domingo, 16 de fevereiro de 2014

MACONHA: A ERVA DANINHA DAS INSTITUIÇÕES

O juiz Frederico Maciel considera que quem não usa maconha é culturalmente atrasado e oferece um novo conceito de igualdade, que, para ele, é o direito de poder usar todas as drogas.


A absolvição de um traficante que transportava droga no estômago para dentro de um presídio mostra que a ação da maconha no organismo pode ser menos perigosa do que seu efeito nas instituições.

“O pacote é para saldar dívida de droga de um cara que vai morrer no pavilhão se não fizer o pagamento até as cinco da tarde.”
Drauzio Varella, em “Carcereiros”.

Historicamente, o Judiciário brasileiro sempre foi visto como uma torre de marfim, composto por juízes absolutamente alheios às misérias do povo. A exemplo do antigo lavrador, que ao entrar na sala do patrão amarfanhava o chapéu com as mãos calosas mantendo os olhos humildes nas alpercatas corroídas, também o cidadão comum se encolhe diante da toga, suando sob o terno desconfortável que lhe serve de passaporte no tribunal. As vestes sisudas e a linguagem empolada da Justiça são mais do que suficientes para intimidar a gente simples, que se revolta com esses ritos, por ver neles uma explícita opção preferencial pelos ricos.

Mas o brasileiro que lastimava a arrogância da magistratura nativa era feliz e não sabia. O Judiciário finalmente está saindo de sua torre de marfim – não para fazer Justiça dentro da lei, atendendo aos anseios da maioria do povo, mas para fazer demagogia com a própria toga, cedendo aos gritos da turba minoritária que se recusa a sair das ruas. Todos os dias pelo Brasil afora, em nome de um direito que não está nas leis mas apenas na ideologia dos magistrados, sentenças judiciais cerceiam o direito de ir e vir de todos os cidadãos em nome da liberdade de manifestação de uma minoria, que, estimulada pelo próprio Judiciário, perdeu a noção de limites. Que o digam as cotidianas depredações do patrimônio público e privado em todo o País, especialmente a queima de ônibus, que já se tornou uma epidemia urbana.

Um exemplo de decisão que subverte as leis e inverte valores foi proferida em Brasília em 9 de outubro do ano passado, mas só agora se tornou nacionalmente conhecida. O juiz substituto Frederico Ernesto Cardoso Maciel, da 4ª Vara de Entor­pe­centes do Distrito Federal, por entender que a maconha não deveria estar incluída entre as drogas ilícitas, absolveu o réu Marcos Vinicius Pereira Borges, que havia sido preso em flagrante ao tentar entrar no Com­plexo Penitenciário da Papuda com 52 porções da droga no estômago. O Ministério Público recorreu da decisão e, na quinta-feira, 30, os juízes da Terceira Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal reformaram a decisão de primeira instância, condenando o réu a 2 anos e 11 meses de detenção, em regime semiaberto, além de multa.

Mas o fato de ter sido revogada em segunda instância não torna menos grave a decisão do juiz singular. Mesmo porque não se trata de um ato isolado, mas de um sintoma da época. A maconha – po­dem anotar – acabará sen­do legalizada pelo Supremo Tri­bunal Federal (STF), sem passar pela aprovação de lei no Con­gresso, que seria o correto. O uso de drogas envolve fatores sociais e humanos de extrema complexidade, que não podem ser decididos apenas por 11 cabeças co­roadas. Mas, pelo que se percebe da plêiade de intelectuais influentes que defendem a maconha, começando pelo ex-presidente Fernando Henrique Car­do­so, a tendência é que o Supremo faça como o juiz de Brasília e considere que fumar maconha é um sagrado direito constitucional. E o que é mais grave: a maconha é apenas o pretexto – o objetivo é legalizar todas as drogas, inclusive drogas pesadíssimas como o crack, que, aliás, já foi legalizado na prática. Se isso ocorrer, ação da maconha no organismo será menos daninho do que seu efeito nas instituições.

Com a maconha no estômago
Para absolver o homem que tentou entrar com maconha no presídio da Papuda, o juiz Frederico Maciel reconhece que a conduta praticada e confessada pelo acusado, além de comprovada materialmente, “parece se adequar” àquela descrita na Lei 11.343, de 23 de agosto de 2006, que trata da política nacional sobre drogas, especificamente os artigos 33, que trata do tráfico de en­torpecentes, e o artigo 40, que agrava a pena quando o tráfico é realizado nas dependências ou imediações de escolas, hospitais, presídios etc. “Contudo, no meu entender, há inconstitucionalidade e ilegalidade nos atos administrativos que tratam da matéria”, afirma o juiz em sua decisão, investindo contra a portaria da Anvisa (Agência Na­cional de Vigilância Sanitária) que serve de regulamentação à referida lei.

Escreve o magistrado: “Com efeito, o art. 33, caput, da Lei 11.343/06 é classificado pela doutrina do Direito Penal como norma penal em branco o que, em brevíssima síntese, é aquela que depende de um complemento normativo, a fim de permitir de forma mais rápida a regulamentação de determinadas condutas”. Ora, a regulamentação de uma lei não tem nada a ver com pressa, mas com esclarecimento. Se uma norma fala genericamente em “drogas”, como é o caso da lei em questão, só se pode saber se alguém é traficante esclarecendo dois pontos: que substância ele está transportando e se essa substância é considerada droga ilícita à luz de outros documentos oficiais, já que a própria lei não especifica quais são as drogas proibidas. O parágrafo único do artigo 1º da Lei 11.343 dei­xa isso claro: “Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”.

Em seguida, o magistrado afirma: “O Ministério da Saúde, por meio da Portaria 344/1998, com o objetivo de complementar a norma do art. 33, caput, da lei 11343/06, estabeleceu um vastíssimo rol de substâncias sujeitas à controle e, sem qualquer justificativa constante na referida portaria, na lista F, proibiu, entre outras, o THC”. Registre-se que essa crase antes de “controle” é uma das muitas incorreções gramaticais que aparecem na curta sentença de apenas duas páginas. Mais grave, ainda, são os equívocos jurídicos da sentença, começando pelo fato de que o juiz atribui ao Ministério da Saúde uma portaria que é da Anvisa. Apesar de vinculada ao Minis­té­rio da Saúde (instância também política), a Anvisa é ou deve ser exclusivamente técnica. Trata-se de uma agência reguladora com independência administrativa, autonomia financeira e estabilidade de seus dirigentes.

Drogas e consenso científico
Além disso, como é que a Portaria 344, de 12 de maio de 1998, editada no governo Fer­nando Henrique Cardoso, poderia ter como objetivo regulamentar uma lei que só seria promulgada oito anos depois, em 23 de agosto de 2006, em pleno governo Lula? Primeiro, a lei, depois, sua regulamentação, e não o contrário, obviamente. Por não atentar para essas datas, apesar de citá-las como apêndices das normas, é que o juiz acusa de ser discricionária a portaria que elenca as drogas ilícitas, acreditando que a listagem das drogas foi feita para regulamentar a lei, quando, na verdade, as normas da Vigi­lância Sanitária devem atender, primeiramente, o consenso científico em torno da matéria. São como as portarias do Conselho Federal de Medicina, que se enquadram no arcabouço legal do País, mas dispõem de autonomia técnico-científica; afinal quem define a etiologia de uma doença e a enquadra na CID (Clas­sificação Internacional de Doenças) não é o Legislativo, mas a comunidade médica.

O preâmbulo da Portaria 344 deixa isso claro ao informar que as normas por ela estabelecidas têm origem, entre outras fontes, na Convenção Única sobre Entor­pe­centes, de 1961, na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas, de 1971, e na Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988. Desconsiderando todo esse aporte técnico-científico, o juiz tratou a portaria da Anvisa como um ato arbitrário, sem pé nem cabeça: “O ato administrativo, em especial o discricionário restritivo de direitos, diante dos direitos e garantias fundamentais e também dos princípios constitucionais contidos no art. 37 da Constituição da República de­vem ser devidamente motivados, sob pena de permitir ao Admi­nis­trador atuar de forma arbitrária e de acordo com a sua própria vontade ao invés da vontade da lei”. (Re­pa­rem na falta da vírgula depois de “Re­pública” e no erro de concordância, pois o ato administrativo, sin­gular, é o sujeito do verbo “dever”.)

Com base nessa premissa, o juiz afirma: “A Portaria 344/98, indubitavelmente um ato administrativo que restringe direitos, carece de qualquer motivação por parte do Estado e não justifica os motivos pelos quais incluem a restrição de uso e comércio de várias substâncias, em especial algumas contidas na lista F, como o THC, o que, de plano, demonstra a ilegalidade do ato administrativo. Sem motivação, tal norma fica incapaz de poder complementar a norma penal do art. 33, caput, da lei 11343/06”. Ora, a referida norma não é mero ato administrativo que restringe direitos: ela é o “Regulamento Téc­ni­co sobre Substâncias e Me­di­ca­mentos Sujeitos a Controle Es­pe­cial”. Todos os remédios controlados são também regulamentados por essa portaria, que tem 110 artigos e vários apêndices; por isso, é um absurdo um juiz dizer que a mes­ma “carece de qualquer motivação”, ao mesmo tempo em que a acu­sa de não justificar a inclusão das substâncias em sua lista, como se fosse possível – e necessário – re­produzir numa portaria os tratados científicos sobre cada psicotrópico.

Desastre lógico e gramatical
Mas o juiz Frederico Maciel não se contenta em querer saber mais sobre psicotrópicos do que os técnicos da Anvisa – ele também se arvora a filosofar. E incorre num desastre lógico e gramatical. Eis o que escreve: “Ademais, ainda que houvesse qualquer justificativa ou motivação expressa do órgão do qual emanou o ato administrativo restritivo de direitos, a proibição do consumo de substâncias químicas deve sempre atender aos direitos fundamentais da igualdade, da liberdade e da dignidade humana. Soa incoerente o fato de outras substâncias entorpecentes, como o álcool e o tabaco, serem não só permitidas e vendidas, gerando milhões de lucro para os empresários dos ramos, mas consumidas e adoradas pela população, o que demonstra também que a proibição de outras substâncias entorpecentes recreativas, como o THC, são fruto de uma cultura atrasada e de política equivocada e violam o princípio da igualdade, restringindo o direito de uma grande parte da população de utilizar outras substâncias”.

