domingo, 8 de dezembro de 2013

"A SOMBRA DE KISSINGER"


Para Obama, o foco deve se deslocar do Oriente Médio para a China, o que requer uma distensão com Teerã

Agora sabemos que o acordo nuclear não foi um raio no céu claro, mas o fruto de um ano de negociações bilaterais secretas entre os EUA e o Irã, em encontros furtivos em Mascate que contaram com a assistência logística do sultão Qaboos, de Omã. O acordo derivou de uma série de circunstâncias inesperadas, mas também de uma visão estratégica que tem a marca inconfundível da realpolitik. É, apenas, por ora, um acerto tático. Contudo, sinaliza uma brusca reacomodação das placas tectônicas da geopolítica do Oriente Médio. Daí, a fúria indiscreta de Israel e a cólera circunspecta dos sauditas.

Visão estratégica: Barack Obama prometeu engajar-se em negociações diretas com o Irã no discurso inaugural de seu primeiro mandato, em 2009. A iniciativa inscrevia-se na moldura da projetada retirada das forças americanas do Iraque e, mais amplamente, no conceito de um "giro estratégico" da política global de Washington em direção à Ásia. O enfraquecimento geral dos Estados árabes provocado pela onda de insurreições da chamada "primavera árabe" acentuou a convicção de que, na ausência de tropas americanas, a estabilidade do Oriente Médio depende de uma nova relação com o Irã. O acordo nuclear adquire sentido apenas nesse contexto.

Circunstâncias inesperadas: as negociações em Mascate ganharam impulso com a ascensão do moderado Hasan Rowhani à presidência do Irã, no início de agosto, mas quase descarrilharam semanas depois, sob o impacto do ataque químico na Síria. O advento de Rowhani e a nova disposição negociadora do Líder Supremo Ali Khamenei refletiram a eficácia das sanções internacionais articuladas pelos EUA. As palavras de Obama sobre a "linha vermelha", de 2012, foram formuladas como pretexto para circundar as pressões por uma intervenção na Síria --mas, ironicamente, arrastaram o presidente para o olho do furacão quando Bashar al-Assad ultrapassou a fronteira fatal. A decisão crítica de recuar na última hora representou um duro revés tático e feriu fundo a credibilidade americana --mas salvou o objetivo estratégico. O acordo nuclear desenhou-se naquele instante.

"Munique, Munique!", gritam os israelenses, acusando os EUA de repetirem a rendição ignominiosa de Chamberlain e Daladier diante de Hitler em 1938. É um paralelo tão previsível e fácil quanto falso. O acerto transitório com o Irã congela posições, abrindo um espaço para as negociações substanciais, mas contém o dispositivo crucial das inspeções, que faltava na peça propagandística encenada em 2010 por Ahmadinejad com a cumplicidade do turco Erdogan e de nosso Lula. Os EUA não sonham com a hipótese impossível de eliminação do programa nuclear iraniano, mas com um acordo que conserve Teerã dois passos antes da obtenção de uma bomba. Washington joga suas fichas num sistema de punições e incentivos, oferecendo ao Irã um lugar destacado nas mesas em que se decidirá o futuro da Síria e do Iraque. A sombra de Henry Kissinger, o estrategista dos governos Nixon e Ford, projeta-se sobre a diplomacia de Obama.

Numa era de retração, marcada pelo desastre no Vietnã, Kissinger afastou os EUA da tradição wilsoniana, formulando políticas ancoradas no conceito de equilíbrio de poder e operando a difícil transição americana de uma posição de hegemonia para a de liderança. Obama inclinou-se pelo intervencionismo liberal na Líbia e foi erroneamente acusado de insistir no cruzadismo neoconservador na "guerra ao terror", mas o vetor de sua política global é uma versão adaptada do realismo de Kissinger. No horizonte do presidente, o foco deve se deslocar do Oriente Médio para a China, um movimento que requer a distensão com Teerã.

"Munique!", alvoroçaram-se, por razões distintas, tanto os liberais quanto os neoconservadores diante da distensão de Nixon com Moscou e Pequim. Não era "Munique", como não é agora.Por: Demétrio Magnoli  Folha de S P

sábado, 7 de dezembro de 2013

"A AGONIA DO COLESTEROL"

Se reduzir os níveis de colesterol não confere proteção, por que insistir nas estatinas?


Nunca me convenci de que essa obsessão para abaixar o colesterol às custas de remédio aumentasse a longevidade de pessoas saudáveis.

Essa crença --que fez das estatinas o maior sucesso comercial da história da medicina-- tomou conta da cardiologia a partir de dois estudos observacionais: Seven Cities e Framingham, iniciados nos anos 1950.

Considerados tendenciosos por vários especialistas, o Seven Cities pretendeu demonstrar que os ataques cardíacos estariam ligados ao consumo de gordura animal, enquanto o Framingham concluiu que eles guardariam relação direta com o colesterol.

A partir dos anos 1980, o aparecimento das estatinas (drogas que reduzem os níveis de colesterol) abafou as vozes discordantes, e a classe médica foi tomada por um furor anticolesterol que contagiou a população. Hoje, todos se preocupam com os alimentos gordurosos e tratam com intimidade o "bom" (HDL) e o "mau" colesterol (LDL).

As diretrizes americanas publicadas em 2001 recomendavam manter o LDL abaixo de cem a qualquer preço. Ainda que fosse preciso quadruplicar a dose de estatina ou combiná-la com outras drogas, sem nenhuma evidência científica que justificasse tal conduta.

Apenas nos Estados Unidos, esse alvo absolutamente arbitrário fez o número de usuários de estatinas saltar de 13 milhões para 36 milhões. Nenhum estudo posterior, patrocinado ou não pela indústria, conseguiu demonstrar que essa estratégia fez cair a mortalidade por doença cardiovascular.

Cardiologistas radicais foram mais longe: o LDL deveria ser mantido abaixo de 70, alvo inacessível a mortais como você e eu. Seríamos tantos os candidatos ao tratamento, que sairia mais barato acrescentar estatina ao suprimento de água domiciliar, conforme sugeriu um eminente professor americano.

Pois bem. Depois de cinco anos de análises dos estudos mais recentes, a American Heart Association e a American College of Cardiology, entidades sem fins lucrativos, mas que recebem auxílios generosos da indústria farmacêutica, atualizaram as diretrizes de 2001.

Pasme, leitor de inteligência mediana como eu. Segundo elas, os níveis de colesterol não interessam mais.

Portanto, se seu LDL é alto não fique aflito para reduzi-lo: o risco de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral não será modificado. Em português mais claro, esqueça tudo o que foi dito nos últimos 30 anos.

A indústria não sofrerá prejuízos, no entanto: as estatinas devem até ampliar sua participação no mercado. Agora serão prescritas para a multidão daqueles com mais de 7,5% de chance de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral nos dez anos seguintes, risco calculado a partir de uma fórmula nova que já recebe críticas dos especialistas.

Se reduzir os níveis de colesterol não confere proteção, por que insistir nas estatinas? Porque elas têm ações anti-inflamatórias e estabilizadoras das placas de aterosclerose, que podem dificultar o desprendimento de coágulos capazes de obstruir artérias menores.

O argumento é consistente, mas qual o custo-benefício?

Recém-publicado no "British Medical Journal", um artigo baseado nos mesmos estudos avaliados pelas diretrizes mostrou que naqueles com menos de 20% de risco em dez anos as estatinas não reduzem o número de mortes nem de eventos mais graves. Nesse grupo seria necessário tratar 140 pessoas para evitar um caso de infarto do miocárdio ou de derrame cerebral não fatais.

Ou seja, 139 tomarão inutilmente medicamentos caros que em até 20% dos casos podem provocar dores musculares, problemas gastrointestinais, distúrbios de sono e de memória e disfunção erétil.

A indicação de estatina no diabetes e para quem já sofreu ataque cardíaco, por enquanto, resiste às críticas.

Se você, leitor com boa saúde, toma remédio para o colesterol, converse com seu médico, mas esteja certo de que ele conhece a literatura e leu com espírito crítico as 32 páginas das novas diretrizes citadas nesta coluna.

