre Schwartsman Fonte: Folha de S. Paulo, 30/11/2013

MISES EXPLICA A GUERRA ÀS DROGAS

Assim como nunca seguiram os ensinamentos de Ludwig von Mises no que tange à ciência econômica, os governos atuais também se recusam a prestar a atenção aos discernimentos de Mises sobre a guerra às drogas. O resultado não deveria ser surpresa nenhuma.

A guerra às drogas é um fracasso. Ela fracassou em impedir o abuso de drogas. Ela fracassou em manter as drogas fora do alcance dos viciados. Ela fracassou em manter as drogas longe dos adolescentes. Ela fracassou em reduzir a demanda por drogas. Ela fracassou em acabar com a violência associada ao tráfico de drogas. Ela fracassou em ajudar os viciados a conseguir tratamento. Ela fracassou em ter algum impacto sobre a disponibilidade de drogas dentro de um país.

É óbvio que nada disso significa que haja necessariamente algo de positivo em relação às drogas ilícitas. Como Mises explicou,

É fato notório que o alcoolismo, o cocainismo e o morfinismo são inimigos mortais da vida, da saúde e da capacidade de trabalho e de lazer; e o usuário deveria, por conseguinte, considerá-los vícios. 

No entanto, como Mises afirma, o fato de algo ser um vício não é motivo para que seja suprimido e nem que sua comercialização seja proibida.

Nem é de modo algum evidente que tais intervenções do governo sejam de fato capazes de suprimir tais vícios; e, mesmo que este objetivo fosse atingido, não é nada evidente que tal intervenção não irá abrir uma caixa de Pandora de outros perigos não menos nocivos que o alcoolismo e o morfinismo. 

Os outros efeitos perniciosos gerados pela guerra às drogas são numerosos. A guerra às drogas congestiona e paralisa o sistema judiciário, aumenta desnecessariamente a população carcerária, gera ainda mais violência, corrompe policiais, diminui as liberdades civis, acaba com a privacidade financeira, estimula buscas e apreensões ilegais, destrói inúmeras vidas inocentes, desperdiça bilhões em impostos, atrasa o desenvolvimento legítimo de analgésicos e de outros remédios contra dores, transforma cidadãos cumpridores da lei em criminosos meramente pelo que injetam em seu corpo, e irracionalmente cria obstáculos para o comércio varejista. Os custos da proibição às drogas excedem sobremaneira seus possíveis benefícios.

Mas isso ainda não é tudo. A partir do momento em que o governo assume o controle e passa a decidir o que um indivíduo pode ou não colocar em sua boca, em seu nariz e em suas veias, ou passa a regular as circunstâncias sob as quais um indivíduo pode de maneira legítima introduzir algo em seu corpo, não há mais quaisquer limitações sobre seu poder. Não há mais como restringir seu alcance e domínio.

De novo, como Mises deixa claro,

O ópio e a morfina certamente são drogas nocivas que geram dependência. No entanto, uma vez que se admita que é dever do governo proteger o indivíduo contra sua própria insensatez, nenhuma objeção séria pode ser apresentada contra outras intromissões estatais à privacidade. 

E prossegue:

Ao abrirmos mão do princípio de que o estado não deve interferir em quaisquer questões relacionadas ao modo de vida do indivíduo, a inevitável consequência será a regulamentação e a restrição do comportamento de cada indivíduo aos seus mínimos detalhes. 

Mises também nos diz exatamente aonde esse caminho tortuoso da proibição irá nos levar. Ele pergunta por que aquilo que é válido para a morfina e para a cocaína não pode ser válido para a nicotina e para a cafeína. Com efeito:

Por que não deveria o estado prescrever, de um modo geral, quais alimentos devem ser permitidos e quais alimentos devem ser proibidos por serem nocivos? 

E tudo ainda pode piorar, pois:

Ao se abolir a liberdade de um homem em determinar o seu próprio consumo, todas as outras liberdades já estão, por definição, abolidas.

