domingo, 29 de dezembro de 2013

GOVERNO, GOVERNANÇA E CONTRATO

Governança é uma expressão relativamente nova, e tem a ver com o desenho dos processos decisórios dentro de organizações, públicas e privadas, com o objetivo de evitar, entre tantos vícios, os decorrentes de conflitos de interesses. Diz-se que a governança é de boa qualidade quando impede que maiorias escravizem minorias, ou vice-versa, ou que os dirigentes abusem dos mandatos a eles conferidos.


Enquanto a governança corporativa (a das empresas) só fez evoluir - sobretudo a partir de 2000, quando a Bovespa estabeleceu protocolos para a boa governança e listagens especiais para as empresas que os adotassem -, a governança no setor público vem sofrendo um enorme retrocesso. A legitimidade conferida pelas urnas não faz do governante um Todo Poderoso ou uma encarnação do interesse público, mas apenas um custo diante deste, e por tempo determinado e dentro de limites, como em qualquer democracia. Os bons governos precisam caber dentro de seus mandatos, conviver produtivamente com minoritários (que serão os mandachuvas de amanhã) e com a transparência própria dos mercados e da imprensa livre.

Quando, em vez disso, o governo faz uso contumaz do método "goela abaixo", ao atropelar processos e extrapolar atribuições, invariavelmente se acha na posição do controlador não confiável que abusa de seus poderes e desequilibra os contratos que implícita ou explicitamente mantém com o setor privado.

Tome-se o exemplo da Petrobrás, empresa de controle estatal listada em bolsa com muitos sócios minoritários, nacionais e estrangeiros. O controlador decidiu introduzir um novo sistema para explorar o petróleo do pré-sal, de vezo excessivamente nacionalista, por conseguinte muito caro, e do que resultou um salto nos gastos de investimento da companhia de US$ 10.6 bilhões em 2005 para US$ 43,4 bilhões em 2010.

Diante dessas necessidades foi feito um aumento de capital, que a União não integralizou propriamente em dinheiro, mas usando os direitos a petróleo que estaria disponível no futuro. Adicionalmente, como os preços dos produtos vendidos foram mantidos em níveis defasados, por causa do interesse do controlador em evitar a aceleração da inflação, a companhia viu-se em dificuldades financeiras. Seu endividamento foi de US$ 46 bilhões ao final de 2006 para US$ 115 bilhões em 2010 e US$ 250 bilhões em 2013.

Em consequência, o valor de mercado da empresa caiu de US$ 200 bilhões no começo de 2010 para US$ 90 bilhões ao final de 2013.

São US$ 110 bilhões de riqueza destruída por um nacionalismo tolo combinado ao velho populismo tarifário e embrulhado em uma contabilidade feita por quem acredita na função social da matemática. O resultado é algo que se pode descrever como dilapidação do patrimônio público.

Há muitas questões de governança pertinentes à definição de responsabilidades pela tragédia. Ao utilizar a empresa como ferramenta de políticas de governo, o controlador não devia indenizar a companhia, como fazia até 2001 por meio da "conta petróleo"? Os representantes do controlador não estão conflitados em decisões como as de preço, por exemplo? Com 32,3% do capital (55,6% do capital votante) deve a União nomear 8 de 10 conselheiros?

Bem, esse é apenas um exemplo, e há histórias parecidas em toda parte, inclusive no delicado terreno da política monetária, o segundo exemplo logo abaixo.

O governo detém o controle do único banco com poder de emissão de moeda, um poder tão grande quanto os sonhos de qualquer político, e aqui não há minoritários. Há, em vez disso, 180 milhões de "preferencialistas", que são os "acionistas" sem direito a voto que carregam papéis ao portador, emitidos em pequenas denominações pelo Banco Central do Brasil, de aceitação obrigatória fixada em lei, cujo valor é fixado por livre negociação no comércio.

Por isso, ao redor deste planeta, adotam-se providências de governança de modo a isolar os bancos centrais da influência de seus controladores. Não se trata de assunto ideológico, mas de um imperativo de boa governança: é o melhor arranjo institucional para preservar a integridade da missão do banco central, a estabilidade da moeda.

Entretanto, o Banco Central do Brasil não é independente, a formulação da política monetária cabe ao um conselho de três ministros (um deles, o presidente do BC), obrigado a seguir diretrizes do presidente da República. A política de metas para a inflação está fixada em um decreto presidencial, e os ministros decidiram que era 4,5% mas, na verdade, o BC vem trabalhando como se fosse 6,5%, por orientação do Palácio.

Nos dois casos está claro o conflito entre os interesses políticos de curto prazo do governo e os das maiorias afetadas pelas decisões. É evidente o predomínio inconteste da vontade do controlador.

Arranjos institucionais mais aperfeiçoados poderiam melhorar a governança em ambas as situações, evitar os abusos de poder de controle e as inconsistências. Essas, por sua vez, formam a prole mais dileta do método "goela abaixo", e a lista vai bem além dos exemplos aqui explorados: o governo liga as térmicas e manda baixar a conta de luz, incentiva a produção de automóveis e diminui as ruas, arrocha os preços dos serviços públicos e põe concessões para vender, elege campeões que entram em recuperação judicial e por aí vamos.

Nada pode ser mais assustador aos agentes privados que um governo despreocupado com a boa governança, pois o assunto aqui tem tudo que ver com a letra do contrato. Ao falsear a contabilidade pública, a meta de inflação, o preço da gasolina, a conta de luz, o governo falta com a palavra empenhada, pois compromissos de governo publicamente assumidos são como contratos. Ao escrever 4,5% como meta para o IPCA e praticar 6,5%, ou ao fazer "deduções" da meta de superávit primário, as autoridades quebram contratos que elas mesmas propuseram.

A alegação da presidente sobre respeito aos contratos, feita em tom agressivo em Nova York meses atrás, e prestes a ser repetida em Davos, infelizmente não estará convincentemente apoiada em ações de governo.

Por: GUSTAVO H.B. FRANCO EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS O Estado de S.Paulo

CRESCE E DESAPARECE

1. Com a morte de Mandela, confesso que passei horas e horas a ler sobre o senhor. Mas nenhum texto me impressionou tanto --na sua imbecilidade e ignorância-- como o elogio cético que Slavoj Zizek dedicou a Madiba no "Guardian".

Verdade que Zizek nunca desilude. Mas o texto atinge novos patamares de mendacidade intelectual quando informa o auditório de que Mandela morreu um homem amargo.

Uma afirmação dessas, vinda de um enfermeiro, teria o seu valor. Mas o objetivo de Zizek é político, não clínico: Mandela morreu amargo porque a promessa de uma África do Sul resplandecente não se cumpriu.

Até aqui, nada a dizer: a pobreza, a violência e o crime continuam a fazer parte do cotidiano do país. Mas para Zizek essas falhas devem-se à "traição" que Mandela cometeu sobre os seus ideais "socialistas", sucumbindo às sereias do capitalismo.

Nesse sentido, Mandela representa bem o destino da esquerda contemporânea, diz Zizek: na oposição a um regime iníquo, a esquerda promete maravilhas sem fim; quando chega ao poder, abre a porta ao compromisso "burguês".

A ignorância de Zizek começa logo aqui: ao não entender que o derrube do apartheid começou por um ato de compromisso. Que o mesmo é dizer: Mandela pousaria as armas e o regime começaria a tratá-lo com outra brandura.

Isso pode soar ofensivo para quem vive no jardim infantil da política e divide o mundo entre índios e cowboys. Não soou ofensivo para Mandela nem para a ala mais moderada do ANC.

Mas há mais: acusar Mandela de atraiçoar os seus ideais "socialistas" é ignorar a importância que o fim desses ideais teve para derrubar o próprio regime.

A queda do apartheid, ao contrário do que imagina Zizek, não começou com a saída de Mandela da prisão em 1990. Começou um ano antes, quando um certo Muro de Berlim foi reduzido a escombros. Com o desaparecimento da ameaça ideológica de Moscou, a elite branca não apenas deixou de temer a transição para um regime democrático pleno --como, no limite, o permitiu.

Finalmente, Zizek pergunta: não será possível ir além do legado tímido de Mandela sem cair no extremismo totalitário de Robert Mugabe, o vizinho do Zimbábue que arruinou o seu país?

Curiosamente, Zizek nem se apercebe da contradição da pergunta: Mugabe destruiu o país porque seguiu a cartilha "socialista" que Zizek acusa Mandela de ter renegado.

O resultado desse programa de "coletivização dos meios de produção" determinou que um dos mais prósperos países africanos seja hoje um caso internacional de fome, miséria e, claro, guerra civil larvar de negros contra brancos. Ou, pelo menos, contra os brancos que ainda restam por lá.

Quando será que Zizek cresce e desaparece?

2. A culpa é de John Lennon: quando o ex-Beatle começou a dissertar sobre os grandes temas do mundo, o mundo prestou atenção e a moda estava lançada.

Bizarro: eu gosto da minha empregada doméstica. Mas não presto atenção ao que ela diz sobre, por exemplo, o aquecimento global ou a crise das dívidas soberanas na Europa. Por que motivo devemos prestar atenção ao que dizem os músicos sobre assuntos que eles grotescamente desconhecem?

Roger Waters é um caso recente: o líder do Pink Floyd considerou Israel um Estado perfeitamente comparável à Alemanha nazista. Motivo? A forma como trata os palestinos de Gaza e da Cisjordânia. Roger Waters só não explicou direito se também falava dos campos de extermínio e dos fornos crematórios que existem em Tel Aviv.

Ponto prévio: você, leitor, pode não concordar com a política de Israel; pode condenar vivamente a construção de assentamentos na Cisjordânia; e pode até atribuir todas as culpas do mundo aos judeus pelo fracasso das sucessivas negociações entre Israel e a autoridade palestina. Está no seu direito e na posse razoável das suas faculdades mentais.

Mas quando alguém compara Israel com a Alemanha de Hitler --o mais infame regime da história, que fabricou a morte sistemática de milhões de judeus e outras minorias e foi responsável pela maior catástrofe militar do século 20 --essa comparação não é apenas ofensiva para a "memória das vítimas", como dizem os poetas.