Preste atenção: mais de 80% dos ataques cardíacos ocorrem por conta do cigarro, vida sedentária, obesidade, pressão alta e diabetes. Imaginar ser possível evitá-los sentado na poltrona, às custas de uma pílula para abaixar o colesterol, é pensamento mágico. 
Por: Drauzio Varella Folha de SP

PUXA-SACOS DE LADRÕES

No Brasil, não há presos políticos, mas políticos presos. A diferença entre uma coisa e outra é a que existe entre a ditadura cubana, que o governo petista financia, e a democracia, que o petismo difama. Se, no entanto, houvesse, a carcereira seria Dilma Rousseff. Ela pode fazer o STF sair com a toga entre as pernas. Basta evocar o inciso 12 do artigo 84 da Constituição: "Compete privativamente ao presidente da República (...) conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei". Também vale para "presidentas". 


Paulo Vannuchi, um devoto da democracia à moda Carlos Marighella, comparou a condenação de José Dirceu à extradição de Olga Benário. É? Foi o STF que autorizou o envio para a Alemanha nazista de uma judia comunista. O fascistoide Getúlio Vargas, hoje herói das esquerdas, poderia ter impedido o ato obsceno. Deu de ombros. Que Dilma não cometa o mesmo erro e liberte a súcia de heróis. Ironia não tem nota de rodapé --ou vira alfafa. 

Está em curso um processo inédito de satanização do Judiciário. A sanha difamatória, na semana em que se comemora o Dia da Consciência Negra, não poupa nem a cor da pele de Joaquim Barbosa. Racistas virtuosos acham que ele se comporta como um "negro de alma branca". Lula lhe teria feito um favor, e ele não beija a mão de nhonhô... 

Protestar contra os três dias de regime fechado para José Genoino é do jogo. Intimidar o Judiciário é delinquência política. A doença do petista é real; a construção do mártir é uma farsa. No dia da prisão, ele recusou exame médico preventivo no IML. Era parte da pantomima do falso herói trágico. Barbosa não cometeu uma só ilegalidade. A gritaria é fruto da máquina de propaganda do PT, que se aproveita da ignorância específica de jornalistas. Não são obrigados a saber tudo; o problema, em certos casos, é a imodéstia... 

Um dos bons fundamentos do cristianismo é amar o pecador, não o pecado. Fiel à tradição das esquerdas, o PT ama é o pecado mesmo. O pecador é só o executor da tarefa em nome da causa. Leiam a peça "As Mãos Sujas", de Sartre, escrita antes de o autor se tornar um comunista babão. É esquemática, mas vai ao cerne do surrealismo socialista. 

Alguns de nossos cronistas precisam ler. Outros precisam ler Padre Vieira. No "Sermão do Bom Ladrão", ele cita a descompostura que Alexandre Magno passou num pirata. O homem responde ao Lula da Macedônia: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?" Vieira emenda: "Assim é. (...) o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres." 

Na quarta, reportagem de Flávia Foreque, no site da Folha, foi ao ponto. Um grupo de deputados do PT visitou os varões de Plutarco na Papuda. Parentes de presos sem pedigree ideológico começaram a xingar os petistas: "Puxa-saco de ladrões!". A deputada Marina Sant'Anna (PT-GO) quis dialogar. Sem sucesso. A mulher de um dos piratas resumiu: "Qual é a diferença [entre presos do mensalão e os demais]? Só porque tem nível superior, porque roubou do povo?" Vieira via diferença, sim. Os bacanas são mais covardes. 

Indulto já, presidente! Até porque, entrando no 12º ano de governo e com mensaleiros em cana, o PT descobriu a precariedade das prisões. Este ano vai terminar com uma queda de 34,2% no valor destinado ao Plano Nacional de Apoio ao Sistema Prisional: R$ 238 milhões, contra R$ 361,9 milhões em 2012. Nas cadeias, só havia piratas "pobres de tão pretos e pretos de tão pobres". Agora há os Alexandres vermelhos, mas não de vergonha. 

Por: Reinaldo Azevedo Folha de SP twitter.com/reinaldoazevedo

"SINAIS ALARMANTES"

Finalmente se fez justiça no caso do mensalão. Escrevo sem júbilo: é triste ver na cadeia gente que em outras épocas lutou com desprendimento. Eles estão presos ao lado de outros que se dedicaram a encher os bolsos ou a pagar suas campanhas à custa do dinheiro público. Mais melancólico ainda é ver pessoas que outrora se jogavam por ideais ─ mesmo que controversos ─ erguerem os punhos como se vivessem uma situação revolucionária, no mesmo instante em que juram fidelidade à Constituição. Onde está a revolução? Gesticulam como se fossem Lenines que receberam dinheiro sujo, mas o usaram para construir a “nova sociedade”. Nada disso: apenas ajudaram a cimentar um bloco de forças que vive da mercantilização da política e do uso do Estado para se perpetuar no poder. De pouco serve a encenação farsesca, a não ser para confortar quem a faz e enganar seus seguidores mais crédulos.


Basta de tanto engodo. A condenação pelos crimes do mensalão deu-se em plena vigência do Estado de Direito, num momento em que o Executivo é exercido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), cujo governo indicou a maioria dos ministros do Supremo. Não houve desrespeito às garantias legais dos réus e ao devido processo legal. Então, por que a encenação? O significado é claro: eleições à vista. É preciso mentir, autoenganar-se e repetir o mantra. Não por acaso, a direção do PT amplifica a encenação e Lula diz que a melhor resposta à condenação dos mensaleiros é reeleger Dilma Rousseff… Tem sido sempre assim, desde a apropriação das políticas de proteção social até a ideia esdrúxula de que a estabilização da economia se deveu ao governo do PT. Esqueceram as palavras iradas que disseram contra o que hoje gabam e as múltiplas ações que moveram no Supremo para derrubar as medidas saneadoras. O que conta é a manutenção do poder.

Em toada semelhante, o mago do ilusionismo fez coro. Aliás, neste caso, quem sabe, um lapso verbal expressou sinceridade. “Estamos juntos”, disse Lula. Assumiu meio de raspão sua fatia de responsabilidade, ao menos em relação a companheiros a quem deve muito. E ao país, o que dizer?

Reitero, escrevo tudo isso com melancolia, não só porque não me apraz ver gente na cadeia, embora reconheça a legalidade e a necessidade da decisão, mas principalmente porque tanto as ações que levaram a tão infeliz desfecho como a cortina de mentiras que alimenta a aura de heroicidade fazem parte de amplo processo de alienação que envolve a sociedade brasileira. São muitos os responsáveis por ela, não só os petistas. Poucos têm tido a compreensão do alcance destruidor dos procedimentos que permitem reproduzir o bloco de poder hegemônico; são menos numerosos ainda os que têm tido a coragem de gritar contra essas práticas. É enorme o arco de alianças políticas no Congresso cujos membros se beneficiam por pertencerem à “base aliada” de apoio ao governo. Calam-se diante do mensalão e das demais transgressões, como se o “hegemonismo petista” que os mantém fosse compatível com a democracia. Que dizer, então, da parte da elite empresarial que se ceva dos empréstimos públicos e emudece diante dos malfeitos do petismo e de seus acólitos? Ou da outrora combativa liderança sindical, hoje acomodada nas benesses do poder?

Nada há de novo no que escrevo. Muitos sabem que o rei está nu e poucos bradam. Daí a descrença sobre a elite política reinante na opinião pública mais esclarecida. Quando alguém dá o nome aos bois, como, no caso, o ministro Joaquim Barbosa, que estruturou o processo e desnudou a corrupção, teme-se que, ao deixar a presidência do STF, a onda moralizante dê marcha à ré. É evidente, pois, a descrença nas instituições. A tal ponto que se crê mais nas pessoas, sem perceber que por esse caminho voltaremos aos salvadores da Pátria. São sinais alarmantes.

