segunda-feira, 2 de junho de 2014

JESUS CAN'T BE BORING

Não, o título deste texto não é uma citação, apenas uma expressão que em inglês soa melhor. Se formos falar "Jesus não pode encher o saco" ou "Jesus não pode entediar", isso não capta o sentido contemporâneo de Jesus como "commodity".

Inglês é o idioma ideal para o mundo da mercadoria, porque vendemos tudo melhor em inglês. Imagine se fôssemos fazer um comercial sobre como Jesus tem que ser legal para você, se você for um jovem ou uma jovem de 20 anos? "Jesus can't be boring" soaria muito melhor... Ou seja: Jesus tem que ser legal... E somar à sua vida... (ou "agregar valor", expressão que eu pessoalmente detesto).

Estamos falando de mercado religioso. Sim, as religiões competem no mercado de "bens religiosos": festas, significados para vida e para o sofrimento, laços sociais e afetivos dentro das comunidades de fiéis, casamentos, educação de filhos, narrativas de fim de mundo, rituais mágicos ou não, ferramentas de comunicação espiritual ou similares como TV ou mídias sociais, enfim, tudo o que uma religião oferece em termos de "bens de consumo".

A vida não tem sentido aparente, é curta (só parece longa quando sua vida é muito péssima), precária, escassa, frustrante; logo, uma hora dessas, ou Jesus ou Frontal vai bater na sua porta. Se você for mais chique, um Buda light serve.

Vale lembrar que tudo o que falamos aqui sobre Jesus poderia ser falado sobre qualquer outra figura religiosa de peso. Não se trata de nenhuma forma de ironia ou sarro com o cristianismo especificamente. Como estamos numa sociedade majoritariamente cristã, nas suas diversas denominações, podemos falar em "Jesus como bem religioso" como símbolo de todo o processo de commoditização das religiões.

Commoditização das religiões significa a transformação das religiões em bens de consumo tratados via ferramentas de marketing, num mercado de comportamentos em que elas devem competir entre si e com as opções seculares.

Opções seculares são: ateísmo, quase ateísmo, agnosticismo ("não temos provas definitivas nem de que Deus existe nem de que não existe", afirmação que para os ateus é ateísmo que não saiu do armário), humanismo ateu como o do autor britânico A. C. Grayling em seu livro "The God Argument, The Case Against Religion and for Humanism", ou simplesmente, "bode dos deuses, e vamos viver o dia a dia para ver no que dá".

As religiões devem vencer umas às outras como produto, e aos seculares também. É briga de cachorro grande. Nesse processo, a Igreja Católica apanha dos protestantes que já nasceram com a vocação para o business. As afro-brasileiras têm a seu favor a coisa de que são religiões de vítimas sociais -e ,se você é branco e vai nelas, você é legal e sem preconceitos.

Como dizem os especialistas em religião e mídia Stewart M. Hoover e Lynn S. Clark, na coletânea organizada por eles, "Practicing Religion in the Age of the Media", da Columbia University Press, de 2002, ou Heidi A. Campbell, no recente, de 2013, "Digital Religion: Understanding Religious Practices in New Media Worlds", da editora inglesa Routledge: as religiões combatem o risco de invisibilidade num mundo veloz e pautado por projetos do self (já digo o que é isso), aprendendo a se tornarem commodities que circulam nas mídias falando a língua de pessoas voltadas para o consumo de bens de comportamento que tornem a vida mais fácil.

"Projetos do self", conceito discutido por Hoover e Clark, são modos de viver em que tudo deve ser ajustado a personalidades narcísicas (leia "Cultura do Narcisismo", de Christopher Lasch, clássico de 1979, sobre o que é ser um narcisista no mundo contemporâneo).

Essa personalidade "líquida", como diz o Bauman, não tolera nada que pese como uma mala sem alça.