E completa:

E por que limitar a benevolente providência do governo apenas à proteção do corpo? Por acaso os males que um homem pode infringir à sua mente e à sua alma não são mais graves do que os danos corporais? Por que não impedi-lo de assistir a filmes e a demais espetáculos de mau gosto? Por que não impedi-lo de ouvir músicas de baixa qualidade? Mais ainda: por que não proibi-lo de ler livros ruins? As consequências causadas por ideologias nocivas são, certamente, muito mais perniciosas, tanto para o indivíduo como para a sociedade, do que as causadas pelo uso de drogas.

Para Mises, no que dizia respeito a maus hábitos, a vícios e a comportamentos imorais de terceiros, a tolerância e persuasão deveriam ser as regras. Tal atitude contrasta totalmente com a do estado, que faz tudo por meio da "compulsão e da aplicação da força".

A propensão de nossos conterrâneos em exigir uma proibição autoritária sempre que veem algo não lhes agrade, bem como sua solicitude em submeter-se a tais proibições mesmo que o proibido lhes seja agradável, mostra o quanto ainda permanece profundamente arraigado neles o espírito de servilismo. Serão necessários muitos anos de autodidatismo até que o súdito possa transformar-se em cidadão. Um homem livre deve ser capaz de suportar que seu conterrâneo aja e viva de modo diferente de sua própria concepção de vida. Precisa livrar-se do hábito de chamar a polícia sempre que algo não lhe agrada. 

Para Mises, há um caminho para a reforma social:

Aquele que quer reformar seus conterrâneos deve recorrer à persuasão. Esta é a única maneira democrática de se fazer mudanças. Se um indivíduo não é capaz de convencer outras pessoas a respeito de suas ideias, então ele deve culpar apenas a sua própria incapacidade. Ele não deveria exigir a criação de uma lei — ou seja, ele não deveria pedir para o estado utilizar suas forças policiais com o intuito impor a compulsão e a coerção.

Em uma sociedade genuinamente livre, tal postura deveria ser inegociável.

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Leia também:






Laurence Vance é um acadêmico associado ao Mises Institute, escritor freelancer, professor adjunto de contabilidade da Pensacola Junior College, em Pensacola, Flórida, e autor dos livros Social Insecurity, The War on Drugs is a War on Freedom,e War, Christianity, and the State: Essays on the Follies of Christian Militarism.

domingo, 10 de novembro de 2013

O GIGANTE CONTINUA ADORMECIDO

O gigante voltou a adormecer. Seis meses depois das manifestações de junho, o Brasil continua o mesmo. Nada mudou. É o Brasil brasileiro de sempre. Mais uma vez, os fatores de permanência foram muito mais sólidos do que os frágeis fatores de mudança.

As instituições democráticas estavam — e continuaram — desmoralizadas. Basta observar as instâncias superiores dos Três Poderes. O Supremo Tribunal Federal chegou ao cúmulo de abrir caminho para a revisão das sentenças dos mensaleiros. Mais uma vez — e raramente na sua história esteve na linha de frente da defesa do Estado Democrático de Direito — cedeu às pressões dos interesses políticos.

O ministro Luís Roberto Barroso — o “novato” — descobriu, depois de três meses no STF, que o volume de trabalho é irracional. Defendeu na entrevista ao GLOBO que o Supremo legisle onde o Congresso foi omisso. E que o candidato registre em cartório o seu programa, o que serviria, presumo, para cobranças por parte de seus eleitores. Convenhamos, são três conclusões fantásticas.

Mas o pior estava por vir: disse que o país não aguentava mais o processo do mensalão. E o que ele fez? Ao invés de negar a procrastinação da ação penal 470, defendeu enfaticamente a revisão da condenação dos quadrilheiros; e elogiou um dos sentenciados publicamente, em plena sessão, caso único na história daquela Corte.

O Congresso Nacional continua o mesmo. São os “white blocs.” Destroem as esperanças populares, mostram os rostos — sempre alegres — e o sorriso de escárnio. Odeiam a participação popular. Consideram o espaço da política como propriedade privada, deles. E permanecem fazendo seus negócios….