Reparem outra vez na concordância, aliás, na discordância: o magistrado escreve “são fruto de uma cultura atrasada”, sendo que o sujeito dessa frase é “a proibição”. Além disso, a frase “milhões de lucro para os empresários dos ramos” não é digna da pena de um magistrado; quando muito caberia numa redação do Enem. Outra afirmação desrespeitosa é dizer que o álcool e o tabaco são substâncias entorpecentes “consumidas e adoradas pela população”. Segundo o Relatório Bra­sileiro sobre Drogas de 2010, editado pela Presidência da Re­pública, 18,4% dos brasileiros relataram consumo de tabaco no mês; 19,2% no ano e 44% na vida. Já o consumo de álcool foi de 38,3% no mês, 49,8% no ano e 74,6% na vida. Ou seja, não se pode dizer que a maioria da população brasileira consome e adora essas drogas, mesmo porque até muitos bêbados e fumantes não adoram seus respectivos vícios: sabem que se trata de um mal, apenas não conseguem largá-los.

O juiz considera que quem não usa maconha é culturalmente atrasado e oferece um novo conceito de igualdade, que, para ele, é o direito de poder usar todas as drogas. Também faz uma inegável apologia da substância ativa da maconha: “O THC é reconhecido por vários outros países como substância entorpecente de caráter recreativo e medicinal, diante de seu baixo poder nocivo e viciante e ainda de seu poder medicinal para a saúde do usuário, sem mencionar que em outros o seu uso é reconhecido como parte da cultura”. Ora, senhor juiz, que país legalizou a maconha por reconhecer “seu poder medicinal para a saúde do usuário?”. Todo país que legaliza a maconha não o faz por razões medicinais, mas por pragmatismo: dos males o menor, acreditam, ao comparar o uso da droga com o custo para combatê-la.

Além disso, nenhuma substância entorpecente é, em si mesma, de caráter recreativo, como o magistrado afirma a respeito da maconha. Algo que modifica funções do cérebro não pode ser tratado como brincadeira. Até mesmo o tabaco e o álcool, drogas legais, podem gerar dependência e crise de abstinência. O caráter recreativo não é da droga, mas do uso. Se o sujeito fuma um ou outro cigarro só em festas, para acompanhar os amigos, ele faz um uso recreativo da droga; mas se é um fumante inveterado que acende um cigarro no outro e não abandona o vício nem por recomendação médica, então é ele um dependente, para quem o tabaco não é passatempo, mas vício. É claro que há drogas que geram mais dependência, como o crack e o tabaco, e outras que geram menos dependência, como a própria maconha. Mas uma droga leve, dependendo da intensidade do uso, pode se tornar pesada.

Males que a maconha provoca
O opúsculo “Drogas Psi­co­tró­picas”, do Cebrid (Centro Brasi­lei­ro de Informações sobre Dro­gas Psicotrópicas), afirma que há certo exagero sobre os aspectos maléficos da maconha e destaca seus efeitos medicinais no combate a náuseas e vômitos motivados pela medicação anticâncer e também na epilepsia. Mesmo assim, o informativo deixa claro que a maconha tem efeitos perniciosos, afetando a noção de espaço e de tempo e especialmente a memória de curto prazo. “Sob a ação da maconha, a pessoa erra grosseiramente na discriminação do tempo, tendo a sensação de que se passaram horas quando na realidade foram alguns minutos; um túnel com 10m de comprimento pode parecer ter 50 ou 100m”, afirma o Cebrid, que recomenda às pessoas sob efeito de maconha não realizarem tarefas que dependam de “atenção, bom senso e discernimento”, como dirigir carro e operar máquinas.

Ainda sobre a maconha, o Cebrid também alerta: “Aumen­tando-se a dose e/ou dependendo da sensibilidade, os efeitos psíquicos agudos podem chegar até a alterações mais evidentes, com predominância de delírios e alucinações”. Já em 1845, o psiquiatra francês Moreau de Tors (1804-1884) associou o uso da maconha à ocorrência de sintomas psicóticos. Em 1987, o médico sueco Sven Andréasson e sua equipe publicaram uma pesquisa com 45.570 militares, ao longo de 15 anos de acompanhamento, e chegaram à conclusão de que o uso pesado da maconha (50 ocasiões nesse período) foi relacionado a um risco seis vezes maior de desencadeamento da esquizofrenia em relação aos não usuários.

A maconha pode sim causar dependência e pesquisa do psiquiatra britânico Stanley Zammit (no detalhe) com mais de 50 mil pessoas constatou que o uso da erva aumenta o risco de desenvolver esquizofrenia.

Como as conclusões desse estudo foram questionadas, o psiquiatra britânico Stanley Zammit fez uma pesquisa com 50.087 indivíduos chegando à mesma conclusão da pesquisa anterior – o uso de maconha está associado a um risco maior de desenvolvimento da esquizofrenia. Poste­rior­mente, em artigo publicado na revista “The Lancet”, em ju­lho de 2007, Zammit, juntamente com outros pesquisadores, fez uma revisão sistemática das pesquisas sobre o assunto e corroborou os resultados de pesquisas anteriores: “Podemos concluir que agora existe evidência suficiente para alertar os jovens que o uso de cannabis pode aumentar o seu risco de desenvolver uma doença psicótica mais tarde na vida”.

Dando de ombros para o conhecimento acumulado de psiquiatras, bioquímicos e outros cientistas que estudam os efeitos das drogas psicotrópicas, o juiz prefere se apegar a decisões políticas de países que liberaram a maconha e até à opinião do ex-presidente Fernando Henri­que Cardoso, citado como autoridade em sua sentença, apesar de não lhe mencionar o nome. “Não é por outro motivo que os estados americanos da Califórnia, Wa­shington e Colorado e os Países Baixos, dentre vários outros, permitem não só o uso recreativo e medicinal da droga como também a sua venda, devidamente regulamentada, e outros países permitem so­mente o uso, como Espanha, dentre outros, e o Uruguay está praticamente a ponto de, a exemplo desses ou­tros entes do Direito Interna­cio­nal, regulamentar a venda e o uso do THC”, afirma o magistrado.

Ora, se a maconha fosse tão inofensiva como acredita o juiz, por que razão apenas alguns Estados norte-americanos a liberaram e por que em todos os locais em que isso ocorreu tenta-se controlar sua venda, inclusive na Holanda e no Uruguai (que não se escreve com “y” num texto em português)? O próprio juiz manda incinerar a droga apreendida no final de sua sentença, numa prova de que, no íntimo, ele sabe que sua decisão é problemática. Ocorre que o ativismo judicial, além de querer tomar o lugar do parlamento, também se arvora a ser o feitor do povo brasileiro, a quem acusa de ter uma “cultura atrasada”. Aliás, o juiz Fre­derico Maciel – que é bem pago por esse povinho de “cultura atrasada” – faria mais pelo avanço de nossa cultura se cuidasse melhor do idioma de Vieira, Eça e Machado.

Todavia, ainda que se reconheça que a maconha pode ser usada de forma recreativa, é óbvio que o caso julgado pelo juiz jamais poderia ser considerado dessa forma. O que pode haver de recreativo no ato de engolir 52 poções de maconha para depois vomitá-las dentro de um presídio? Sem contar que esse “aviãozinho” só poderia estar a serviço de um traficante com muito poder na cadeia. Justamente o tipo de traficante que cobra com a morte as dívidas de drogas ou então comuta a pena capital em pena sexual, exigindo que a mulher, a irmã ou a filha do viciado inadimplente pague com o próprio corpo a vida imprestável do pai. Talvez seja isso o que se possa considerar o “caráter recreativo da maconha” – pela ótica de um traficante, claro, jamais pela ótica de um juiz.
Publicado no Jornal Opção.
Por: José Maria e Silva é sociólogo e jornalista. Do site: http://www.midiasemmascara.org/


sábado, 15 de fevereiro de 2014

A ERVA DANINHA

Que tal nesse início de 2014 todos os motoristas de automóveis privados deixarem seus carros em casa e irem de ônibus para o trabalho e para a faculdade? Ah! Melhor ainda: levar e buscar seus filhos na escola.

Que tal tomar de assalto o busão para também terem o direito de usar as faixas de ônibus da cidade? Faixas estas que destruíram o já frágil equilíbrio do trânsito de nossa cidade.

Claro, cara-pálida, que um bom transporte coletivo é essencial para uma cidade como São Paulo. Isso nada tem a ver com essas faixas sem planejamento prévio. Quando se tem um bom transporte coletivo, as pessoas usam menos o carro. Aqui, o transporte coletivo é domínio dos mais pobres, porque eles não podem comprar carros. Quando podem, compram feito loucos.

Resolver o problema do transporte coletivo nada tem a ver com espremer os carros em faixas minúsculas nas ruas.

Uma manifestação dessa traria abaixo o populismo da prefeitura com suas faixas de ônibus. Claro que os ônibus iriam explodir de gente, as filas iriam dobrar as fronteiras do Estado, as brigas para entrar no ônibus iriam ficar para a história, as pessoas iriam chegar atrasadas ao trabalho, a economia iria para o saco (mas tudo bem, porque ninguém precisa de economia, só de dogmas políticos populistas).

Zygmunt Bauman, sociólogo famoso, em um de seus clássicos, "Modernidade e Ambivalência", fala do Estado moderno como "Estado jardineiro". A característica desse tipo de Estado é decidir quem é flor e quem é erva daninha. Claro que essa discussão se dá dentro das consequências totalitárias do Estado moderno. Quanto mais "jardineiro", maior o risco de ser autoritário. Nossa prefeitura é jardineira, e os motoristas (incluindo os taxistas) são sua erva daninha.

Os motoristas viraram a erva daninha da cidade. Ciclistas já os odiavam quando passavam com seu ar de santo ecológico pelos pobres coitados dos motoristas que não moram numa "pequena Amsterdã", como a moçada da classe média alta que mora perto do trabalho ou da "facul", ou que tem um trampo fácil, sem horas duras, ou ganha muito bem ou tem grana de outra fonte e então pode ir de bike para o trabalho ou para a "facul". Quem anda de bike para salvar o planeta é playboy light.

Agora as faixas de ônibus decretaram a ilegitimidade de ter carro. Motorista de carro aqui logo será tratado a pauladas pela cidade. Mas está na moda no Brasil o uso de termos como "casa-grande e senzala" (usando de forma equivocada o conceito de Gilberto Freyre) para contaminar o país com ódio de classe (para ressuscitar o finado conceito de luta de classes) ou ódio de raças. Isso vai dar em coisa ruim muito em breve.