A comparação é ofensiva para você, leitor, tratado como um idiota ignorante por outro idiota ignorante. Por: João pereira Coutinho Folha de SP

sábado, 28 de dezembro de 2013

CENÁRIOS SOMBRIOS, UMA CHANCE PARA A PRESIDENTE

Nem Papai Noel daria à presidente Dilma Rousseff uma oportunidade melhor depois de três anos de fracasso. Todas as projeções para 2014 apontam mais um ano ruim, com baixo crescimento econômico, inflação alta e grande buraco nas contas externas. Poderá haver algum avanço no investimento – se as concessões forem adiante e começar a execução dos projetos de infraestrutura. Com um pano de fundo tão feio, será fácil exibir e celebrar como vitória qualquer desempenho melhor que o de 2013. Projeções menos sombrias poderiam criar expectativas perigosamente otimistas e sujeitar a candidata à reeleição a cobranças constrangedoras. Os mais otimistas ainda poderão apostar num fator negligenciado nas projeções conhecidas até agora: a mudança ministerial no primeiro bimestre. Mas o otimismo, neste caso, conflita com o conhecimento. A experiência proíbe a esperança, quando se trata de imaginar um Ministério mais competente, depois dessa reforma, e mais orientado para acertar.


A economia brasileira crescerá 2,3% nos quatro trimestres até setembro de 2014, segundo a nova estimativa do Banco Central (BC). Será, portanto, uma repetição do cenário geral de 2013. O quadro apresentado no último informe da Confederação Nacional da Indústria (CNI) é muito parecido, mas um pouco menos luminoso: expansão de 2,4% neste ano e de 2,1% no próximo. As projeções de mercado coletadas pelo BC no dia 13 de dezembro pouco diferem das outras duas: expansão de 2,3% para o produto interno bruto (PIB) neste ano e de 2,01% em 2014 (esses números são medianas das estimativas).

A inflação deve continuar longe da meta, 4,5%, segundo as projeções publicadas até agora. A alta de preços deve ficar em 5,7% neste ano e alcançar 6% no próximo, de acordo com o documento da CNI. As estimativas do BC vão até 2015 e mostram números distantes da meta por mais dois anos. O cenário básico inclui números finais de 5,8% para 2013, 5,6% para 2014 e 5,4% para o ano seguinte. Juros básicos de 10%, recém fixados, câmbio de R$ 2,35 por dólar e contas públicas em condições mais ou menos estáveis foram tomados como base para os cálculos.

Todos esses dados justificam mais um ou dois aumentos da taxa Selic, incluídos na previsão do mercado financeiro para 2014 (já elevada de 10,25% para 10,5%). Pelas contas do mercado, a inflação oficial, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), deve ficar em 5,7% neste ano e bater em 5,95% no próximo. Segundo o governo, continuará, portanto, dentro da meta. Patacoada. A meta é 4,5%. O resto é margem para acomodar desvios. Mas desvios tão amplos são justificáveis somente em situações muito especiais. Nada tão especial ocorreu nos últimos três anos ou quatro anos, exceto na coleção de erros de política econômica. Isso inclui, entre outros itens, a redução dos juros no momento impróprio, o excesso de gastos federais e os estímulos mal planejados ao consumo.

Crescimento baseado no incentivo ao consumo é estratégia superada, segundo os analistas menos distraídos e um pouquinho mais atentos aos números de inflação, produção industrial e comércio exterior. É preciso investir muito mais para ampliar a capacidade de produção e o potencial de crescimento da economia. Essa necessidade é agora admitida até no governo, tanto por ministros quanto por uma presidente pouco propensos a reconhecer os desajustes econômicos (eles continuam, por exemplo, classificando como “dentro da meta” qualquer inflação até o limite de 6,5%).

O potencial de crescimento do Brasil caiu de 4,3% ao ano pouco antes da crise global para 2,7% no terceiro trimestre de 2013, segundo estimativa publicada no último informe conjuntural da CNI. Para crescer mais o País precisará de mais capital físico – máquinas, equipamentos e instalações — e de muito mais produtividade. Isso dependerá tanto do setor privado quanto do governo. No ano passado o investimento diminuiu 4%. Deve ter aumentado 7,1% neste ano e poderá crescer mais 5% no próximo, de acordo com o documento da CNI. Se essas estimativas estiverem corretas, o País ainda investirá em 2014 pouco menos de 20% do PIB, bem menos que vários de seus vizinhos. No Equador, por exemplo, essa relação é próxima de 27%.

Na estimativa do BC, o investimento em capital fixo deve ter crescido 6,8% neste ano e deve aumentar 3,7% nos quatro trimestres até o terceiro de 2014. O cenário desenhado pelo pessoal da CNI parece mais bonito, mas é menos atraente quando visto em detalhes. O principal fator positivo deverá ser o programa de concessões na infraestrutura, mas seu impacto imediato será limitado.

Neste ano, o investimento privado foi em boa parte puxado pelas compras de equipamentos de transporte. A lei exigiu motores a diesel com menor emissão de enxofre e, além disso, a boa safra de grãos e oleaginosas favoreceu o aumento das frotas de caminhões e de máquinas agrícolas. As compras de outros tipos de máquinas e equipamentos também cresceram, mas em menor proporção. Isso se reflete no baixo crescimento da indústria de transformação, estimado em 2,3% pela CNI. Reflete-se também no baixo poder de competição do setor industrial, em apuros tanto no exterior quanto no mercado interno. Nem o real desvalorizado compensou a baixa competitividade da maior parte dos produtores de manufaturados.

De janeiro até a segunda semana de dezembro as exportações totais, US$ 230,42 bilhões, foram 1,6% menores que as de um ano antes, pelas médias dos dias úteis. As importações, US$ 230,4 bilhões, foram 6,7% menores. Também isso mostra a fraqueza da economia brasileira e o tamanho do desafio posto diante do governo. Reconhecer o problema, admitir sua origem interna e tentar enfrentá-lo sem os truques baratos do protecionismo será um bom começo. 
Publicado no Estadão deste sábado   Por: Rolf Kunz

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

NÃO ESTRAGUE A FESTA, ESTÚPIDO!

O país da Copa é grande e bobo. "Esta será a Copa das Copas", disse a presidente, de boca cheia, na cerimônia de sorteio dos grupos. No país dela, que é o nosso, ninguém circula nas cidades travadas, nas estradas paralisadas, nos aeroportos congestionados -mas 12 arenas superfaturadas, em recordistas 12 sedes, receberão a mais cara das Copas. Do enclave do Sauípe, uma bolha segura, esparramou-se pelo mundo a linguagem do verde-amarelismo balofo. No país da Copa, um governo "popular" e "de esquerda" reverbera, tanto tempo depois, as frases e os tiques do general-presidente que gostava de futebol. Há um cheiro de queimado no ar.


"O Brasil está muito feliz em receber todos nesta Copa porque somos um povo alegre e acolhedor." Violência é a palavra da hora -e ela surge em curiosas associações com a "Copa das Copas". A barbárie das torcidas do Atlético Paranaense e do Vasco não foi deplorada por seus significados intrínsecos, mas pelas mensagens que supostamente envia ao mundo. Gaiatos da política, do marketing e do colunismo ensaiaram uma sentença que menciona a violência "dentro e fora dos estádios". É senha, com endereço certo: no saco fundo, cabem tanto os torcedores selvagens e os sumidos black blocs quanto manifestantes pacíficos mas indignados com a "Copa das Copas". O pau vai comer.

"Não repara a bagunça" -o dístico popular nacional, candidato eterno, e perfeito, a substituir o "Ordem e Progresso" no núcleo de nossa bandeira, trai o medo da vergonha. Joseph Blatter entendeu e traduziu, chamando-nos a congelar a indignação, sublimar as insatisfações, colocar entre parêntesis as divisões. A unidade em torno de um bem maior, que é a imagem do país diante do planeta que nos vê: eis a gramática do discurso político sugerida pelo chefão da potência ocupante. No país da Copa, a convocação à unidade já foi integrada ao discurso da publicidade. Será repetida à exaustão, como uma ladainha, até o apito final. Não estrague a festa, estúpido!

"Será uma Copa para ninguém esquecer", jactou-se a presidente, formulando uma ameaça involuntária. A partir do Gabinete de Segurança Institucional, estrutura-se uma operação de guerra que abrange as três forças em armas e um desdobrado aparato cibernético. Nas telas dos computadores do sistema de vigilância, cada arena figura como ponto focal de um envelope tridimensional de segurança. Nas ruas, o controle físico do perímetro das arenas, a cargo das PMs, terá a missão de proteger as marcas dos patrocinadores oficiais da ameaça simbólica representada pela presença de manifestantes. Jamais, em tempo algum, o Estado serviu tão direta e exclusivamente a interesses privados. Não: ninguém esquecerá.

O país da Copa não se respeita. Ontem, o partido do governo celebrou políticos condenados por corrupção -e, sob o silêncio cúmplice do presidente de facto e da presidente de direito, achincalhou um STF composto por juízes que eles mesmos indicaram. O país da Copa perdeu o autorrespeito. Os líderes governistas manobram para o Congresso não ouvir um ex-secretário nacional de Justiça que acusa o governo ao qual serviu de operar uma fábrica de dossiês contra adversários políticos. O país da Copa perdeu o respeito. As lideranças do PSDB preferem empregar táticas diversionistas vexatórias a colher assinaturas para uma CPI destinada a investigar todos os contratos estaduais e federais firmados com a Siemens. Yes, nós gostamos de futebol.

No vale-tudo da nova ordem do racialismo, perdemos, ademais, um senso básico de decoro: eu li -aqui mesmo, não nas catacumbas da internet!- que Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert formaram "um casal mais parecido com representantes de afrikâners". Cores, rancores. No país da Copa, nativos felizes, contentes, de bunda de fora, tocavam caxirola. Foi bonita a festa, pá -pena que nem começou. 
Por: Demétrio Magnoli Folha de SP

HADDAD QUEBRA-0VOS

O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, do PT, espalhou faixas exclusivas de ônibus cidade afora, onde são e onde não são necessárias. Pragmatismo é coisa de gente chulé. Pensadores lidam com conceitos e com abstrações que estão acima da contingência e livres do império da necessidade. Haddad quer ver triunfar um valor: o "coletivo". Pretende, com o didatismo da porrada, ensinar a essa gente inzoneira que o individualismo é uma chaga moral.