Os parlamentares, fingindo atentar à pressão das ruas, aprovaram alguns projetos moralizadores, sob a liderança de Renan Calheiros, o glutão do Planalto Central — o que dizer de alguém que adquire, com dinheiro público, duas toneladas de carne? Não deu em nada. Alguém lembra de algum?

E os partidos políticos? Nos insuportáveis programas obrigatórios apresentaram as reivindicações de junho como se fossem deles. Mas — como atores canastrões que são — fracassaram. Era pura encenação. A poeria baixou e voltaram ao tradicional ramerrão. Basta citar o troca-troca partidário no fim de setembro e a aprovação pelo TSE de mais dois novos partidos — agora, no total, são 32. Rapidamente esqueceram o clamor das ruas e voltaram, no maior descaramento, ao “é dando que se recebe.”

E o Executivo federal? A presidente representa muito bem o tempo em que vivemos. Seu triênio governamental foi marcado pelo menor crescimento médio do PIB — só perdendo para as presidências Floriano Peixoto (em meio a uma longa guerra civil) e Fernando Collor. A incompetência administrativa é uma marca indelével da sua gestão e de seus ministros. Sem esquecer, claro, as gravíssimas acusações de corrupção que pesaram sobre vários ministros, sem que nenhuma delas tenha sido apurada.

Tentando ser simpática às ruas, fez dois pronunciamentos em rede nacional. Alguém lembra das propostas? Vestiu vários figurinos, ora de faxineira, ora de executiva, ora de chefe exigente. Enganou quem queria ser enganado. Não existe sequer uma grande realização do governo. Nada, absolutamente nada.

As manifestações acabaram empurrando novamente Luiz Inácio Lula da Silva para o primeiro plano da cena política. Esperto como é, viu a possibilidade de desgaste político da presidente, que colocaria em risco o projeto do PT de se perpetuar no poder. Assumiu o protagonismo sem nenhum pudor. Deitou falação sobre tudo. Deu ordens à presidente de como gerir o governo e as alianças eleitorais. Foi obedecido. E como um pai severo ameaçou: “Se me encherem o saco, em 2018 estou de volta.”

Seis meses depois, estamos no mesmo lugar. A política continuou tão medíocre como era em junho. A pobreza ideológica é a mesma. Os partidos nada representam. Não passam de uma amontoado de siglas — algumas absolutamente incompreensíveis.

Política persiste como sinônimo de espetáculo. É só no “florão da América” que um tosco marqueteiro é considerado gênio político — e, pior, levado a sério.

A elite dirigente mantém-se como o malandro do outro Barroso, o Ary: “Leva a vida numa flauta/Faz questão do seu sossego/O dinheiro não lhe falta/E não quer saber de emprego/Vive contente sem passar necessidade/Tem a nota em quantidade/Dando golpe inteligente.”

Estão sempre à procura de um “golpe inteligente.” Mas a farsa deu o que tinha de dar. O que existe de novo? Qual prefeito, por exemplo, se destacou por uma gestão inovadora? Por que não temos gestores eficientes? Por que não conseguimos pensar o futuro? Por que os homens públicos foram substituídos pelos políticos profissionais? Por que, no Congresso, a legislatura atual é sempre pior que a anterior? Por que o Judiciário continua de costas para o país?

Não entendemos até hoje que a permanência desta estrutura antirrepublicana amarra o crescimento econômico e dificulta o enfrentamento dos inúmeros desafios, daqueles que só são lembrados — oportunisticamente — nas campanhas eleitorais.

O gigante continua adormecido. Em junho, teve somente um espasmo. Nada mais que isso. Quando acordou, como ao longo dos últimos cem anos, preferiu rapidamente voltar ao leito. É mais confortável. No fundo, não gostamos de política. Achamos chato. Voltamos à pasmaceira trágica. É sempre mais fácil encontrar um salvador. Que pense, fale, decida e governe (mal) em nosso nome. Por: Marco Antonio Villa

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

ECONOMIAS NÃO DESTRUÍDAS EM UM DIA


No início deste mês, o principal jornal conservador da Argentina, o La Nación, publicou um editorial no qual comparava a economia da Argentina à da Venezuela. O editorial concluiu que, à medida que a liberdade econômica vai encolhendo na Argentina, e à medida que a Argentina vai adotando, em doses cada vez mais cavalares, aquilo que Hugo Chávez rotulou de "socialismo do século XXI", o país vai se tornando cada vez mais parecido com a Venezuela. A questão é: irá a Argentina vivenciar o mesmo destino trágico da Venezuela, onde a pobreza está aumentando e itens básicos como papel higiênico se tornaram artigos de luxo?