Os seguidores do lulopetismo, por serem crédulos, talvez sejam menos responsáveis pela situação a que chegamos do que os cínicos, os medrosos, os oportunistas, as elites interesseiras que fingem não ver o que está à vista de todos. Que dizer, então, das práticas políticas? Não dá mais! Estamos a ver as manobras preparatórias para mais uma campanha eleitoral sob o signo do embuste. A candidata oficial, pela posição que ocupa, tem cada ato multiplicado pelos meios de comunicação. Como o exercício do poder se confundiu, na prática, com a campanha eleitoral, entramos já em período de disputa. Disputa desigual, na qual só um lado fala e as oposições, mesmo que berrem, não encontram eco. E sejamos francos: estamos berrando pouco.

É preciso dizer com coragem, simplicidade e de modo direto, como fizeram alguns ministros do Supremo, que a democracia não se compagina com a corrupção nem com as distorções que levam ao favorecimento dos amigos. Não estamos diante de um quadro eleitoral normal. A hegemonia de um partido que não consegue deslindar-se de crenças salvacionistas e autoritárias, o acovardamento de outros e a impotência das oposições estão permitindo a montagem de um sistema de poder que, se duradouro, acarretará riscos de regressão irreversível. Escudado nos cofres públicos, o governo do PT abusa do crédito fácil que agrada não só aos consumidores, mas, em volume muito maior, aos audaciosos que montam suas estratégias empresariais nas facilidades dadas aos amigos do rei. A infiltração dos órgãos de Estado pela militância ávida e por oportunistas que querem beneficiar-se do Estado distorce as práticas republicanas.

Tudo isso é arquissabido. Falta dar um basta aos desmandos, processo que, numa democracia, só tem um caminho: as urnas. É preciso desfazer na consciência popular, com sinceridade e clareza, o manto de ilusões com que o lulopetismo vendeu seu peixe. Com a palavra as oposições e quem mais tenha consciência dos perigos que corremos.

Por: Fernando Henriue Cardoso O Estadão

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

PERDIDO

O deficit externo brasileiro atingiu quase US$ 68 bilhões de janeiro a outubro deste ano, US$ 28 bilhões acima do registrado no mesmo período do ano passado, caminhando para ultrapassar com folga US$ 80 bilhões (pouco menos que 4% do PIB) neste ano, bem acima da previsão mais recente do BC, que ainda sugere um número na casa dos US$ 75 bilhões.


A maior parte desse aumento reflete a queda abrupta do saldo comercial, que passou de US$ 17,4 bilhões positivos nos dez primeiros meses do ano passado para US$ 1,8 bilhão negativo em 2013.

É, como sempre, difícil apontar uma única causa por trás do fenômeno. Vários fatores contribuíram para o resultado, da queda dos preços de commodities à contabilização tardia das importações de petróleo realizadas no ano passado, passando pela continuidade de incentivos à demanda interna, mesmo em face de indicações cada vez mais claras de que a economia opera muito mais próxima à sua capacidade máxima do que supõe a vã imaginação dos nossos gestores de política econômica.

Os dados, porém, sugerem que a piora dos preços externos desempenhou papel de menor peso na redução do saldo comercial.

Estimo que, caso os preços dos produtos exportados tivessem se mantido inalterados, as exportações aumentariam pouco mais de US$ 3 bilhões entre janeiro e setembro, ao invés de cair US$ 3 bilhões, como de fato ocorreu, uma diferença de US$ 6 bilhões. Por outro lado, sob as mesmas condições, as importações cresceriam US$ 17 bilhões no ano, cerca de US$ 2,5 bilhões a mais do que o efetivamente observado.

Dois problemas, contudo, complicam os cálculos. Um é a contabilização de importações de petróleo realizadas no ano passado, mas registradas apenas em 2013. Caso todo o aumento observado se deves- se a isso, haveria uma superestimação das importações da ordem de US$ 5 bilhões até setembro.A diferença de preços, portanto, explica a queda de US$ 3,5 bilhões do saldo até setembro, um valor nada desprezível, mas bem menor que a redução de US$ 17 bilhões observada na balança comercial do período.

Por outro lado, a Petrobras realizou exportações fictas de plataformas de exploração de petróleo (foram vendidas e alugadas de volta) de cerca de US$ 3 bilhões no mesmo período, de forma que o resultado líquido das operações extraordinárias fica ao redor de US$ 2 bilhões.

Há, portanto, uma redução da ordem de US$ 12 bilhões no saldo comercial que não pode ser atribuída nem à alteração de preços nem a fatores pontuais tais quais os mencionados acima. Resta, assim, analisar o descompasso entre demanda e oferta domésticas.

Como tenho insistido aqui, quando a produção, principalmente de manufaturados, sofre constrangimentos à sua expansão, seja por força do encarecimento da mão de obra, seja pelos gargalos de infraestrutura, a tendência é que as importações cresçam à frente das exportações para atender a demanda interna em expansão. Já nos setores em que as importações não têm papel relevante a desempenhar, são os preços que reagem, o que explica, por exemplo, a elevada inflação de serviços.

Isso resulta, em larga margem, da política deliberada de aumento da demanda doméstica por meio do gasto público, incluindo a expansão do crédito oficial. O descontrole fiscal está, portanto, na raiz dos dois desequilíbrios observados no país: a inflação alta e o elevado (e crescente) deficit externo.

A contabilidade criativa pode mostrar o que o governo quiser, mas não muda a natureza do fenômeno. Da mesma forma, de nada serve o governo comparar seus números (criativos) aos de outros países. Lá o problema é tipicamente insuficiência de demanda interna; aqui sofremos com gargalos de oferta.

Enquanto a natureza distinta do problema não for compreendida, continuaremos à busca de desculpas, mas sem uma ideia clara de como tratar os desequilíbrios visíveis da economia brasileira. Por: Alexandre Schwartsman

Fonte: Folha de S. Paulo, 27/11/2013

O DESEJO DE "REDISTRIBUIR RIQUEZA" É UMA FANTASIA

Alguns temas abordados por Ludwig von Mises ainda em suas primeiras obras, há quase 100 anos, se tornaram ainda mais intelectualmente instigantes hoje do que eram naquela época, quando ainda estavam começando a ser discutidos.

Um desses temas é a questão da redistribuição de riqueza. Mises, adepto do individualismo metodológico, sempre iniciava suas análises olhando para o indivíduo, e não para amplos agregados econômicos. Na questão da redistribuição de renda, Mises diferenciou os indivíduos que têm bens daqueles que não têm. Em específico, ele faz uma distinção entre bens de capital e bens de consumo. 

Bens de capital são os fatores de produção; são os bens que produzem outros bens e que também auxiliam os seres humanos em suas tarefas e, consequentemente, tornam o trabalho humano mais produtivo. Já os bens de consumo, como o próprio nome diz, são todos os itens para consumo final — como alimentos, roupas, cadeiras, televisões —destinados a satisfazer as necessidades humanas.

Bens de consumo beneficiam amplamente apenas uma pessoa de cada vez. Um indivíduo usufrui os benefícios trazidos por uma determinada camiseta apenas enquanto ele a está vestindo. Bens de capital — o maquinário que produz as camisetas — geram benefícios para uma enxurrada de consumidores de uma só vez.

Por que, então, ainda há essa fixação marxista em relação ao, por exemplo, gerenciamento estatal de empresas geradoras de energia elétrica, quando se sabe que seus consumidores têm apenas eletricidade? Mises observou que um consumidor não precisa ser o dono das instalações para ter eletricidade.

Tendo isso em mente, como o sentido convencional de distribuição de riqueza mudaria se excluíssemos os bens de capital dessa questão? Por exemplo, nos EUA, 1% população é dona de 38% da riqueza, dados de 2001. (No Brasil, 1% é dona de 13.3%). Como ficaria essa distribuição de riqueza se os bens de capital forem excluídos? O mais provável atualmente é que 95% da riqueza do 1% mais rico da população esteja atualmente ligada aos direitos de propriedade sobre esses bens de capital. Logo, a distribuição de riqueza entre os consumidores é muito mais acirrada do que os acadêmicos imaginam. Todos têm acesso a água corrente, telefones, comida e televisão. É isso que interessa para um padrão de vida.