Se a vida dos motoristas --convencidos a comprar carro pelo crédito fácil estimulado por Lula e Dilma-- virou um inferno pior do que antes, que migrem para o transporte público. O prefeito sabe "que não se faz omelete sem quebrar ovos", frase que não é de Stálin, mas de Nadejda Mándelstam, casada com o poeta Ossip Mándelstam, um dos 35 milhões que o ditador matou. Nadejda se referia à sem-cerimônia com que o bigodudo eliminava pessoas, sempre "com a desculpa de que construíamos um notável mundo novo".

Haddad tem a convicção, percebi pelas entrevistas que concedeu a esta Folha e ao "Valor", de que está construindo uma notável cidade nova. Afinal, se o coletivo se opõe ao individual e lhe é moralmente superior --e até parte considerável da imprensa, vivendo seus dias de apagão bibliográfico, acha o mesmo--, ele só pode estar certo. O prefeito quebra ovos com metódica desfaçatez. Só não consegue fazer omeletes. Aos poucos, a cidade vai recuperando a memória do caos.

A "cracolândia" voltou a seus dias de esplendor, estimulada pela mal digerida política de redução de danos. Voltou, mas num estágio superior. Agora já há uma "civilização do crack", com seus teóricos, seus artistas, até sua arquitetura... Logo os veremos no "Esquenta", da Regina Casé. Se viciados em clarineta, Chicabon ou cigarros Hollywood decidissem privatizar uma área da cidade, cassando direitos de terceiros, impondo-lhes uma disciplina ao arrepio da lei, não duvidem de que seriam reprimidos. Clarineta, Chicabon e Hollywood não alcançaram ainda o estatuto de uma cultura de resistência.

O desgraçado que mora no centro da cidade que pague o "Imposto Michel Foucault" --refiro-me ao filósofo que está na raiz desse pensamento torto que advoga, no fim das contas, que o direito à autodestruição supõe a supressão de direitos alheios. Foucault, esquerdista e gay, é aquele senhor que via na revolução iraniana um fervor, acreditem!, erótico! Khomeini chegou ao poder e começou a fila de enforcamentos pelos... esquerdistas e gays. O "despensador" morreu em 1984 sem emitir um pio de arrependimento. "Qual a razão do rosnado digressivo, seu reacionário?" A exemplo de Foucault, Haddad acha que sua teoria está certa; a realidade é que perdeu o rumo.

Só um intelectual de esquerda, ou alguém com tal pretensão, age como Haddad. Não por acaso, Lula, um notável e pernóstico conservador, nutre por essa gente imenso desprezo. O Barba é da turma do pragmatismo chulé. "E por que fez o outro candidato?" Porque mirou num produto eleitoral, não num gestor. O prefeito é o esquerdista que parece brincar no "play" sem sujar o shortinho. Mas alimenta ideias bem malvadinhas. O caso do IPTU repete a receita aplicada nos transportes e na cracolândia: o arranca-rabo de classes.

Compreensível. Em 2004, pouco antes de assumir o Ministério da Educação, Haddad escreveu num livro intitulado "Trabalho e Linguagem - Para a Renovação do Socialismo" a seguinte pérola: "O sistema soviético nada tinha de reacionário. Trata-se de uma manifestação absolutamente moderna frente à expansão do império do capital". Bacana. Lênin, o fundador do "sistema" que ele exalta, deixou para a história um pensamento inequívoco: "Uma revolução sem pelotão de fuzilamento não faz sentido". Haddad, o acólito, é um homem em busca de sentido.Por: Reinaldo Azevedo Folha de SP

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O MÉTODO PARA NÃO ENTENDER NADA

Richard Rorty diz que, não havendo nenhuma verdade a ser encontrada acima das divergências de opinião, a filosofia se reduz a um puro divertimento, no qual, em vez de procurar saber se tal ou qual filósofo tinha razão, você deve tentar apenas "pensar como ele", como quem assiste a um drama – ou o escreve – e se identifica com os pontos de vista dos vários personagens sem chegar a conclusão nenhuma.

Ele ia até mais longe e afirmava que a mesma tolerância e abstinência de julgamento deveria ser praticada com os grandes agentes históricos, não havendo razão nenhuma para que algum escritor não produza uma biografia de Hitler desde o ponto de vista do próprio Hitler, representando mentalmente e sentindo, sem julgá-lo, o ódio anti-semita que o movia.

O primeiro desses conselhos é um bom método para começar a estudar filosofia, mas não constitui uma filosofia de maneira alguma, assim como o segundo é um bom meio de iniciar uma investigação histórica, mas não de concluí-la

É evidente que, quando você estuda as doutrinas de um filósofo, deve absorvê-las como se fossem as suas próprias antes de poder julgá-las. Se você salta essa etapa, as idéias dele permanecem um corpo estranho e ao julgá-las desde fora você não as atinge, apenas desliza sobre elas.

Entretanto, se, após ter feito um esforço para pensar como se fosse Descartes ou Nietzsche você não é capaz de voltar a ser você mesmo e julgá-los desde o seu próprio ponto de vista, fica também impossível julgar Descartes desde o ponto de vista de Nietzsche, ou vice-versa, isto é, toda comparação se revela inviável e a filosofia se reduz a uma coleção de discursos separados e inconexos, um diálogo entre quem não ouve e quem não fala.

Em segundo lugar, para "pensar como" fulano ou beltrano, você precisa saber o que eles sabem. Mas será possível e necessário, também, ignorar o que eles ignoram? Por exemplo, algo que se descobriu depois que eles morreram, e do qual você está bem informado. Se o mapa da sua ignorância não coincide exatamente com o de um outro indivíduo, você jamais poderá pensar exatamente como ele. Você pode, é claro, fingir que ignora o que ele ignora, mas esse fingimento é algo que não estava no pensamento dele e que você está introduzindo nele desde fora.

Se, ao contrário, você realmente ignora o que ele ignora, então não é da ignorância dele que se trata, e sim da sua própria, que só por acaso coincide com a dele. E é loucura imaginar que a coincidência fortuita de duas ignorâncias seja um bom método para compreender o que quer que seja.

Chega a ser inacreditável que um filósofo de grande reputação como o professor Rorty não percebesse, de imediato, a completa inviabilidade do método que sugeria.

O que cabe fazer em filosofia, o que no fundo todo estudante acaba fazendo sem nem mesmo ter a intenção clara de fazê-lo, é tentar pensar como o filósofo que você está estudando e depois, confrontando o que ele sabia com o que você sabe, criar a sua própria opinião sobre as opiniões dele. (É claro que existem maus estudantes – muitos deles, decerto, professores – que já criam a sua própria opinião a respeito antes de deixar o filósofo terminar de falar, e alguns até antes de que ele comece a falar. Mas "non raggionam da lor".)

Quanto aos personagens históricos, é claro que devem também ser estudados desde suas próprias intenções e valores, "sine ira et studio", mas é impossível fazê-lo sem levar em conta que competiam com as intenções e valores de outros personagens e que tanto as intenções e valores de uns quanto as dos outros se recortavam sobre um horizonte de consciência (e de inconsciência) que não é o do historiador que os está estudando. Este, portanto, nada compreenderá do drama histórico se, desde os dados à sua disposição, não puder distinguir, entre os personagens históricos, quais viam a situação mais apropriadamente que outros.

Posso, por exemplo, tentar me colocar no lugar de Hitler e "sentir" imaginariamente o ódio que sentia aos judeus, desde as razões que ele se apresentava para tanto. Mas devo levar essa tolerância relativista ao ponto de ter de ignorar o que ele ignorava? Devo fazer de conta que não sei que ele acusava os judeus de crimes que eles não haviam cometido e enxergava neles defeitos de constituição cerebral que eles não têm de maneira alguma?

Posso até fingir isso, mas aí já não estarei pensando como Hitler e sim como um dramaturgo que inventa um personagem chamado "Hitler" sem ter em conta o Hitler da História. Pior ainda, se depois de mergulhar no horizonte de consciência de Hitler não saio fora dele para julgá-lo de cima, como posso distinguir se Hitler acreditava mesmo naquelas coisas ou se apenas as fingia, por sua vez, para tirar delas proveito político?

Tanto em filosofia quanto em historiografia, o método do professor Rorty pode levar somente a um resultado: uma confusão dos diabos. Não espanta que, havendo-o praticado por anos a fio, ele próprio chegasse a concluir que nenhum problema tem solução e que a única coisa que o filósofo tem a fazer é entregar-se ao divertido empreendimento de não entender nada.

Muito menos espanta que um seu discípulo local, um tipo folclórico que se denomina "o filósofo da cidade de São Paulo" – como se não tivessem sido da capital paulista os maiores filósofos que o Brasil já teve, Mário Ferreira dos Santos, Miguel Reale, Vicente Ferreira da Silva e Vilém Flusser – depois de ter absorvido as idéias do mestre, acabasse acreditando que a pedofilia é uma coisa boa e que, historicamente, a prática generalizada do coito anal antecedeu a do coito vaginal...
Por: Olavo de Carvalho é jornalista, ensaísta e professor de Filosofia

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

UM PRESENTE DE NATAL DEFINITIVO PARA A MINHA FILHA

Minha querida filha:

Todo Natal eu passo pelo mesmo problema de ter de escolher que presente dar a você. Sei que há várias coisas das quais você certamente iria gostar, como livros, jogos, roupas etc. Porém, eu sou muito egoísta. Sempre quis dar a você algo que iria durar mais do que alguns meses ou anos. Sempre quis dar para você um presente que lhe faria se lembrar de mim a cada Natal, para sempre.

Se eu pudesse lhe dar apenas um presente, o qual você pudesse carregar consigo para sempre, esse presente seria algo aparentemente muito trivial, mas que me tomou vários anos para que eu finalmente o entendesse. Esse presente seria uma verdade aparentemente simples, porém libertadora. E se você aprendê-la agora, essa simples verdade poderá enriquecer sua vida de incontáveis maneiras. Mais ainda: ela poderá lhe poupar de ter de enfrentar vários problemas que já machucaram muitas pessoas que simplesmente nunca a aprenderam.

Essa verdade aparentemente simples, porém libertadora, é a seguinte:

Ninguém deve nada a você.

