sexta-feira, 29 de novembro de 2013

A CIÊNCIA ECONÔMICA E O SUBMUNDO

A destruição da economia global que está em andamento não é acidental. A irracionalidade contida na raiz dessa destruição foi compreendida bem antes do início do século XX.

Enquanto a economia depende do lado racional do homem, a humanidade, não obstante, busca o irracional. Nós queremos nossa fatia do bolo. Queremos almoço grátis, convênio de saúde grátis e aposentadoria sem custos. Mas nada é de graça. Alguém tem de pagar. Assim diz a ciência econômica.

Quando dizemos que a economia é uma ciência, o homem comum logo faz a associação à física e à biologia. Entretanto, a economia é um tipo diferente de ciência. De acordo com a Escola Austríaca, a economia é uma ciência a priori que “pressupõe um comportamento propositado (que) tenha o poder de afastar ou pelo menos aliviar o seu desconforto”. O processo pelo qual esse grande alívio se torna possível chama-se capitalismo ou livre mercado. O que quer que alguém tenha a dizer contra o livre mercado, não há alternativa viável.

De acordo com Mises, em seu livro A Mentalidade Anticapitalista

“O surgimento da economia como nova forma de conhecimento foi um dos eventos mais significativos da história da humanidade. Ao preparar o caminho para a empresa capitalista privada, ela transformou, em poucas gerações, todos os acontecimentos humanos de forma mais radical do que milhares de anos anteriores haviam conseguido”. 

Ainda mais surpreendente é que a ciência econômica e a transformação capitalista da vida humana foi obra de um pequeno número de autores cujos livros influenciaram uma igualmente diminuta parcela de homens de estado. Como explicou Mises,

“Não apenas as massas indolentes, mas também a maioria dos homens de negócios que, por meio do seu comércio, tornaram eficientes os princípios do laissez-faire não conseguiram compreender as formas essenciais como agem esses princípios. Mesmo no apogeu do liberalismo, somente alguns tiveram conhecimento integral do funcionamento da economia de mercado”.

Foi uma louca história como um punhado de pensadores começou a entender a ciência econômica. Mais raro ainda, em termos de política, que um punhado de homens de estado tenha conseguido colocar em prática os apontamentos ali descobertos. Como explicou Mises, “a civilização ocidental adotou o capitalismo por recomendação de uma pequena elite”. Por sua essência, o capitalismo sempre esteve pendurado por um fio; porquanto, com qual frequência podemos encontrar inteligência suficiente nas classes dominantes? Quão frequentemente um gênio passa despercebido? Afinal, todo homem é um gênio em sua própria mente. Pense como os vários gênios que produzem tão poucas coisas de valor a partir dos seus egos inflados hoje naturalmente amaldiçoam qualquer um cujo pensamento esteja em um patamar mais alto. Com efeito, a cruel história humana sugere que uma verdadeira e digna ciência social (ou econômica) é tão improvável quanto um rato correndo atrás do gato, pois tudo aquilo que toca nas estruturas sociais e institucionais deve necessariamente acabar como vítima de poderosos interesses e paixões políticas.

Ainda assim a ciência econômica conseguiu operar seu milagre. Maravilhas tecnológicas e riquezas agora abundam. Nossos ancestrais dificilmente poderiam imaginar o mundo moderno. Ao mesmo tempo, uma nuvem sombria se aproxima. Os poucos inteligentes foram sobrepujados pela esmagadora maioria. Ninguém pode ser tão ingênuo a ponto de imaginar que a história é apenas a história do progresso. Se estivermos prestando atenção, lembraremos do ditado, “tudo aquilo que sobe, desce.”

Se a praxeologia é o estudo dedutivo da ação humana, então devemos considerar a existência de dois tipos de ação: (1) ações racionais; (2) ações irracionais. Encontra-se na humanidade um lado obscuro – muitas vezes autodestrutivo e paranoico, agressivo e homicida. Ao observar isso, Freud descreveu aquilo que ele veio a chamar de pulsão de morte (todestrieb em alemão). Sua hipótese era que o instinto mortal poderia efetivamente se opor à racionalidade e à civilização. Um dos grandes pensadores da psicologia moderna, Carl Jung, propôs a existência das “sombras”, que faz referência aos elementos instintivos e irracionais da psique que estão propensos à projeção psicológica. Como descrito primeiramente por Freud, a projeção psicológica é um mecanismo de defesa em que nossas próprias deficiências morais são percebidas como pertencentes a outras pessoas. É uma espécie de paranoia encontrada no ladrão que acredita que os outros estão planejando dar um fim nele. Pode também ser visto como um aspecto da mentalidade anticapitalista. Nesse caso, o mercado se torna um quadro ao qual todos os males da sociedade humana são projetados. O mercado é, portanto, retratado negativamente, enquanto às personalidades malignas que se opõem ao mercado lhe são atribuídos motivos totalmente cândidos.

Jung alertou que um ser humano que entra no estado de projeção psicológica pode se tornar “possesso” por sua sombra. Jung escreveu: “um ser humano possuído por sua sombra está postado em sua própria luz, caindo em suas próprias armadilhas...”. Durante as primeiras décadas do século XX, Jung temeu que a possessão pela sombra estivesse crescendo. Com o advento do totalitarismo e o declínio do laissez-faire, Jung observou que a religião estava sendo substituída pela ideologia política a tal ponto, que um crescente número de pessoas estavam sujeitas à possessão sombria. Pior ainda, Jung disse que uma pessoa pode estar possuída pelo lado sexual oposto da sua personalidade, pois cada homem tem uma pequena parte de mulher em si e cada mulher tem uma pequena parte de homem. Se um homem se torna possesso pelo seu lado feminino, essa possessão chama-se anima. Se uma mulher se tornar possessa pelo seu lado masculino, então a possessão é animus.

Acerca desse assunto, Jung observou que “nesse estado de possessão” por anima/animus “ambas as figuras perdem seu encanto e seus valores”. Nesse caso, constata-se um mundo em que homens viraram mulheres e mulheres viraram homens. Os homens assim não são mulheres de charme e graça, são apenas fracos e mornos. Ao mesmo tempo, mulheres que tentam fazer o papel da força e dos princípios acabam por ser dominadoras e errôneas. Tudo é então colocado na cabeça: desordem substituindo ordem, escuridão substituindo luz, o desejo de morte inconscientemente ganhando vantagem sobre a vida... Um dos primeiros sintomas, como observado por Jung, é a perda da grande arte. Quando o manancial da criatividade, o inconsciente, toma o lugar do consciente, então ele não pode mais exercer sua função criativa. Em vez disso, a arte passa a apresentar algo parecido com a pulsão de morte freudiana. Como escreveu Jung em sua obra ‘Presente e Futuro’, 

“o desenvolvimento da arte moderna com sua tendência aparentemente niilista de dissolução deve ser entendido como sintoma e símbolo de um espírito universal de decadência e de renovação do nosso tempo. Esse espírito se manifesta em todos os campos, tanto político como social e filosófico”.

Podemos acrescentar também que essa disposição tem ultimamente se manifestado na economia.

A destruição da economia global que está em andamento não é acidental. A irracionalidade contida na raiz dessa destruição foi compreendida bem antes do início do século XX. A destruição da economia global e da civilização foi aludida nos escritos de visionários do século XIX como Dostoievski, Kierkegaard e Nietzsche. Foi Dostoievski quem previu que o socialismo viria a matar 100 milhões de pessoas na Rússia durante o século XX. Décadas antes do século XX, Kierkegaard alertou contra a vã arrogância da opinião pública, a democracia hedonista e a tóxica cultura do autoengano. Mais famoso ainda, mas ainda menos compreendido, Friedrich Nietzsche alertou que o cristianismo estava morrendo por dentro, que Deus havia sido sepultado nas igrejas. Nietzsche previu um período de dissolução e destruição gradual que duraria 200 anos, indo de 1888 até 2088, onde o “advento do niilismo europeu” levaria ao cesarismo (i. e., totalitarismo) e à guerras cujo escopo destrutivo não teria precedentes. Nietzsche não podia suportar o que ele chamou de "otimismo econômico". Em seu pensamento, o igualitarismo levou embora a autoridade e a inteligência que uma vez reinou sobre os altos postos da civilização. Sem uma ordem de autoridade e inteligência no comando, tudo estava destinado ao colapso.

Ao tentar entender a situação econômica não devemos apenas enfocar na economia. Devemos observar a história, a psicologia, a ciência política e a religião. Jung disse que estamos vivendo uma era de metamorfose dos “princípios e símbolos”. A transição pela qual estamos passando está cheia de perigos por causa da nossa própria tecnologia, que por sua vez pode nos destruir. Não apenas a ciência econômica é desdenhada por aqueles que estão no poder, como lamentou Mises, mas há também o problema daquilo que Jung chamou de “atraso moral da humanidade em geral que se mostra hoje inadequada diante do desenvolvimento científico, técnico e social”. Assim como Mises adotou o individualismo metódico, Jung também disse que tudo dependia de valorizar o indivíduo singular como “unidade infinitesimal de quem depende um mundo, a essência individual, na qual – se percebermos corretamente o sentido da mensagem cristã – o próprio Deus busca a sua finalidade”.

A massa de homens nos dias de hoje, possuída por suas sombras e precipitada ao submundo, opõe-se ao livre mercado por inveja ou ignorância. Contudo, o indivíduo necessita de liberdade e livre mercado, pois a alternativa socialista ameaça riscá-lo dos planos. Isso é algo que não podemos permitir – e mesmo assim está acontecendo diante dos nossos olhos. De alguma forma, em algum lugar, devemos reverter a atual tendência que ruma à morte universal e à destruição. Homens devem ser homens e mulheres devem ser mulheres. A ignorância deve ser dissipada e a inveja suprimida. Devemos, se quisermos sobreviver.

Por: Jeffrey Nyquist

Publicado no Financial Sense.

Tradução: Leonildo Trombela Junior

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

INFLUÊNCIA DA USP LEVA COMANDANTE A ATACAR PM

Ao contrário do que afirma um tenente-coronel em dissertação de mestrado defendida na USP, a polícia não precisa de mais retórica dos direitos humanos – os bandidos é que precisam ser obrigados a cumprir com seus deveres civis.