Mises nos ajuda a perceber que a ideia de obter igualdade pela redistribuição de riqueza nada mais é do que fantasia. Você não pode redistribuir bens de consumo; como poderiam milhões de mulheres vestir o mesmo casaco de pele, as mesmas jóias e regalias, ou os mesmos sapatos que estão no armário de Imelda Marcos? Como poderiam milhões de homens ficar dentro da banheira de hidromassagem de Hugh Hefner? Um pedaço de pão não pode ser repartido infinitamente por várias bocas.

Da mesma maneira, você não pode fatiar um fogão em pedaços e dividir estas fatias igualitariamente entre as pessoas — e ainda esperar que o fogão funcione. Você tem de respeitar a integridade de todos os bens de capital para que eles funcionem. Uma central elétrica teria de ser triturada em átomos e repartida em pequenos envelopes para se obter uma distribuição igualitária.

Por sua natureza, bens de capital também não podem ser redistribuídos entre as pessoas de uma forma que resulte em igualdade e maior riqueza. A redistribuição de riqueza, se levada a sério, significa necessariamente acompleta e absoluta destruição de riqueza. Socialismo é niilismo, nada mais do que a destruição de valores.

Os comunistas nunca obtiveram êxito em distribuir riqueza igualitariamente. Isso é inerente à natureza da riqueza. Como a riqueza não pode ser subdivida entre as massas (somente a propriedade da riqueza pode), eles confiscam a riqueza alheia para benefício da própria camarilha. Todo o resto fica à míngua, morrendo de fome. É assim que a integridade da riqueza faz impor a realidade quando confiscada. Os socialistas não brigam para ser donos do ar; eles brigam para tomar o controle desta estação de rádio, daquela impressora, deste automóvel, oudaquele pedaço de carne estragada. A redistribuição de riqueza é criminalidade pura e ela exige um grau ainda maior de criminalidade após o confisco, como lobos brigando por uma carcaça ou rufiões eliminando seus cúmplices.

E, ainda assim, centenas de milhões de pessoas continuam achando que a redistribuição de riqueza irá gerar ganhos pessoais. Quando um político difunde por seu rebanho a ideia de "espalhar a riqueza para todos", o que os eleitores imaginam? No mundo perfeito, eles entenderiam que a riqueza deixaria de existir, mesmo que ela fosse confiscada e meticulosamente redistribuída — e caso realmente entendessem assim, o político será devidamente ridicularizado ainda em seus discursos. A diferença entre um político populista ser venerado e ser chutado para fora do palanque em que discursa está no eleitorado ser educado por essa pequena fatia de racionalidade misesiana.

Mises abordou a distinção entre bens de capital e bens de consumo no debate sobre redistribuição; essa percepção é extremamente valiosa no atual mundo em que vivemos. O debate sobre o cálculo econômico no mundo socialista já acabou, mas a noção de que a riqueza pode ser redistribuída e ainda continuar existindo não é amplamente reconhecida como uma contradição. Espalhar coercivamente a riqueza para todos gera apenas a sua destruição.

Redistribuição de riqueza é uma expressão contraditória. Esse fato reduz em cinzas o ímpeto do estado assistencialista. O estado de bem-estar social é um rematado destruidor de riqueza.

O capitalismo resulta em ampla propriedade dos meios de produção porque a propriedade privada é a sua característica distintiva. Somente em uma economia capitalista, em que os direitos de propriedade podem ser subdivididos em ações e livremente comercializados, pode uma ampla propriedade sobre os bens de capital manter inalterado seu caráter de riqueza. Nesse arranjo, as pessoas voluntariamente vendem sua propriedade; os novos proprietários adquirem os direitos de propriedade sobre os bens de capital. Há um genuíno mecanismo capitalista permitindo que isso aconteça. Quase todo mundo pode comprar ações dos meios de produção sob o capitalismo. Ninguém tem de morrer. Nenhum sangue é derramado.

Onde no socialismo pode você, ó nobre camponês, reivindicar sua fatia das escolas públicas, dos Correios ou das prisões? Não existe um mecanismo similar que permita a você ser dono da siderúrgica, da montadora, da mina, dos bancos e dos parques que foram todos estatizados — e não sobra muito da mina ou da siderúrgica após elas terem sido estatizadas.

Acabe com os direitos de propriedade privada e toda a riqueza desaparece. Voltamos à era da pilhagem de todos sobre todos e da privação mutuamente garantida. É isso que os governos e todos os que odeiam o mercado realmente querem. Um slogan honesto para um sistema de saúde pública universal seria "uma nação, a mesma seringa".

Os redistributivistas não acreditam na fantasia de que redistribuir riqueza traz igualdade de resultados. Eles apenas querem que você acredite nisso.

Por: Hans F. Sennholz (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos. Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou. Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997. Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.

Tradução de Leandro Roque

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A BUSCA PELO LUCRO LEVOU AO FIM DA ESCRAVIDÃO

Há quem jure que a busca pelo lucro é algo cruel, abusivo, ultrajante, imoral e maléfico. É fato que há pessoas desonestas que recorrem a métodos inescrupulosos para obter lucros em seus empreendimentos, mas basear-se em tais pessoas para fazer uma condenação automática do lucro é uma postura ignorante.

A verdade é que foi a busca pelo lucro o que aniquilou aquela milenar abominação que foi a escravidão humana. Eliminar a capacidade das pessoas de buscar o lucro significaria reimplantar a escravidão no mundo. E creio que nenhum de nós quer isso de volta.

A escravidão era um sistema econômico

O que até hoje ainda não é corretamente entendido é que a escravidão era a base do sistema econômico vigente no mundo antigo — como na Grécia e em Roma.

Todo o sistema escravocrata se baseava praticamente em um só objetivo: obter excedentes. É claro que os defensores da escravidão sempre recorriam a justificativas criativas para defender o sistema escravocrata, mas, no final, tudo se resumia a obter excedentes. Pode-se dizer, portanto, que a escravidão era uma espécie depoupança coercivamente impingida.

Um indivíduo rudimentar e despreparado irá, caso seja abandonado à própria sorte, gastar praticamente tudo o que ele ganha. Se ele conseguir auferir algum excedente, ele provavelmente irá gastar este excedente em luxos, prazeres, frivolidades ou em coisas piores. Enquanto ele não desenvolver um caráter mais forte, enquanto ele não adquirir uma personalidade mais estável, sobrará muito pouco de seu excedente para ser utilizado em outras coisas.

Um escravo, por outro lado, jamais aufere rendimentos e, consequentemente, não tem como gastá-los. Todo o excedente produzido por um escravo é transferido para seu senhor. Foi exatamente este tipo de arranjo gerador de excedentes o que tornou Roma um império rico.

Mas então surgiu a Europa cristã. Antes do advento do cristianismo, não se encontra uma única cultura antiga que proibia a prática da escravidão; a escravidão era vista como algo absolutamente normal. Sendo assim, a Europa abolir o sistema escravocrata que havia herdado de Roma foi uma mudança monumental.

Os europeus substituíram a escravidão — de maneira lenta e por causa de seus princípios cristãos, e não em decorrência de algum plano consciente e deliberado — adotando as seguintes posturas:

1. Desenvolvendo o hábito da frugalidade e da poupança em nível individual. Isso requereu uma total mudança de postura e um enfoque vigoroso em virtudes como a temperança (autocontrole) e a paciência.

2. Substituindo o arranjo de "produção forçada de excedentes" pelo lucro. Para isso, os europeus tiveram de recorrer à criatividade para alterar totalmente a natureza de suas atividades comerciais. Eles tiveram de inovar, inventar e se adaptar para conseguir mais excedentes por meio do comércio.

Sob um novo sistema que acabou sendo rotulado de capitalismo, a poupança e a criatividade se tornaram os novos geradores de excedentes, e nenhum ser humano teve de ser escravizado.

Um mundo sem lucros

Por outro lado, temos exemplos bem recentes do que acontece quando uma cultura proíbe o lucro. Pense em tudo o que ocorreu em paraísos socialistas como a URSS de Stalin, a China de Mao, e as nações escravizadas do Leste Europeu, e no que ainda ocorre na Coréia do Norte e em Cuba.

São exemplos lúgubres que ilustram exatamente o que ocorre quando toda uma população é escravizada pelo partido dominante. Nestes sistemas, o indivíduo é obrigado a trabalhar e a produzir, mas é proibido de usufruir os frutos e os rendimentos de seu próprio trabalho, tendo até mesmo o seu consumo restringido pelo governo.