Importância

Como pode uma afirmação tão simples ser importante? Pode não parecer, mas entendê-la realmente pode ser uma bênção para toda a sua vida.

Ninguém deve nada a você.

Isso significa que nenhuma outra pessoa está vivendo para você, minha filha. Ninguém está nesse mundo para satisfazer suas reivindicações. Ninguém está vivendo em função de você. Simplesmente porque nenhuma outra pessoa é você. Cada pessoa vive por si própria; a felicidade de cada pessoa é algo único e particular, algo que somente ela pode sentir e ninguém mais.

Minha filha, quando você entender que ninguém tem a obrigação de dar a você a felicidade ou qualquer outra coisa, você será libertada e nunca mais terá expectativas em relação a coisas que provavelmente nunca serão como você quer.

Isso significa, por exemplo, que ninguém é obrigado a amar você. Se alguém a ama, é porque existe algo de especial em você que dá felicidade a essa pessoa. Descubra o que é essa coisa de especial que você tem e se esforce para amplificá-la. Assim você será ainda mais amada.

Quando as pessoas fazem algo por você, é simplesmente porque elas querem — porque você, de alguma forma, propicia a elas algo de significativo que faz com que elas queiram agradar você. Elas não agem assim somente porque devem algo a você.

Ninguém deve nada a você.

Da mesma forma, ninguém tem de gostar de você. Se seus amigos querem estar perto de você, não é porque eles se sentem nessa obrigação; é simplesmente porque eles se sentem bem estando com você. Descubra o que os deixa felizes e os faz se sentirem bem, e eles sempre irão querer estar perto de você, sem pedir nada em troca.

Ninguém tem a obrigação de respeitar você. Algumas pessoas podem até mesmo ser cruéis com você. Porém, tão logo você entenda que as pessoas não têm a obrigação de ser bondosas com você — e que, consequentemente, elas de fato podem ser más com você —, você irá aprender a evitar aquelas pessoas que podem lhe ser nocivas. Lembre-se de que você também não deve nada a elas.

Vivendo a sua vida

Ninguém deve nada a você.

Você deve apenas a você mesma a obrigação de ser a melhor pessoa possível. Porque apenas se você for assim é que as outras pessoas irão querer estar com você e irão querer dar a você as coisas que você quer em troca daquilo que você está dando a elas. Essa é a única maneira moralmente correta de se obter as coisas que você quer. Nunca exija nada de ninguém. Apenas faça por merecer.

Algumas pessoas irão optar por se afastar de você por motivos que nada têm a ver com você. Quando isso acontecer, procure em outro lugar as relações que você quer. Não faça com que os problemas de outras pessoas sejam também o seu problema.

Assim que você aprender que precisa fazer por merecer o amor e o respeito dos outros, você jamais irá esperar coisas impossíveis; e, por conseguinte, jamais terá decepções. Da mesma forma que as outras pessoas não têm a obrigação de compartilhar a propriedade delas com você, elas também não têm a obrigação de lhe devotar sentimentos e pensamentos.

Se elas o fizerem, é porque você fez por merecer essas coisas. E aí você terá todos os motivos para se sentir orgulhosa do amor que você recebe, do respeito dos seus amigos, da propriedade que você adquiriu. Porém, jamais pressuponha que tais coisas são fatos consumados. Se agir assim, você irá perdê-las facilmente. Essas coisas não são suas por direito. Não existe algo como "ter direito" a essas coisas. Você sempre terá de fazer por merecê-las.

Minha experiência

Um grande fardo foi retirado dos meus ombros no dia em que finalmente entendi que o mundo não devia nada a mim. Por muitos anos acreditei que havia coisas a que eu tinha direito pelo simples fato de ter nascido. E isso fez com que eu passasse por grandes desgastes — físicos e emocionais — em minha tentativa de coletar esses "direitos".

Ninguém deve a mim respeito, amizade, amor, cortesia, conduta moral ou inteligência. O mundo não me deve nada. E tão logo eu passei a reconhecer isso, todas as minhas relações imediatamente se tornaram muito mais gratificantes. Concentrei-me apenas em estar com aquelas pessoas que queriam fazer as coisas que eu queria que elas fizessem.

Essa compreensão de mundo permitiu que eu me desse bem com amigos, sócios comerciais, clientes, amores e estranhos. Sou constantemente relembrado de que só irei conseguir o que quero se puder entrar no mundo da outra pessoa. Eu tenho de entender como ela pensa, o que ela crê ser importante e o que ela quer. Somente assim eu poderei ser útil para ela e, com isso, conseguir as coisas que eu quero.

E somente então eu serei capaz de discernir se eu realmente quero estar envolvido com tal pessoa. Isso me permite selecionar bem as minhas relações, poupando-me de dissabores; e me permite também direcionar minhas energias apenas para aquelas pessoas com as quais eu realmente tenho mais coisas em comum.

Não é fácil resumir em poucas palavras aquilo que levei anos para aprender. Porém, talvez se você reler esse presente a cada Natal, seu significado ficará mais claro a cada ano.

Eu realmente espero que isso aconteça. Sendo seu pai, quero acima de tudo que você entenda essa simples verdade, a qual pode libertá-la para sempre.

Um Feliz Natal, minha filha!

Por: Harry Browne , o falecido autor de Por que o Governo Não Funciona e de vários outros livros, foi candidato à presidência dos EUA pelo Partido Libertário nas eleições de 1996 e 2000.


ESQUERDA, IDA E VOLTA

Minha vizinha é linda. Minha vizinha é de esquerda. Um problema?

Não para mim, uma alma tolerante e pluralista e mentirosa. Para ela. Mas, como diria Jack, o Estripador, vamos por partes.

Aconteceu em setembro. Começou o ano acadêmico em Lisboa e uma espanhola mudou-se para o apartamento ao lado do meu. Encontrei-a na porta da rua, transportando as malas. Ofereci ajuda. Resposta dela: "Lá porque eu sou mulher você pensa que não consigo?".

Alarme. Feminista na área. Fugir, fugir, fugir --eis o sinal luminoso nos meus neurônios. Mas fugir daqueles olhos absurdamente azuis?

Não, claro que não, e depois falei de uma hérnia discal precisamente por excesso de peso. "É preciso ter cuidado." Ela comprou a primeira mentira. Se Deus me der tempo e saúde, outras se seguirão.

História da donzela: veio para Portugal apaixonada pela literatura dos lusos. A ideia é fazer doutorado, ficar uns anos, experimentar a vida do país. Excelente ideia.

"Pena chegar com esse governo fascistinha, você não acha?", perguntou ela.

Explicação prévia: o governo português atual, que alguns consideram de centro-direita, tem sido um exemplo de socialismo no seu pior. Sobretudo carregando nos impostos como nenhum governo socialista antes dele. Mas o que responder? A verdade, só a verdade, nada mais que a verdade?

Não. A mentira, só a mentira, nada mais que a mentira. "Fascistinha é dizer pouco", murmurei com venenoso sarcasmo.

E eu? Quem sou eu? Que faço? Quais são os meus gostos e desgostos? Falar de colunismo e televisão e livros é matéria interdita. Livros? O último chama-se "Por que Virei à Direita", Deus do céu.

Respondi vagamente ("dou aulas") e depois menti vagamente ("mas o meu sonho é trabalhar numa ONG"). Os olhos dela brilharam e eu senti o meu cachet a subir.

Mas tanta mentira desgasta. Voltando aos livros, é impossível esconder a biblioteca inteira. Foi o primeiro momento em que a máscara quase caiu. "Você lê muito autores de direita, não?", perguntou ela, olhando para as estantes com os meus Hayeks, os meus Oakeshotts, os meus Voegelins.

Pausa. Sangue frio. "Você tem que conhecer o inimigo", respondi. Ela concordou. E depois perguntou pelos autores da minha vida. "Tirando o Slavoj Zizek? Não vejo mais ninguém com qualidade hoje em dia."

Ela não conhecia Zizek. Com luvas e máscara de proteção, comprei um livro do ogro no dia seguinte. Foi o meu presente de aniversário em outubro. Ela gostou de Zizek; mas, surpresa das surpresas, achou as páginas sobre a necessidade de violência revolucionária um pouco excessivas. "Por causa dos inocentes", disse ela.

Eu poderia ter ficado calado. Não fiquei. "Mas você acha que no capitalismo há mesmo inocentes?" Silêncio. E epifania: a única forma de trazer esse anjo um pouco mais para o centro é eu próprio radicalizar-me à esquerda.

Dito e feito: nos últimos tempos, as conversas ficaram surreais. Defendo Cuba. Defendo a Venezuela. Ataco os Estados Unidos até pela falta de água em Lisboa.

E sobre os colunistas de direita que "invadiriam a mídia", os tribunais deveriam fazer qualquer coisa. "Onde está a liberdade, afinal?", pergunto eu, indignado.

De resto, a crise europeia tem responsáveis perfeitamente identificáveis ("a ganância dos bancos") e o "aquecimento global" é a maior ameaça à vida na Terra ("e quem diz o contrário deveria ser preso").

O resultado desse cortejo de insanidades está na moderação dela, que cresce de dia para dia: por cada loucura minha, ela tenta um equilíbrio. "Você é muito radical", eis o mantra dos últimos tempos. Eu medito, faço cara de caso. Depois rendo-me e concordo. "Sim, você tem razão."

O objetivo, agora, é virar o barco para a direita por influência dela. Há sinais de esperança. Tímidos. Tênues. Dias atrás, assistindo ao biopic sobre Thatcher com Meryl Streep no papel da "dama de ferro", arrisquei: "Essa Thatcher era mulher de coragem. Fascista, mas de coragem".

Ela completou. "Eu gosto dela. Quando você é mulher, tem que ser um pouco fascista num mundo de homens." Repicaram os sinos na minha alma.

Se as coisas continuam assim, no próximo ano estaremos os dois no Fórum da Liberdade de Porto Alegre, a cantar hossanas a Milton Friedman e à escola de Chicago. E por que não?
Vem na Bíblia: todas as grandes conversões são sempre histórias de amor à segunda vista.

Por: João pereira Coutinho Folha de SP

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

NÃO ESTRAGUE A FESTA, ESTÚPIDO!