O ódio ao motorista virou demonstração de consciência social e ambiental -outro modismo contemporâneo. Esquece-se que essas pessoas são cidadãs como todas as outras. Que pagam impostos exorbitantes para comprar os carros e IPVA todo ano. Pagam IPVA, mas logo não terão direito de andar de carro pela cidade. Nada de novo no front: os brasileiros estão acostumados a pagar impostos e não ter nada em troca.

E mais: é o próprio governo federal que estimula a compra de carros adoidado e sustenta seus índices de "sucesso" econômico na compra de carros. Que tal parar de pagar IPVA, já que os motoristas não têm mais o direito de andar na rua?

Claro que a playboizada que gosta de estimular ódio social vai dizer que motorista de carro não deve ter direito nenhum porque é parte das "zelite". Mentira: a maioria dessas pessoas corre de um lado para o outro para trabalhar, estudar, levar filhos à escola e cumprir suas obrigações. E agora viraram a erva daninha da cidade.

Tudo muito bonitinho, mas os mais pobres sonham em comprar seus carros para poder levar sua mina para passear.

O Brasil sempre foi um circo. Agora, com uma nova dramaturgia cômica: inauguramos o circo com pautas sociais. As ruas de São Paulo viraram um picadeiro. E nós, os palhaços.

Desgraçadamente, a América Latina é o único continente que ainda leva a sério esse papinho de luta de classes. Somos atrasados e vamos ser sempre a vanguarda da política como circo.
Por: Luiz Felipe Pondé Folha de SP

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

ANOMIA, O CASO BRASIL

O sociólogo Emile Durkeim (1858-1917) viveu as turbulências do início da sociedade industrial e isto influenciou sua preocupação com a ordem e com novas ideias morais capazes de guiar o comportamento das pessoas. Ele observou os conflitos resultantes das transformações socioeconômicas nas sociedades europeias e concluiu que havia um estado de anomia, ou seja, a ausência de leis, de normas, de regras de comportamento claramente estabelecidas.


Na atualidade o rápido desenvolvimento dos meios de transporte, de comunicação, da tecnologia, da ciência indica a transição para um mundo mais complexo onde o conhecimento de hoje é rapidamente ultrapassado amanhã. Nesse contexto valores são perdidos, instituições se desagregam, percepções entre o certo e o errado desaparecem e o indivíduo parece uma mosca tonta na janela de um trem-bala. Prevalece o individualismo, o hedonismo, a vulgaridade, a mediocridade, a imoralidade.

Como as sociedades são dinâmicas e não dá para permanecer nesse estado indefinidamente aos poucos vai se construindo uma nova ordem. Paralelamente começam a surgir novas representações coletivas, outro conceito de Durkeim a significar experiências advindas da influência grupal – família, partido político, religião, etc.- que suprem os indivíduos com ideias e atitudes que ele aceita como se fossem pessoais.

No Brasil, país da impunidade, do jeitinho, da malandragem sempre houve certa anomia. Um salvo-conduto para o desfrute impune de atos de corrupção. Uma largueza moral que encanta os estrangeiros que aqui vêm usufruí-la sem jamais ousarem repeti-la em seu país. Características essas culturais originadas historicamente e aprimoradas ao longo do tempo.

Contudo, foi com a entrada do PT na presidência da República que acentuou nossa anomia. Isso se deu através dos sucessivos e impunes escândalos de corrupção do partido que se dizia o único ético, o puro, aquele que vinha para mudar o que estava errado. No poder o PT se tornou não um partido não igual aos outros, mas pior.

Por isso mesmo foi marcante o julgamento do mensalão quando, pela primeira vez, poderosos e seus coadjuvantes foram parar na cadeia por conta da coragem e da firmeza do ministro Joaquim Barbosa auxiliado por alguns ministros do STF.

Lula da Silva sempre foi um homem de muita sorte ajudada por sua verborragia. Herdou um país sem inflação, além de políticas públicas as quais de certo modo imitou. No plano internacional reinava calmaria econômica. No âmbito interno nenhuma oposição partidária ou institucional. As performances escrachadas do “pobre operário” agradavam a maioria e formou-se uma representação coletiva que aceitava todos os desvios e desmandos do governo. Diante da roubalheira o povo dizia: “se eu estivesse lá faria a mesma coisa”.

O todo-poderoso Lula da Silva se reelegeu e fez mais, obteve um “terceiro mandato” sem precisar alterar a Constituição. Isso porque elegeu uma subordinada que não dá passo sem ouvir suas ordens.

Contudo, no final do segundo mandato de Lula da Silva a economia do Brasil paraíso começou a fazer água e os três anos da sucessora tem sido um fiasco retumbante.

O álibi para o descalabro é a crise internacional, mas, na verdade foi a politica econômica incompetente e errática da presidente e do Mr M autor das mágicas contábeis, ou seja, do Senhor Mantega, que está nos conduzindo ao fracasso.

O governo do PT conseguiu nos transformar no país dos pibinhos, no lanterninha dos BRICS. A inflação cresce, tivemos em 2013 o maior déficit comercial de nossa história, com resultado negativo de US$ 81,3 bilhões, a geração de emprego recuou 18,6% no ano passado, a desvalorização cambial já é outro grave problema.

Existe, porém, algo mais que a economia. Lula da Silva se aliou à escória governamental, a começar pela América Latina. Insuflou ódios raciais. Jogou a Educação no nível mais baixo enquanto seu ministro Haddad tentava insuflar amoralidade na formação das crianças. A Saúde virou sinônimo de crueldade e não serão médicos cubanos, ideologicamente trazidos para cá, que reporão a falta de estrutura de hospitais e postos de saúde.

Agora está sendo colhido o que foi plantado com os votos no PT. A manifestação pacífica de junho, em 2013, foi só um passo tolhido pela entrada dos tais Black Blocs, politicamente inseridos ou não. Entretanto, várias outras manifestações vêm se espalhando pelo país de forma violenta com queima de ônibus, interdição de estradas, depredações, saques. Enquanto isso aumenta a força da criminalidade dando a nítida impressão de que um tenebroso Estado paralelo se sobrepõe ao Estado de Direito.

A rotineira barbárie da prisão de Pedrinhas é a ilustração mais perfeita da anomia brasileira a qual devemos agradecer aos nossos governantes, especialmente, ao governo do PT.

Por: Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga

DE DAMASCO A KIEV

A expressão "atores estrangeiros" emergiu dois meses atrás, de porta-vozes do Kremlin e do governo ucraniano. As palavras "extremistas" e "terroristas" começam a ser pronunciadas agora, quando aparecem os primeiros cadáveres em Kiev. Dois manifestantes foram mortos a tiros pela polícia. O corpo de um terceiro ativista, encontrado sem vida numa floresta nos arredores da capital, exibia sinais de tortura. Um estudante de 17 anos sofreu sevícias de policiais, que o espancaram e esfaquearam, obrigando-o a despir-se e cantar o hino nacional sob o frio congelante. "Damasco": o presidente Viktor Yanukovich e seu patrono, Vladimir Putin, inspiram-se no exemplo da Síria, onde Bashar Assad comprovou que a repressão sangrenta de um levante nacional pode permanecer impune. Contudo, para Washington e Bruxelas, o teste de Kiev vale mais, muito mais, que o de Damasco.


No ponto de partida da revolta popular síria, Obama e os líderes europeus avisaram que não ficariam inertes diante dos massacres perpetradas pelo regime. Depois, no ano 1 da guerra civil, prometeram apoiar a corrente moderada da oposição. Quando os compromissos solenes já estavam desmoralizados, o presidente americano traçou sua célebre "linha vermelha", assegurando que reagiria militarmente a um hipotético ataque químico. Assad cruzou, impávido, a última fronteira, demonstrando que o rei estava nu. Ao longo da trajetória, a oposição moderada dissolveu-se na irrelevância, cedendo lugar a organizações fundamentalistas e grupos jihadistas. Putin convenceu-se de que está autorizado a jogar, na Ucrânia, as mesmas cartas utilizadas na Síria. Mas Kiev não é Damasco.

"Quero viver na Europa". Os cartazes exibidos nas cidades ucranianas indicam tanto as fontes quanto os rumos da revolução em curso. A Ucrânia pertenceu, durante séculos, ao Império Russo, e viu frustrada sua primeira independência, que coincidiu com a Revolução Russa mas durou efêmeros quatro anos de guerras sucessivas. Uma segunda independência, propiciada pela implosão da URSS, em 1991, jamais se completou. As manifestações multitudinárias deflagradas em novembro, que retomam a frustrada Revolução Laranja, de 2004, evidenciam a natureza anacrônica da sujeição do país à Grande Rússia. Aos olhos da maioria do povo ucraniano, "Europa" ou "União Europeia" são a tradução geopolítica da exigência de soberania nacional. Eis o motivo pelo qual a aposta de Putin representa um desafio histórico para Washington e Bruxelas.

A legitimidade da União Europeia (UE) não repousa sobre o mercado comum ou, mesmo, a liberdade de circulação dos cidadãos europeus. Desde a Segunda Guerra Mundial, "Europa" é o outro nome das liberdades políticas e da democracia. O projeto europeu surgiu para proteger as liberdades, depois da tempestade do nazismo e diante do espectro triunfante da URSS de Stalin. A UE renovou-se e provou sua vitalidade na década seguinte às revoluções de 1989, pela incorporação dos países do antigo bloco soviético. Kiev não é uma crise qualquer: na Ucrânia, a "Europa" precisa demonstrar que serve a algo maior que os interesses do "mercado".

O Kremlin acusou "atores estrangeiros" de "insuflarem" os protestos na Ucrânia. De fato, em dezembro, a representante diplomática da UE, Catherine Ashton, e o ministro do Exterior alemão, Guido Westerwelle, juntaram-se aos manifestantes da Praça da Independência. Eles estavam dizendo que não são "estrangeiros", que os ucranianos são europeus, que 1989 não terminou e que Kiev não é Damasco. A presença deles equivale a uma nota promissória, que começa a ser cobrada agora. Os EUA e as potências europeias têm os instrumentos para infligir punições diplomáticas e econômicas insuportáveis à Rússia. Se não os utilizarem, permitindo que Kiev se torne Damasco, reduzirão "Europa" a um sinônimo de decadência.
Por: Demétrio Magnoli Folha de SP


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O GRAAL DE TARSO GENRO

O Santo Graal dos comunistas foi a URSS e seu sistema de "repúblicas populares". As insurreições na Hungria (1956), na Tchecoslováquia (1968) e na Polônia (1980) secaram o poço do encantamento. A queda do Muro de Berlim e a implosão da URSS quebraram o cálice sagrado. No último quarto de século, desorientados, os filhos do "socialismo real" empreendem a busca por um novo Graal. Como tantos outros, Tarso Genro encontrou-o na China (em "Uma perspectiva de esquerda para o Quinto Lugar", artigo escrito numa língua estranha, longinquamente aparentada com o português). As suas elucubrações teóricas não têm interesse intelectual, mas merecem um exame político.