O lucro fornece incentivos para se trabalhar e empreender. Quando ele é abolido, não apenas o ato de trabalhar e de empreender perde sua função, como também aqueles que querem prosperar não têm como fazê-lo de maneira honesta. E isso leva ou ao desespero ou à criminalidade.

O lucro é obtido por meio de trocas comerciais inovadoras e recompensadoras. Se o lucro é eliminado, tem-se a escravidão. O formato dessa escravidão pode ser variável, mas será uma escravidão de algum tipo.

Com efeito, este resultado será o mesmo não importa se a eliminação do lucro ocorrer por meio do comunismo (em que o lucro é punido com a pena capital) ou do fascismo (em que todo o lucro é direcionado para os amigos do regime).

A questão principal é o excedente produzido:
Se o excedente pode ser produzido e acumulado pelo cidadão comum por meios honestos, a escravidão pode ser eliminada.
Se os cidadãos honestos não tiverem a permissão de produzir e de manter seus próprios excedentes (sendo seus excedentes confiscados ou pelo estado ou pelos parceiros do estado), o resultado será alguma forma de escravidão.

O lucro é simplesmente uma ferramenta — uma maneira de gerar excedentes sem a coerção imposta pela escravidão.

O que nos leva à conclusão definitiva: é impossível se livrar simultaneamente da escravidão e do sistema de lucros. Você pode eliminar um dos dois, mas sempre que eliminar um, ficará inevitavelmente com o outro.

O lucro se baseia nas virtudes

Para se viver em uma civilização que prospera por meio do lucro, é necessário que o ser humano saiba domar todos aqueles seus instintos mais primitivos — algo típico dos animais —, como a inveja. É necessário saber desenvolver o autocontrole, a paciência, a temperança e, principalmente, saber se concentrar em algo maior do que meras possessões materiais — afinal, é exatamente o materialismo o motor da inveja e do igualitarismo.

É vergonhoso que o Ocidente tenha, ao longo dos últimos séculos, se afastado de suas virtudes tradicionais, e passado a considerá-las vícios burgueses ou meras superstições. Se algum dia finalmente perdermos todas as nossas virtudes, o sistema de lucros perderá sua proteção e não mais será visto como um motor da prosperidade, e a antiga e extinta prática da escravidão irá voltar.

Nossas ações têm consequências.

Por: Paul Rosenberg  presidente da Cryptohippie USA, uma empresa pioneira em fornecer tecnologias que protegem a privacidade na internet. Ele é o editor FreemansPerspective.com, um site dedicado à liberdade econômica, à independência pessoal e à privacidade individual.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A DIGNIDADE SE DÁ POR MEIO DA PRODUÇÃO

Então você é um sujeito decente e de bom coração, que não fala mal dos outros pelas costas nem falta com respeito aos mais velhos. Logo, o mundo lhe deve uma vida de prosperidade e realizações, certo?

Aqui vai um segredo. Independente do que você pensa que a sociedade lhe deve pelo fato de você ser gente boa, a verdade é que o sustento da sua vida vai depender da sua capacidade de produzir ou de aproveitar os frutos da produção de alguém.

Seja sincero, quantas vezes você sustentou pessoas desconhecidas pelo mero fato de elas serem gente boa (não gente boa com você, mas gente boa assim em abstrato)?

"A sociedade está cheia de pessoas que precisam de coisas," escancara essa citação improvável de David Wong,

Elas precisam de casas para morar, comida para se alimentar, elas precisam de entretenimento e de relações sexuais satisfatórias… Ou você começa a atender essas necessidades aprendendo algum tipo específico de habilidade, ou o mundo irá lhe rejeitar, não importa o quão gentil, bondoso e educado você seja. Você acabará pobre, solitário, e jogado no frio.

Produzir é criar valor a partir da combinação e realocação de recursos escassos em bens ou serviços. Como regra, toda pessoa depende da urgência da produção para que seja possível desfrutar do consumo essencial à vida e à felicidade humana. O mais relevante fator de produção é o trabalho, por sua utilidade não ser específica a determinado fim. "O trabalho humano é ao mesmo tempo apropriado e indispensável", dizia Ludwig von Mises, "para a realização de todos os modos de produção e processos imagináveis."

Dizem que o trabalho dignifica o homem. Mas não é qualquer trabalho. O trabalho de um ladrão pode envolver muito esforço e técnica. Mas subtrair valor de uma vítima não enobrece o criminoso. É o trabalho produtivo que dignifica o produtor.

Transferências de renda podem aliviar a miséria, mas não têm sido capazes de fazer com que seus recipientes sejam criadores de valor. Ninguém quer ser um recipiente onde se jogam esmolas. Não queremos ser um passivo para a sociedade. Queremos ter consciência de que nosso trabalho está gerando valor, de que nossa sociedade seria um lugar mais pobre sem a nossa presença. Quando produzimos, tornamo-nos um ativo social. Tornamo-nos dignos.

A miséria envergonha. Calouros universitários acham bonitinho pintar a cara e pedir trocado no sinal. Mas pessoas realmente pobres sentem vergonha ao pedir esmola. Depender de caridade coloca o pedinte numa posição inferior a quem se pede.

Há quem ache que a solução é exaltar a pobreza, tratar a pobreza com respeito, dignidade e fotografias do Sebastião Salgado. Mas não devemos dignificar a pobreza (até porque não resolve, como revela essa matéria). Devemos dignificar o pobre. Devemos exigir reformas políticas que diminuam o custo do trabalho, permitindo que os pobres produzam mais do que consomem, que sejam ativos sociais.

Há muito chão a percorrer. Segundo relatório da FGV, só os obstáculos da legislação trabalhista brasileira custam de 17% a 48% do salário do trabalhador.

Ao incluir [itens como gastos com treinamento e capacitação e despesas gerenciais e administrativas] o gasto total com um trabalhador fica aproximadamente 183% maior do que o salário em carteira em um contrato de trabalho que dure 12 meses.

Para dificultar ainda mais a produtividade do pobre,

O atual modelo de acesso ao FGTS com multa de 40%, além do aviso prévio indenizado, o seguro-desemprego e a possibilidade de manter-se um tempo trabalhando na informalidade, os trabalhadores têm incentivos em manter alta rotatividade entre empregos, criando menos investimentos em qualificação e afetando negativamente a produtividade total da economia.

Se fosse possível abolir a pobreza involuntária por decreto, eu assinaria esse decreto. Mas a pobreza não pode ser revogada com uma assinatura. Ela precisa ser superada. O melhor que o governo pode fazer é preparar um ambiente em que as forças produtivas dos indivíduos possam atuar, que as barreiras para o emprego sejam diminuídas, que a abertura de empresas seja facilitada e, não podemos esquecer, que a propriedade que o pobre produziu seja dele.

Sempre haverá os que são improdutivos involuntariamente e a esses devemos direcionar nossa compaixão e caridade. Mas se tratarmos o sujeito que se recusa a produzir da mesma forma que tratamos o que acorda cedo para suar a camisa, estaremos diminuindo o valor do suor, do esforço, da produção.

O ócio empobrece. A esmola (caridosa ou coercitiva) ameniza a pobreza. Mas só a produtividade verdadeiramente enriquece e dignifica.

Por: Diogo Costa  presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York. Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com

OS CINCO PILARES DA LIBERDADE ECONÔMICA

O grande debate entre capitalismo e socialismo sofre de uma enorme falta de clareza a respeito de suas respectivas definições. É imperativo entender que há uma diferença intransponível entre "capitalismo genuíno" e "capitalismo corporativo", ou, como dizem, capitalismo de compadres. 

O que exatamente você entende por 'capitalismo'?

Diariamente, por exemplo, lemos sobre como a bagunça econômica na Europa representa uma "crise do capitalismo". Oi? Já faz mais de cem anos que os governos europeus não mais deixam suas economias crescerem por conta própria, sem coagi-las com regulamentações, sem tributar espoliativamente o público, sem inundar o sistema financeiro com dinheiro falso criado do nada, sem cartelizar o sistema produtivo, beneficiando os amigos do regime, sem criar inúmeros benefícios assistencialistas, sem financiar colossais programas de obras públicas e por aí vai.