O país da Copa é grande e bobo. "Esta será a Copa das Copas", disse a presidente, de boca cheia, na cerimônia de sorteio dos grupos. No país dela, que é o nosso, ninguém circula nas cidades travadas, nas estradas paralisadas, nos aeroportos congestionados -mas 12 arenas superfaturadas, em recordistas 12 sedes, receberão a mais cara das Copas. Do enclave do Sauípe, uma bolha segura, esparramou-se pelo mundo a linguagem do verde-amarelismo balofo. No país da Copa, um governo "popular" e "de esquerda" reverbera, tanto tempo depois, as frases e os tiques do general-presidente que gostava de futebol. Há um cheiro de queimado no ar.

"O Brasil está muito feliz em receber todos nesta Copa porque somos um povo alegre e acolhedor." Violência é a palavra da hora -e ela surge em curiosas associações com a "Copa das Copas". A barbárie das torcidas do Atlético Paranaense e do Vasco não foi deplorada por seus significados intrínsecos, mas pelas mensagens que supostamente envia ao mundo. Gaiatos da política, do marketing e do colunismo ensaiaram uma sentença que menciona a violência "dentro e fora dos estádios". É senha, com endereço certo: no saco fundo, cabem tanto os torcedores selvagens e os sumidos black blocs quanto manifestantes pacíficos mas indignados com a "Copa das Copas". O pau vai comer.

"Não repara a bagunça" -o dístico popular nacional, candidato eterno, e perfeito, a substituir o "Ordem e Progresso" no núcleo de nossa bandeira, trai o medo da vergonha. Joseph Blatter entendeu e traduziu, chamando-nos a congelar a indignação, sublimar as insatisfações, colocar entre parêntesis as divisões. A unidade em torno de um bem maior, que é a imagem do país diante do planeta que nos vê: eis a gramática do discurso político sugerida pelo chefão da potência ocupante. No país da Copa, a convocação à unidade já foi integrada ao discurso da publicidade. Será repetida à exaustão, como uma ladainha, até o apito final. Não estrague a festa, estúpido!

"Será uma Copa para ninguém esquecer", jactou-se a presidente, formulando uma ameaça involuntária. A partir do Gabinete de Segurança Institucional, estrutura-se uma operação de guerra que abrange as três forças em armas e um desdobrado aparato cibernético. Nas telas dos computadores do sistema de vigilância, cada arena figura como ponto focal de um envelope tridimensional de segurança. Nas ruas, o controle físico do perímetro das arenas, a cargo das PMs, terá a missão de proteger as marcas dos patrocinadores oficiais da ameaça simbólica representada pela presença de manifestantes. Jamais, em tempo algum, o Estado serviu tão direta e exclusivamente a interesses privados. Não: ninguém esquecerá.

O país da Copa não se respeita. Ontem, o partido do governo celebrou políticos condenados por corrupção -e, sob o silêncio cúmplice do presidente de facto e da presidente de direito, achincalhou um STF composto por juízes que eles mesmos indicaram. O país da Copa perdeu o autorrespeito. Os líderes governistas manobram para o Congresso não ouvir um ex-secretário nacional de Justiça que acusa o governo ao qual serviu de operar uma fábrica de dossiês contra adversários políticos. O país da Copa perdeu o respeito. As lideranças do PSDB preferem empregar táticas diversionistas vexatórias a colher assinaturas para uma CPI destinada a investigar todos os contratos estaduais e federais firmados com a Siemens. Yes, nós gostamos de futebol.

No vale-tudo da nova ordem do racialismo, perdemos, ademais, um senso básico de decoro: eu li -aqui mesmo, não nas catacumbas da internet!- que Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert formaram "um casal mais parecido com representantes de afrikâners". Cores, rancores. No país da Copa, nativos felizes, contentes, de bunda de fora, tocavam caxirola. Foi bonita a festa, pá -pena que nem começou.
Por: Demétrio magnoli Folha de SP

OBAMA SE APROXIMA DO IRÃ E SAUDITAS SE IRRITAM

O "Plano de Ação Conjunta" assinado pelo Irã com o assim chamado P5+1 (China, França, Alemanha, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos) em 24 de novembro, em Genebra, foi motivo de comemoração para os árabes xiitas, preocupação para os árabes sunitas e pânico para os sauditas. A reação saudita acarretará consequências imprevisíveis e de longo alcance.


Quando o chefe dos negociadores do Irã, Mohammad Javad Zarif, trouxe para casa um acordo no valor de cerca de 23 bilhões de dólares, os árabes xiitas acertaram o passo com Teerã. O primeiro ministro do Iraque Nouri al-Maliki manifestou seu "total apoio a esse passo". O presidente da Síria Bashar al-Assad deu boas-vindas ao acordo, como sendo "o melhor caminho para sustentar a paz e a estabilidade". O Presidente da Câmara do Parlamento do Líbano,Nabih Berri chamou o entendimento de "acordo do século". E o Hisbolá considerou o acordo uma "grande vitória para o Irã".

Multidão jubilosa dá boas-vindas ao negociador iraniano na chegada de Genebra.


Por outro lado, entre os sunitas de língua árabe, as reações iam desde um apoio discreto, irritação, até apavoramento. O mais entusiasmado, talvez, foi o jornal estatal do egípcio Al-Ahram, que classificou o acordo de "histórico". A maioria dos países permaneceu em silêncio. Os que mostraram maior preocupação foram os sauditas. Com efeito, o gabinete do governo declarou oficialmente que "se houver boa vontade, o acordo poderá ser um passo inicial para alcançar uma solução abrangente para o programa nuclear iraniano", contudo, observe o ceticismo conferido nas primeiras quatro palavras.

Assad da Síria, pichado no cartaz, elogiou o acordo de Genebra.


Se esta foi a reação mais moderada, talvez o comentário mais desenfreado tenha sido do príncipe saudita Alwaleed bin Talal, que vez ou outra solta balões de ensaio para a família real: classificou o Irã de "enorme ameaça" salientando que, falando historicamente, "o império persa sempre foi contra o império muçulmano árabe, especialmente contra os sunitas. A ameaça vem da Pérsia, não de Israel", uma declaração pública pioneira e memorável.

Príncipe saudita Alwaleed bin Talal no trono de sua aeronave, sentado sob o logotipo de sua companhia.


Alwaleed então enumerou que os iranianos estão "no Bahrein, no Iraque, na Síria, com o Hisbolá no Líbano e com o Hamas, que é sunita, em Gaza". Conforme indica a lista acima, os sauditas estão obcecados pelo perigo de estarem cercados por agentes do Irã, e mais assustados ainda pelas implicações não nucleares do plano conjunto do que pelas implicações nucleares. Gregory Gause da Universidade de Vermont entende que a preocupação dos sauditas é que o acordo abra o caminho "sem quaisquer obstáculos" para que o Irã atinja a hegemonia regional. (Esse quadro contrasta tanto com a posição israelense quanto com a ocidental, que se concentra no perigo nuclear).

Abdullah al-Askar, nomeado para presidente da comissão de negócios estrangeiros do Conselho Shura, faz a seguinte análise: sua preocupação se refere ao "oferecimento de mais espaço ao Irã ou carta branca na região. Mês a mês o governo do Irã tem comprovado ter um projeto ameaçador na região, consequentemente ninguém na região irá dormir sossegado e acreditar que está tudo bem. Os povos da região sabem que o Irã irá interferir na política de diversos países".

A mídia saudita vem repetindo essa linha de pensamento. Al-Watan, um jornal estatal, alertou que o regime do Irã, "que penetra outros países da região com seus tentáculos ou tenta penetrar a qualquer custo", não se intimidará pelo acordo. Outro diário, Al-Sharq, expressa em um editorial o temor que o "Irã teria feito concessões no dossiê nuclear em troca de maior liberdade de ação na região".

Alguns analistas, especialmente nos países de menor extensão do Golfo Pérsico, foram ainda mais longe. Jaber Mohammad, analista bareinita, previu que o "Irã e o Ocidente chegarão agora a um acordo sobre a divisão da influência no Golfo". O Al-Quds Al-Arabi de propriedade do governo do Catar teme "a aliança dos EUA com o Irã, com o apoio russo". A circulação de boatos sobre o desejo de Obama de visitar Teerã, só faz confirmar as suspeitas.

O embaixador saudita em Londres, Príncipe Mohammed bin Nawaf bin Abdulaziz, tirou a conclusão pública mais evidente, ameaçando, "não assistiremos passivamente, nem seremos ameaçados sem cogitar seriamente a melhor maneira de defender nosso país e nossa região". Colocando a coisa de maneira educada, normalmente não é assim que os diplomatas sauditas se referem aos seus colegas muçulmanos.

Como interpretar toda essa estranha retórica? A belicosidade iraniana e a política pró-iraniana da administração Obama juntas acabaram com muitas décadas de dependência estratégica saudita de Washington e fizeram com que eles começassem a pensar em como se defender. Isso é muito importante, visto que Alwaleed se vangloria corretamente, que seu país é o líder dos árabes, desfrutando da maior parte do respaldo internacional, regional, cultural e religioso. O resultado dessa convicção recém descoberta, lutar contra irmãos islamistas, aliar-se tacitamente com Israel, adquirir talvez armas nucleares paquistanesas e quem sabe até se aproximar de Teerã, marca outra consequência da implosão da política externa de Barack Obama.

POR DANIEL PIPES Publicado no The Washington Times.


Tradução: Joseph Skilnik


domingo, 22 de dezembro de 2013

HIPERTENÇÃO


Novo limite para pressão arterial deve ser adotado no Brasil

Recomendação americana sugere que nível máximo de pressão arterial passe para 15 por 9 em pessoas acima dos 60 anos. Há trinta anos, a diretriz é fixada em 14 por 9
Vivian Carrer Elias

Hipertensão: Novas recomendações americanas podem poupar muitos pacientes de tomar medicamentos para controlar a pressão arterial (Thinkstock)

Há trinta anos, os médicos preconizam que a pressão arterial de um paciente fique abaixo de 14 por 9. Um artigo publicado nesta quarta-feira por pesquisadores americanos sugere que essa medida passe a ser de 15 por 9 para pessoas com mais de 60 anos. A mudança pode resultar em uma considerável redução do número de pacientes que fazem uso de medicamentos para diminuir a pressão arterial.

Saiba mais:

Pressão arterial diastólica
É a pressão arterial mínima registrada durante a diástole, momento em que os músculos cardíacos relaxam e os ventrículos se enchem de sangue.