O governador do Rio Grande do Sul enxerga na experiência recente da China uma inspiração para a marcha do Brasil rumo ao estatuto de potência mundial. O que a China tem de especial? Um "sujeito político (Partido-Estado)" que "cria o mercado e suas relações", num processo em que "estas relações novas recriam o sujeito (Partido-Estado), que será permanentemente outro". É isso, explica-nos, que falta ao Brasil: um ente de poder capaz de reinventar a sociedade e guiar o povo até o futuro.

Décadas atrás, um tanto tristonhos, incontáveis socialistas deploravam o poder totalitário do Partido Comunista da URSS, mas o justificavam como um mal necessário pois, no fim das contas, aquele era o motor político da economia socialista. Genro, pelo contrário, não apela ao socialismo (uma "fantasia histórica") para justificar o poder absoluto do Partido-Estado: basta-lhe um horizonte "chinês" de crescimento econômico e progresso social. E a democracia? A China triunfa graças a um "regime político não democrático para os nossos olhos", ensina o líder petista, reproduzindo os argumentos oficiais do Partido Comunista Chinês, que justifica a tirania pela invocação ritual da cultura e da tradição.

A democracia é o regime no qual os governantes não podem tudo –e aí está o problema do Brasil, na opinião de Genro. Na sua descrição, o "mercado" malvado sabota a redução dos juros, a abominável "grande imprensa" bloqueia o aumento do IPTU e os demoníacos "cronistas no neoliberalismo abrigados na grande mídia" manipulam a opinião pública. A expressão política de opiniões conflitantes e interesses divergentes que nos acostumamos a chamar de democracia representa, aos olhos de Genro, uma intolerável balbúrdia. É preciso, para libertar a "utopia concreta presa com âncoras pesadas no fundo real da sociedade capitalista", instaurar uma ordem nova na qual o sujeito da História (o "Partido-Estado") possa conduzir a nação até o futuro redentor.

O "levantar âncoras", propõe Genro, encontra-se na convocação de "uma nova Assembleia Nacional Constituinte no bojo de um amplo movimento político inspirado pelas jornadas de junho", mas "com partidos à frente". Esqueça, por um momento, que as "jornadas de junho" não seriam as "jornadas de junho" se tivessem "partidos à frente". Nosso pequeno, mas esperançoso, pretendente a Duce sonha com uma "marcha sobre Brasília" liderada pelo partido que exerce o poder.

"Penso que as esquerdas no país devem abordar programaticamente estas novas exigências para o futuro, já neste processo eleitoral". Genro sabe perfeitamente que sua "utopia concreta" terá impacto nulo sobre a campanha de Dilma, que continuará focada em firmar alianças com o PMDB, o PP e o PSD, renovar os compromissos com as altas finanças e reforçar a parceria com os "movimentos sociais" estatizados. O vinho de seu cálice sagrado destina-se, exclusivamente, ao consumo interno do PT e de sua área de influência militante: é um antídoto ideológico contra as imprecações lançadas por correntes esquerdistas inquietas com o "giro à direita" do lulismo. Mas serve, ainda, para iluminar o lado escuro da alma do partido que nos governa. 
Por: Demétrio Magnoli Folha de SP


CARNÍVOROS E VEGETARIANOS

Tony Blair regressa ao mundo dos vivos: em artigo para o jornal "The Observer", o ex-premiê britânico escreve que as lutas do século 21 não serão mais ideológicas, como aconteceu na centúria anterior. Serão culturais, religiosas. Civilizacionais. Ó Deus, onde é que eu já ouvi isso?


Obviamente, em 1993, quando Samuel Huntington horrorizou as consciências politicamente corretas com "The Clash of Civilizations?", o artigo publicado na "Foreign Affairs".

Reli o texto de Huntington. Com 20 anos de distância, voltei a pasmar com a inteligência (e a presciência) do senhor. Blair e Huntington podem partir do mesmo ponto: há um "choque de civilizações" inegável. Mas chegam a conclusões radicalmente distintas.

No ensaio, Huntington perguntava onde estariam os conflitos futuros quando todo mundo falava triunfalmente do "fim da história". E respondia: esqueça as lutas clássicas entre Estados. E esqueça também as lutas no interior do Ocidente, motivadas por disputas econômicas ou políticas, como sucedeu no século 20. Esse tempo acabou: imaginar a França nas trincheiras contra a Alemanha é cenário irrealista.

Os conflitos acabarão por emergir entre civilizações —ou, melhor dizendo, entre diferentes concepções do mundo que não podem ser resolvidas, ou harmonizadas, por um piquenique multiculturalista ou um seminário acadêmico entre pacifistas "new age".

Como escrevia Huntington, a questão futura não passa por saber qual é o lado certo da batalha; a questão primeira será saber quem somos nós. Porque é a identidade cultural, e não os interesses momentâneos do Estado, que irá definir os conflitos futuros. E, quando as coisas são postas nesses termos, não é possível ser meio muçulmano e meio cristão ao mesmo tempo.

Aliás, as tensões entre o Ocidente e o Islã são analisadas por Huntington sem eufemismos: se Tony Blair, na sua coluna para o "Observer", usa a palavra "Islã" com medo, Huntington é glacial. O conflito entre o Ocidente e o radicalismo islâmico dura 1.300 anos. Será mais violento nos anos próximos. E, pormenor importantíssimo que Blair (e Bush) esqueceu, não se resolve pela imposição de qualquer modelo democrático, por mais nobre que ele seja em teoria.

Para certas sociedades, os valores fundamentais da civilização ocidental —"individualismo", "secularismo", "constitucionalismo" etc.— soam estranhos e, pior, ameaçadores. Por mais "primaveras árabes" que floresçam (e feneçam) no Oriente Médio.

Perante este "choque de civilizações", que fazer?

Tony Blair, em momento de "mea culpa", reconhece que o caminho não é militar: a democracia não se impõe à força porque os resultados, no Afeganistão e no Iraque, não foram propriamente brilhantes. Mas depois, com a ignorância que o define, Blair regressa a um mundo imaginário de fadas e duendes: o "choque de civilizações" só será evitado pelo entendimento e pela tolerância entre culturas.

Como é evidente, Blair está falando para a minoria "ocidentalizada" que ele encontra no lobby dos hotéis de luxo no Cairo ou em Beirute. Ou então prepara o seu discurso de Miss Universo.

Samuel Huntington, uma vez mais, revela a lucidez e a coragem que Blair não tem: perante o "choque de civilizações", deve haver maior coesão no interior do próprio Ocidente, entre países que partilham os mesmos valores fundamentais.

Isso implica um Ocidente que não esteja disposto a desarmar-se perante potenciais inimigos porque a palavra "inimigo" ainda continua fazendo parte da linguagem política contemporânea.

E, claro, o Ocidente pode sempre apoiar grupos de outras civilizações que se interessam por essas extravagâncias como a "democracia" e os "direitos humanos", sem ceder à tentação de tentar exportá-los pela força. A evolução para a modernidade é um caminho solitário que só essas civilizações podem (ou não) percorrer.

Vinte anos depois do ensaio de Huntington e dez anos depois das aventuras no Afeganistão e no Iraque, continuo preferindo o realismo carnívoro do professor de Harvard ao idealismo vegetariano de Tony Blair. Por: João pereira Coutinho Folha de SP

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

ADULADORES DO CAOS

Para o submarxismo vigente naqueles ambientes que o poeta Bruno Tolentino (1940-2007) chamava "Complexo Pucusp" –onde a imprensa colhe seus "especialistas"–, o futuro já aconteceu faz tempo. O que virá será só a materialização do que já estava inscrito na natureza humana. E essa natureza, consta, é libertar-se da opressão. Assim, toda ação, todo acontecimento, todo evento só encontram sentido na medida em que podem ou não ser úteis a esse propósito. A história deixa de ser "a contínua marcha do desejo", na expressão de Thomas Hobbes, para ser uma sequência de capítulos de fim conhecido, que nos conduzirá ao encontro com a verdade. Parece complicado? Eu me esforcei. Das nuvens para os ônibus.


Desde 1º de janeiro, 33 ônibus municipais e outros tantos intermunicipais já foram incendiados na periferia de São Paulo e adjacências. Em dois ou três casos, alega-se uma reação à suspeita de que a PM teria matado um rapaz da "comunidade". E os demais? Ah, esses ficariam por conta do "malaise" social que levaria adolescentes da periferia a fazer "rolezinhos", "black blocs" a quebrar tudo, funkeiros a tentar explodir posto de gasolina... Teria sido acionado o gatilho do DNA libertador das massas.

Analistas muito severos trovejam: "Eu bem que avisei". Outros iluminam suas esperanças com as chamas dos ônibus. Estão com o povo, contra os reacionários! A antropologia da reparação ameaça: "Chegou a hora de entregar os dedos; os oprimidos não se contentam mais com os anéis do reformismo tucano-petista!".

O espírito do tempo tem peso determinante na história. São os poderes instituídos e as matrizes influentes de valores –onde estão a imprensa e a indústria cultural– que definem a recompensa e a punição aos comportamentos desejáveis ou indesejáveis. Se essas instâncias flertam com a desordem, esta passa a ser encarada como um instrumento eficaz de luta. Se a violência é recompensada com o reconhecimento da legitimidade da "causa", já se tem erigida uma moral. Aí a vaca vai para o brejo.

Defende-se hoje, a céu aberto, que PMs enfrentem desarmados os fascistoides que vão para as ruas portando coquetéis molotov –e assim é desde a primeira manifestação em São Paulo, no dia 6 de junho do ano passado. Tenta-se linchar um policial que cometeu a ousadia da legítima defesa. A repressão ao tráfico de drogas vira agressão aos direitos humanos. O desvio assume, enfim, o papel de contenção que cabe à norma.