Amores, viagens, trabalho (claro, se eles têm grana, se não todo esse papinho vira pó), sexo, deuses, Jesus, tudo deve nos ajudar a emagrecer, a ter uma vida saudável, a cuidar de nosso corpo, e a me ensinar que eu sou a coisa mais importante para mim mesmo.

Sério! Quem quer um Jesus "para baixo"? Logo Jesus terá que vir de bike para a missa, e nada de cruz nas costas. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

RELATÓRIO SOBRE ABELHAS

Há alguns meses, por uma dessas contingências da vida, acordei, no meio de uma tarde de verão quente, com gritos. Desci as escadas em minha frente e vi uma nuvem negra sobre o quintal. Tratava-se de uma invasão de abelhas.


Mais tarde, o especialista me explicou que elas haviam decidido se instalar ali, e logo que começassem a produzir mel se tornariam agressivas. Era urgente que, com todo cuidado que seres em extinção merecem, fossem convencidas a partir. Do contrário, se tornariam senhoras da casa.

Antes de continuar, um reparo: ainda movido pelo espanto, tentamos com as autoridades competentes do local uma solução para a invasão. Soubemos, com novo espanto, que apenas especialistas poderiam dar conta do fenômeno relacionado à decisão das abelhas de ali se instalarem. Sem dúvida que, para elas, detalhes como o fato de aquilo tudo ter sido fruto do trabalho de alguns outros seres que não elas pouco importavam.

Diante da pergunta, "mas se não acharmos um especialista em convencê-las a sair, teremos que aceitá-las em nossa casa?", as autoridades responderam sem pestanejar, "nada se pode fazer contra elas". De novo, com ainda mais espanto, ingenuamente, perguntamos, "mas estamos trancados com todos os cachorros e crianças em casa porque elas tomaram conta do quintal!". De novo, com a tranquilidade de quem enuncia algo decidido numa assembleia soberana: "Nada se pode fazer contra elas". Resumo da ópera: tudo dependia do especialista.

Mas paremos o relatório por enquanto. Voltemos ao momento em que eu despertava do sono. Quando eu contemplava a chegada das abelhas e sua decisão de habitar ali, pensei que maravilha deve ser viver assim, de modo coletivo. A paixão pela vida coletiva deve ser algo inspirado pelos deuses, esse seres que gostam de nos atormentar, às vezes fingindo que não existem, às vezes nos chicoteando para que evoluamos na direção da vida em colmeia.

Já não me lembro se sonhei ou se esse fragmento que narro abaixo de fato aconteceu na minha conversa com o especialista.

Disse-me ele que alguns estudos avançados em ciências cognitivas mostram o nível de prazer (o "gozo da colmeia") que elas, abelhas, esses seres evoluídos, sentem quando colocadas em frente a telas coloridas e cheias de luz. As abelhas, esses seres evoluídos, realizam melhor suas superconsciências coletivas quando colocadas diante de redes compostas por letras, imagens e números.

De volta ao que de fato sabemos que ocorreu naquela tarde quente de verão quando acordei com a chegada das abelhas livres. Para mim foi impossível não pensar no grande Franz Kafka, o profeta da esquizofrenia moderna.

Sabemos que certa feita o sábio de Praga falou que o darwinismo não o assustava pelo que dizia do nosso passado, mas sim o assustava pelo que poderia significar para as próximas gerações. Nutro uma grande simpatia, como o leitor atento bem sabe, pelo darwinismo e sua tragédia cósmica de violência, ordem cega e acaso. Mas não posso deixar de pensar que nosso sábio de Praga tinha alguma razão quanto ao efeito nefasto que uma teoria que nos aproxima tanto dos animais poderia ter sobre as gerações futuras.

A paixão pelo "gozo da colmeia" (fato científico) me faz pensar nessa profecia kafkiana. O modo como as invasoras decidiam, ali mesmo, em meio ao ar, em sua assembleia de consciências coletivas, para aonde iam, quem ia fazer o quê, e quem mandava, me causou espanto. O quanto ainda teríamos que avançar para chegar em tal estado de equilíbrio e qualidade de vida?