Pressão arterial sistólica
É a pressão máxima exercida sobre as artérias, no momento em que o coração bombeia sangue para o corpo.

Embora as mudanças tenham sido sugeridas nos Estados Unidos, é provável que elas sejam adotadas no Brasil. "Nós usamos as diretrizes americanas e europeias como um norte para as nossas. A tendência é seguirmos a mesma linha", diz o cardiologista Luiz Bortolotto, diretor da Unidade Clínica de Hipertensão do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da USP (Incor). O médico vai coordenar as novas diretrizes brasileiras sobre pressão arterial, que devem ser lançadas no ano que vem – as últimas saíram em 2010.

Leia também:

As orientações ainda devem levar uns meses para chegar aos pacientes brasileiros — segundo Bortolotto, as diretrizes americanas não serão adotadas imediatamente. As mudanças tampouco significam que todos os idosos com pressão menor do que 15 por 9 não precisem mais tomar remédios hipertensivos. "Uma diretriz funciona como um guia, mas todo o tratamento precisa ser individualizado", explica o cardiologista.

Proibido para menores — As recomendações se basearam nos resultados de uma série de estudos feitos nos últimos anos. Os especialistas não encontraram benefícios em reduzir a pressão para menos de 15 em pessoas acima de 60 anos. Para pacientes mais jovens, diabéticos e portadores de doenças renais, ainda não há evidências de que a medida deva ser adotada – motivo pelo qual as novas recomendações se restringem aos mais velhos.

"A pressão sistólica (máxima) do idoso aumenta em decorrência do enrijecimento do vaso, algo que acontece naturalmente com todos que envelhecem. Muitas vezes, porém, a pressão diastólica (mínima) passa a ser mais baixa do que o normal. Assim, tentar reduzir a pressão arterial de forma muito agressiva pode, em alguns casos, diminuir muito a diastólica e oferecer mais prejuízos do que benefícios", diz Bortolotto.

Além disso, explica o cardiologista, os idosos são mais tolerantes a uma pressão um pouco mais elevada do que os jovens, e podem sofrer efeitos adversos perigosos com uma pressão muito reduzida – incluindo tontura acentuada e risco de isquemia. "É aceitável uma pressão arterial pouco mais elevada entre idosos, mas dentro de limites estabelecidos por diretrizes como essas", diz Leopoldo Piegas, cardiologista do Hospital do Coração (HCor).

As novas orientações foram feitas por 17 especialistas nomeados pelo governo americano. Elas ainda não são oficiais — as diretrizes da Associação Americana do Coração e do Colégio Americano de Cardiologia devem ser atualizadas no fim de 2014. Especialistas ouvidos pelo jornal americano The New York Times não souberam precisar quantas pessoas que hoje tomam medicamentos para reduzir a pressão poderiam deixar de fazê-lo. Mas, segundo o presidente da Sociedade Americana da Hipertensão, William White, milhões de pessoas acima de 60 anos têm pressão sistólica entre 14 e 15. 
Fonte Revista Veja

O NARIZ DO VIKING


Desculpem voltar ao assunto, mas a inépcia da classe universitária neste país é uma fonte de inspiração inesgotável para este deslumbrado colunista. Há coisas que o gênio mais excelso não conseguiria inventar, que não existem nem entre o céu e a terra nem na nossa vã filosofia, mas que jorram da idiotice aos borbotões, num fluxo incessante de criatividade que só encontra igual, mutatis mutandis, no primeiro capítulo do Gênesis. 

Leiam esta frase da nossa já conhecida profa. Luciana Ballestrin: “Mesmo os velhos e os contemporâneos clássicos do liberalismo político moderado são capazes de aceitar a tolerância, a diferença, a liberdade de expressão...”

O tom de superior condescendência sugere que a tolerância, o respeito à diferença etc. são virtudes tão bem repartidas entre vários regimes políticos, que até mesmo os liberais são capazes de praticá-las um pouquinho.

No mundo real, porém, ninguém ignora que essas virtudes foram inventadas pelos liberais e só existem nos sistemas políticos que o liberalismo criou ou nos quais deixou sua marca profunda. Elas são o liberalismo. Em todos os outros regimes, só o que se vê é rigidez, intolerância, perseguição, encarceramento e matança dos divergentes. Não podendo negar esse fato, mas odiando reconhecê-lo, a articulista da Carta Maior apela ao expediente pueril de atenuá-lo mediante o uso do modo comparativo. Mas comparações só funcionam quando há elementos a ser comparados, e no caso não há nenhum. No mundo moderno não há exemplos de tolerância e liberdade fora do liberalismo. Não se trata portanto de uma comparação autêntica, mas de um fingimento, de uma comparação postiça, absurda, produzida à força para fins puramente pejorativos. Fingindo louvar um mérito, a professora o achincalha ao dividi-lo com quem não o tem, deixando ao seu portador único e genuíno só um tiquinho, uma lasquinha da virtude supostamente geral, como quem dissesse: “Até mesmo os ovíparos botam ovos.”

Para piorar um pouco mais as coisas, ela não reconhece essas virtudes políticas nem mesmo em todos os liberais, mas só nos “moderados”. Fica subentendido que existem liberais radicais que as negam. Mas a única facção radical que existe nas hostes liberais é o libertarianismo, que em vez de negar a tolerância e a liberdade as amplia até à demência. Se alguém entre os liberais aceita moderá-las em vista de outras considerações, são precisamente... os moderados.

Vem mais: “Seria um tanto contraproducente esboçar nessas linhas argumentos e razões que tentem comprovar que o Brasil não é governado por comunistas e que a universidade brasileira não está intoxicada pelo marxismo.” Se ela dissesse que esboçar esses argumentos é “desnecessário”, entenderíamos que, na sua opinião, são pontos pacíficos, fatos notórios que nem é preciso provar. É obviamente isso o que ela deseja que o leitor acredite. Mas, ao escolher a palavra com que vai dizê-lo, ela se trai e diz o inverso. Reiterar a demonstração do óbvio pode ser desnecessário, tedioso, supérfluo. “Contraproducente”, nunca: uma demonstração é contraproducente quando, em vez de dar o resultado esperado, produz o seu oposto e, no esforço de repetir a pretensa certeza adquirida, acaba por demoli-la. A professora sabe que é precisamente isso o que aconteceria se ela tentasse provar a inexistência da hegemonia marxista nas nossas universidades, pela simples razão de que essa hegemonia é um fato. Em tão constrangedora circunstância, ela tenta fazer o leitor engolir como verdade notória e arquiprovada algo que ao mesmo tempo ela confessa não poder provar de maneira alguma. Tentando ser esperta, só prova que é mesmo uma boboca. Numa das tiras de “Hagar, o Horrível”, o robusto viking encontra seu amigo magrinho, cujo nome esqueci, esmurrando vigorosamente o própio nariz. “Que raio de coisa é essa?”, pergunta o chefe. E o outro, todo orgulhoso: “Um guerreiro precisa vencer-se a si mesmo.” A profa. Ballestrin estudou nessa escola.

Completando: “Da mesma maneira estéril, argumentar que o eurocentrismo, o colonialismo e o progresso moderno não são completamente afastados do marxismo e que justamente por isso, ele encontra resistência nos movimentos decoloniais latino-americanos.”

Não liguem para a palavra “decoloniais”: é o neologismo pedantíssimo com que alguns intelectuais anticolonialistas de Nova York insinuam que ainda são colonizados, coitadinhos. O que a professora está dizendo é que eles se irritam com os parágrafos em que Marx reconhece o papel positivo do colonialismo europeu no desenvolvimento das forças produtivas. Mas ver nessa ranhetice de detalhe uma “resistência ao marxismo” é como dizer que Lênin “resistiu ao marxismo” quando achou que podia fazer a revolução com meia dúzia de intelectuais em vez de esperar pelo proletariado. Não faz o menor sentido ressaltar a “importância das várias correntes do marxismo, do vulgar e ortodoxo para o crítico e arejado” (sic), e depois imaginar que as diferenças que as separam sejam “resistências ao marxismo”. Todas essas divergências e uma infinidade de outras brotam dentro de um marco conceitual que permanece estritamente marxista.

Cada vez que os comunistas divergem uns dos outros, isso é explicado, dentro do movimento, como uma prova da sua pujança e riqueza de perspectivas, e, fora, como uma prova de que o comunismo acabou e de que preocupar-se com ele é “paranóia”. A professora Ballestrin pensa que pode fazer as duas coisas de uma vez. Por isso mesmo, acaba não fazendo nem uma, nem a outra. 

POR OLAVO DE CARVALHO Publicado no Diário do Comércio.

sábado, 21 de dezembro de 2013

IBGE PRODUZ PEÇA DE PROPAGANDA ELEITORAL

Antecipando-se à campanha eleitoral de 2014, instituto transforma o estudo dos indicadores sociais numa defesa escancarada da Era Lula e do Programa Bolsa-Família.

O corte justamente a partir de 2002 tem claramente um viés político, como se a melhoria de indicadores sociais – algo de evolução lenta e precisão difícil – fosse regida pelo calendário das urnas.

A edição brasileira do jornal “El País”, que começou mais governista do que diário oficial, estreou com uma vergonhosa entrevista da presidente Dilma Rousseff, no dia 26 de novembro, da qual só se salva a foto de autoria de Uly Martín, por sinal, de arquivo. Com um olhar desafiador, a presidente forma um círculo com o dedo médio sobre o polegar e, como se fora um Justo Veríssimo de saias, manda o povo brasileiro para aquele lugar impublicável. Mas essa foto “punk” nada tem a ver com a entrevista “pink”, em que o diretor do “El País”, Javier Moreno, de forma rastejante, faz o papel de assessor de imprensa e, como se fosse mero lacaio do Planalto, não só chama Dilma Rousseff de “presidenta” e tece loas aos governos petistas, como se esforça por tornar compreensível a própria Dilma, ao traduzi-la para o vernáculo.