Insiste-se na farsa ridícula da luta da "sociedade contra o Estado", e policiais "negros e morenos" (como diria Gilberto Carvalho), saídos daquela mesma periferia que seria a portadora do futuro, são tratados como o braço armado da velha ordem a retardar a aurora. O Brasil não é o Egito. A nossa democracia, por enquanto ao menos, não vive sob tutela, a não ser a desses milicianos do futuro. É bem verdade que o PT se esforça para tomar o lugar da sociedade e tenta estatizar até os "manos" e as "minas" dos "rolezinhos". Mas ainda não logrou o seu intento.

Não pensem que este rottweiler do reacionarismo acredita numa moral intrínseca da história, oposta à dos submarxistas, que nos conduziria para o bem. A história, em si, é amoral e se move por relações de força. Ocorre que, por esse caminho, democracia, fascismo ou comunismo seriam resultados plausíveis até que não se chegasse àquele momento do encontro do homem com o seu começo. Besteira!

A história não é moral, mas nós somos seres morais. Falaremos em nome de quais valores? A democracia é um regime legitimado pela maioria, mas sustentado, nos seus fundamentos –muito especialmente a proteção às minorias–, por elites de pensamento capazes de fazer escolhas que transcendem seus próprios interesses. É nesse lugar que está a imprensa. Não, meus caros! Os pobres não herdarão o Reino da Terra. Quais serão, então, as nossas escolhas? Por: Reinaldo Azevedo Folha de SP

CLEPTOCRACIA FAMILIAR

Nunca na história deste país os mecanismos antes usados para bancar famílias de políticos corruptos foram tão explorados e ordenhados à exaustão para sustentar uma ideologia fracassada e assassina.


Um dos truques mais velhos do repertório dos políticos brasileiros é o superfaturamento de obras. Tradicionalmente, 10% do contrato vão, por fora e sem contabilidade, para o bolso de um político. Fortunas que durarão gerações foram feitas desta maneira, com dinheiro arrancado do bolso de quem trabalha e tem os impostos descontados na fonte.

O governo atual, contudo, vai mais além. Enquanto os políticos tradicionais – tradicionalmente corruptos – têm certamente a louvável preocupação de, com o dinheiro que desviam, proporcionar um bom padrão de vida à sua família, honrando pai e mãe proporcionalmente ao descumprimento do mandamento de não furtar, outros são o “pai e mãe” dos cleptocratas que ora exaurem o Tesouro.

O governo brasileiro tornou-se, com a falência da Venezuela (aliás devida ao excesso de socialismo, receita infalível para a miséria generalizada!), o mantenedor, o cuidador da ditadura sanguinária que há décadas faz de Cuba uma ilha-prisão. O dinheiro dos nossos impostos paga o aluguel de milhares de escravos “médicos” cubanos, que vêm no atacado. O BNDES – “Banco Nacional de Desenvolvimento do Socialismo”, dizem as más línguas – enterra bilhões em obras na ilha-prisão, em acordos secretos e malcheirosos. É compreensível: os nossos atuais governantes, no seu tempo de terroristas, foram treinados militar e politicamente pela ditadura cubana, sequestraram e mataram para garantir-se livre-passagem para a ilha-prisão. Fidel, para eles, não é o Coma Andante que escraviza toda uma nação, mas um paizinho amado e necessitado de carinho. E de dinheiro. Do contribuinte brasileiro, por que não?

Enquanto isso, para garantir o caixa dois da reeleição do poste – ou mesmo da volta triunfal do chefe da gangue –, a Copa do Mundo garante fartas obras e comissões em território pátrio, enquanto se tenta impedir as contribuições empresariais às escâncaras, que pelo menos podem ser rastreadas. A propaganda do governo (que é paga também com nossos impostos, e é evidentemente mais partidária que institucional) domina o horário nobre da tevê.

Este mérito ninguém pode tirar de nossos atuais governantes: nunca na história deste país roubou-se tanto; nunca na história deste país os mecanismos antes usados para bancar famílias de políticos corruptos foram tão explorados e ordenhados à exaustão para sustentar uma ideologia fracassada e assassina.

Perto do que fazem nossos cleptocratas, a dominação tradicional do Maranhão pelo clã Sarney não é nada. Sarney é ruim, mas Fidel é bem pior.
Publicado no jornal Gazeta do Povo. Por: Carlos Ramalhete é professor.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

UM GIRO POR HAVANA


A decadência, quando não levada ao extremo, tem lá seu charme arquitetônico. Ruínas são coisas românticas. Tão românticas, aliás, que os cavalheiros ingleses do século XVIII construíam ruínas em seus jardins para servirem de lembranças agradavelmente melancólicas da efemeridade da existência terrena.

Fidel Castro, no entanto, não é nenhum cavalheiro inglês do século XVIII, e Havana não deveria ser seu imóvel privado para ser usado como um memento mori pessoal. As ruínas que ele produziu em Havana são, na realidade, a moradia de mais de 1 milhão de pessoas, cujo desejo coletivo não tem, como atestam essas ruínas, o mesmo poder que o desejo de apenas um homem. "Comandante en jefe", diz um dos vários outdoors políticos que substituíram todos os cartazes publicitários, "o senhor dá as ordens". Desnecessário dizer que a obrigação de todo o resto da população é obedecer.

Havana não mudou quase nada desde a última vez em que estive lá em 1990. Os vastos subsídios soviéticos acabaram; a economia hoje depende do turismo europeu. Para melhor receber os turistas, a maioria em busca de férias baratas nos trópicos e gostosamente indiferente à política de Cuba, o governo vem permitindo um pequeno grau de flexibilidade. Pequenos restaurantes privados que funcionam dentro de casas de família, chamados de paladares, com não mais do que 12 cadeiras, já são tolerados — muito embora a contratação de mão-de-obra que não seja da família, algo considerado explorador pelo regime, não é permitida. 

Nestes locais, apenas determinados pratos são permitidos. Peixe e lagosta são proibidos, pois são exclusivos dos restaurantes estatais. Os poucos paladares que se arriscam a driblar essas regras funcionam como aqueles locais clandestinos que vendiam bebida alcoólica nos EUA durante a Lei Seca: seus proprietários que servem peixe ou lagosta estão constantemente nervosos, sempre preocupados com a possibilidade da presença de informantes (os Comitês de Defesa da Revolução ainda estão ativos e operantes em todos os cantos.) O dono de um destespaladares que visitei — o qual não possuía nenhum sinal na rua avisando de sua existência — preocupadamente olhava através do olho mágico da porta antes de deixar qualquer pessoa entrar. Comer uma simples refeição em uma das três mesas parecia uma cena de filme de espionagem.

Pequenos mercados de pulgas também já são permitidos em Cuba. Neles é possível observar pequenas trocas envolvendo roupas usadas e itens domésticos. Em 1990, era inimaginável uma pessoa poder comprar ou vender alguma coisa ao ar livre, pois comprar e vender era um ato visto como sintoma de 'individualismo burguês', algo contrário à visão socialista de Fidel, para quem tudo deve ser racionado — e de maneira racional, por assim dizer — de acordo com as necessidades de cada um. (Na prática, é claro, isso significava racionar de acordo com o que havia, o que nunca era muito).

Períodos de abertura permitindo um comércio de pequena escala já haviam ocorrido em outros momentos do reinado de mais de quatro décadas dos irmãos Castro. No entanto, tais aberturas rapidamente eram revogadas e voltava-se ao período de "retificação", pois ficava muito aparente que os cubanos respondiam com muito mais vigor aos incentivos econômicos do que aos ditames "morais" louvados nas teorias adolescentes de Che Guevara. 

Agora, no entanto, a atividade comercial está mais liberada, pois ela é essencial para a sobrevivência econômica do regime. Na última vez em que estive em Havana, mesmo um estrangeiro carregado de dólares não conseguia encontrar comida fora do seu hotel — um arranjo que dificilmente estimula o turismo em massa. Agora, por pura necessidade, já há um número satisfatório de cafés e bares para atender os visitantes.

A economia cubana está hoje amplamente dolarizada, um curioso e irônico desfecho para décadas de ardente nacionalismo. Quando perguntei em meu hotel como fazia para trocar dólares por pesos, disseram-me que eu não precisaria de pesos. E estavam corretos. As poucas e empoeiradas lojas que aceitavam vender seus bens em troca de pesos — a moneda nacional — anunciavam este fato extraordinário em suas janelas, como se estivessem efetuando um milagre, muito embora os bens à venda fossem poucos e da mais baixa qualidade imaginável. 

Na última vez em que estive em Cuba, a posse de um dólar por um cubano comum era crime, uma prova de deslealdade e de desafeição. Dependendo do humor de Fidel, o "criminoso" podia até ser acusado de estar planejando uma sabotagem econômica da revolução. Dólares eram manuseados como se fossem nitroglicerina, prestes a explodir na sua cara ao mais mínimo solavanco. Agora, no entanto, eles são meramente unidades monetárias, as quais qualquer pessoas pode manusear.

Embora os lobbies dos hotéis ainda sejam patrulhados por seguranças com walkie-talkies, que têm a função de garantir que nenhum cubano não-autorizado adentre o recinto, o crescente número de turistas em Cuba significa que as relações entre cubanos e estrangeiros estão mais relaxadas e abertas do que antes. Hoje, um cubano falar com um estrangeiro não é mais visto como um sinal de infidelidade política; conversas não mais têm de ser feitas às escondidas, em becos escuros ou atrás de paredes, sempre com um olho nervoso à procura de espiões e bisbilhoteiros pró-regime. Eu cheguei até mesmo a receber pedidos para que enviasse remédios da Inglaterra, dado que não havia nenhum disponível nas farmácias locais — uma confissão, impensável há apenas alguns anos, de que o tão propalado sistema de saúde cubano não é aquela oitava maravilha.

As pessoas frequentemente falam sobre lo bueno e lo malo da revolução — quase sempre acrescentando que lo malo foi muito, muito ruim. Um cidadão, criado na década de 1970, disse-me que, em sua adolescência, havia sido contagiado pelo fervor do romantismo revolucionário, tendo Che Guevara e John Lennon como seus heróis (ele me contou orgulhosamente que Havana era uma das três cidades com memoriais para John Lennon, sendo as outras Liverpool e Nova York). Segundo ele, naquela época ele imaginava que um novo mundo estava sendo construído; mas agora sabia que não mais havia perspectivas de progresso. 