A melhor definição da ciência, especialmente na República de Bacharéis que é o Brasil, partiu de um autodidata, o escritor Machado de Assis, que, no artigo “A Nova Geração”, publicado na “Revista Brasileira”, em 1879, escreveu: “Digo aos moços que a verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição; e que o modo eficaz de mostrar que se possui um processo científico, não é proclamá-lo a todos os instantes, mas aplicá-lo oportunamente”. Mais do que sábio, esse alerta de Machado de Assis chega a ser profético: quase toda a ciência que se produz hoje nas universidades brasileiras não se ocupa verdadeiramente do estudo da realidade nacional, mas da deslumbrada proclamação de processos científicos importados da Europa e dos Estados Unidos.

Um exemplo, entre centenas, é o livro recém-lançado “O Guardião da Cidade” (Editora Escrituras, 2013, 252 páginas), fruto da dissertação de mestrado “A Educação em Direitos Humanos na Polícia Militar”, defendida, em 2012, pelo tenente-coronel Adilson Paes de Souza na Faculdade de Direito da USP, sob a orientação de Celso Lafer, doutor em Ciência Política pela Cornell University, nos Estados Unidos, e autor de vários livros. A tese (em sentido lato, que usarei neste texto, pois, no fundo, o autor defende uma tese sobre a PM) não descreve a Polícia Militar existente, antes prescreve a polícia que deveria existir com base nas leituras mal digeridas do orientando e do orientador. O que não os impediu de regurgitá-las de forma um tanto arrogante. Trata-se de um caso clínico machadiano, em que a ciência não foi usada para nutrição, mas como ornato, dando carteirada na realidade.

“Saída e voz constituem duas formas pela qual a administração toma conhecimento de suas falhas. Com a primeira, os membros da organização optam por deixa-la, com a segunda, nela permanecem mas expressam sua insatisfação” – assim tem início a tese de Paes de Souza sobre a Polícia Militar paulista. Que saída? Que voz? Que administração? O que isso tem a ver com a PM brasileira? O autor e seu orientador não acharam necessário explicar de imediato, pois o que importa mesmo é o distintivo que dá a carteirada entre parênteses – “(Hirschman, 1973, p. 25)” – referindo-se ao economista alemão Albert Hirschman (1915-2012), autor do livro “Saída, Voz e Lealdade” (Editora Perspectiva, 1973), que trata das reações ao declínio de firmas, organizações e Estados.

O próprio Hirschman, já no início da referida obra, explica o contexto em que ela nasceu, no caso uma reflexão sua sobre o transporte ferroviário da Nigéria. Já Paes de Souza começa sua tese utilizando os conceitos “saída”, “voz” e “lealdade” como se eles fossem o verbo “cair”, que se conjuga sozinho, sem ser preciso recorrer à Lei da Gravidade para explicá-lo. Émile Durkheim (1858-1917), o mais humilde entre os grandes pensadores, recusava-se a ter soluções fáceis para o mundo e, preferindo descrever os fatos em vez de normatizá-los, reconhecia que a realidade era irredutível aos conceitos. É óbvio, portanto, que uma instituição tão antiga quanto a Polícia Militar é muito mais complexa do que qualquer teoria e não dá para comprimir sua realidade no espartilho teórico de determinados autores, ainda por cima se empregados aleatoriamente, como faz Paes de Souza.

Orientador de pés descalços
Seu orientador Celso Lafer, que só consegue enxergar o mundo estreitando sobre os olhos as lentes particulares de Hannah Arendt e Norberto Bobbio, provavelmente não conhecia nada da PM antes de orientar a tese e continuou ignorante sobre o assunto, pois, no seu livresco mundinho abarrotado de direitos, parece não haver espaço para uma instituição encarregada de fazer com que se cumpram deveres. No prefácio da obra, Lafer afirma que “Adilson Paes de Souza também alargou os horizontes de seu trabalho com a remissão à experiência internacional, seja pelos aspectos positivos desenvolvidos pela ideia das autoridades da Colômbia, seja pelos aspectos negativos do ‘Patriot Act’ dos EUA, instaurador de um contínuo estado de exceção voltado para o combate ao terrorismo”.

Irônico é que Celso Lafer também elogia seu aluno por ter tido a coragem de denunciar a PM: “A coragem é uma virtude forte, necessária para a vida pública” – diz Lafer, esquecido do dia 31 de janeiro de 2002, em que, como chanceler do presidente Fernando Henrique Cardoso, tirou covardemente os sapatos no aeroporto de Miami, durante uma revista das forças de segurança dos Estados Unidos, pisando com a sola dos pés a dignidade do Brasil. Naquela ocasião, faltou coragem a Celso Lafer ou lhe sobrou fleuma, evitando um conflito diplomático entre os dois países? Não tenho dúvida de que lhe faltou coragem, mas, se eu fosse escrever uma tese acadêmica sobre o assunto, examinaria as duas hipóteses, como deve fazer qualquer pesquisador isento.

Mas isenção é o que parece ter faltado a Celso Lafer quando foi orientar o trabalho do tenente-coronel Adilson Paes de Souza. Co­me­çando pela forma peremptória com que elogia o Programa “Segurança Cidadã” da Colômbia ao mesmo tempo em que acusa, de forma taxativa, o “Patriot Act” de instaurar nos Estados Unidos “um contínuo estado de exceção inspirado no terrorismo”. Ora, Lafer acredita mesmo nessa barbaridade que escreveu, num tardio ato de coragem, que não teve quando tirou os sapatos? Se acredita, por que aceita atuar em instituições governamentais de um país ao qual acusa de viver em “contínuo estado de exceção”, como é o caso da Biblioteca do Congresso norte-americano, onde é professor visitante desde 2006, portanto, bem depois do lamentável episódio dos pés descalços? Alguém duvida para onde Celso Lafer iria se tivesse que se exilar do Brasil tendo como opções de destino somente a Colômbia da “Segurança Cidadã” e os Estados Unidos do “Patriot Act”?

São essas contradições a que todas as instituições sociais e todos os seres humanos estão sujeitos que um pesquisador tem de levar em conta quando elege um determinado objeto de estudo. Não se pode escolher aleatoriamente meia dúzia de vãs teorias sobre direitos humanos e tachar a Polícia Militar de criminosa por não se enquadrar nelas. As teorias filosóficas ou científicas são apenas instrumentos auxiliares para a compreensão dos fatos – não podem se arvorar a substituir a própria realidade, como tenta fazer Adilson Paes de Souza. O tenente-coronel parece ter sofrido lavagem cerebral da USP, cuspindo no prato em que se alimentou durante 28 anos, antes de passar para a reserva no ano passado. Em suas entrevistas à imprensa, Paes de Souza praticamente defendeu até a selvageria dos manifestantes mascarados, repetindo, acriticamente, o discurso irresponsável das universidades. 

Duro sem perder a ternura
As teorias vigentes sobre direitos humanos não passam de versões laicas do Sermão da Montanha, com a diferença de que a utopia bíblica pode contar com a fé em Deus para ser buscada, já a utopia laica não pode dispor senão da precária condição humana que, todavia, ela própria solenemente ignora. É uma insanidade julgar uma instituição apenas com base em utópicas teorias filosóficas, entre as quais se inclui a peroração sobre direitos humanos. Ainda mais uma instituição como a Polícia Militar, que é obrigada por lei a chafurdar no entulho humano, representado, entre outros, por homicidas, latrocidas e estupradores, com os quais ninguém gostaria de conviver.

Aliás, se Paes de Souza tivesse sido bem orientado por Celso Lafer, ele faria um uso melhor de Albert Hirschman, que é o primeiro a reconhecer que todas as instituições estão sujeitas a falhas. Para o caso de uma segunda edição de “O Guar­dião da Noite” ou se Paes de Souza ingressar no doutorado da USP com o mesmo tema, corrijo aqui uma falha de Celso Lafer e recomendo a seu pupilo que inclua e desenvolva na tese esse trecho de “Saída, Voz e Lealdade”, de Albert Hirschman: “Sob qualquer sistema econômico, social ou político, indivíduos, firmas e organizações, em geral estão sujeitas a falhas de eficiência, racionalidade, legalidade, ética ou outros tipos de comportamento funcional. Não importa quão bem estabelecidas as instituições básicas de uma sociedade; alguns agentes, ao tentarem assumir o comportamento que deles se espera, estão fadados ao fracasso, ainda que por razões acidentais de quaisquer tipos”.

O policial perfeito, que combate o criminoso sem jamais perder a ternura, só existe na cabeça utópica de nossos acadêmicos, que elegeram a Polícia Militar como telhado de vidro preferencial da sociedade capitalista, contra a qual travam uma guerra sem quartel. Um exemplo dessa visão surreal da polícia pode ser encontrado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2013, que expressa o que pensa o governo petista sobre o tema. Fazendo-se passar por defensores da polícia, seus autores chegam a fazer a seguinte afirmação: “Não podemos acreditar em uma sociedade sem polícias, mas podemos apostar que tais instituições sejam eixos estratégicos e de indução de um modelo de desenvolvimento social, econômico e cultural baseado no respeito e na paz”.

Polícia como indutora de desenvolvimento? A polícia é mantenedora da ordem, mais nada. Indutoras do desenvolvimento deveriam ser as universidades se não estivessem tão ocupadas em fomentar a depredação da ordem pública, sem a qual não há nem mesmo civilização, que dirá desenvolvimento. É inaceitável, sob todos os aspectos intelectuais e éticos, que intelectuais da USP ataquem com tanta virulência a Polícia Militar, mas, diante dos vândalos da própria universidade, que agridem e matam calouros e invadem e depredam a reitoria, se comportem de forma omissa, isso quando não são cúmplices do vandalismo, que alguns chegam a julgar revolucionário.

Em junho deste ano, o Su­premo Tribunal Federal (STF) manteve o trancamento da ação penal contra os quatro estudantes de Medicina da USP acusados de matar o calouro Edison Tsung Chi Hsueh, encontrado morto nas dependências da universidade em 23 de fevereiro de 1999. Na época, um dos réus, nos quatro dias em que ficou preso, recebeu a visita de oito professores da USP. Já os pais do calouro morto foram ignorados e relegados à própria dor, como mostra reportagem de Ivan Marsiglia, publicada no jornal “O Estado de S. Paulo” em 15 de fevereiro de 2009. Vítima de um profundo desgosto, que o levou a usar marca-passo, o pai de Edison morreu em agosto de 2008, e sua viúva, a mãe de Edison, teve de voltar a trabalhar aos 64 anos para completar o orçamento da família, mesmo não falando direito o português.