É claro que, mesmo para o “El País”, um dos mais conceituados jornais do mundo, não é fácil bajular a presidente Dilma Rousseff a ponto de torná-la inteligível. Depois dos primeiros dois terços de entrevista, o editor vai perdendo o fôlego de copidesque e a verdadeira Dilma se revela. Ao tratar da espionagem norte-americana, Dilma se confunde com a nação e se declara soberana: “Uma relação como a do Brasil e dos Estados Unidos, que os dois países querem que seja estratégica, não pode ter como característica uma violação nem dos direitos civis da minha população nem da minha soberania”. Parece pouca coisa, mas é inadmissível a presidente acreditar que a soberania prevista na Constituição é imanente à sua pessoa e não à nação. Um adulto alfabetizado que não sabe disso não pode nem mesmo ser síndico de prédio, pois corre o risco de burlar a soberania das assembleias de condôminos.

Bastante à vontade diante do vexatório papel do “El País”, Dilma Rousseff, depois de vender as maravilhas de seu governo ao jornal espanhol, fez uma revelação na entrevista: “Esta semana resolveram reavaliar o PIB. E o PIB do ano passado, que era 0,9%, passou para 1,5%. Nós sabíamos que não era 0,9%, que estava subestimado o PIB. Isso acontece com outros países também. Os Estados Unidos sempre revisam seu PIB. Agora nós neste ano vamos crescer bem mais do que 1,5% – resta saber quanto acima”. Tão logo a declaração de Dilma foi publicada, a imprensa correu atrás da confirmação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão responsável pela apuração e consolidação do PIB. Na ocasião, o IBGE não quis adiantar os números da revisão e limitou-se a informar que no dia 3 de dezembro iria divulgar, além dos resultados do terceiro trimestre, eventuais revisões no PIB, que, em 2012, teve uma redução de 0,3%, o pior resultado desde 2009.

Como Brasília ainda não é Buenos Aires, muito menos Caracas, os índices declarados por Dilma Rousseff ao “El País” não se confirmaram, numa prova de que os órgãos do governo ainda têm alguma autonomia técnica. Na terça-feira, 3, o IBGE anunciou que houve, de fato, uma revisão do PIB, mas seu crescimento não foi de 1,5%, como havia dito a presidente, e, sim, de 1%, apenas um décimo porcentual a mais do que o índice de 0,9% anteriormente constatado. Já a expansão do PIB no segundo trimestre foi mais expressiva após a revisão, passando de 1,5% para 1,8%. Além disso, o IBGE anunciou que está fazendo alterações na metodologia de cálculo do PIB e que as revisões definitivas devem ser divulgadas no final de 2014 (ano eleitoral) ou no início de 2015 (ano da inevitável quebradeira pós-Copa).

Manipulando índices econômicos
Um dia antes desse anúncio do IBGE, o ministro da Fazenda, Guido Mantega (provavelmente um dos piores titulares que já passaram pela pasta na história do Brasil), fez a seguinte declaração: “O crescimento do PIB no terceiro trimestre [deste ano] sobre o terceiro trimestre de 2012 está projetado em 2,5 por cento”. Essa afirmação do ministro reforça a tentativa de ingerência política no cálculo do PIB já manifestada por sua chefe ao “El País”. A definição do PIB pelo IBGE é coisa séria. O cálculo do PIB não é apenas uma descrição matemática dos fatos econômicos – dele decorrem consequências políticas e jurídicas. O repasse de verbas para Estados e municípios, por exemplo, depende de critérios que envolvem renda per capita, que, por sua vez, envolve o PIB.

Portanto, o desejável é que nem a presidente da República nem o seu ministro da Fazenda metam o bedelho no cálculo do PIB. Quando Guido Mantega antecipa um novo crescimento do PIB no trimestre, antes mesmo que ele tenha sido oficialmente anunciado, fica a impressão de que o ministro da Fazenda determinou ao IBGE que lhe produza um PIB de encomenda e que suas especulações antecipadas a respeito do assunto são uma tentativa de disfarçar a ingerência política nos índices econômicos. O mercado não gostou das declarações da presidente Dilma Rousseff sobre a revisão e crescimento do PIB. E com razão: nos países bolivarianos da América Latina, especialmente na Argentina de Cristina Kirchner e na Venezuela de Chávez & Maduro, os índices econômicos, inclusive a inflação, são claramente manipulados para satisfazer objetivos políticos.

O Brasil provavelmente não chegará a tanto, mas seus órgãos técnicos não estão totalmente imunes a desvirtuamentos políticos. Prova disso é a “Síntese dos Indicadores Sociais 2013”, divulgada na semana passada pelo IBGE. Essa série de estudos teve início ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, por recomendação da ONU. Na sessão de 29 de fevereiro de 1997, a Comissão de Estatística da ONU aprovou a adoção, por parte dos países-membros, de um conjunto de indicadores sociais para compor uma base de dados nacionais mínima, capaz de possibilitar o acompanhamento técnico de programas sociais. Surgia, assim, a Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, publicada pela primeira vez em 1999, ainda no governo tucano, e elaborada a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que abrange todo o território nacional.

O IBGE cruza os dados dessa fonte básica de informação com dados de suas outras pesquisas sobre emprego, orçamentos familiares e situação dos municípios, por exemplo. E também recorre a dados externos, sobretudo do MEC e do Ministério da Saúde. O resultado é praticamente um livro, majoritariamente composto por gráficos e tabelas, mas também recheado de análises e comentários técnicos. A Síntese dos Indicadores Sociais de 2013 do IBGE tem 266 páginas e traz indicadores sociais sobre aspectos demográficos da população brasileira, como taxas de mortalidade e fecundidade, arranjos familiares, domicílios, educação, saúde, trabalho e rendimento. Também trata de grupos populacionais específicos, como crianças, jovens, idosos e mulheres, e aborda desigualdades raciais e de gênero, já mencionadas na recomendação da ONU sobre os indicadores sociais mínimos.

Calendário das urnas no IBGE
A despeito desse esmero técnico, a “Síntese dos Indicadores Sociais 2013” não consegue esconder seu viés político. Na introdução do documento, o IBGE afirma: “Entre 2002 e 2012, a sociedade brasileira passou por mudanças que produziram impactos significativos sobre as condições de vida da população. Por um lado, o dinamismo do mercado de trabalho se traduziu no crescimento da população ocupada e na formalização das relações de trabalho, onde um contingente maior de trabalhadores passou a contar com uma série de direitos e benefícios vinculados à posse da carteira de trabalho. Da mesma forma, o crescimento real do rendimento do trabalho ampliou não apenas o acesso de mais trabalhadores ao mercado de consumo, como também reduziu os diferenciais de rendimento de trabalho”. O IBGE destaca, ainda, “o papel desempenhado pelo salário mínimo, cuja valorização neste período permitiu a ampliação do poder de compra dos trabalhadores”.

O que primeiro chama a atenção nesse texto é o período a que se refere – “entre 2002 e 2012” –, que remete justamente aos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva e à primeira metade do governo Dilma, ou seja, aos governos do PT. Alguém pode imaginar que a escolha do período não passa de uma coincidência, por se tratar de um decênio. Mas a “Síntese dos Indicadores Sociais” não é decenal como o Censo, portanto, seria mais natural estabelecer comparações com suas edições anteriores, como a de 2012, a de 2010, a de 2009, a de 2007, etc. Se fosse para falar de decênio, então que se usassem os referenciais exatos: década de 1990, década de 2000 etc. O corte justamente a partir de 2002 tem claramente um viés político, como se a melhoria de indicadores sociais – algo de evolução lenta e precisão difícil – fosse regida pelo calendário das urnas.

Compulsando virtualmente edições anteriores da “Síntese dos Indicadores Sociais”, constata-se que esse tipo de reflexão, em moldes claramente políticos, tem tudo para ser inédito. As primeiras “Sínteses”, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, eram sóbrios conjuntos de tabelas acompanhados de notas técnicas. Posteriormente, no governo Lula, elas foram transformadas em livros, com análises mais rebuscadas. Mas as introduções das “Sínteses” dos anos anteriores são estritamente técnicas: elas explicam a importância dos bancos de dados estatísticos para os Estados nacionais, baseando-se na recomendação da ONU, e discutem aspectos históricos ou metodológicos desse gênero de estudos. Já a introdução da “Síntese dos Indicadores Sociais 2013” é uma anomalia. Creio que, como se trata da última edição desse estudo antes das eleições de 2014, o IBGE foi obrigado a antecipar o horário eleitoral gratuito, transformando a “Síntese 2013” numa peça de propaganda política.

Um crime de lesa-ciência
Quando afirma que, “entre 2002 e 2012, a sociedade brasileira passou por mudanças que produziram impactos significativos sobre as condições de vida da população”, o IBGE simplesmente está cometendo crime de lesa-ciência. O impacto mais significativo sobre as condições de vida da população brasileira – especialmente sobre as condições de vida da população mais pobre – continua sendo o fim da inflação. Que não ocorreu entre 2002 e 2012 e, sim, em 1994, com a adoção do Plano Real, liderado pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco. Nada corroía mais o poder aquisitivo do trabalhador do que a inflação desenfreada. A inflação reduzia a vida das famílias pobres a uma luta diária pela sobrevivência. Não era possível pensar nada a longo prazo. Tudo se resumia a disputar preços com remarcadores nos supermercados.
Dilma Rousseff: politizando até os indicadores técnicos, como o PIB

O IBGE vai mais longe e não se peja de fazer propaganda explícita do Programa Bolsa-Família, criado pelo então presidente Lula, que confessadamente se inspirou no Programa Renda Cidadã do governador de Goiás, Marconi Perillo, do PSDB. Eis o que afirma o IBGE, como se a “Síntese 2013” fosse para ser lida no horário eleitoral gratuito: “A criação, ampliação e consolidação de um conjunto de políticas de transferência de renda voltadas para segmentos da população historicamente excluídos de medidas protetivas por parte do Estado contribuiu também para a redução nos indicadores de desigualdade de rendimento, acesso a programas e serviços de saúde na área de atenção básica e frequência escolar. A ampliação do ensino obrigatório para crianças de 4 a 17 anos de idade, prevista na legislação vigente, renova os desafios de superação dos gargalos reconhecidos, como o acesso à educação infantil e ao ensino médio”.