Por fim, confesso, reli o fabuloso "Relatório para uma Academia" de Kafka (um conto "evolucionista" no qual ele narra a epopeia de um macaco que "vira" humano, ao longo de uma viagem em que aprende a imitar homens e é levado a academia como grande trunfo da ciência). Abri o texto assim como quem busca um versículo que ilumine a vida e achei a seguinte pérola:

"Durante o dia não quero vê-la; pois ela tem no olhar a loucura do perturbado animal amestrado; isso só eu reconheço e não consigo suportá-lo". Por: LUiz Felipe Pondé  Publicado na Folha de SP

domingo, 1 de junho de 2014

'ESPERANÇA DO MUNDO'

"Nunca confiei na felicidade", diz o personagem de Robert Duvall no filme "Tender Mercies" ("A Força do Carinho", título brasileiro bem infeliz para o filme), papel com o qual ganhou o Oscar de melhor ator em 1983. O filme narra a derrocada de um cantor de música country e sua sofrida redenção, graças ao amor e generosidade de uma mulher.


No filme, salta aos olhos o deserto do Texas, a solidão de todas as planícies e a total ausência de qualquer metafísica barata, coisa comum hoje no cinema, seja ela moral, psicológica, ambiental ou política. O homem e a mulher são seres abandonados no mundo e devem cuidar de suas vidas porque ninguém mais o fará.

Aliás, por falar em metafísica, a pior é a política. Mas da política trato apenas por obrigação profissional, porque, como diz Albert Camus nos seus "Cadernos" (o primeiro tem como título "Esperança do Mundo"), ouvindo aqueles que se dedicam à política, podemos apenas concluir que as pessoas se importam pouco com esta parte das suas vidas, uma vez que todos na política mentem.

Acrescentaria, além dos políticos profissionais, os intelectuais que a ela se voltam como redenção do mundo e forma de obrigar os outros a viverem de acordo com os delírios que alimentam em seus gabinetes.
Enfim, no fundo, a política pouco me interessa. Trato-a assim como quem deve cuidar de uma ferida —do contrário ela se infectará.

Noutro filme, "Alabama Monroe" (2012), do diretor Felix van Groeningen, a personagem feminina Elise, interpretada por Veerle Baetens, diz algo semelhante ao final: "Sempre soube que tudo aquilo não podia durar, porque a felicidade sempre acaba". Referia-se ela ao amor por seu marido Didier e pela pequena filha morta.

Sinto-me em casa quando ouço pessoas dizerem coisas assim. Pois se existem apenas "três ou quatro atitudes diante do mundo", como dizia em seu "Breviário da Decomposição" Emil Cioran, filósofo romeno indispensável para quem suspeita que os trágicos gregos são quem tem razão na filosofia, esta é a minha. E seguramente a dele. E também a de Camus.

Na mesma obra, Cioran faz um diagnóstico preciso: "A obsessão pelos remédios marca o fim de uma civilização, e, pela salvação, o fim da filosofia". Por isso ele afirma que desistiu da filosofia quando viu que em Kant não havia nenhuma tristeza. Os filósofos, diz Cioran, quase todos acabam bem, prova máxima contra a honestidade deles.

Sempre sinto um cheiro de mesquinharia quando ouço alguém falar de uma nova dieta. A vida, talvez seja esta sua maior tragédia, se apequena quando não é de algum modo dada em sacrifício. Talvez seja isso que o cristianismo queira dizer quando afirma que só quando se perde a vida se ganha a vida. E não há saída: somos a civilização da mesquinharia. Até Cristo deve ser saudável.

Sei que Camus considerava o suicídio o único problema filosófico ("O Mito de Sísifo"). E sei também que ele considerava um milagre um momento em que não tivesse que falar de si mesmo (caderno "Esperança do Mundo"). Detalhe: Camus usa expressões como "milagre", conhecia bem teólogos como Blaise Pascal e conceitos como o de "graça", citando-os com precisão.