A semelhança entre as regulamentações e os problemas econômicos que assolam ambos os países é de fato notável, não obstante as óbvias diferenças entre os dois países. E, ainda assim, quando os argentinos são questionados a respeito destas similaridades, é comum ouvir respostas do tipo "mas a Argentina não é a Venezuela; temos mais infraestrutura e mais recursos".

O problema é que mudanças institucionais definem o destino de um país apenas no longo prazo. Elas não definem sua prosperidade no curto prazo.

Imagine que Cuba e Coréia do Norte se tornassem, da noite para o dia, os países mais economicamente livres do mundo, com mercados plenamente livres e liberdades civis totais. Isso bastaria? Embora os dois países houvessem adquirido liberdades civis e econômicas imediatas, o fato é que eles ainda teriam de acumular riqueza e desenvolver suas economias. A mudança institucional afeta a situação política imediatamente, mas uma nova economia requer tempo para adquirir forma. Por exemplo, quando a China abriu parte de sua economia para os mercados internacionais, o país começou a crescer economicamente. Hoje, estamos todos vendo os efeitos destas décadas de relativa liberalização econômica. É verdade que várias áreas da China ainda sofrem uma ausência de liberdades significativas, mas o país seria muito diferente hoje caso houvesse se recusado a mudar suas instituições décadas atrás.

O mesmo ocorreria caso um dos mais ricos e desenvolvidos países do mundo adotasse, da noite para o dia, instituições cubanas ou norte-coreanas. Sua riqueza e todo o seu capital acumulado não desapareceriam em 24 horas. A dilapidação do capital, embora seja um processo bem mais rápido do que sua acumulação, não se dá de imediato. O país deixaria de continuar acumulando capital e passaria meramente a consumir seu capital, mas poderia demorar décadas para dilapidar toda a riqueza já construída. Enquanto ainda houver riqueza, o governo terá recursos para brincar de bolivarianismo — que é o modelo de socialismo populista criado pelo governo da Venezuela — ao mesmo tempo em que continua usufruindo a riqueza, as rodovias, a infraestrutura elétrica e as redes de comunicação já existentes, as quais foram resultado das instituições mais pró-mercado que existiram no passado.

Com o tempo, no entanto, as rodovias começam a se deteriorar por falta de manutenção e investimentos (ou os trens começam a se acidentar gravemente, matando dezenas de passageiros), o setor energético começa a apresentar falhas contínuas e graves, a importação de energia se torna inevitável, e as redes de comunicação ficam obsoletas. Em outras palavras, todo o populismo econômico é financiado por recursos acumulados por instituições não-populistas, e ele irá durar enquanto houver riqueza a ser dilapidada.

De acordo com o ranking de liberdade econômica do Fraser Institute, a Argentina estava na 32º posição no ano 2000. Em 2011, no entanto, a Argentina já havia despencado para a 137ª posição, próxima a países como Equador, Mali, China, Nepal, Gabão e Moçambique. Não há dúvidas de que a Argentina usufrui uma taxa de desenvolvimento e de riqueza maior que a desses outros países. Mas será que tal situação perdurará pelos próximos 20 ou 30 anos? A presidente argentina já afirmou que gostaria que a Argentina fosse um país como a Suíça ou a Alemanha, mas o problema é que o caminho para se tornar parecido com a Suíça ou com a Alemanha envolve a adoção de instituições iguais às suíças e alemãs, e não a adoção de instituições venezuelanas, que é o que a Argentina está fazendo.