Um fato curioso em Havana é que as pessoas mais idosas tendem a murmurar jabón (sabão) quando você passa por elas, na esperança de que você possa ter um pouco desta rara e preciosa mercadoria para doar. Quando a primeira senhora se aproximou de mim e murmurou jabón, pensei que ela fosse louca. Só depois é que constatei que ela havia sido apenas a primeira de várias.

Por outro lado, já há sinais de uma pequena abertura intelectual. Em La Moderna Poesía, uma livraria que fica em uma construção de estilo art déco na Calle Obispo, encontrei uma tradução em espanhol de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper. O preço em dólares, no entanto, dificilmente atrairia compradores cubanos. Talvez o livro estivesse ali apenas para enganar turistas quanto à tolerância intelectual do regime; ou talvez fosse uma armadilha para flagrar insurgentes, de modo que qualquer cubano que tentasse comprá-lo seria delatado às autoridades. Mas mesmo assim, a simples presença de uma obra tão contrária à filosofia do regime seria algo inimaginável há doze anos.

Em contraste, os jornais Granma e Rebelde não mudaram absolutamente nada: lê-los hoje é o mesmo que tê-los lido há 40 anos e será o mesmo que lê-los daqui a 10 anos, caso o regime continue de pé. A incessante repetição de que está havendo um amplo progresso social em Cuba mesmo em face das adversidades e das horrendas desintegrações sociais ocorrendo em todos os outros países do mundo (especialmente, é claro, nos EUA) é algo que certamente deve entediar até mesmo o mais ardoroso crente do regime. Logo, não foi surpresa nenhuma eu não ter visto absolutamente nenhum cubano lendo um jornal ou sequer dando confiança para os já idosos vendedores itinerantes, cada um com aproximadamente 5 cópias para vender. Quando me aproximei de um deles e demonstrei interesse em comprar um jornal, o velho aproveitou a oportunidade para abertamente me pedir dinheiro. Vender jornal era apenas um pretexto para se aproximar de alguém e mendigar. A pergunta "quanto custa o jornal?" sempre era respondida com "o valor que o senhor quiser pagar".

Quase meio século de ditadura totalitária deixou a cidade de Havana — uma das mais belas do mundo — suspensa em uma situação peculiar, indecisa entre a preservação e a destruição. Para mim, que considero a ausência de determinados aspectos esteticamente feios do comercialismo algo agradável, a cidade tem seu charme: logotipos do McDonald's (e semelhantes) teriam arruinado o cenário de Havana de forma tão intensa quanto os Castros o fizeram. E a relativa ausência de trânsito em Havana tem seu lado positivo: caso Havana tivesse se desenvolvido "normalmente", suas ruas estreitas estariam hoje entupidas de tráfego e poluição, um inferno sufocante como a cidade da Guatemala ou de San José, Costa Rica, locais onde respirar é ficar sem ar, onde o nível de poluição sonora faz seus ouvidos cintilarem e os pensamentos saírem correndo.

Por causa dessas características quase bucólicas, as ruas de Havana são agradáveis para uma caminhada. Não há fumaça de veículos e não há barulho de buzinas. Dos poucos carros que trafegam, a maioria são relíquias americanas da era Batista, surrados mas, na medida do possível, restaurados. Eles trepidam e sacodem ruidosamente como burros de carga que se impulsionam sob um esforço tremendo. Alguns parecem andar como caranguejos, não para a frente mas de lado. E com toda a ferrugem acumulada, estes veículos — que em outros cenários pareceriam produtos banais descartados por uma sociedade industrializada — adquiriram uma aura romântica, quase uma personalidade própria. Eles são adorados e estimados como velhos amigos insubstituíveis; e, quando você olha para eles, é impossível não pensar em como todos os objetos que hoje tomamos como corriqueiros podem um dia vir a se tornar relíquias inestimáveis. Isso ajuda você a encarar o mundo de outra forma. 

Em 1958, Cuba tinha uma renda per capita maior do que a de metade dos países da Europa, a menor taxa de inflação do Ocidente e uma classe média maior do que a da Suíça, e isso é perfeitamente observável no esplendor de Havana e em como sua beleza é ampla, um testemunho de quão rica (e sofisticada) a sociedade que produziu deve ter sido. O esplendor de Havana, longe de estar confinado a apenas um pequeno bloco da cidade, se estende por quilômetros.

Não há palavras que possam fazer justiça à genialidade arquitetônica de Havana, uma genialidade que se estende desde o classicismo da Renascença do século XVI — com casas sérias e perfeitamente proporcionadas contendo quintais com colunatas refrescados e suavizados por arbustos e árvores tropicais — à exuberante art déco das décadas de 1930 e 1940. Os cubanos, ao longo de sucessivos séculos, criaram uma harmoniosa arquitetura praticamente sem par no mundo. Dificilmente se encontra em Havana uma construção que seja errônea ou que tenha um detalhe que seja supérfluo ou de mau gosto. A multicoloração ladrilhada do prédio Bacardi, por exemplo, que poderia ser considerada extravagante em outros locais, é perfeitamente adaptada — de maneira natural — à luz, ao clima e ao temperamento de Cuba. Os arquitetos cubanos certamente entendiam a necessidade de ar e sombra em um clima como o de Cuba, e eles proporcionaram suas construções e seus espaços de acordo. Eles criaram um ambiente urbano que, com suas arcadas, colunas, varandas e sacadas, era elegante, sofisticado, conveniente, jovial e prazeroso.

Atualmente, todo esse esplendor praticamente já se foi. A cidade parece hoje um grande arranjo de variações de Bach sobre o tema da decadência urbana. O estuque e o reboco deram lugar ao mofo. Os telhados elegantes já não existem mais, tendo sido substituídos por chapas de ferro corrugadas. Venezianas se esfacelaram e viraram serragem. As pinturas são um mero fenômeno do passado. Escadarias desembocam em precipícios. Não há vidros nas janelas. As portas se soltaram de suas dobradiças. As paredes nos interiores das casas desabaram. Estacas de madeira sustentam, sem nenhum grau de segurança, todos os tipos de estruturas. Fios elétricos antigos são visíveis nas paredes, como vermes em um queijo. As sacadas de ferro forjado estão severamente oxidadas. O gesso e o reboco se descascam como uma doença de pele maligna. As pedras de pavimentação das calçadas são arrancadas para outros propósitos. 


Todos os grandes e belamente proporcionados aposentos das casas — visíveis através das janelas ou dos buracos nas paredes — foram subdivididos com madeira compensada em espaços menores, nos quais famílias inteiras hoje moram. Roupas estão penduradas em janelas de casas que antes eram palácios. À noite, todas as vias são escuras e as luzes elétricas emitem apenas um brilho fraco e mortiço. Nenhum escombro ou ruínas são considerados severos demais a ponto de impossibilitar seu uso como moradia. 

Havana é como uma cidade que foi destruída por um terremoto e cuja população foi forçada a sobreviver em meio aos escombros enquanto a ajuda não chega. 

Após a revolução, poucos prédios foram construídos em Havana, o que é ótimo dado que estes poucos foram construídos naquele estilo de modernismo totalitário, arruinando toda a vizinhança. Na Plaza Vieja, um grande e antigo prédio colonial foi transformado em apartamentos de luxo para serem alugados por turistas, e há um excelente restaurante, só para turistas, no térreo (a própria ideia de um excelente restaurante em Cuba era impensável há 12 anos). A burguesia é um pouco como a natureza: por mais que você tente dizimá-la com uma revolução, no final ela sempre acaba voltando.

Embora esteja havendo alguns esforços de restauração no centro da cidade — que foi declarado pela UNESCO como patrimônio da humanidade —, tais esforços em nada se comparam ao tamanho da degradação da cidade. Uma das mais magníficas das várias magníficas ruas de Havana é conhecida como Prado, uma larga avenida que leva até o mar. Algumas da belas e bem proporcionadas mansões ao longo do Prado praticamente se desmoronaram em ruínas; outras estão com suas fachadas — tudo o que restou delas — sustentadas por escoras de madeira. Havana é como Beirute, mas sem ter passado por uma guerra civil para ser destruída.

No entanto, não se pode dizer que os habitantes de Havana pareçam infelizes. Crianças animadas jogam beisebol nas ruas com bolas de trapos comprimidos e tacos de canos de metal (curiosamente, o país da América Latina com a mais robusta tradição política anti-ianque tem no beisebol o seu esporte favorito); há muita interação nas ruas, muitos sorrisos e conversas. E não é raro se deparar com alguma pequena festa com música e dança. 


Quando você olha para dentro dos lares que as pessoas fizeram em meio às ruínas, é possível notar aqueles pequenos e comoventes sinais de orgulho próprio e de dignidade que também vemos nas choupanas da África: flores de plástico cuidadosamente arrumadas e outros ornamentos baratos. Uma predileção pelo cafona entre os ricos é um sinal de empobrecimento espiritual; porém, entre os pobres, representa um esforço pela beleza, uma aspiração sem chances de ser realizada. São os mais velhos que demonstram maior abatimento: seus pensamentos naturalmente se voltam para o passado, e o contraste entre a Havana de sua juventude e a Havana de sua senilidade deve ser um espetáculo difícil de ser contemplado.

Esse contentamento de alguns e essa resignação de outros em meio às ruínas não reduzem a profunda tristeza de ver a destruição de uma obra de arte gerada pelo esforço humano ao longo dos anos. Como deve ser viver em meio às ruínas de sua própria cidade, ruínas estas que não foram causadas por nenhuma guerra ou desastre natural, mas sim pela mera adesão a uma ideologia? Não é difícil algum cubano querer mostrar voluntariamente para você as ruínas decrépitas onde ele mora, algo aliás que eles fazem com um sorriso; o fato é que viver nestas condições simplesmente se tornou algo natural para eles. O colapso das paredes e das escadas lhes parece tão natural quanto o tempo.



Nas publicações oficiais (e todas as publicações em Cuba são oficiais), os únicos personagens positivos do passado são os rebeldes e os revolucionários, representando uma contínua tradição nacionalista da qual Fidel é a apoteose. Não há nenhum deus, mas apenas a revolução. E Castro é o profeta. O período entre a independência cubana e o advento de Castro é chamado de "a pseudo-república", e a ditadura de Batista, sua brutalidade e a "pobreza extremada" da época são as únicas coisas que se deve (ou que se permite) saber sobre a vida imediatamente antes de Castro.

Mas quem criou Havana e de onde veio toda a sua magnificência se, antes de Fidel, só havia pobreza, corrupção e brutalidade? Essa é a pergunta que os cubanos atuais não podem fazer.