“Há que se falar em categorias de pessoas que merecem morrer, tal qual o ‘homo sacer’ descritas por Giorgio Agamben, para purgar os males da sociedade?” – indaga Adilson Paes de Souza em sua tese. Essa pergunta que ele dirige à polícia devia ser feita à USP, que arrasta há quase 15 anos um cadáver insepulto. Se o calouro de medicina tivesse sido morto acidentalmente, numa troca de tiros entre bandidos e policiais, a comunidade uspiana ritualizaria sua morte e, ano após ano, ela seria celebrada como bandeira dos direitos humanos, com virulentos ataques à polícia, mesmo se ficasse provado que a bala saíra da arma de um bandido. Mas, como a USP não quis cortar na carne, preferindo proteger sua elite docente e discente, o pobre calouro de medicina, filho de imigrantes orientais, transformou-se no “homo sacer” de Agamben e, a exemplo dessa versão romana de Caim estudada pelo autor, foi tratado pela USP como uma pessoa que merece mesmo morrer.

Ao mesmo tempo em que amortiza os males da universidade, esquecendo-se que justiça se começa de casa, Paes de Souza capitaliza os males da polícia, confrontando sua atuação até com o idealismo da filosofia de Platão, onde vai buscar o conceito de “Guardião da Cidade”. No capítulo em que trata desse tema, ele percorre a esmo o pensamento de Aristóteles, Montesquieu, Arendt, Canetti e Bobbio para enumerar as qualidades ideais do “Guardião da Cidade”, que não são encontradiças em nenhum ser humano de carne e osso, mesmo trabalhando em condições ideais, que dirá num policial submetido ao estresse inevitável da profissão. E não satisfeito em aniquilar o policial com o peso de uma filosofia mal digerida, ele dedica vários capítulos aos tratados da ONU sobre direitos humanos, lidos por ele acriticamente, em que pese serem mais inaplicáveis do que a mais idealista das filosofias.
Mais realista que o rei.

Um desses documentos trata dos princípios básicos para o uso da força e armas de fogo e integra o “Tratado sobre Prevenção do Crime e o Tratamento dos Infratores”, adotado pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas, realizado em 1990. Paes de Souza destaca os princípios que normatizam claramente o emprego das armas, notadamente os Princípios 9 e 10: “Os encarregados da aplicação da lei devem agir somente em legítima defesa própria ou de terceiros e como último recurso a ser empregado. Para tanto, eles devem anunciar a intenção do uso da força ou de arma de fogo com antecedência para que o opositor disponha de tempo para cessar a resistência à ordem legal. Nota-se a preocupação com a preservação da vida em todas as circunstâncias”.

Com a vida dos bandidos, claro, porque essa norma é uma pena de morte para o policial. É óbvio que, na vida real, as coisas não ocorrem como nessa fantasia acadêmica de Paes de Souza e Celso Lafer, onde a antecedência do aviso por parte do policial sempre resultará na rendição do criminoso, como se lê claramente no texto da tese. O bandido real não é discípulo de Arendt e Bobbio e, em vez de “cessar a resistência à ordem legal”, em obediência cidadã, como pensam os uspianos, eles vão é passar fogo no agente da lei.

Não tenho o menor apreço pela Organização das Nações Unidas. A ONU é a Internacional Socialista pós-moderna, responsável direta pela maioria das leis desatinadas que infernizam o Brasil de hoje – país que se tornou seu laboratório preferencial para a construção do “Homem Novo”. O Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, é cria direta da ONU. Mas, justiça seja feita, no que tange ao uso das armas de fogo, o desatino desta vez não partiu da ONU, mas da tendenciosa interpretação que Paes de Souza deu ao Princípio 10 do documento da entidade. Esse princípio dá continuidade ao Princípio 9, que, por sua vez, restringe o uso de arma de fogo por parte dos policiais apenas em legítima defesa própria ou de terceiros, diante de uma ameaça muito grave.

Eis, então, o que diz textualmente o Princípio 10 do documento da ONU: “Nas circunstâncias previstas no Princípio 9, os responsáveis pela aplicação da lei deverão identificar-se como tais e avisar prévia e claramente a respeito da sua intenção de recorrer ao uso de armas de fogo, com tempo suficiente para que o aviso seja levado em consideração, a não ser quando tal procedimento represente um risco indevido para os responsáveis pela aplicação da lei ou acarrete para outrem um risco de morte ou dano grave, ou seja claramente inadequado ou inútil dadas as circunstâncias do caso”.

Comparem o texto original do documento da ONU com a interpretação que dele faz o tenente-coronel Paes de Souza ao resumir, conjuntamente, os dois princípios. O autor da tese simplesmente omitiu o trecho em que até a ONU reconhece o direito do policial de não fazer o prévio anúncio de que irá usar arma de fogo, caso isso coloque em risco a sua vida ou a vida de terceiros. Como a tese de Paes de Barros é bem escrita e, em média, os oficiais da PM são mais estudiosos do que os universitários de passeata, não creio que ele tenha deturpado o Princípio 10 por tê-lo entendido mal – creio que agiu intencionalmente, para criminalizar ainda mais a polícia brasileira, ao fazer de conta que a ONU não reconhece nenhuma circunstância em que o policial pode fazer uso de arma de fogo sem aviso prévio.

Papel higiênico para a Venezuela
Mesmo o documento da ONU não sendo tão equivocado quanto Paes de Souza faz parecer, é um desplante fazer uso dele numa tese sobre direitos humanos. E a razão é simples: o Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos In­fra­tores, no qual foram aprovados os princípios básicos sobre o uso da força e armas de fogo, retrata bem o viés ideológico da ONU – esse congresso teve como país-sede, nada mais, nada menos, do que Cuba, a ilha-cárcere de Fidel Castro. Entre 27 de agosto e 7 de setembro de 1990, enquanto prisioneiros políticos gemiam nos porões da ditadura comunista por meros delitos de opinião, a casta de burocratas da ONU perorava sobre direitos humanos nos hotéis de luxo da ilha-cárcere. Um documento sobre direitos humanos com origem numa ditadura que fuzilou entre 15 mil e 17 mil pessoas e encarcerou outras 100 mil só pode ter um destino – a Vene­zuela bolivariana, onde falta papel higiênico.

De que adianta o cientista político Celso Lafer ostentar um currículo Lattes de 119 páginas e pertencer a 54 organizações nacionais e internacionais, além de ter participado de 443 congressos científicos, orientado 17 dissertações de mestrado e 11 teses de doutorado, publicado 179 artigos, 42 livros e 196 capítulos de livros, se toda a sua ética bobbiana e arendtiana não lhe faculta perceber o óbvio: que Cuba e direitos humanos não combinam? Como é que um intelectual que não percebe isso se arvora a ser o juiz do arriscado trabalho da PM, a partir do conforto de seu pedestal acadêmico, valendo-se de textos cubanos da ONU e de um pupilo deslumbrado, que, cuspindo nos 28 anos de experiência profissional na Polícia Militar, aceitou de bom grado a lavagem cerebral a que foi submetido na USP? Oh!, a vã ciência que se incrusta para ornato!

Fiel à ciência ornamental de seu orientador, Paes de Souza se mostra encantado com o fato de o Brasil ter lançado o Programa Nacional de Direitos Humanos em 1996 (na tese, está 1986, o que é um erro), atendendo à recomendação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, realizada três anos antes. Para se ter uma ideia da importância desse terceiro lugar, basta saber que as Filipinas foi o segundo país a aderir à Conferência de Viena, depois da Austrália. Mesmo assim, Paes de Souza não arrefece seu entusiasmo e elogia até mesmo a terceira edição do Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), perpetrada pelo governo Lula em 2009. Segundo ele, o PNDH-3 “representa um verdadeiro roteiro para a consolidação da democracia”, o que não sei se é inocência ou escárnio, pois foi justamente esse plano que tentou controlar a imprensa e destruir a educação. Também pudera: o autor achou por bem reproduzir em sua tese até uma citação de cinco linhas de um discurso de Lula sobre direitos humanos, do qual, evidentemente, vou poupar o leitor.


Carga de direitos humanos
Para criticar a formação de direitos humanos no Curso de Forma­ção de Oficiais, Paes de Souza recorre a estudos que tratam essencialmente da educação básica para crianças e adolescentes. E diz que o curso não prepara adequadamente o aluno para “entender os problemas do mundo em que vive”, pelo fato, segundo ele, de “não abordar temas relevantes como a dignidade da pessoa humana, o preconceito, a discriminação e os princípios dos direitos humanos como a universalidade e indivisibilidade”.

O autor trata o oficial da Polícia Militar, obviamente maior de idade, como se fosse aluno do jardim da infância. Qual o adulto neste país que já não está enjoado de ouvir discurso sobre direitos humanos, discriminação, preconceito etc.? Até candidata a miss é capaz de dissertar horas sobre a retórica politicamente correta dos direitos humanos. Aliás, o resultado de toda essa retórica tem um efeito contrário ao almejado: quanto mais se fala em direitos mais se banaliza o humano, a ponto de hoje o ser humano valer bem menos do que um cachorro. A morte de um cão já sensibiliza muito mais a opinião pública do que os 63 mil assassinatos anuais no País – segundo a estatística corrigida por Daniel Cerqueira, do Ipea, mas omitida por ele próprio em sua colaboração no Anuário Brasileiro da Segurança Pública, no texto em que aponta a “letalidade” da Polícia Militar.

Toda a imprensa brasileira comprou a ideia de Paes de Souza de que é preciso aumentar a carga horária dos direitos humanos no Curso de Formação de Oficiais da PM de São Paulo, mesmo essa carga horária já sendo de 90 horas e tendo sido, em 2000 e 2001, de 144 horas. Ocorre que, além de serem objeto de inúteis 90 horas de peroração para adultos, de forma direta, os direitos humanos também são estudados de forma indireta no restante do curso.