Na expressão “historicamente excluídos”, percebe-se Lula falando pela boca do IBGE: “Nunca antes na história deste País...” Pelo menos desde Getúlio Vargas, o Estado brasileiro demonstra grande preocupação com os excluídos. Da carteira de trabalho ao seguro-desemprego, passando por instituições como Cohab (habitação) e Cobal (alimentos), o Estado sempre se preocupou com os pobres. Se essa preocupação dá resultados ou não é outra história, mas que ela existe, não há dúvida. A maioria dos políticos costuma dizer que trabalha para os pobres, pois os ricos não precisam do Estado. E é verdade. Mesmo quando um político pratica corrupção, ele o faz no bojo de obras ou políticas públicas voltadas para os mais pobres. Por incrível que pareça, o único político que fez questão de alardear ter trabalhado para os ricos foi o próprio Lula, ao admitir que os bancos nunca lucraram tanto como em seu governo e ao transformar o BNDES no provedor da Bolsa-Empresário.

Progressiva estatização da mendicância
De acordo com o último relatório de gestão consolidado do Programa Bolsa Família, publicado em março de 2012 e que traz os dados relativos a 2011, em oito anos de existência, “o Bolsa Família expandiu-se, tornando-se um dos programas sociais de maior cobertura na rede de proteção social brasileira”. O ufanismo da frase anterior é justificado pela frase seguinte, também extraída literalmente do relatório oficial do programa: “Saltou de 3,6 milhões de famílias beneficiárias, em 2003, para 13,3 milhões em dezembro de 2011”. Esse número é superior à meta de 12,9 milhões de famílias que havia sido fixada no Plano Plurianual 2008-2011. E o número de famílias beneficiadas pelo Bolsa-Família continua crescendo: no último mês de novembro, segundo dados oficiais do Ministério do Desenvol-vimento Social, foram 13.830.095 famílias beneficiadas, que receberam um total de R$ 2,109 bilhões em benefícios. Somente nos 23 últimos meses, 468.592 famílias foram incorporadas ao programa, ou seja, quase meio milhão de famílias.

Se considerarmos uma média de quatro pessoas por família atendida, chega-se à conclusão de que o Programa Bolsa-Família beneficia, no mínimo, 55 milhões de brasileiros, mais de um quarto da população do País. Notem que esse número é expressivamente superior os 40 milhões de brasileiros que o governo Lula, com a varinha de condão estatística da Fundação Getúlio Vargas, diz ter transformado na “nova classe média” – a maior mentira oficial de toda a história do Brasil, apesar de referenda por uma das maiores universidades do País. Diante desses escandalosos dados oficiais, não há razão para o IBGE se ufanar das políticas de transferência de renda do governo federal, atribuindo a elas “a redução nos indicadores de desigualdade de rendimento, o acesso a programas e serviços de saúde na área de atenção básica e a frequência escolar”. Ao contrário do que diz o IBGE, isso nada tem a ver com redução sustentável da desigualdade – é apenas a progressiva estatização da mendicância.

Na equipe que coordenou a “Síntese dos Indicadores Sociais 2013” do IBGE, não deve haver nenhum economista liberal. Devem ser todos keynesianos ou marxistas, pois a fé no Estado, como salvador da humanidade, está presente a cada linha do documento. Exemplo disso é a análise que o IBGE faz da geração que ele próprio classificou de “nem-nem” – jovens de 15 a 29 anos que nem trabalham nem estudam e somam 19,6% nessa faixa etária. O próprio IBGE destacou esse aspecto da pesquisa, alardeando-o na imprensa. E um dado que provocou verdadeira comoção nos jornais, norteando as manchetes do noticiário sobre a pesquisa, diz respeito às mulheres: “A proporção de mulheres entre os que não estudavam e não trabalhavam foi crescente com a idade: 59,6% entre aqueles com 15 a 17 anos de idade, atingindo 76,9% entre as pessoas de 25 a 29 anos de idade”.

Os jornais quase derramaram lágrimas, acreditando, como o IBGE, que estavam diante da discriminação de gênero. Ocorre que tinham pelo menos um filho: 30% das mulheres de 15 a 17 anos de idade; 51,6% daquelas de 18 a 24 anos e 74,1% daquelas de 25 a 29 anos. Isso explica o alto porcentual de mulheres que não trabalham nem estudam nessa fase da vida. Em sua maioria, elas fazem opção preferencial pelo filho por uma questão de bom senso, recorrendo ao conceito de vantagens comparativas ainda que intuitivamente. De que adianta trabalhar fora e gastar quase todo o salário com uma babá para cuidar do filho? Ou negligenciar o rebento para frequentar uma escola de alta periculosidade, que mal consegue formar analfabetos funcionais? A despeito do feminismo, muitas mulheres querem ser mães. No México, 77% das jovens mexicanas nem estudam nem trabalham fora, preferindo criar família.

Mais grave do que não trabalhar nem estudar para cuidar do filho é não trabalhar e fingir que estuda apenas para eternizar uma esmola estatal. Mas não é o que pensa o IBGE, que replica em seus estudos o pensamento hegemônico nas universidades. A “Síntese dos Indicadores Sociais 2013” foi produzida à luz da Emenda Consti-tucional nº 65, que transformou em crianças jovens maiores de 18 anos e resultou no Estatuto da Juventude, uma lei que considera totalmente dependentes da família, do Estado e da sociedade marmanjos de até 29 anos de idade. Daí a explícita preocupação da pesquisa do IBGE com os adultos que se enquadram nessa faixa etária. Como o artigo 227 da Constituição, transformado pela Emenda 65, igualou os jovens adultos às crianças de colo, a geração “nem-nem” criada pelo IBGE deixa de ser uma questão de vadiagem para se tornar um problema do Estado e da sociedade – transformados pela Constituição em babás de marmanjos. 
Publicado no Jornal Opção.
Por: José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

CONVERSA VENCIDA

Muito pouca gente deve lembrar de alguma ocasião em que se falou tanto de dois internos do sistema penitenciário nacional como se fala agora de José Dirceu e José Genoino. Os dois magnatas estavam abaixo só de Deus, no PT ─ é natural, assim, que sua condenação no STF por crime de corrupção tenha rendido uma montanha de assuntos para a imprensa, os cidadãos que se manifestam pela internet e todo brasileiro que tem, ou acha que tem, algo a comentar sobre política. Genoino teve ou não um começo de infarto na prisão da Papuda, em Brasília, em razão do qual foi removido para um hospital? Aliás, existe mesmo isso ─ “começo de infarto”? O que José Dirceu tem no currículo profissional que justificasse sua contratação por 20 000 reais por mês para gerir um hotel quatro-estrelas de Brasília ─ emprego do qual acabou desistindo? Haveria alguma relação entre o convite, necessário para que Dirceu possa cumprir sua pena em regime semiaberto, e o dono do hotel, um íntimo amigo do governo petista e próspero beneficiário de concessões de rádio? Por que o PT chama Genoino e Dirceu de “presos políticos”, mas não diz uma palavra sobre á condenação da banqueira Kátia Rabello ou de Marcos Valério, por exemplo, que receberam penas de prisão muito mais pesadas? A presidente Dilma Rousseff ficou contrariada, mesmo, com o tratamento diferenciado que os dois têm recebido na Papuda? Se Genoino é um homem inocente, por que renunciou, na semana passada, a seu mandato de deputado ─ estava achando que iria ser cassado pelo plenário?

Muita conversa, como se vê. Mas será que valeria mesmo a pena falar tanto assim desse assunto? Parece, num exame um pouco mais atento, que se está queimando muita vela para pouco santo. Começando por Genoino, por exemplo, logo se vê que a viga mestra do debate é o fato de que ele não se beneficiou financeiramente em nada com as traficâncias do mensalão ─ é um homem honrado e não enriqueceu no governo. Estaria provada, já aí, a injustiça da sua condenação. Mas os usuários desse tipo de argumento se recusam a aceitar uma realidade óbvia: nunca esteve em julgamento, em sete anos de processo, a integridade pessoal de Genoino. O que se julgou foi outra coisa: se ele violou ou não os artigos 288 e 333 do Código Penal brasileiro, que punem os crimes de formação de quadrilha e de corrupção ativa. Da mesma forma, os movimentos pró-Genoino ─ e ele próprio, ao levantar o punho esquerdo para os fotógrafos no momento da prisão, como se estivesse liderando um ato político ─ passaram a sustentar que o ex-líder está preso só porque foi presidente do PT. É o contrário dos fatos: Genoino está preso porque assinou cheques que serviram de base para uma vasta operação de fraude bancária. É a sua assinatura, e de ninguém mais, que está lá.

Gasta-se muito latim, também, com lembranças sobre o passado do chefe petista, como se ele fosse um herói da história brasileira recente. Mas, quando se sai da biografia e se vai ver a obra, o que aparece? Na vida como ela é aparece um cidadão que achou possível derrubar o governo do Brasil sem combinar nada com os 90 milhões de brasileiros da época, reunindo meia dúzia de seguidores mal armados, mal treinados e mal comandados num dos cantos mais remotos do território nacional ─ o fundão do Araguaia, onde se limitou, o tempo todo, a ficar fugindo da tropa, até seu grupo ser liquidado e ele próprio ser preso. O objetivo do seu movimento, para completar, era criar uma ditadura no Brasil, em substituição ao regime militar; nada mais distante da realidade do que a fantasia espalhada hoje segundo a qual Genoino foi um combatente da democracia e da liberdade no Brasil.

Dirceu, que também é discutido como um homem importantíssimo, não tem valor maior. Com 67 anos de idade e uns 45 de militância, passou a vida inteira fazendo tudo para chegar ao poder, por qualquer meio que fosse ─ e quando enfim chegou lá, com a vitória de Lula na eleição presidencial de 2002, mal conseguiu ficar dois anos no governo. Que gênio político é esse? Pior: na vida real, ninguém prejudicou tanto a Dirceu quanto o homem que ele tem servido há décadas: o ex-presidente Lula, que o demitiu do seu ministério já em 2005 e sepultou a sua carreira, sem jamais ter dito uma palavra para explicar por que fez isso. Não foi o ministro Joaquim Barbosa nem a “direita” que botaram Dirceu na rua ─ foi Lula. Se o mensalão não existiu e Dirceu não fez nada de errado, por que o ex-presidente lhe deu esse tiro na testa? Mistério.

Já venceu, para Genoino e Dirceu, o prazo de validade. Publicado na edição impressa de VEJA  Por: J. R. GUZZO  Do site: http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/