O grande problema — que ajudou a perpetuar o atual modelo — foi o fato de que, quando as instituições venezuelanas foram inicialmente adotadas na Argentina, isso coincidiu com uma alta taxa de crescimento econômico. Mas estas taxas de crescimento, no entanto, são bastante enganosas. 

Em primeiro lugar, "crescimento econômico", quando corretamente entendido, não é um aumento na "produção", mas sim um aumento na "capacidade produtiva". O alto crescimento observado no PIB após uma grande crise é meramente uma 'recuperação econômica', e não necessariamente representam um crescimento na capacidade produtiva, que é o que realmente interessa.

Em segundo lugar, é possível você aumentar sua capacidade produtiva investindo em atividades econômicas erradas, para as quais não há uma genuína demanda. Uma pesada regulamentação de preços, como a que ocorre na Argentina (agora acompanhada de uma alta taxa de inflação), gera uma alocação errônea de recursos, pois os preços relativos — isto é, os preços de um determinado setor da economia em relação aos preços dos outros setores — são afetados, fazendo com que os preços de um setor se tornam artificialmente maiores do que os de outros, o que atrai investimentos para este setor. Embora seja perfeitamente possível ver e até mesmo sentir estes novos investimentos nestes setores, a realidade é que este capital resultou de uma ilusão monetária. O conceito econômico de capital não depende da tangibilidade ou do tamanho do investimento (isto é, de suas propriedades físicas), mas sim de seu valor econômico. Quando chegar o momento de os preços relativos se ajustarem de modo a refletir as reais preferências dos consumidores, o valor de mercado deste capital irá cair e ele então será consumido ou destruído em termos econômicos — mesmo que suas qualidades físicas permaneçam inalteradas. Um bom exemplo disso são os imóveis que foram construídos excessivamente na Espanha — e que hoje totalizam um milhão de casas vazias —, cujo valor atual é metade do que foi no auge da bolha imobiliária.

Em terceiro lugar, a produção pode aumentar não por causa de um aumento nos investimentos, mas sim porque as pessoas estão consumindo o capital investido — como ocorre quando há um aumento na taxa de desgaste das máquinas e da infraestrutura.

Não estou dizendo que não houve nenhum crescimento genuíno na Argentina, mas sim que uma fatia não-trivial do crescimento do PIB argentino pode ser explicada por: (1) recuperação, (2) alocação errônea de investimentos, e (3) consumo de capital. Afinal, se todo o crescimento do PIB fosse de fato um crescimento genuíno, a criação de empregos não estaria estagnada e a infraestrutura do país estaria excelente, e não em frangalhos.

A maioria dos economistas e dos analistas de políticas públicas tende a fazer uma leitura superficial das variáveis econômicas. Para eles, se algumas variáveis econômicas estiverem robustas, o PIB estiver crescendo e a inflação se mantiver sob controle, então a economia está saudável. O problema é que o fato de estarmos observando bons indicadores econômicos não significa que a economia esteja realmente saudável. Há uma razão pela qual um médico pede a um paciente aparentemente saudável que faça alguns exames. Sentir-se bem não significa que não possa existir uma doença que ainda não tenha demonstrado nenhum sintoma óbvio no momento. 

O economista que se recusa a examinar mais detidamente a real situação de uma economia é como um médico que se recusa a examinar mais minuciosamente seu paciente. O paciente argentino contraiu a doença bolivariana, mas a maior parte de seus sintomas dolorosos ainda está para se manifestar.

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Nicolás Cachanosky é professor assistente de Economia na Metropolitan State University, em Denver.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

PALIMPSESTOS E O TAL "ESTADO EMPREENDEDOR"

Um palimpsesto (do grego palimpsestos, os, on e do latim palimpsestus, i) é um pergaminho ou papiro cujo manuscrito original tenha sido lavado ou raspado com pedra- pomes para ser substituído por um novo texto. Ao pé da letra significa "riscar de novo". De um lado, os palimpsestos tinham o objetivo de tentar paliar ou amenizar erros cometidos, mas também eram utilizados para escrever novos textos, já que os custos do papiro eram elevados naquela época. 