Alguns defensores da liberdade de mercado acreditam que o termo "capitalismo" deveria ser descartado permanentemente porque gera confusão. As pessoas podem pensar que você preconiza o uso do estado para defender o capital contra o trabalho, o uso de políticas públicas para defender importantes empresários contra os consumidores ou a imposição de prioridades políticas que favoreçam os negócios à custa do trabalho.

Se um termo explica uma ideia com grande acurácia, ótimo. Mas se ele causa confusão, então tem de ser alterado. A linguagem é algo que está em constante evolução. Nenhum arranjo específico de letras pode embutir em si um significado imutável. E o que está em jogo neste debate sobre a liberdade de mercado (ou o capitalismo ou o laissez-faire ou o livre mercado) é um conteúdo de profunda importância.

É com o conteúdo, e não com as palavras, que devemos nos importar. Não é exagero algum dizer que o futuro da civilização, o qual está cada vez mais periclitante, depende disso.

A seguir, cinco elementos essenciais a esta ideia de liberdade de mercado, ou seja lá como você queira chamar este arranjo. Trata-se de meu breve resumo sobre a visão liberal clássica a respeito da sociedade livre e de seu funcionamento, visão esta que não se resume apenas à economia, mas sim a tudo de que depende nossa vida.

Vontade 

Mercados se resumem ao exercício da escolha humana em todos os níveis da sociedade. Tais escolhas se estendem a todos os setores e a todos os indivíduos. Você pode escolher o seu trabalho. Ninguém pode obrigar você a ter um emprego que você não queira, mas você também não pode obrigar nenhum empregador a lhe contratar. Da mesma forma, ninguém pode obrigar você a comprar nada, mas você também não pode obrigar ninguém a vender algo para você. 

Este direito à liberdade de escolha reconhece a infinita diversidade que existe dentro de todo o conjunto de indivíduos que forma uma sociedade (ao passo que políticas governamentais têm necessariamente de supor que as pessoas nada mais são do que meras unidades perfeitamente permutáveis). Algumas pessoas sentem uma vocação para viver uma vida de oração e contemplação em uma comunidade de religiosos fervorosos. Outras possuem um talento para gerenciar ativos em fundos de alto risco. Já outras preferem as artes, ou a contabilidade, ou qualquer outra profissão ou vocação que você puder imaginar. Qualquer que seja sua vocação, você pode segui-la livremente, desde que o faça de maneira pacífica, sem iniciar violência ou coerção contra terceiros.

Você tem liberdade de escolha; porém, em suas relações com terceiros, "acordo" ou "concordância" é a palavra-chave. Isto implica a máxima liberdade para todos os indivíduos na sociedade. Também implica um papel máximo para aquilo que chamam de "liberdades civis". Implica ter liberdade de expressão, liberdade de consumo, liberdade de comprar e vender, liberdade publicitária e assim por diante. Nenhum arranjo de escolhas possui privilégios legais sobre outros.

Propriedade

Caso houvesse uma infinita abundância de recursos no mundo, não haveria necessidade de propriedade sobre os recursos. Porém, considerando a realidade do mundo em que vivemos, sempre haverá potenciais conflitos sobre recursos escassos. Estes conflitos podem ser resolvidos por meio de uma simples e brutal guerra por estes recursos, ou pelo reconhecimento de direitos de propriedade. Se quisermos paz em vez de guerra, vontades e escolhas em vez de violência, produtividade em vez de pobreza, todos os recursos escassos — sem exceção — terão de ser propriedade privada.

Todos os indivíduos podem utilizar sua propriedade de qualquer maneira que seja pacífica. Não há limites para a acumulação nem a necessidade de permissão para acumulações. A sociedade não pode declarar que alguém já está excessivamente rico (e que, logo, parte de sua riqueza deve ser confiscada) e nem proibir o asceticismo ao declarar que alguém é excessivamente pobre (e que, logo, terceiros devem ser roubados para que se possa enriquecer o pobre). Em situação alguma pode alguém pegar o que é seu sem sua permissão. Você tem plena liberdade de estipular como será a distribuição de sua propriedade para seus herdeiros após você morrer, sem que ninguém confisque uma fatia desta sua propriedade.

O socialismo realmente não é uma opção para o mundo material. Não é possível haver propriedade coletiva de qualquer coisa que seja materialmente escassa. Alguma facção sempre acabará exercendo o controle dos recursos em nome da sociedade. Inevitavelmente, esta facção será a mais poderosa da sociedade — ou seja, o estado. É por isso que todas as tentativas de se criar socialismo sobre bens ou serviços escassos sempre degenera em sistemas totalitários.

Cooperação

Vontade e propriedade garantem a qualquer indivíduo o direito de viver em um estado de total isolamento, em um estado de pura autarquia. Por outro lado, tal arranjo não levará ninguém muito longe. O indivíduo que assim deseja viver será pobre e sua vida, muito curta. Indivíduos necessitam de outros indivíduos para poder viver uma vida melhor. Nós incorremos em atividades comerciais para melhorarmos mutuamente nossa situação. Cooperamos por meio do trabalho. Criamos e desenvolvemos todas as formas de associação mútua: comercial, familiar e religiosa. A vida de cada um de nós é aprimorada pela nossa capacidade de cooperar, de alguma forma, com outras pessoas.

Em uma sociedade baseada em vontades e desejos, em propriedade e cooperação, redes de associações humanas se desenvolvem ao longo do tempo e do espaço para criar as complexidades da ordem social e econômica. Ninguém é o senhor da vida de ninguém. Se quisermos ser bem sucedidos em nossas vidas, temos de aprender a bem servir outros indivíduos — nossos clientes — da melhor maneira possível. Empresas e empreendedores servem a seus consumidores. Gerentes servem a seus empregados assim como os empregados servem à sua empresa.

Uma sociedade livre é uma sociedade de relações humanas extensivas. É uma sociedade de amizade ampliada para todos os setores. É uma sociedade de prestação de serviço, de benevolência e de cuidado para com a qualidade dos serviços ofertados para todos os indivíduos.

Aprendizado

Ninguém nasce sabendo muito a respeito de qualquer coisa. Aprendemos com nossos pais e professores, mas, ainda mais importante, aprendemos com os infinitos pedaços de informações que chegam a nós a cada instante do dia ao longo de todas as nossas vidas. Observamos o sucesso e o fracasso de terceiros, e aprendemos com eles. Acima de tudo, somos livres para aceitar ou rejeitar estas lições. Isso vai de cada um. Em uma sociedade livre, temos a liberdade de emular os outros, acumular sabedoria e colocá-la em prática, ler e absorver ideias, extrair informações de toda e qualquer fonte, e adaptá-las ao uso que mais nos aprouver.

Todas as informações com as quais nos deparamos ao longo de nossas vidas são bens gratuitos e não-escassos, desde que obtidas não-coercivamente. Elas não estão sujeitas às limitações da escassez porque são infinitamente copiáveis. Você, eu e todas as outras pessoas da sociedade podemos ter uma mesma informação e ainda assim ela não será escassa. A informação é algo que pode ser propriedade coletiva, sem limitações.

E é justamente neste ponto que encontramos o lado "socialista" do sistema capitalista. As receitas para o sucesso e para o fracasso estão disponíveis em todos os cantos, e plenamente livres para serem estudadas e utilizadas — ou descartadas. É por isso que a própria noção de "propriedade intelectual" é hostil à liberdade: ele sempre implica a coerção de pessoas e, consequentemente, a violação dos princípios da vontade, da autêntica propriedade e da cooperação.

Concorrência

Quando as pessoas pensam em capitalismo, provavelmente 'concorrência' é a primeira ideia que vem à mente. Porém, tal ideia é amplamente mal compreendida e interpretada. Concorrência não significa a necessidade da existência de vários ofertantes de todos os tipos específicos de bens e serviços, ou a necessidade da existência de um determinado número de produtores de qualquer coisa. Concorrência significa apenas a não existência de limites legais (coercivos) à entrada no mercado, o que significa que, falando mais diretamente, não deve haver restrições à maneira como podemos servir uns aos outros. E, realmente, há infinitas maneiras nas quais isto pode ocorrer.