Em sua grade curricular, os oficiais da PM paulista tinham, até 2012, 20 matérias da área jurídica, incluindo Direitos Humanos. São elas: Criminologia, Direito Admi­nistrativo I e II, Direito Admi­nis­trativo Aplicado I e II, Direito Am­biental, Direito Civil, Direito Cons­titucional I e II, Direito Interna­cional, Direito Penal I, II, III e IV, Direito Processual Civil Presencial I, II e III, Direito Processual Civil Não Presencial I, II e III, Direito Penal Militar, Direito Processual Penal I, II e III, Direito Processual Penal Militar, Economia Política I e II, Ciência Política, Filosofia Geral e Jurídica, Introdução ao Estudo do Direito, Linguagem Jurídica I e II, Medicina Legal-Criminalística, Metodologia Científica Aplicada ao Direito I e II e Sociologia Geral e Jurídica I e II. Só essas disciplinas citadas totalizam 2.308 horas, o que correspondia a mais da metade das 4.416 horas do curso.

Eu pergunto: é possível estudar qualquer uma das disciplinas citadas sem estudar necessariamente os direitos humanos? Obvia­mente não, pois todas essas matérias são obrigatoriamente mi­nistradas à luz da Constituição de 88, cujos pilares – inscritos em seu Preâmbulo e no artigo 5º, mas também espalhados ao longo de todo o texto constitucional – são os direitos humanos. Não é à toa que a Carta de 88 foi chamada por Ulysses Guimarães de “Constituição Cidadã”. A rigor, nem era preciso ter uma disciplina exclusiva sobre direitos humanos, que, repito, só serve para banalizar o humano sobre os escombros da retórica vã.

Mas os alunos do Curso de For­mação de Oficial também tinham disciplinas como Psicologia Apli­cada, Teoria Geral da Adminis­tração, Administração de Pessoal I e II, Chefia e Liderança I e II, Dou­trina de Polícia Comunitária, Ética Geral e Profissional, Ge­rencia­mento de Crises, Pronto-Socor­rismo e Resgate e Policia­mento Comunitário, totalizando 418 horas, que também trazem os direitos humanos embutidos em teoria e prática. Desafio Celso Lafer a provar que existe algum outro curso de graduação nas universidades brasileiras que tem tanto conteúdo de direitos humanos – em teoria e prática – como o Curso de Formação de Oficial da PM de São Paulo, que, aliás, é em forma de internato.

Novo currículo da PM
Em 2010, o Curso de Formação de Oficiais instituiu novo currículo, ainda mais humanista, que passou a vigorar plenamente a partir deste ano de 2013. O novo currículo cortou as redundâncias da área de Ciências Jurídicas, reduzindo suas disciplinas de 20 para 15, mas criou a área de “Ciências Humanas, Sociais e Políticas”, com dez disciplinas: Ciência Política e Teoria do Estado, Deontologia, Didática, Economia Política, Filosofia, Língua Estrangeira, Políticas Públicas e Sociologia da Violência, Português Instrumental, Psicologia Aplicada e Sociologia Geral. Como se vê, a essência da tese de Paes de Souza – que é a necessidade de mais aulas de direitos humanos na preparação de oficiais para tornar a polícia menos violenta – não se sustenta nos fatos. Celso Lafer, como seu orientador, deveria tê-lo demovido dessa hipótese já na elaboração do projeto de mestrado.

Todavia, ainda que Adilson Paes de Souza tivesse razão e, de fato, faltassem aulas sobre direitos humanos no Curso de Formação de Oficiais, sua tese continuaria sendo inútil para iluminar os problemas da Polícia Militar. Por uma razão óbvia: os oficiais (coronéis, capitães e tenentes) são a elite da PM e se envolvem menos em situação de confronto do que os praças (sargentos, cabos e soldados). Logo, se a retórica sobre direitos humanos fizesse falta na vida dos policiais, essa falta seria em relação aos praças, que exercem, na prática, o policiamento preventivo e repressivo. Os praças é que são os verdadeiros guardiões da cidade. Ele estão sempre em vigília enquanto todos dormem. Justamente por isso não precisam de direitos humanos em forma de Arendt e Bobbio – mesmo sem ter lido Terêncio, eles sentem no corpo, na alma e no coração que nada do que é humano lhes é estranho.

A tese de Adilson Paes de Souza também está fazendo sucesso por trazer entrevistas de policiais expulsos da corporação por homicídio, na esteira do que já fizera o jornalista Bruno Paes Manso, do jornal “O Estado de S. Paulo”, no livro “O Homem X” (Editora Record, 2005). Além de reforçar a cobrança por mais retórica sobre direitos humanos, os depoimentos desses policiais estão sendo usados para denunciar a truculência da PM e reivindicar sua desmilitarização. No próximo artigo, irei desconstruir essa outra falácia.

Por: José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.

Publicado no Jornal Opção.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

RECORDAR É VIVER

‘O PT aprofundou o processo de desmoralização da política’, acusa Villa. Ser ‘amigo do rei’ nunca foi tão importante para o sucesso

“O Brasil de hoje é uma sociedade invertebrada. Amorfa, passiva, sem capacidade de reação. É uma República bufa, uma República petista.” Assim conclui Marco Antonio Villa em seu novo livro, “Década perdida”, onde disseca os dez anos de PT no poder. É um trabalho conciso de historiador, resgatando os principais acontecimentos desta triste época.

Villa optou por um relato cronológico, expondo os fatos mais marcantes de cada ano. Basta relembrar a quantidade infindável de escândalos para derrubar todos os mitos criados pelo PT, inclusive o maior deles: o de que Lula é um operário que chegou ao poder para mudar tudo e beneficiar os mais pobres.

O lulismo, ao contrário, foi um grande passo na mesma direção do que há de pior em nossa política. O patrimonialismo foi fortalecido, as oligarquias corruptas nunca tiveram tanto poder, os sindicatos jamais foram tão vendidos, o aparelhamento da máquina estatal foi total. A tudo isso, somou-se o culto à personalidade, o messianismo típico das republiquetas populistas latino-americanas.

Dispostos a tudo pelo poder, Lula e o PT abusaram das mentiras, das práticas mais nefastas na política, das alianças indigestas com os velhos “picaretas” acusados pelo partido, do mensalão, o maior esquema já visto para tentar controlar o Congresso e destruir a democracia.

O que Villa faz é mostrar um filme do enorme estrago causado pela passagem do PT pelo poder nessa década. Com fortes ventos favoráveis vindos de fora, basicamente pelo elevado crescimento chinês e o baixo custo do capital no mundo, o Brasil teve desempenho econômico medíocre.

Crescemos bem menos do que a média dos emergentes, e com inflação bem maior. O pouco que crescemos se deu por fatores insustentáveis, como o irresponsável endividamento do governo e das famílias, estimulado pelo próprio governo. Faltou um projeto de país, e sobrou a visão míope de se pensar apenas nas próximas eleições.

O engodo que foi o lulismo, incluindo dois anos de sua “criatura” Dilma, fica evidente no livro, com a quantidade absurda de promessas irreais, factoides criados somente de olho nas campanhas eleitorais. Foi a era do marqueteiro, tudo voltado às aparências, sem preocupação com resultados concretos.

O desrespeito com as instituições republicanas foi total, chegando várias vezes ao escárnio. “O PT aprofundou o processo de desmoralização da política”, acusa Villa. Ser “amigo do rei” nunca foi tão importante para o sucesso. As bases da pirâmide foram compradas com esmolas, no pior estilo coronelista, e o topo, representado pelo grande capital, teve o BNDES a seu dispor, em magnitude jamais vista.

Os artistas também se venderam pelo “apoio cultural”. Nada mais é realizado nesta área sem que tenha a participação estatal, criando-se uma relação de completa dependência. A esquerda caviar e o PT desenvolveram uma simbiose umbilical, destruindo qualquer chance de integridade artística na maioria dos casos.

No âmbito externo e diplomático, o lulismo também deixaria sua marca podre. O Itamaraty tem sido responsável por vexames internacionais, deixou de lado sua tradicional postura de isenção, aderindo ao bolivarianismo e se alinhando aos piores ditadores. O viés ideológico e os objetivos partidários estiveram acima dos interesses nacionais. O Mercosul é um atraso de vida, e acordos bilaterais de livre comércio não foram selados por culpa do PT.

Por trás de tudo isso, como aponta Villa, há uma oposição acovardada, tímida, incapaz de combater com determinação o avanço do lulismo. Em 2005, essa postura equivocada ficou evidente, no erro estratégico de deixar o PT sangrar com o mensalão na expectativa de derrotá-lo nas urnas. Foi um marco do “vale tudo” adotado por Lula. Sua vitória foi a derrota da ética, a morte da jovem República ainda em construção.

Como o autor reconhece, não será nada fácil tirar o PT do poder. Primeiro, porque muitos grupos de interesse foram capturados. O PT transformou as estatais e seus poderosos fundos de pensão em instrumentos partidários. “Estabeleceu uma rede de controle e privilégios nunca vista na nossa história.”

Segundo, porque boa parte da população parece não se dar conta do que é o PT, um partido que sequer respeita seu próprio estatuto, preferindo defender, em vez de expulsar, criminosos condenados em última instância pelo STF, com ministros escolhidos pelo próprio PT. O povo tem memória curta. E aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo. O livro de Villa é um antídoto contra esse esquecimento. Leiam!
RODRIGO CONSTANTINO
Publicado:26/11/13 - 0h00

UM GENUÍNO HOMEM DE ESQUERDA


Ele continua a ser um personagem típico do circo esquerdista, onde não há lugar senão para dois personagens, os equivalentes ideológicos de Pierrot e Arlequim: a ilusão e o cinismo.

3 de maio de 1996, mais de 17 anos atrás.
Publicado no livro ‘O Imbecil Coletivo – 

O DEPUTADO JOSÉ GENOÍNO tem hoje a fama de ser homem respeitado igualmente pela esquerda e pela direita. Contribuem muito para isso a inteligência, a polidez, a simpatia e o ar despretensioso com que S. Excia. encanta a todos os que o ouvem falar. Muito o ajudam, também, a elegância e a retidão com que ele tem cumprido os deveres da ética parlamentar, seja diante de seus companheiros de partido, seja dos adversários. Tudo isso faz dele um homem digno da distinção que hoje o cerca. Mas o motivo principal de seu prestígio é que ele encarna, segundo a opinião geral, a personificação mesma de uma “nova esquerda”, esclarecida e democrática, despida de toda pretensão totalitária e avessa ao emprego da violência como meio de acesso ao poder.

O próprio Genoíno dá verossimilhança a essa interpretação, na medida em que, sem renegar de todo sua atuação de guerrilheiro, ele a vincula a um determinado momento do passado, como coisa adequada àquele tempo e inadequada ao nosso. O Genoíno de hoje, ao contrário do de ontem, crê mais no voto, no diálogo e no império da lei do que na retórica brutal das metralhadoras.