Talvez o mais famoso dos palimpsestos seja o palimpsesto de Arquimedes (287 a.C — 212 a.C), um texto escrito sobre outro anterior em pergaminho e formando um códice e que originariamente foi uma cópia em grego de diversas obras de Arquimedes — o famoso matemático, físico e engenheiro de Siracusa — e de outros autores. Posteriormente foi apagado de forma rudimentar e usado para escrever salmos e orações em um convento.

Mas vamos escrever agora sobre outro palimpsesto, bem mais moderno, que podemos chamar de palimpsesto de Keynes. Neste café requentado, com gosto de terra, economistas, jornalistas e pretensos "intelectuais" nada mais fazem do que tentar, sem sucesso, apagar as velhas teses de que o estado deve ser o "indutor" do crescimento para em seguida reescrevê-las. Há incontáveis exemplos desse tipo de pretensão fatal para as liberdades individuais. Citarei apenas um, para não me estender muito. Quanto aos demais, pretendo apresentá-los em artigo acadêmico para a Revista MISES, mais especificamente sobre a crise econômica atual e o êxito dos economistas da Escola Austríaca em antecipá-la, explicar suas causas e propor os remédios adequados, em contraposição ao fracasso das palimpsésticas tentativas keynesianas e monetaristas no que diz respeito à antecipação, à explicação, à identificação das causas e à administração de "remédios", que só têm feito piorar o estado do doente.

O exemplo que escolhi dentre tantos outros é o da Professora Mariana Mazzucato, britânica de origem italiana, economista da Universidade de Sussex, com doutorado na New School de Nova York, uma universidade de Economia e Ciências Sociais com viés claramente intervencionista e de esquerda. Entrevistada no programa "Milênio" da Globonews, parece cantar um hino — ou, melhor dizendo, um funk de péssimo gosto — ao estatismo.

Ela defende a tese de que o estado deve ser o maior responsável pelas pesquisas inovadoras nas áreas fundamentais da ciência e tecnologia, e separa o que chama de invenções "ligeiras" (naturalmente, as produzidas pelo setor privado), como novos modelos de tablets, e inovações "grandes", de horizontes mais amplos, como as da área da saúde e mecanismos de "ciclo completo", como a Internet.

Ela diz que as grandes inovações produzidas nos EUA foram todas financiadas pelo estado, como a Internet, o GPS (pelo Pentágono) e medicamentos (pelo Departamento de Saúde). E ainda elogiou o estado brasileiro e o BNDES, referindo-se obviamente à Finep. Chegou a afirmar que o setor privado tem "medo" de assumir riscos, o que não acontece com o estado. Ao que tudo indica, essa senhora vê o mundo de cabeça para baixo, ou olha para trás pensando que está olhando para adiante. As teses que defende parecem um palimpsesto lavado ou raspado sem cuidado, ou ambas as coisas. Vejamos por quê.

A Internet, ou melhor, sua tataravó, foi de fato concebida em plena Guerra Fria por técnicos da NASA, mediante o ARPA (Advanced Research Projects Agency), mas só se expandiu e progrediu com o desenvolvimento da rede em ambiente mais livre, não militar — ou seja, privado —, em que não apenas os pesquisadores, mas também seus alunos e os amigos desses alunos, puderam ter acesso aos estudos já empreendidos e usaram sua inteligência e desenvolveram esforços para aperfeiçoá-los de uma forma fantástica. 

O mesmo processo se deu com a Internet propriamente dita: foram jovens da chamada "contracultura" — e não funcionários do estado —, ideologicamente defensores da difusão livre de informações, que realmente contribuíram decisivamente para a formação da Internet como hoje é conhecida.

Masaru Ibuka, um engenheiro, e Akio Morita, um físico, ambos japoneses, logo após a II Guerra Mundial, procuraram o Ministério da Indústria e Comércio do Japão em busca de recursos para desenvolverem suas ideias. Receberam um sonoro "não"! Resolveram, então, fundar a empresa Totsuko, em maio de 1946, em um grande armazém bombardeado pelos americanos, em Tóquio. A nova empresa não tinha qualquer maquinaria e possuía muito pouco equipamento científico e contava apenas com a inteligência, conhecimentos de engenharia e o espírito empreendedor de Ibuka e Morita. Trata-se, como o leitor já deve ter percebido, simplesmente, da Sony.