Nos esportes, a competição possui um único objetivo: vencer. Na economia de mercado, a competição também possui um objetivo: atender ao consumidor com um grau de excelência continuamente crescente. Esta excelência pode vir na forma de uma oferta de produtos ou serviços mais baratos e de melhor qualidade, ou na forma de novas inovações que atendam às necessidades das pessoas de forma mais eficiente e barata do que os produtos e serviços já existentes. Competição não significa "aniquilar" os concorrentes; significa se esforçar para fazer um serviço melhor do que todos os seus concorrentes. 

Qualquer ato competitivo é um risco, um salto rumo a um futuro desconhecido. Se o julgamento foi certo ou errado, isto é algo que será ratificado pelo sistema de lucros e prejuízos. Lucros e prejuízos são sinais enviados pelo mercado que servem como mensurações objetivas: eles mostram se os recursos estão sendo utilizados corretamente ou não. Estes sinais são derivados dos preços cobrados pelos empreendedores e pelos custos nos quais eles incorrem para produzir, e são estabelecidos livremente no mercado — o que significa dizer que os preços atuais são um mero reflexo de todos os acordos prévios que foram feitos entre indivíduos com liberdade de escolha.

Ao contrário dos esportes, não há um ponto de chegada para a competição do mercado. Trata-se de um processo que nunca acaba. Não há um vencedor final; há um contínuo e ininterrupto rodízio de excelência entre os competidores. E qualquer um pode entrar no jogo, desde que participem dele pacificamente.

Resumo

Aí está, portanto: vontade, propriedade, cooperação, aprendizado e concorrência. Eis aí, a meu ver, a essência do capitalismo, exatamente como ele foi descrito pela tradição liberal-clássica, a qual foi aprimorada pelos teóricos sociais austríacos do século XX. Não se trata exatamente de um sistema, mas sim de um arranjo social — para todas as épocas e lugares — que favorece o desenvolvimento humano.

Não é difícil, portanto, especificar a visão política de genuínos liberais: se algo se encaixa nestes requisitos, somos a favor; se não, somos contra. Donde vem a pergunta: a atual crise mundial é realmente uma crise do capitalismo? Ao contrário, um autêntico capitalismo é a solução para os maiores problemas do mundo atual.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

VAMOS CULPAR OS ALEMÃES!


A Alemanha voltou a ser o espantalho favorito. Poucas coisas são tão populares quanto criticar alemães. O governo americano, a Comissão Europeia e o FMI recentemente se entregaram a este esporte e passaram a condenar a Alemanha pelo fato de sua economia estar apresentando grandes superávits comerciais e um grande saldo na conta-corrente de seu balanço de pagamentos. Paul Krugman contribuiu com a seguinte pérola:

O problema é que a Alemanha continua mantendo seus custos trabalhistas em níveis altamente competitivos e vem apresentando enormes superávits comerciais desde o estouro da bolha — e, em uma economia mundial deprimida, isso torna a Alemanha uma parte significativa do problema.

Apenas no surreal estado atual da discussão econômica ser 'altamente competitivo' pode ser considerado algo deletério. Esta crítica à Alemanha, aliás, não é nada nova; ele remonta à década de 1950. Porém, não mais estamos vivendo na década de 1950. A Alemanha não possui moeda própria e há muito pouco de genuinamente "alemão" em uma exportação alemã.

Um BMW produzido na Alemanha e vendido na Espanha contém peças oriundas de todos os cantos do mundo. A maior parte da mão-de-obra utilizada na construção do automóvel de fato será alemã, mas as inovações tecnológicas reduziram os custos desta mão-de-obra para aproximadamente 10% do preço final de um carro na Europa. O retorno do capital irá para os acionistas, que podem estar em qualquer lugar do mundo. A BMW pode distribuir dividendos para um acionista espanhol, o qual poderá utilizar estes euros para comprar bens espanhóis. Dizer que um BMW é um produto da Alemanha é algo bastante forçado.

A Alemanha também faz parte de um arranjo de moeda única. Reclamar do superávit comercial de uma região dentro de uma área de moeda única é como reclamar que, dentro de um mesmo país, há um superávit comercial de um estado em relação a outro ou de uma cidade em relação a outra.

Aliás, podemos nos aprofundar ainda mais e reduzir esta discussão ao nível individual para esclarecer melhor o argumento e, com isso, ressaltar sua tolice. Nós temos um superávit em conta-corrente em relação ao nosso empregador e um déficit em conta-corrente em relação ao nosso supermercado. Nosso empregador compra mais de nós do que nós compramos dele, e o oposto é válido para nossa relação com o supermercado. No entanto, não estamos reclamando do supermercado, exigindo que seu gerente compre mais de nossos bens e serviços.

Adicionalmente, o superávit comercial da Alemanha com outros países europeus ou com membros da zona do euro foi reduzido à metade entre 2007 e 2012. Ao mesmo tempo, o superávit da Alemanha com o resto do mundo mais do que triplicou. Essa é exatamente a consequência esperada de uma abertura comercial, de um aumento na divisão do trabalho e da especialização possibilitada pelo enfoque em áreas em que se possui vantagens comparativas. Criticar essa tendência é criticar as próprias razões declaradas para a criação da União Europeia.

Por motivos difíceis de serem compreendidos, a Comissão Europeia determinou que terá de intervir caso um país-membro apresente um superávit da conta-corrente do balanço de pagamentos superior a 6% do PIB durante um período de três anos. No ano passado, o superávit da Alemanha foi de 7%, e provavelmente será bastante similar este ano. 

Um dos princípios básicos por trás da criação da União Europeia é justamente a livre comercialização de bens e serviços, e a livre movimentação de mão-de-obra e capital. Sendo assim, se a livre comercialização de bens, serviços, mão-de-obra e capital levar a um superávit de 10%, 20% ou mais, qual o problema? Por que esta regra sequer existe? Por que a Comissão Europeia quer impor uma restrição que limita a movimentação de bens, serviços e capitais? A União Europeia não foi criada para estimular a eliminação de limitações injustificadas? A UE não deveria se surpreender caso alguns países queiram deixar o arranjo, uma vez que ela própria está impondo regras ilógicas.

Por trás de toda esta crítica à Alemanha está, como sempre, o fantasma do mercantilismo. Dentro da mentalidade mercantilista, uma transação comercial voluntária sempre gera um ganhador e um perdedor, sendo que a realidade é que, se a transação foi voluntária, então ambos os lados se beneficiam. Segundo os mercantilistas, a Alemanha supostamente está produzindo mais do que está consumindo. Obviamente, isso é uma falácia — bastante comum — que alguns adoram explorar visando a benefícios políticos. Cada euro gasto em um carro alemão ou em qualquer outro produto alemão será recebido como renda por alguém que, por sua vez, irá gastar esta renda. Há um elo direto entre produção e gastos. A Lei de Say nos diz que a (correta) oferta cria sua própria demanda. O consumo nunca necessita ser estimulado: tudo o que é produzido é consumido, seja para na produção de outros bens (investimento), seja na satisfação pessoal (consumo).

Como era de se esperar, a "solução" proposta por estes mercantilistas a este problema imaginário é obrigar a Alemanha a aumentar seus gastos governamentais. Isso, segundo eles, estimularia o crescimento dos outros países da União Europeia. Pouco importa que a Alemanha já tenha uma relação dívida/PIB de 82%, bem acima dos 60% que alguns anos atrás era vista como excessiva. Trata-se de uma solução-padrão keynesiana que constantemente vai contra a lógica econômica. Cada euro que o governo gasta é um euro que foi retirado dos cidadãos e que poderia ter sido gasto por ele. Tudo o que governo pode fazer com seus gastos é alterar quem irá receber esse dinheiro. Tudo o que ele pode fazer é alterar quem irá receber um pedaço do bolo. Mas ele não pode aumentar o tamanho do bolo.