Ele subscreve, em nome da esquerda, a máxima predileta da direita: Os tempos mudaram. E como direita e esquerda têm por dogma comum de seus respectivos evangelhos a crença piedosa no mito do progresso, o deputado torna-se assim um sacerdote da deusa ante a qual se prosternam os fiéis de ambas as igrejas: a Modernidade.

Porém, mais importante que isso é o lado moral da transformação. A edição revista e melhorada do deputado Genoíno faz dele, no consenso da opinião consagrada pelos jornais e por todas as pessoas de bem, um esquerdista diferente: alguém, em suma, que, mesmo nos momentos decisivos das radicalizações e dos confrontos mais duros, será sempre mais obediente à moral do que à ideologia, mais fiel ao compromisso democrático do que a uma estratégia para a tomada do poder, mais atento à palavra dada em público do que a lealdades secretas de conspirador e revolucionário.

Se essas qualidades já não delineassem, por si, o perfil de alguém fundamentalmente inapto para a carreira política, deixando sem explicação o sucesso parlamentar de homem tão destituído daquele mínimo de maquiavelismo e hipocrisia, que o senso comum considera indispensável a semelhante ofício, elas ainda assim imporiam, ao observador atento e conhecedor da história da esquerda, algumas constatações bastante inquietantes.

Em primeiro lugar, a rejeição que o deputado faz da violência armada não é de ordem moral: é estratégica. Num determinado quadro político-social, o uso das armas é sensato; num outro, torna-se insensato. Não se trata portanto de rejeitar o terrorismo, as bombas e o morticínio, a contestação violenta da ordem estabelecida, mas apenas de usá-los segundo um diagnóstico das condições objetivas e subjetivas que, em determinada fase do processo histórico, os aconselham ou desaconselham segundo as conveniências da estratégia revolucionária. Somente pessoas totalmente ignorantes da história das esquerdas — ou seja, a totalidade da nossa opinião pública, incluindo os jovens universitários — podem imaginar que a atitude presente do deputado Genoíno seja, nisso, algo de novo e diferente. Ela é a repetição literal e fidedigna de uma posição já adotada, em várias circunstâncias, por Marx e Lênin, Stálin e Mao, Guevara e Fidel Castro. São somente os anarquistas e os fascistas que, seguindo Bakunin e Georges Sorel respectivamente, têm o emprego da violência como um princípio incondicional e uma regra de ação permanente. Para os comunistas, a violência é e sempre foi instrumental e dependente das conveniências ou inconveniências estratégicas assinaladas pela análise realista do quadro histórico. E é precisamente isto o que ela é para o deputado Genoíno, o qual, se for sincero, há de reconhecer que expressei com exatidão o seu mais profundo pensamento a respeito desse ponto.

Em segundo lugar, é um fato histórico dos mais notórios que a esquerda mundial, nos momentos em que as conveniências a levaram a adotar predominantemente a via pacífica e democrática, tirou sempre disto um indevido proveito moral, dando ares de virtude ética ao que era apenas um meneio estratégico provisório, prestes a ceder lugar, na primeira oportunidade em que isto se fizesse necessário, ao emprego maciço dos meios sangrentos. Nunca faltaram platéias devotas que, nas fases de pacifismo estratégico, acreditassem — por ignorância ou por puro wishful thinking — estar presenciando o nascimento de uma nova esquerda, humanizada e redimida. Este espetáculo— com sua contrapartida cíclica de desilusões e autocríticas choronas — repetiu-se dezenas de vezes no curso da história do movimento esquerdista.

O deputado Genoíno, portanto, não é nada novo também sob este aspecto: ao tirar proveito do equívoco que toma por pureza moral o que é esperteza estratégica, ele continua rigorosamente dentro do padrão tradicional de conduta das esquerdas. Se ele faz isso conscientemente ou apenas se deixa deleitar num estado de embriaguez moral em que o aplauso dos enganados acaba por enganar o próprio enganador, é coisa que ignoro: não conheço as profundezas de sua psique para saber se nele predomina o maquiavelismo consciente ou a falsa consciência; o que sei é que, em qualquer dos dois casos, ele continua a ser um personagem típico do circo esquerdista, onde não há lugar senão para dois personagens, os equivalentes ideológicos de Pierrot e Arlequim: a ilusão e o cinismo.

Em terceiro lugar, nunca existiu para as esquerdas a hipótese de fazer uma opção categórica entre via armada e via pacífica, pela simples razão de que toda e qualquer estratégia revolucionária exige o emprego, ora sucessivo, ora simultâneo, dos dois instrumentos. Entre as armas da retórica e a retórica das armas, a esquerda sempre optou pelas duas. Nenhuma revolução esquerdista, em qualquer parte do mundo, se fez jamais por uma dessas vias exclusivamente, ou mesmo predominantemente. A única distinção que cabe é a seguinte: como é impossível, fisicamente, um mesmo indivíduo participar ao mesmo tempo das duas, tomando assento no parlamento às segundas, quartas e sextas e fazendo guerrilha nas selvas às terças, quintas e sábados, é inevitável que uma distribuição de funções atribua a alguns membros do movimento esquerdista o papel mais brando e civilizado, a outros o mais violento e selvagem. Assim, Trótski, na clandestinidade, preparava a insurreição armada, enquanto na cidade a intelligentzia e os deputados esquerdistas na Duma (parlamento russo) pregavam, em linguagem perfeitamente compatível com a ordem e as leis, a defesa dos direitos humanos de trabalhadores e camponeses. Somente Lênin, de longe, era a cabeça por trás dos dois braços, que atuavam com total independência mútua e não raro se hostilizavam.

Do mesmo modo, no tempo em que o jovem Genoíno treinava guerrilha no Araguaia, os deputados e senadores da esquerda, no Congresso, auxiliados pela intelectualidade urbana e pela imprensa de oposição, procuravam obstar por meios legais e pacíficos a ação do governo militar.

A esquerda, naquele tempo, não optou pela via armada: acrescentou-a, apenas, ao combate parlamentar e legal, atuando em dois planos, como quem mantém o adversário distraído por um abundante fluxo de argumentos enquanto junta forças para chutá-lo no baixo ventre.

É absolutamente necessário, ao sucesso de qualquer estratégia revolucionária, que as duas mãos da revolução atuem independentemente e sem que se possa identificar por trás delas o menor sinal de um comando unificado. A convergência dos resultados de uma e de outra — o abalo e destruição do adversário — deve parecer, até o último momento, pura obra do acaso. Não é incomum que o comando estratégico chegue a tornar-se invisível, abstendo-se de interferir e deixando que as duas alas atuem de maneira realmente incoordenada, para só forçar a unificação do movimento no instante do desenlace. Foi precisamente o que fez Lênin em seu exílio europeu. O comando de uma revolução é um ser evanescente e ambíguo, que, durante todo o tempo em que as águas correm na direção desejada, se mantém na posição de um discreto observador a quem ninguém, à primeira vista, atribuiria qualquer poder significativo.

Ora, não havendo opção entre legalidade e ilegalidade, ação parlamentar e ação de guerra, combate de palavras e combate militar, mas sim sempre convergência e articulação mesmo por trás da duplicidade aparentemente incoerente das duas correntes de atuação, o deputado Genoíno sabe que, ao assumir sua aparente opção pela via pacífica, está simplesmente desempenhando um dos papéis do enredo revolucionário, seguro de que alguém estará se incumbindo do papel complementar e fazendo a parte suja do serviço, sem comprometer em nada a imagem de bonzinho que as circunstâncias e conveniências da estratégia esquerdista atribuíram no momento à pessoa do deputado.

José Genoíno sabe que, excluída do campo de sua atuação pessoal, a parte violenta da ação revolucionária não foi de maneira alguma excluída da estratégia global do esquerdismo. Apenas, o papel que cabe hoje a José Genoíno é aquele que, nos seus tempos de guerrilheiro, incumbia a Francisco Pinto no Congresso, a Mário Martins no Senado, a Ênio Silveira e não sei mais quantos na luta cultural, ao passo que o papel que então foi de José Genoíno é desempenhado hoje por José Rainha e suas legiões de posseiros armados.

E, se sabe tudo isso, Genoíno sabe também que sua pretensa opção pela via pacífica é pura pantomima para disfarçar o que não passa de redistribuição de funções segundo as idades e os talentos de cada combatente, no quadro de uma estratégia esquerdista que, hoje como ontem, no Brasil como na Rússia, discursa em cima e bate em baixo, com suas duas mãos de sempre. Se não fosse puro fingimento de militante fiel, se fosse genuína e não apenas genoínica, a recusa da violência imporia ao deputado o dever de não apenas condenar em termos veementes as operações de guerra empreendidas por José Rainha, mas, com toda a coerência lógica, a obrigação de exigir que fossem punidas com os rigores da lei, malgrado o discurso ético-social que lhes serve de pretexto. Se, em vez disso, o próprio Genoíno as aprova tacitamente e as justifica em nome de não sei quantas racionalizações moralizantes, gastando em benefício delas o seu próprio prestígio de pacifista inofensivo, é porque está lá precisamente para esse fim, para dar à violência a cobertura retórica e a legitimação política sem a qual ela perderia toda aura de respeitabilidade e seria condenada como banditismo puro e simples. Já tendo passado da idade de dar tiros, que é coisa feia, o deputado foi transferido, na periódica rotatividade dos quadros esquerdistas, para a seção de embelezamento.

Tudo isso é de uma obviedade patente, e o fato de que mesmo pessoas letradas se recusem a enxergá-lo, ou, enxergando-o, teimem em escondê-lo aos olhos dos demais, só se explica pela mesma mistura e alternância de ingenuidade e cinismo, que mencionei acima, e que constitui a típica receita mental da platéia esquerdista, tal como o Arlequim da falsa consciência e o Pierrot da consciência pérfida são os únicos personagens no palco da sua fantasia. Desafio publicamente o deputado Genoíno a provar com fatos e razões — e não mediante artifícios de retórica depreciativa ou apelos sentimentais — que meu diagnóstico é falso ou deficiente em algum ponto. Caso ele o prove, estarei disposto a abjurar minha opinião imediatamente.Por: Olavo de Carvalho 

terça-feira, 26 de novembro de 2013

VALÉRIO, BRAÇO ERGUIDO, PUNHO CERRADO

Marcos Valério reencontrou-se com José Dirceu e José Genoino no avião da Polícia Federal estacionado na Base Aérea da Pampulha, em Belo Horizonte. Braço esquerdo erguido, punho cerrado, o operador principal do mensalão virou-se para os fotógrafos enquanto subia as escadas da aeronave. Na sua conta do Twitter, ele também se declarou um preso político.