Como você poderá ver aqui e também aqui, graças ao espírito verdadeiramente empreendedor desses dois fantásticos homens, a Sony cresceu e hoje seu nome está associado a inovação, tecnologia avançada, qualidade e durabilidade. Ver televisão em uma Bravia, trabalhar em um laptop Vaio, tirar fotos com uma Cybershot, jogarPlaystation, gravar com uma Handycam, ouvir música em um Walkman... Essas são apenas algumas das "crias" tecnológicas de dois indivíduos, graças ao "não" recebido dos burocratas japoneses. Perguntemos à Professora Mazzucato se eles eram funcionários púbicos.

E o que dizer de Steve Jobs, cofundador, presidente e Diretor Executivo da Apple Inc. e que revolucionou seis indústrias: computadores pessoais, filmes de animação, música, telefones, tablets e publicação digital? Era por acaso funcionário público? E Bill Gates e Paul Allen, criadores da Microsoft em 1975, em Albuquerque, no Novo México? Eram burocratas iluminados ou empreendedores que acreditaram em suas ideias e assumiram os riscos de colocá-las em prática?

Mais exemplos: Jorge Paulo Lehmann é um burocrata? E Alexandre Tadeu da Costa, fundador da Cacau Show? E Antônio Alberto Saraiva, criador da Habib´s? E Romero Rodrigues, da Buscapé Company? E Robinson Chiba, daChina in Box? E Flavio Augusto da Silva, que com apenas 23 anos decidiu lançar um projeto inovador com o objetivo de, em 18 meses, dar fluência na língua inglesa a adultos, e que, para fundar sua empresa, a Wise Up, usou R$ 20 mil de seu cheque especial, com juros de 12% ao mês? Qual o papel exercido pelo estado em todos esses casos, a não ser o de recolher tributos para benefício próprio?

Quanto ao GPS — e poucos sabem disso — foi uma ideia de uma estrela de Hollywood, a belíssima Hedy Lamarr, nome artístico de Hedwig Eva Maria Kiesler (1913-2000), nascida em Viena, estrela sexy de filmes como Idílio Perigoso (1944), Sansão e Dalila (1949), O Vale da ambição (1950) Meu Espião Favorito (1951), e A História da Humanidade (1957), entre muitos outros. Hedy criou a tecnologia básica para o Sistema de Posicionamento Global (GPS, na sigla em inglês) durante a II Guerra Mundial. Judaica de origem e horrorizada com o avanço nazista, queria ajudar os EUA e os aliados. Havia aprendido sobre radiocomunicação graças à convivência, ainda na Áustria, com o ex-marido, Fritz Mandl, um rico fabricante de armas e seus colegas engenheiros. E sua contribuição científica aconteceu quando já havia se divorciado de Mandl e fugido para os EUA.

Além do GPS, Hedy inventou também uma coleira fluorescente para cachorros e um aparelho de banho para deficientes. Mas, naquela época, ninguém levou seus dotes científicos, que eram admiráveis, a sério, preferindo admirar seus dotes físicos (também admiráveis), a ponto dela ter dito: "Meu rosto foi minha ruína". Hedy foi uma burocrata ou economista de esquerda, Professora Mazzucato?

Conforme relatado aqui, a famosa atriz inspirou-se no som do piano para bolar sua maior invenção: em 1940, conheceu o compositor George Antheil, também curioso por ciência. Certa noite, quando tocavam piano, ela se deu conta de que cada tecla emitia uma frequência de longo alcance diferente. E, assim como elas se alternavam rapidamente em uma música, talvez algo parecido pudesse ser aplicado aos espectros de comunicação militar. Aprimorada por Antheil, a análise de Lamarr originou o sistema "salto de frequência", no qual estações de radiocomunicação eram programadas para mudar de sinal 88 vezes seguidas (o mesmo total de teclas de um piano). Com isso, as forças inimigas teriam dificuldade em detectar esse registro alternado, que poderia ser então usado por navios e aviões, para orientar torpedos.