Quando a Alemanha tinha sua própria moeda, a crítica era idêntica. E, mesmo naquele arranjo, a crítica continuava sendo infundada. Naquela época, um superávit na conta-corrente do balanço de pagamentos alemão significava um equivalente déficit na conta de capitais. Essa saída de capitais ia financiar os gastos governamentais da Itália ou da França, ou então investimentos em fábricas e equipamentos na Espanha, em Portugal, na China ou em qualquer outro lugar do mundo. Novamente, palavras como superávit ou déficit são remanescentes de nosso passado mercantilista e não têm absolutamente nada a ver com coisas positivas ou negativas.

Se a Alemanha possui custos trabalhistas mais competitivos e é capaz de fabricar produtos melhores, qual o problema? Por que isso deveria ser tolhido em nome do "bem comum"? Desde quando uma produção eficiente é ruim para os consumidores? A União Europeia não foi criada para tornar a Europa mais competitiva ao permitir que os recursos pudessem circular livremente e ir para onde eles fossem mais eficientemente utilizados? As críticas à Alemanha feitas pela Comissão Europeia e pelo FMI são ainda mais descabidas quando se leva em consideração as razões dadas para a existência destas instituições.

O ministro das finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, membro do partido de centro-direita União Democrática Cristã, o mesmo de Angela Merkel, estava totalmente correto quando disse que "O superávit comercial da Alemanha não é nenhum motivo de preocupação nem para a Alemanha, nem para a zona do euro e nem para a economia mundial". Na realidade, a Alemanha deveria ser louvada, e não repreendida. Sua eficiência produtiva é um dos poucos fatores que ainda seguem estimulando a economia mundial.

Por: Frank Hollenbeck Ph.D. em economia e leciona na Universidade Internacional de Genebra.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

A CORAGEM SE DÁ POR MEIO DO EMPREENDORISMO


E se o Brasil começasse a levar a sério o Dia do Empreendedor? É o 5 de outubro, data da aprovação do Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, que não importa agora. Importa celebrar aquelas pessoas que estão abrindo novos caminhos sem a certeza de que alguém irá segui-las, celebrar quem está apostando alto em projetos que acabarão abandonados, superados ou copiados. Vamos celebrar as futuras falências, o fracasso iminente.

Nassim Taleb escreve em Antifragile a mensagem que deveria acompanhar a celebração de um Dia do Empreendedor:

A maioria de vocês irá fracassar, acabarão desrespeitados, empobrecidos, mas nós somos gratos pelos riscos que estão tomando e pelos sacrifícios que vocês estão fazendo para o crescimento econômico do planeta e para tirar os demais da pobreza. Vocês são a fonte da nossa antifragilidade. Nossa nação agradece a vocês.

Por que comemorar o fracasso, e não apenas o sucesso? Porque a estrada do sucesso futuro é pavimentada com as ruínas dos fracassos passados. A falência cumpre na economia o papel que a falsificação de hipóteses cumpre na ciência experimental. "Alguém que não encontrou uma coisa está fornecendo conhecimento aos demais", diz Taleb, "conhecimento do melhor tipo, aquele da ausência (do que não funciona)." 


Cada vez que você entra em um restaurante bom, que lhe agrada, lembre do outro empreendedor, que naufragou com seu outro restaurante menos agradável, mas que ajudou o processo de aprendizado de todo o setor de alimentação. Se o setor de restaurantes parece imune a crises, agradeça ao fato de ser um setor de maior rotatividade, com alto índice de falências. A fragilidade de cada estabelecimento deixa mais robusto o setor como um todo.

Enquanto cada empreendedor caminha com prudência em sua luta por sobreviver, a sociedade se beneficia de quem está mais disposto a correr altos riscos. Para que haja mais empreendedores com maior ousadia, precisamos elevar moralmente o status da atividade empresarial. Continua Taleb:

A fim de progredir, a sociedade moderna deveria tratar empreendedores arruinados da mesma maneira que honramos soldados mortos, talvez não com tanta honra, mas usando exatamente a mesma lógica.

Não é difícil encontrar empreendedores arruinados. Cerca de metade das empresas no Brasil não consegue sobreviver mais de três anos. Apenas uma minoria atravessa a marca dos cinco anos com vida. Como já disse em outro lugar, para abrir uma empresa no Brasil, gasta-se 152 dias com a obtenção de todas as licenças, inspeções e registros necessários. Leva-se quatro anos para fechá-la. No mesmo período, é possível abrir e fechar 7 empresas em Cingapura.

Até quando os empreendedores vencem no mercado, seu sucesso pode ser logo perturbado pelo que Werner Sombart e Joseph Schumpeter chamavam de destruição criadora. A próxima inovação pode sepultar a anterior. Deirdre McCloskey dá um exemplo:

Pense nas mais recentes cadeiras de praia, dobráveis e de lona, antes vendidas por U$40 e que agora custam U$6. Elas levaram à falência companhias que faziam as cadeiras de alumínio mais antigas. Por sua vez essas levaram à falência as velhas cadeiras dobráveis de madeira, que por sua vez levou à falência as ainda mais antigas cadeiras de madeira não dobráveis.

As pequenas grandes maravilhas do mundo contemporâneo foram trazidas por empreendedores. Foram eles que fizeram com que o smartphone que você tem no bolso (ou que está usando para ler esse texto) tenha uma capacidade de processamento superior a todo o projeto Apolo no ano em que o homem foi à lua.

Também foi o empreendedorismo que ajudou a cortar a pobreza mundial pela metade nas duas últimas décadas. E os pobres não apenas enriquecem como objetos do empreendedorismo alheio. Eles abandonam o poço da pobreza pela escalada do empreendedorismo próprio — especialmente quem estava amarrado ao fundo, como os Dalit, a casta dos "intocáveis" na Índia.

O New York Times relata a transformação dos intocáveis. Estagnados em meio a preconceito social e político histórico, os Dalit nasciam pobres e morriam sem esperança de mobilidade social. A constituição indiana "relegou os Dalit à base da pirâmide social e os condenava a empregos de baixo status, como barbearia e trabalhos com couro". Nas salas de aula, as crianças Dalit tinham que se sentar no chão. Os pais não podiam ir ao mesmo templo ou beber da mesma água das castas superiores.

Até que algo aconteceu. Os Dalit começaram a "combater o sistema de castas com o capitalismo." Com a abertura comercial indiana em curso há mais de vinte anos, os intocáveis aproveitaram a oportunidade para abrir suas próprias empresas e contratar funcionários da sua própria casta. Formaram sua própria câmara de comércio e indústria,

Um próspero centro de líderes empresariais que ignoram por completo a intervenção do governo, realizando contato diretamente com candidatos qualificados e preenchendo ordens de compra de outras empresas Dalit.

Resultado? A diferença salarial entre os intocáveis e as outras classes caiu de 36% em 1983 para 21% em 2011, "menor que a diferença salarial entre trabalhadores brancos e negros nos Estados Unidos. A desigualdade educacional caiu pela metade."

A ascensão econômica traz ascensão social. Ashok Khade, um empresário Dalit, ainda se lembra de como era a vida antes do capitalismo, apesar de hoje ser recebido com saudação pelos líderes locais quando chega de BMW prata em sua vila natal.

'Esse é um período de ouro para os Dalit', diz Chandra Bhan Prasad, pesquisadora e ativista Dalit que hoje defende o capitalismo entre os intocáveis. 'Por causa da nova economia de mercado, a sinalização material está substituindo a sinalização social. Os Dalit já podem comprar sua posição na economia de mercado. A Índia está passando de uma sociedade de castas para uma sociedade de classe.'

(Fazemos filmes de atletas em provas de superação e de artistas psicologicamente torturados. Mas não celebramos o suficiente nossos empreendedores. Pense nas novelas. Quantos vilões eram empreendedores? E quantos heróis?)

Os pobres brasileiros podem exercitar a mesma coragem dos intocáveis indianos se suas oportunidades econômicas forem ampliadas. Devemos diminuir o custo de abrir e operar uma empresa para que o caminho do empreendedorismo esteja aberto à base da nossa pirâmide social. Muitos irão fracassar. Por isso é importante honrar cada tentativa. Outros irão ter sucesso, e servirão de exemplo para novas gerações:

Por: Diogo Costa  presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York. Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com