Não, a notícia acima não saiu em nenhum jornal — porque não aconteceu. Valério não teve o senso de humor para reproduzir o gesto das duas lideranças petistas. A Ação Penal 470 é alvo de uma curiosa narrativa emanada do PT: os implicados no esquema são “presos políticos” injustiçados, nos casos de dirigentes do partido, mas presos comuns condenados por crimes de corrupção, nos casos dos operadores financeiros do mensalão. Entretanto, essa duplicidade mais aparente, e um tanto desmoralizante, é apenas a superfície. Atrás das fotografias dos condenados de braço erguido e punho cerrado elabora-se uma segunda duplicidade de consequências danosas para as instituições democráticas.

O gesto de Dirceu e Genoino pode ser interpretado como simples compensação psicológica. Eles sabem que a mitologia política que os cerca, de combatentes pela liberdade, foi inapelavelmente destroçada pelas condenações. Quando erguem os braços e cerram os punhos, estão fabricando uma autoilusão: a ideia de que o passado se repete e, uma vez mais, um sistema opressivo persegue os justos. As imagens que geraram no dia das prisões são cenas de um filme antigo, apenas em versão de pastelão. A democracia pode viver com elas — e, também, com as patéticas opiniões dos seus protagonistas sobre a natureza do julgamento que tiveram no STF.

Contudo, o gesto farsesco de Dirceu e Genoino é mais que isso, pois faz parte de uma encenação política que envolve o PT e o governo. A rede de porta-vozes informais do PT cantou em uníssono a melodia do “julgamento político”, reverberando uma nota oficial do partido assinada por Rui Falcão. O governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, um ex-presidente do PT, escreveu um artigo com a mesma acusação. Dilma Rousseff compareceu a um congresso do PCdoB e levantou-se para aplaudir a acusação contra o STF que, previsivelmente, coroou o evento. Até mesmo as autoridades têm o direito, comum a todos os cidadãos, de dissentir de decisões da mais alta corte do país. Coisa diferente, inaudita nas democracias, é a participação do governo numa campanha de difamação do tribunal supremo.

Eis a duplicidade de fundo: o governo e o PT difamam, mas nada fazem de concreto contra o”tribunal de exceção”. A estratégia do Planalto e do partido é provocar um alarido pontual, incapaz de transbordar o estreito limite das notas públicas e dos artigos de encomenda dos “companheiros de viagem”. Lá atrás, na hora das condenações originais, setores da esquerda petista quase imploraram à direção partidária por manifestações públicas de confrontação com o STF. Conseguiram unicamente meia dúzia de atos simbólicos, esvaziados, em auditórios fechados. Seguindo uma orientação de Lula, a direção do PT definiu a reeleição de Dilma Rousseff como prioridade imperiosa — e desautorizou a projetada campanha contra o tribunal, com suas perigosas repercussões eleitorais.

O jogo duplo é notório, escandaloso. Diante de um “julgamento político”, o governo de uma democracia estimularia apelos às cortes internacionais. O governo brasileiro nem sonha com uma iniciativa desse tipo, acalentada apenas pelos próprios advogados dos condenados. Perseguidos por um “tribunal de exceção”, os dirigentes petistas condenados procurariam obter asilo político junto a governos amigos, na Venezuela, no Equador ou em Cuba. O PT, porém, indicou que eles deveriam se entregar ─ e abandonou à própria sorte o operador secundário na sua aventura solitária de fuga para a Itália. O ruído deve se esgotar em si mesmo, deixando no seu rastro uma desmoralização ainda maior dos intelectuais públicos que se prestam ao papel de fusíveis de crise.

O alarido verbal atende a táticas jurídicas prosaicas e expressa cálculos políticos específicos, mas também reflete motivações de fundo. Num plano prático, serve para pressionar o STF a executar as penas dos condenados célebres em regimes mais brandos, como a prisão domiciliar. Na esfera do jogo político, funciona como um prêmio de consolação para a esquerda petista e, ainda, como um expediente destinado a dourar a biografia partidária. Contudo, no universo ideológico, evidencia a dupla alma do lulopetismo, que obteve seus maiores triunfos graças à democracia, mas continua a desconfiar de um sistema apoiado no princípio do pluralismo.

Nos tempos de João Goulart, o governo acusava o Congresso de representar os interesses das elites e impedir o avanço das “reformas de base”. As palavras converteram-se em atos, originando manifestações públicas oficialistas contra o Poder Legislativo — e a turbulência resultante serviu como pretexto para a ruptura da ordem democrática. O lulopetismo segue trajetória similar, apenas substituindo o Congresso pelo STF, mas, prudentemente, circunscreve suas ações ao palco da retórica. Lula enviou aos companheiros condenados uma decepcionante mensagem de solidariedade e anuncia que falará coisas extraordinárias tão logo se conclua todo o julgamento. Enquanto isso, por trás do pano, sopra aos dirigentes petistas o recado de que nada deve atrapalhar a marcha normal da campanha da reeleição. 

Melhor assim, claro. Entretanto, sempre é bom lembrar que as palavras — e os gestos — têm sentido. As imagens de Dirceu e Genoino de braço erguido e punho cerrado valem tanto quanto a imagem faltante, de um Valério espirituoso na mesma postura. O governo é outra coisa: quando as autoridades desafiam a legitimidade do STF, estão dizendo que a democracia não passa de uma ferramenta descartável.Por: Demétrio Magnoli Publicano em: O Globo

MILITARES

Militar é incompetente demais!!! 


Militares, nunca mais! 

Ainda bem que hoje tudo é diferente, temos um PT sério, honesto e progressista. 

Cresce o grupo que não quer mais ver militares no poder, pelas razões abaixo. 

Militar no poder, nunca mais. 

Só fizeram lambanças. 

Tiraram o cenário bucólico que havia na Via Dutra de uma só pista, que foi duplicada e recebeu melhorias; acabaram aí com as emoções das curvas mal construídas e os solavancos estimulantes provocados pelos buracos na pista. 

Não satisfeitos, fizeram o mesmo com a rodovia Rio-Juiz de Fora. 

Com a construção da ponte Rio-Niterói, acabaram com o sonho de crescimento da pequena Magé, cidade nos fundos da Baía de Guanabara, que era caminho obrigatório dos que iam de um lado ao outro e não queriam sofrer na espera da barcaça que levava meia dúzia de carros. 

Criaram esse maldito do Proálcool, com o medo infundado de que o petróleo vai acabar um dia. 

Para apressar logo o fim do chamado "ouro negro", deram um impulso gigantesco à Petrobras, que passou a extrair petróleo 10 vezes mais (de 75 mil barris diários, passou a produzir 750 mil); sem contar o fedor de bêbado que os carros passaram a ter com o uso do álcool. 

Enfiaram o Brasil numa disputa estressante, levando-o da posição de 45ª economia do mundo para a posição de 8ª, trazendo com isso uma nociva onda de inveja mundial. 

Tiraram o sossego da vida ociosa de 13 milhões de brasileiros, que, com a gigantesca oferta de emprego, ficaram sem a desculpa do "estou desempregado". 

Em 1971, no governo militar, o Brasil alcançou a posição de segundo maior construtor de navios no mundo. 

Uma desgraça completa. 

Com gigantesca oferta de empregos, baixaram consideravelmente os índices de roubos e assaltos. 

Sem aquela emoção de estar na iminência de sofrer um assalto, os nossos passeios perderem completamente a graça. 

Alteraram profundamente a topografia do território brasileiro com a construção de hidrelétricas gigantescas (Tucuruí, Ilha Solteira, Jupiá e Itaipu), o que obrigou as nossas crianças a aprenderem sobre essas bobagens de nomes esquisitos. 

O Brasil, que antes vivia o romantismo do jantar à luz de velas ou de lamparinas, teve que tolerar a instalação de milhares de torres de alta tensão espalhadas pelo seu território, para levar energia elétrica a quem nunca precisou disso. 

Implementaram os metrôs de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Recife e Fortaleza, deixando tudo pronto para atazanar a vida dos cidadãos e o trânsito nestas cidades. 

Esses militares baniram do Brasil pessoas bem intencionadas, que queriam implantar aqui um regime político que fazia a felicidade dos russos, cubanos e chineses, em cujos países as pessoas se reuniam em fila nas ruas apenas para bater-papo, e ninguém pensava em sair a passeio para nenhum outro país. 

Foram demasiadamente rigorosos com os simpatizantes daqueles regimes, só porque soltaram uma "bombinha de São João" no aeroporto de Guararapes, onde alguns inocentes morreram de susto apenas. 

Os militares são muito estressados. 

Fazem tempestade em copo d'água só por causa de alguns assaltos a bancos, sequestros de diplomatas... ninharias que qualquer delegado de polícia resolve. 

Tiraram-nos o interesse pela Política, vez que os deputados e senadores daquela época não nos brindavam com esses deliciosos escândalos que fazem a alegria da gente hoje. 

Os de hoje é que são bons e honestos. 

Cadê os Impostos de hoje, isto eles não fizeram! 

Para piorar a coisa, ainda criaram o MOBRAL, que ensinou milhões a ler e escrever, aumentando mais ainda o poder desses empregados contra os seus patrões. 

Nem o homem do campo escapou, porque criaram para ele o FUNRURAL, tirando do pobre coitado a doce preocupação que ele tinha com o seu futuro. Era tão bom imaginar-se velhinho, pedindo esmolas para sobreviver. 

Outras desgraças criadas pelos militares: 

Trouxeram a TV a cores para as nossas casas, pelas mãos e burrice de um Oficial do Exército, formado pelo Instituto Militar de Engenharia, que inventou o sistema PAL-M. 

Criaram ainda a EMBRATEL; 

TELEBRÁS; ANGRA I e II; IAPAS, DATAPREV, LBA, FUNABEM. 

Tudo isso e muito mais os militares fizeram em 22 anos de governo. 

Pensa!! 