A dupla chegou a patentear a ideia e a ofereceu à Marinha dos EUA, mas foi rejeitada, sob o argumento de que seria demasiadamente cara (existe algo "caro" para governos)? A invenção perdeu — felizmente — exclusividade militar e se tornou a base de várias tecnologias atuais. Ela é aplicada, por exemplo, em satélites de orientação para meios de transporte civis — o famoso GPS (Global Position System) e também no wi-fi e no bluetooth.

Quanto ao BNDES e à Finep, é desnecessário comentarmos o que todos os brasileiros (e estrangeiros) com um mínimo de bom senso já sabem: que se trata de um órgão extremamente custoso para os pagadores de tributos e mero distribuidor de benesses para pseudo-empreendedores, aqueles que têm bons amigos em Brasília, ou que são amigos do rei ou rainha de plantão no Planalto. Ou que contratem bons lobistas.

Na página da University of Sussex há diversos vídeos com palimpsestos da professora Mazzucato, quase todos versando sobre o tema do "Estado empreendedor", que nós austríacos sabemos ser um fenômeno tão contraditório quanto o "molhado seco". Um desses vídeos tem o título de "The Entrepreneurial State: Debunking public vs. private sector myths". E há um comentário do Professor Robert Wade, da London School of Economics, sobre o novo livro de Mazuccato, "The Entrepreneurial State", lançado em junho deste ano, que me causou arrepios, a ponto de não conseguir relê-lo:

O livro Entrepreneurial State fornece um desmonte bem pesquisado e elegantemente escrito (até mesmo divertido) à crença que perpassa quase todo o espectro político, bem como a profissão econômica, de que "o mercado sabe melhor". Dado que vários governos da atualidade estão às voltas com a questão de como estimular a produtividade e a inovação de seus setores industriais, o livro fornece diretivas — baseadas em casos exitosos e nem tão exitosos — de como fazer uma boa política industrial. Acima de tudo, mostra por que a comum pressuposição de que o estado 'sobrepuja' o setor privado — como se o setor privado fosse um leão enjaulado por um estado sufocante — é contraditada pela realidade de que governos de economias que vão dos EUA ao Brasil e China de fato 'trazem' inovações para o setor privado.

Creio que basta uma interjeição — que nada tem de científica, que não está nos dicionários, mas que todos entenderão — para descrever esse palavrório palimpséstico: argh!

É curioso lembrarmos que esses economistas que se autodenominam como "desenvolvimentistas" são de duas espécies: os ignorantes, que não conseguem interpretar corretamente o passado, e os "não-ignorantes mal intencionados", que até enxergam o passado, mas o interpretam ao sabor e com as tintas da ideologia.

Dei o exemplo da economista britânica para ressaltar, primeiro, como os palimpsestos, que remontam ao século V a.C, continuam sendo usados. Simplesmente, tentam apagar os erros do passado — como no caso da defesa do "capitalismo de Estado" —, para reescrevê-los. Francamente, se isso é "desenvolvimentismo", então borboletas são mamíferos...

E, segundo, para lembrar como nossa mídia valoriza esses garranchos, piores dos que sou obrigado a ler quando corrijo provas de certos alunos da UERJ.

Não existe "capitalismo de estado", não existe "estado empreendedor", não existe "função social do estado", não existe "investimentos socialmente úteis"! Existe apenas intervencionismo. E seu oposto, que é a liberdade. Quando será que vão entender isso?

Uma boa leitura, escrita de forma simples, mas bastante esclarecedora é o livro de Adriano Gianturco Gulisano, "L'Imprenditorialità di Israel Kirzner — L'Etica della Proprietà e la Moralità Del Profitto nel Libero Mercato Imperfetto", editado neste ano por Rubettino, na Itália. É uma boa vacina contra os palimpsestos dos "desenvolvimentistas do estado-empreendedor".
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Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.