Os terríveis estragos feitos por Fidel serão duradouros e irão sobreviver por muito tempo após o fim do seu regime. Vários bilhões em capital serão necessários para restaurar a bela Havana. Problemas legais envolvendo direitos de propriedade e moradias serão custosos, amargos e intermináveis. E a necessidade de se saber equilibrar considerações comerciais, sociais e estéticas na reconstrução de Cuba irá requerer enorme sabedoria e bom senso. 

Mas, enquanto o regime não cai, Havana serve como um pavoroso alerta ao mundo — se algum ainda fosse necessário — contra os perigos de ideologias erradas e de monomaníacos que genuinamente acreditam conhecer uma teoria capaz de corrigir o futuro e o mundo. 
Artigo originalmente escrito em agosto de 2002
Theodore Dalrymple é médico psiquiatra e escritor. Aproveitando a experiência de anos de trabalho em países como o Zimbábue e a Tanzânia, bem como na cidade de Birmingham, na Inglaterra, onde trabalhou como médico em uma prisão, Dalrymple escreve sobre cultura, arte, política, educação e medicina. Além de seu trabalho em medicina nos países já citados, ele já viajou extensivamente pela África, Leste Europeu, América Latina e outras regiões.

POR QUE CUBA É POBRE


Uma dica: não é por causa do bloqueio americano.

Como escreve João Pereira Coutinho:

O embargo americano existe, sem dúvida, e deve ser condenado pelo seu óbvio anacronismo [...]. Mas é preciso acrescentar a segunda parte da frase: só existe o embargo americano. Que o mesmo é dizer: todo mundo que é mundo mantém relações com Cuba e nem assim a ilha se converteu numa espécie de Suécia do Caribe.

Antes de 1959, o problema de Cuba era a presença de relações econômicas com os Estados Unidos. Depois o problema se tornou a ausência de relações econômicas com os Estados Unidos.

O embargo americano é obsceno, mas não é a raiz da pobreza cubana. De fato, como indica Coutinho, os cubanos podem comprar produtos americanos pelo México. Podem comprar carros do Japão, eletrodomésticos da Alemanha, brinquedos da China ou até cosméticos do Brasil.

Por que não compram? Porque não têm com o que comprar. Não é um problema contábil ou monetário — o governo cubano emite moeda sem lastro nem vergonha. O que falta é oferta. Cuba oferece poucas coisas de valor para o resto do mundo. Cuba é pobre porque o trabalho dos cubanos não é produtivo.

A má notícia para os comunistas é que produtividade é coisa de empresário capitalista. Literalmente. É o capital que deixa o trabalho mais produtivo. E é pelo empreendedorismo que uma sociedade descobre e realiza o melhor emprego para o capital e o trabalho.

Mesmo quando o governo cubano permite um pouco de empreendedorismo, ele restringe a entrada de capital. Desde que assumiu o poder em 2007, Raúl Castro já fez a concessão de quase 170.000 lotes de terra não cultivada para agricultores privados. Só que faltam ferramentas e máquinas para trabalhar a terra. A importação de bens de capital é restrita pelo governo. Faltam caminhões para transportar alimentos. Os poucos que existem estão velhos e passam grande parte do tempo sendo consertados. Em 2009, centenas de toneladas de tomate apodreceram por falta de transporte.

Campanhas internacionais contra a pobreza global se esquecem dos cubanos. Parece que o uniforme dos irmãos Castro tem o poder de camuflar a pobreza em meio a discursos de conquista social. Dizem que Cuba tem medicina e educação de ponta. Ainda que fosse verdade, isso seria bom apenas para o pesquisador de ponta. E triste para o resto da população que vive longe da ponta, sem acesso a informação aberta ou aos medicamentos mais básicos, como analgésicos e antitérmicos. É como na saudosa União Soviética. A engenharia era de ponta. Colocava gente no espaço e tanques na avenida. Só não era capaz de colocar carro nas garagens nem máquina de lavar nas casas.

Cuba vai enriquecer quando a sua população se tornar mais produtiva para trabalhar e mais livre para empreender. Ou seja, quando houver capitalismo para os cubanos.



Diogo Costa é presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York.  Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com


domingo, 9 de fevereiro de 2014

O MAIOR PERIGO PARA A HUMANIDADE: NOSSA RECORRENTE PAIXÃO PELO AUTORITARISMO


É inegável que, nos dias de hoje, ditadura, intervencionismo e socialismo são extremamente populares. Nenhum argumento lógico parece conseguir enfraquecer essa popularidade. O fanatismo impede que os ensinamentos da teoria econômica sejam ouvidos, a teimosia impossibilita qualquer mudança de opinião e a experiência histórica não serve de base para nada. 

Para compreender as raízes dessa rigidez mental, devemos nos lembrar de que as pessoas sofrem e se sentem infelizes e frustradas porque as coisas nem sempre se passam da maneira como elas gostariam. O homem nasce como um ser egoísta, um ser não-sociável, e é só com a vida que ele aprende que sua vontade não é a única nesse mundo; existem outras pessoas que também têm suas vontades. A vida e a experiência irão lhe ensinar que, para realizar os seus planos, ele terá de encontrar o seu lugar na sociedade, terá de aceitar as vontades e os desejos de outras pessoas como um fato consumado, e terá de se ajustar a esses fatos se quiser chegar a algum lugar. 

A sociedade não é aquilo que o indivíduo gostaria que fosse. Todo indivíduo tem a respeito de seus conterrâneos uma opinião menos favorável do que a que tem sobre si próprio. Ele se julga possuidor do direito natural de ocupar na sociedade um lugar melhor do que aquele que efetivamente ocupa. Ele se julga digno de estar em uma classe social mais elevada. Só que diariamente o presunçoso — e quem está inteiramente livre da presunção? — sofre novas decepções. E diariamente ele aprende, nem sempre de maneira pacífica e corriqueira, que existem outras vontades além da sua. 

Para se blindar dos efeitos mentalmente devastadores destas seguidas decepções, o neurótico se refugia em sonhos encantados. Mais especificamente, ele sonha com um mundo no qual apenas a sua vontade é decisiva e é implantada sem restrições. Neste seu mundo onírico, ele é o ditador. Só aquilo que tiver a sua aprovação pode acontecer. Somente ele pode dar ordens; os outros apenas obedecem. Sua razão é suprema.

Neste mundo secreto de ilusões, o neurótico pensa ser um César, um Genghis Khan ou um Napoleão. Mas, na vida real, quando fala com os seus conterrâneos, tem de abaixar a cabeça e ser mais modesto. Sendo assim, perante essa sua irremediável insignificância, ele tem de se contentar em apoiar uma ditadura comandada por outra pessoa. Não importa se tal ditadura seja em seu próprio país ou em um outro distante: em sua mente, este ditador está ali apenas para efetuar as suas (do neurótico) vontades. Trata-se de uma mistura de psicopatia com megalomania.

Nenhum indivíduo jamais apoiou uma ditadura que fizesse coisas opostas às que ele considera certas. Quem apóia uma ditadura o faz por achar que o ditador está fazendo o que, na opinião deste indivíduo, tem de ser feito. Quem apóia ditaduras tem sempre em mente o desejo irrefreável de dominar seus conterrâneos de forma irrestrita, e impor a eles todas as suas vontades — ainda que tal serviço seja feito por outra pessoa. 

O defensor de ditaduras costuma ter um carinho específico pela expressão "planejamento econômico" — ou "economia planejada" —, a qual, particularmente nos dias de hoje, é um pseudônimo de socialismo. Neste arranjo, qualquer coisa que as pessoas queiram fazer tem de ser primeiramente aprovada e planejada. Estes que, assim como Marx, rejeitam a "anarquia da produção" e pretendem substituí-la pelo "planejamento", desprezam profundamente a livre iniciativa, as vontades e os planos das outras pessoas. Somente uma vontade deve prevalecer, somente um plano deve ser implementado: aquele que tem a aprovação do neurótico; o plano que ele considera correto, o único plano. Qualquer resistência deve ser subjugada e sobrepujada; nada deve impedir o neurótico de tentar ordenar o mundo de acordo com seus próprios planos. Todos os meios que façam prevalecer a suprema sabedoria do lunático devem ser utilizados. 

Essa é a mentalidade das pessoas que, certa vez, em uma exposição das pinturas de Manet em Paris, exclamaram: "a polícia não deveria permitir isso!" Essa é a mentalidade das pessoas que constantemente bradam: "deveria haver uma lei contra isso!"

E, quer elas admitam ou não, esta é exatamente a mentalidade de todos os intervencionistas, socialistas e defensores das ditaduras. Há apenas uma coisa que eles odeiam mais do que o capitalismo: um intervencionismo, um socialismo ou uma ditadura que não corresponda a todas as suas vontades. Daí a briga apaixonada entre comunistas e nazistas; entre os partidários de Trotsky e os de Stalin; entre os seguidores de Strasser e os de Hitler. 

A liberdade e o sistema econômico 

O principal argumento contra a proposta de se instituir um regime socialista é o de que, no sistema socialista, não há espaço para a liberdade individual. Socialismo, argumenta-se, é o mesmo que escravidão. Não há como negar a veracidade desse argumento. Onde o governo controla todos os meios de produção, onde o governo é o único empregador e tem o direito de decidir que treinamento as pessoas deverão receber, onde e como deverão trabalhar, o indivíduo não é livre. Tem o dever de obedecer e não tem direitos. 

Os defensores do socialismo nunca conseguiram apresentar uma refutação efetiva a esse argumento. Retrucam dizendo apenas que, na economia de mercado, há liberdade apenas para os ricos, e não para os pobres; e que, por uma liberdade desse tipo, não valeria a pena renunciar às supostas vantagens do socialismo. 

Ocorre que os homens são diferentes, desiguais. E sempre o serão. Alguns são mais dotados em determinado aspecto, menos em outro. E há os que têm o dom de descobrir novos caminhos, de mudar os rumos do conhecimento. Nas sociedades capitalistas, o progresso tecnológico e econômico é promovido por esses homens. Quando alguém tem uma ideia, procura encontrar algumas outras pessoas argutas o suficiente para perceberem o valor de seu achado. Alguns capitalistas que ousam perscrutar o futuro, que se dão conta das possíveis consequências dessa ideia, começarão a pô-la em prática. Outros, a princípio, poderão dizer: "são uns loucos", mas deixarão de dizê-lo quando constatarem que o empreendimento que qualificavam de absurdo ou loucura está florescendo, e que toda gente está feliz por comprar seus produtos.