Depois que entregaram o governo aos civis, estes, nos vinte anos seguintes, não fizeram nem 10% dos estragos que os militares fizeram. 

Graças a Deus! 

Não divulgavam com vultosas propagandas na mídia (pagas com o dinheiro público - o nosso dinheiro), as realizações que realizavam e concluíam e, muito menos propalavam obras que sequer saiam do papel. 

Ainda bem que os militares não continuaram no poder!! 

Tem muito mais coisas horrorosas que eles, os militares, criaram, mas o que está escrito acima é o bastante para dizermos: 

"Militar no poder, nunca mais!!!", exceto os domesticados. 

Ainda bem que hoje estão assumindo o poder pessoas compromissadas com os interesses do Povo. 

Militares jamais! 

Os políticos de hoje pensam apenas em ajudar as pessoas e foram injustamente prejudicadas quando enfrentavam os militares com armas às escondidas com bandeiras de socialismo. 

Os países socialistas são exemplos a todos. 

ALÉM DISSO, NENHUM DESSES MILITARES 

CONSEGUIU FICAR RICO. 

ÊTA INCOMPETÊNCIA!!! 


Millôr Fernandes 


NEM DE ESQUERDA, NEM DE DIREITA


“Mas vocês não são de esquerda, nem de direita!”

Essa observação, feita após um discurso meu, foi apropriada e rara. Rara porque quase nunca ouço tal observação; e apropriada por demonstrar um entendimento correto.

A maioria de nós parece estar sempre tentando encontrar simplificações – generalizações práticas – que ajudem nossa linguagem. Elas substituem as definições longas e complexas. Ainda assim, devemos ter cuidado para que tais simplificações não se transformem em um engodo semântico e não passem a prestar um desserviço a quem as use. Temo que esse seja o caso em relação aos termos “esquerda” e “direita” quando usados por libertários, os quais, espero demonstrar, não são nem de esquerda, nem de direita, segundo o uso atual desses termos.

Tanto “esquerda” quanto “direita” são termos que descrevem posições autoritárias e a liberdade não tem um relacionamento horizontal com o autoritarismo. A relação do liberalismo com o autoritarismo é vertical. Ele está acima da sujeira dos homens que escravizam homens. Mas voltemos ao começo.

Houve um tempo em que “direita” e “esquerda” eram designações apropriadas e pertinentes em relação a diferenças ideológicas. “Os primeiros esquerdistas eram um grupo de deputados recentemente eleitos para a Assembléia Nacional Constituinte no começo da Revolução Francesa em 1789. Foram rotulados “de esquerda” porque, por acaso, se sentavam do lado esquerdo da assembléia francesa.”

“Os legisladores que se sentavam do lado direito ficaram conhecidos como o Partido da Direita, ou direitistas. Os direitistas ou “reacionários” se colocavam a favor de um governo nacional altamente centralizado, de leis especiais e privilégios para sindicatos e vários outros grupos e classes, do monopólio econômico do governo em várias áreas, e da manutenção do controle governamental sobre os preços, a produção e a distribuição.” ¹

Os esquerdistas eram, na prática, ideologicamente similares àqueles que hoje identificamos como “libertários”. Os direitistas eram seus oponentes ideológicos: estatistas, intervencionistas – em suma, autoritários. “Esquerda” e “direita” na França, durante os anos de 1789-90, tinham rigidez semântica e alto grau de precisão.

Mas o termo “esquerdista” foi logo apropriado pelos autoritários jacobinos e passaram a significar o contrário de sua definição anterior. “Esquerdista” se transformou em descrição dos igualitaristas e passou a ser associado com o socialismo marxista: comunismo, socialismo, fabianismo.

E os “direitistas”? Onde se encaixavam depois da inversão semântica do termo “esquerdista”? Moscou tirou partido disso: qualquer idéia que não fosse comunista ou socialista era decretada e propagandeada como “fascista”. É por isso que qualquer ideologia que não seja comunista (de esquerda) é agora rotulada fascista (de direita).

Vamos dar uma olhada na definição de fascismo no dicionário Webster’s: “Qualquer programa que pretenda estabelecer um regime nacional centralizado e autocrático, com políticas fortemente nacionalistas, exercendo controle governamental sobre a indústria, o comércio e as finanças, censura rígida e supressão da oposição por meio da força.”

Qual seria, na verdade, a diferença entre o comunismo e o fascismo? Ambos são formas de estatismo, autoritarismo. A única diferença entre o comunismo de Stálin e o fascismo de Mussolini é um detalhe insignificante na estrutura organizacional. Mas um é de “esquerda” e outro é de “direita”.

Onde ficam os libertários no mundo de palavras criado por Moscou? O libertário está, na realidade, em oposição ao comunismo. Ainda assim, se o libertário emprega os termos “esquerda” e “direita”, estará caindo na armadilha semântica de ser um “direitista” (fascista), por não ser um “esquerdista” (comunista). Esse é um cemitério semântico para os libertários, um jogo de palavras que nega sua existência. Se aqueles que têm relações com Moscou insistirão nessa tecla, há várias razões para um libertário fugir dela.

Uma desvantagem importante do uso por parte dos libertários da terminologia direita-esquerda é a grande oportunidade para se aplicar a “teoria do meio termo”. Há vinte séculos aceita-se no ocidente a teoria aristotélica de que a posição mais razoável é aquela exatamente entre dois extremos, politicamente conhecida hoje em dia como a posição “no meio do caminho”. Agora, se os libertários usam os termos “esquerda” e “direita”, eles se declaram de extrema-direita, por estarem extremamente distantes, em suas convicções, do comunismo. Mas a palavra “direita” tem sido, com sucesso, identificada com o fascismo. Logo, cada vez mais pessoas são levadas a acreditar que a melhor posição é em algum ponto entre o comunismo e o fascismo, sendo ambos nada mais que autoritarismo.

Porém, a “teoria do meio termo” não pode ser aplicada com eficiência indiscriminadamente. Por exemplo, há certa lógica quando, ao termos de decidir entre não comermos absolutamente nada ou a gula, escolhermos o meio termo entre os dois extremos como a melhor posição. Mas, por outro lado, não há lógica nenhuma em escolhermos o meio do caminho ao decidirmos se devemos roubar mil dólares ou nada. O meio termo recomendaria roubarmos 500 dólares. Assim, o meio termo não teria mais lógica quando aplicado ao comunismo e ao fascismo (dois nomes para a mesma coisa) do que quando aplicado ao roubo de duas quantias.

O libertário não pode ter nenhuma relação com “direita” ou “esquerda” porque rejeita qualquer tipo de autoritarismo – o uso de força policial para controlar a vida criativa do homem. Para ele, comunismo, fascismo, nazismo, fabianismo, o estado de bem-estar social – enfim, todos os igualitarismos – se encaixam na definitiva, e talvez cínica, descrição de Platão, séculos antes destes sistemas coercitivos serem desenvolvidos:

“O maior de todos os princípios é que ninguém, homem ou mulher, esteja sem um líder. Nem deve o espírito de alguém ser habituado a deixá-lo fazer qualquer coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Mas tanto na guerra quanto na paz, a seu líder ele deve direcionar seus olhos e segui-lo fielmente. E mesmo nos assuntos menores ele deve se proteger sob alguma liderança. Por exemplo, ele deve se levantar, ou se mover, ou se lavar, ou se alimentar… somente se tiver recebido ordens para tal… Em poucas palavras, ele deve ensinar sua alma, através do hábito, a nunca sonhar agir independentemente, e, na verdade, a se tornar incapaz disso.”

Os libertários rejeitam esse princípio e assim, não se colocam nem à direita, nem à esquerda dos autoritários. Eles, como os espíritos humanos que libertariam, ascendem – estão acima – sobre a degradação. Sua posição, se fôssemos usar analogias direcionais, seria acima – como um vapor que se separa do esterco e sobe a uma atmosfera saúdavel. Se a idéia de extremismo for aplicada a um libertário, que seja baseada no quão extremas são suas posições ao se opor às crenças autoritárias.

Estabeleçamos os conceitos de emergir, de libertar – o qual é o próprio significado do liberalismo – e o significado da teoria do meio termo se tornará inaplicável, já que não pode haver meio do caminho entre o zero e o infinito. E é absurdo sugerir que exista.

Que termo simples os libertários deveriam aplicar para se distinguirem da definição moscovita dos “esquerdistas” e dos “direitistas”? Não consegui até agora inventar nenhum, mas até que eu consiga, devo me contentar em dizer “sou libertário”, e estar disposto a explicar a definição do termo a qualquer pessoa que procure significados ao invés de rótulos.

1. Dean Russell, The First Leftist (Irvington-on-Hudson, N.Y.: Foundation for Economic Education, 1951), p. 3.

* Publicado originalmente em 04/01/2008.

SOBRE O AUTOR
Por: Leonard Read  fundador da Foundation for Economic Education (FEE) e autor de vinte e sete livros e inúmeros ensaios. Ele foi um dos principais responsáveis pelo avivamento liberal no pós-guerra.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

HÁ 90 ANOS: O FIM DA HIPERINFLAÇÃO NA ALEMANHA

No dia 15 de novembro de 1923, medidas decisivas foram adotadas para acabar com o pesadelo da hiperinflação na República de Weimar: o Reichsbank, o banco central alemão, simplesmente parou de monetizar a dívida do governo, e um novo meio de troca, orentenmark, começou a ser emitido paralelamente ao papiermark (que, como diz o nome, era uma moeda de papel sem absolutamente nenhum lastro em ouro). 

Estas medidas foram bem-sucedidas em acabar com a hiperinflação, mas o poder de compra dopapiermark já estava totalmente arruinado. Para entender como e por que tudo isso aconteceu, é necessário analisar tudo o que ocorreu imediatamente antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Foi em 1871 que o marco se tornou a moeda oficial do Império Alemão (Deutsches Reich). Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a conversibilidade do reichsmark em ouro foi suspensa no dia 4 de agosto de 1914. Sendo assim, o reichsmark, que até então era lastreado em ouro (e que, por isso, também era chamado degoldmark), se transformou no papiermark, uma moeda de papel puramente fiduciária, sem nenhum lastro. Inicialmente, o Reich financiou suas despesas de guerra majoritariamente por meio do endividamento. A dívida pública total subiu de 5,2 bilhões de papiermark em 1914 para 105,3 bilhões em 1918.