No sistema ditatorial marxista, por outro lado, o corpo governamental supremo deve primeiro ser convencido do valor de uma ideia antes que ela possa ser levada adiante. Isso pode ser algo muito difícil, uma vez que o grupo detentor do comando — ou o ditador supremo em pessoa — tem o poder de decidir. E se essas pessoas — por razões de indolência, senilidade, falta de inteligência ou de instrução — forem incapazes de compreender o significado da nova ideia, o novo projeto não será executado.

Para analisar essas questões devemos, em primeiro lugar, entender o verdadeiro significado da palavra liberdade. Liberdade é um conceito sociológico. Não há, na natureza ou em relação à natureza, nada a que se possa aplicar esse termo. Liberdade é a oportunidade concedida ao indivíduo pelo sistema social para que ele possa modelar sua vida segundo sua própria vontade. Que as pessoas tenham que trabalhar e produzir para poder sobreviver é uma lei da natureza; nenhum sistema social pode alterar esse fato. Que o rico possa viver sem trabalhar não diminui em nada a liberdade daqueles que não tiveram a sorte de estar nessa posição afortunada. Em uma economia de mercado, naquela em que há liberdade de empreendimento, e ausência de privilégios e protecionismos estatais, a riqueza de um indivíduo representa a recompensa concedida pela sociedade pelos serviços prestados aos consumidores no passado. E esta riqueza só pode ser preservada se ela continuar a ser utilizada — isto é, investida — no interesse dos consumidores. 

Que a economia de mercado recompense generosamente aquele que se mostrou capaz de bem servir aos consumidores é algo que não causa nenhum dano aos consumidores. Ao contrário, só os beneficia. Nada, nesse processo, é tomado do trabalhador, e muito lhe é proporcionado, o que lhe permite aumentar sua produtividade do trabalho. A liberdade do trabalhador que não tem propriedades está no seu direito de escolher o local e o tipo de seu trabalho que quer. Ele não está sujeito às arbitrariedades de um senhor de engenho que o tem como vassalo. Ele simplesmente vende os seus serviços no mercado. Se um empreendedor se recusar a lhe pagar o salário correspondente às condições do mercado, ele encontrará outro empregador disposto a, no seu próprio (do empregador) interesse, lhe pagar o salário de mercado. O trabalhador não deve subserviência e obediência ao seu empregador; ele deve ao seu empregador apenas a prestação de serviços. Ele recebe seu salário não como um favor, mas sim como uma recompensa de que é merecedor. 

Os pobres também têm a possibilidade, em uma sociedade capitalista, de se fazer pelo seu próprio esforço. Isso não ocorre apenas às atividades comerciais. A maioria das pessoas que hoje ocupa uma posição de destaque nas profissões liberais, nas artes e na ciência começou a carreira na pobreza. Entre os líderes e os vencedores, muitos são originários de famílias pobres. Quem quer ser bem-sucedido, qualquer que seja o sistema social, terá que vencer a apatia, o preconceito e a ignorância. Não se pode negar que o capitalismo oferece essa oportunidade. 

Em uma economia capitalista, o mercado é um corpo social; é o corpo social por excelência. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.

Todos os homens são livres; ninguém tem de se submeter a um déspota. O indivíduo, por vontade própria, se integra num sistema de cooperação. O mercado o orienta e lhe indica a melhor maneira de promover o seu próprio bem estar, bem como o das demais pessoas. O mercado comanda tudo; por si só coloca em ordem todo o sistema social, dando-lhe sentido e significado.

O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo, impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho.

A reiteração de atos individuais de troca vai dando origem ao mercado, à medida que a divisão de trabalho evolui numa sociedade baseada na propriedade privada. 

A economia de mercado, em princípio, não respeita fronteiras políticas. Seu âmbito é mundial. O mercado torna as pessoas ricas ou pobres, determina quem dirigirá as grandes indústrias e quem limpará o chão, fixa quantas pessoas trabalharão nas minas de cobre e quantas nas orquestras filarmônicas. Nenhuma dessas decisões é definitiva: são revogáveis a qualquer momento. O processo de seleção não para nunca.

Atribuir a cada um o seu lugar próprio na sociedade é tarefa dos consumidores, os quais, ao comprarem ou absterem-se de comprar, estão determinando a posição social de cada indivíduo. Os consumidores determinam, em última instância, não apenas os preços dos bens de consumo, mas também os preços de todos os fatores de produção. Determinam a renda de cada membro da economia de mercado. São os consumidores e não os empresários que basicamente pagam os salários ganhos por qualquer trabalhador.

Se um empreendedor não obedecer estritamente às ordens do público tal como lhe são transmitidas pela estrutura de preços do mercado, ele sofrerá prejuízos e irá à falência. Outros homens que melhor souberam satisfazer os desejos dos consumidores o substituirão.

Os consumidores prestigiam as lojas nas quais podem comprar o que querem pelo menor preço. Ao comprarem e ao se absterem de comprar, os consumidores decidem sobre quem permanece no mercado e quem deve sair; quem deve dirigir as fábricas, as fornecedoras e as distribuidoras. Enriquecem um homem pobre e empobrecem um homem rico. Determinam precisamente a quantidade e a qualidade do que deve ser produzido. São patrões impiedosos, cheios de caprichos e fantasias, instáveis e imprevisíveis. Para eles, a única coisa que conta é sua própria satisfação. Não se sensibilizam nem um pouco com méritos passados ou com interesses estabelecidos.

A economia de mercado, ou capitalismo, como é comumente chamada, e a economia socialista são mutuamente excludentes. Não há mistura possível ou imaginável dos dois sistemas; não há algo que se possa chamar de economia mista, um sistema que seria parcialmente socialista. A produção ou é dirigida pelo mercado, ou o é por decretos de um czar da produção, ou de um comitê de czares da produção. A economia de mercado é o produto de um longo processo evolucionário. É o resultado dos esforços do homem para ajustar sua ação, da melhor maneira possível, às condições dadas de um meio ambiente que ele não pode modificar. É, por assim dizer, a estratégia cuja aplicação permitiu ao homem progredir triunfalmente do estado selvagem à civilização.

O progresso é sempre um deslocamento do velho pelo novo. Progresso sempre quer dizer mudança. Nenhum planejamento econômico pode planejar o progresso, nenhuma organização pode organizá-lo. O progresso é a única coisa que desafia quaisquer limitações e controles. A sociedade e o estado não podem promover o progresso. O capitalismo também não pode fazer nada pelo progresso. Porém, e isso é já bastante, o capitalismo não coloca barreiras intransponíveis ao progresso. Uma sociedade socialista se tornaria absolutamente rígida, pois tornaria o progresso impossível. 

O intervencionismo não abole por completo todas as liberdades dos cidadãos. Porém, a cada nova medida intervencionista implantada, uma fatia importante de liberdade individual é abolida e, consequentemente, a atividade econômica é restringida. 

O fato inegável

O que tem melhorado a situação das pessoas, o que tem dado a elas melhores condições de vida, e o que tem criado todas aquelas coisas que hoje consideramos como o orgulho das realizações humanas, não foram declamações de nobres intenções, nem discursos sobre justiça social, e nem sonhos sobre um mundo melhor — e muito menos efetivos esforços para se implantar o "mundo melhor" pela força das armas. O que possibilitou todas estas coisas foi o empenhado trabalho diário das pessoas, cujos esforços foram direcionados para melhorar suas próprias condições de vida por meio do trabalho duro, fazendo coisas que eram desconhecidas em épocas passadas e que eram desconhecidas até mesmo por elas próprias em tempos anteriores recentes. 

A história da tecnologia e do comércio fornece inúmeros exemplos que confirmam isso. No passado, havia um considerável intervalo de tempo entre o surgimento de algo até então completamente desconhecido e sua popularização no uso cotidiano. Algumas vezes, passavam-se vários séculos até que uma inovação se tornasse amplamente aceita por todos — ao menos dentro da órbita da civilização ocidental. Pense na lenta popularização do uso de garfos, sabonetes, lenços, papeis higiênicos e inúmeras outras variedades de coisas.

Desde seus primórdios, o capitalismo demonstrou uma tendência de ir encurtando esse intervalo de tempo, até ele finalmente ser eliminado quase que por completo. Tal fenômeno não é uma característica meramente acidental da produção capitalista; trata-se de algo inerente à sua própria natureza. A essência do capitalismo é a produção em larga escala para a satisfação dos desejos das massas. Sua característica distintiva é a produção em massa

Os discípulos de Marx sempre se mostraram muito ávidos para descrever em seus livros os "inenarráveis horrores do capitalismo", os quais, como seu mestre havia prognosticado, resultam "de maneira tão inexorável como uma lei da natureza" no progressivo empobrecimento das "massas". O preconceito anticapitalista deles impedia que percebessem o fato de que o capitalismo tende, com o auxílio da produção em larga escala, a eliminar o notável contraste que há entre o modo de vida de uma elite afortunada e o modo de vida de todo o resto da população de um país. O abismo que separava o homem que podia viajar de carruagem e o homem que ficava em casa porque não tinha o dinheiro para a passagem foi reduzido à diferença entre viajar de avião e viajar de ônibus.

Que jamais nos aconteça

Não permitamos jamais que aquelas pessoas que dizem que tudo neste arranjo é ruim, que a propriedade privada é a origem de todos os malefícios e desigualdades, e que a única ação correta a ser tomada é a busca do "mundo melhor" pela imposição de medidas coercivas e ditatoriais adquiram poder.

Se há uma coisa que a história pode nos ensinar é que nenhuma nação jamais conseguiu criar uma civilização superior sem a propriedade privada dos meios de produção. E a prosperidade só pode ser encontrada onde prevalece a propriedade privada dos meios de produção. 

Se algum dia a nossa civilização desaparecer, não terá sido por uma inevitabilidade; não terá sido porque ela já estava fadada a esse trágico desfecho. Terá sido, isso sim, porque as pessoas se recusaram a aprender com a teoria e com a história. Não é o destino que determina o futuro da sociedade humana, mas sim o próprio homem. O declínio da civilização ocidental não é uma manifestação da vontade divina, algo que não pode ser evitado. Se ocorrer, terá sido o resultado de uma política que nunca deveria ter sido sequer cortejada.



Ludwig von Mises  foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".