Em 1914, a quantidade de papiermark em circulação era de 5,9 bilhões; já em 1918, era de 32,9 bilhões. De agosto de 1914 a novembro de 1918, os preços no atacado subiram 115%, o que significa que o poder de compra do papiermark caiu mais de 50%. Neste mesmo período, a taxa de câmbio do papiermark se depreciou 84% em relação ao dólar americano.

A nova República de Weimar enfrentou desafios econômicos e políticos magnânimos. Em 1920, a produção industrial havia despencado para apenas 61% do nível alcançado em 1913, e em 1923 caiu ainda mais, para 54%. Os terrenos perdidos após a promulgação do Tratado de Versalhes haviam enfraquecido consideravelmente a capacidade produtiva do Reich: o Império perdera aproximadamente 13% de suas terras e, em decorrência disso, aproximadamente 10% da população alemã viva agora fora das fronteiras. Adicionalmente, a Alemanha tinha de fazer vários pagamentos indenizatórios para os países vencedores da Primeira Guerra. Ainda mais importante, no entanto, foi o fato de que os novos e inexperientes governos democráticos da Alemanha queriam atender ao máximo possível os desejos de seus eleitores. Dado que as receitas tributárias eram insuficientes para financiar estas despesas, o Reichsbank teve de recorrer à impressora de dinheiro.

De abril de 1920 a março de 1921, a proporção de receitas tributárias em relação aos gastos totais do governo era de apenas 37%. Após isso, a situação melhorou um pouco, de modo que, em junho de 1922, os impostos chegaram a cobrir 75% dos gastos totais. Mas então a situação voltou a deteriorar. E de maneira pavorosa. Já no final de 1922, a Alemanha foi acusada de atrasar seus pagamentos indenizatórios. Para reforçar suas reivindicações, tropas belgas e francesas invadiram e ocuparam o Vale do Ruhr, o coração industrial do Reich, em janeiro de 1923. O governo alemão, então sob o comando do chanceler Wilhelm Kuno, conclamou os trabalhadores do Vale do Ruhr a resistir a toda e qualquer ordem dos invasores, prometendo que o Reich continuaria pagando seus salários. Para manter todo esse arranjo, o Reichsbank começou a imprimir ainda mais dinheiro para financiar os gastos do governo (em termos técnicos, o Reichsbank estava "monetizando as dívidas do governo"). O intuito era utilizar o dinheiro recém-criado para compensar a queda da arrecadação tributária e pagar os salários, as transferências sociais e os subsídios. 

De maio de 1923 em diante, a quantidade de papiermark começou a ficar fora de controle. Subiu de 8,610 bilhões em maio para 17,340 bilhões em abril, para 669,703 bilhões em agosto até alcançar 400 quintilhões (ou seja, 400 seguido de 18 zeros) em novembro de 1923. Os preços no atacado dispararam para níveis astronômicos, aumentando 18.000.000.000.000% (dezoito trilhões por cento) desde o final de 1919 até novembro de 1923. Para se ter uma noção deste valor, com a quantidade nominal de dinheiro necessária para se comprar um ovo em novembro de 1923 era possível comprar 500 bilhões de ovos em 1918, ao final da Primeira Guerra. Apenas em novembro de 1923, o preço do dólar em termos de papiermark subido 8,9 trilhão por cento. Em suma, o papiermark havia afundado e não comprava nem poeira.

Com o colapso da moeda, o desemprego disparou. Desde o final da Primeira Guerra, o desemprego havia se mantido em níveis consideravelmente baixos, uma vez que os governos de Weimar mantiveram a economia artificialmente aditivada por meio de vigorosos déficits e impressão de dinheiro. Ao final de 1919, a taxa de desemprego estava em 2,9%; em 1920, em 4,1%; em 1921, em 1,6%; e em 1922, em 2,8%. Com o colapso do papiermark, no entanto, a taxa de desemprego chegou a 19,1% em outubro, a 23,4% em novembro e a 28,2% em dezembro de 1923. A hiperinflação empobreceu a esmagadora maioria da população alemã, especialmente a classe média. As pessoas passaram a sofrer com a escassez de alimentos e com a falta de proteção contra o frio. O extremismo político passou a ficar em evidência e se tornou plenamente aceitável.



Alemães indo comprar pão em 1923

Para acabar com a bagunça monetária, o problema central a ser resolvido era o próprio Reichsbank. O mandato de seu presidente, Rudolf E. A. Havenstein, era vitalício, e o cidadão era literalmente irrefreável: sob o comando de Havenstein, o Reichsbank emitia quantias cada vez maiores de papiermark para manter o Reich financeiramente solvente. E então, no dia 15 de novembro de 1923, o Reichsbank foi obrigado (1) a interromper a impressão de dinheiro e a monetização da dívida do governo, e (2) a começar a emitir uma nova moeda, o rentenmark Foi decidido que, dali em diante, um trilhão de papiermark seria igual a um rentenmark. 

No dia 20 de novembro de 1923, Havenstein morreu repentinamente em decorrência de um ataque cardíaco. Naquele mesmo dia, Hjalmar Schacht, que viria a se tornar presidente do Reichsbank em dezembro, tomou medidas e estabilizou o papiermark em relação ao dólar: o Reichsbank, por meio de intervenções no mercado de câmbio, fez com que 4,2 trilhões de papiermark se tornassem igual a um dólar. E dado que um trilhão de papiermark era igual a um rentenmark, a taxa de câmbio passou a ser de 4,2 rentenmark por dólar. Esta era exatamente a taxa de câmbio vigente entre o reichsmark e o dólar antes da Primeira Guerra Mundial. O "milagre do rentenmark" marcou o fim da hiperinflação.

Como foi possível que um desastre monetário desta magnitude ocorresse em uma sociedade tão civilizada e avançada, levando à total destruição da moeda? Várias explicações já foram apresentadas. Por exemplo, já foi argumentado que os pagamentos de indenização, os crônicos déficits no balanço de pagamentos, e até mesmo a depreciação do papiermark no mercado de câmbio foram as reais causas do colapso da moeda alemã. Entretanto, essas explicações não são nada convincentes. Como explicou o grande economista alemão Hans F. Sennholz:

Todos os marcos foram impressos por alemães e emitidos por um banco central gerenciado por alemães em um governo puramente alemão. Eram partidos políticos alemães — tais como os Socialistas, o Partido Católico de Centro, e os Democratas, formando várias coalizões governamentais — os responsáveis exclusivos pelas políticas que conduziam. Mas é claro que admitir a responsabilidade por qualquer calamidade não é algo que se deve esperar de qualquer partido político.

De fato, a hiperinflação alemã foi produto dos próprios alemães; foi resultado da deliberada decisão política de se aumentar a quantidade de dinheiro na economia sem nenhuma limitação.

Quais são as lições a serem aprendidas com a hiperinflação alemã? A primeira lição é que até mesmo um banco central politicamente independente não é garantia de proteção confiável contra a destruição da moeda de papel. O Reichsbank havia se tornado politicamente independente ainda no início de 1922 — a mando das forças aliadas e em troca de um adiamento temporário nos pagamentos de indenização. Ainda assim, a cúpula do Reichsbank optou por hiperinflacionar a moeda. Vendo que o Reich estava cada vez mais dependente da impressão de dinheiro do Reichsbank para se manter solvente, a cúpula do Reichsbank optou por fornecer quantias ilimitadas de dinheiro ao governo. É claro que o apetite dos políticos de Weimar por este dinheiro fácil acabou se mostrando ilimitado.

A segunda lição é que um papel-moeda fiduciário não dura para sempre. Hjalmar Schacht, em sua biografia lançada em 1953, observou que: "A introdução do rentenmark só foi possível porque o governo e o banco central prometeram que a cédula de papel seria conversível em ouro sempre que o portador assim exigisse. Garantir a possibilidade de ser conversível em ouro deve ser o compromisso de todos os emissores de dinheiro de papel".

As palavras de Schacht contêm uma constatação econômica primordial: papel-moeda que não é lastreado por uma commodity é apenas um dinheiro político e, como tal, é um elemento que gera perturbações em um sistema de livre mercado. Os representantes da Escola Austríaca de Economia apontaram este fato ainda no século XIX.

Dinheiro de papel, produzido "do nada" e injetado na economia por meio do crédito bancário, não apenas é cronicamente inflacionário, como também gera ciclos econômicos, investimentos errados e insustentáveis, e endividamento excessivo da população. Tão logo governo e população começam a sofrer as consequências de seu alto endividamento, o crédito bancário se reduz e a economia entra em recessão. Ato contínuo, a criação de mais dinheiro passa a ser vista como uma solução política fácil e tentadora demais para ser evitada. Este é o caminho politicamente mais palatável para se tentar fugir dos problemas que foram criados justamente pela criação de dinheiro via expansão do crédito. 

Olhando para o mundo atual — no qual várias economias vêm há décadas usado papel-moeda produzido via expansão do crédito (endividamento) e no qual o endividamento está atingindo níveis incontornáveis —, os desafios correntes são, de certa forma, muito similares àqueles observados na República de Weimar há 90 anos. Tanto agora quanto naquela época, uma reforma do sistema monetário se faz urgente; e quanto mais cedo o desafio da reforma monetária for encarado, menores serão os custos deste reajuste.


[1] Ver em H. James, "Die Reichbank 1876 bis 1945," in: Fünfzig Jahre Deutsche Mark, Notenbank und Währung in Deutschland seit 1948, Deutsche Bundesbank, ed. (München: Verlag C. H. Beck, 1998), pp. 29 – 89, esp. pp. 46 – 54; C. Bresciani-Turroni, The Economics of Inflation, A Study of Currency Depreciation in Post-War Germany (Northampton: John Dickens & Co., 1968 [1931]); também F.D. Graham, Exchange, Prices, And Production in Hyper-Inflation: Germany, 1920 — 1923 (New York: Russell & Russell, 1967 [1930]).

[2] Para mais detalhes ver Bresciani-Turroni, Economics of Inflation, chap. IX, pp. 334–358.

[3] H. Schacht, 76 Jahre meines Lebens (Kindler und Schiermeyer Verlag, Bad Wörishofen, 1953), pp. 207-208.

Por: Thorsten Polleit  economista-chefe da empresa Degussa, especializada em metais precisos, e co-fundador da firma de investimentos Polleit & Riechert Investment Management LLP. Ele é professor honorário da Frankfurt School of Finance & Management.