Mas eu suspeito que um dos maiores problemas da filosofia, e certamente um dos maiores milagres na vida, para quem tem um temperamento que desconfia da felicidade (trágico), é justamente o problema que Camus diz "ser um bom título": a esperança do mundo.

Como ter esperança no mundo sem ter que abdicar da capacidade de vê-lo tal como é? Por isso, sinto um halo de graça quando vejo a esperança visitar o mundo. Afora as ilusões, só a generosidade é capaz de acolher a esperança.

Talvez o próprio Camus dê uma pista neste "Caderno", sendo ele um filósofo, e sabendo, como nós todos, que nós filósofos sofremos da vaidade intelectual como pecado capital. Camus diz que "a obsessão em ter razão é a marca suprema de uma inteligência grosseira". Portanto, talvez, a humildade, virtude capital para Camus, seja a esperança para a filosofia. Ou, como dizia Santo Agostinho, o que falta ao filósofo é chorar.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

' TRUE PHILOSOPHER'

"Há uma luta entre a luz e as trevas", diz o detetive Rust Cohle (Matthew McConaughey) na série "True Detective", na última cena do último episódio da primeira temporada.


Já disse e repito que as séries americanas são hoje, de longe, o maior experimento dramatúrgico nos EUA, porque o cinema americano quase não existe, derretido pelo medo do politicamente correto, esta praga que em breve terá destruído toda a criatividade ocidental, à semelhança da arte soviética. Qualquer artista que submeta sua arte ao projeto "para um mundo melhor" é um artista ruim.

A ideia de que há uma luta deste tipo é comum à filosofia, teologia e literatura. Dostoiévski diz algo semelhante nos "Irmãos Karamazov": "Há uma luta entre Deus e o Diabo e o placo é o coração humano".

Nos "Manuscritos do Mar Morto", textos judaicos datados do período em torno do nascimento da era cristã, encontrados em cavernas do mar Morto nos anos 40, afirma-se a mesma luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas. Nathan de Gaza, século 17, "profeta" do falso Messias Sabatai Tzvi, dizia que o mundo, assim como a alma de Tzvi, um melancólico, era dilacerado por forças antagônicas de luz e trevas. Vejo nisso uma poética da agonia como habitat da alma humana.

Rust Cohle é um detetive filósofo típico da tradição que vai de Sam Spade (interpretado por Humphrey Bogart) a Philip Marlowe (interpretado por Elliott Gould e Robert Mitchum). Niilistas, todos eles trazem a marca de uma visão pessimista sobre a humanidade.

Cohle, no primeiro episódio, afirma que é pessimista (e define essa condição como sendo "ruim em festas"). E afirma sua "cosmologia": a consciência humana é um erro da evolução.

Segundo nosso "true philosopher", todos pensamos que somos "eus", mas somos apenas seres que arrastam essa ilusão em meio a uma programação genética que nos obriga a sobreviver. Um diálogo entre o niilismo nietzschiano e o determinismo darwinista de Richard Dawkins não seria muito diferente.

De onde vem esse pessimismo que dá a esses detetives um tom maior do que meros personagens à procura de criminosos?

No caso especifico de Cohle, esse pessimismo vem de uma família de origem destroçada, de uma filha morta muito jovem, de um casamento destruído devido a esta morte, de muita bebida e muita droga, de quatro anos infiltrado no narcotráfico e de uma longa investigação entre satanistas, pedófilos "cristãos" e serial killers de mulheres (esta investigação é o conteúdo dramatúrgico dos oito capítulos da primeira temporada).

Entretanto, sua grandeza não é redutível às suas "pequenas causas" psicológicas. Se assim o fosse, ele seria apenas um deprimido. Sua grandeza como personagem se dá devido ao modo como ele constrói, a partir de sua miséria pessoal, um julgamento preciso da humanidade. Julgamento este que impacta por sua possível consistência.

Há uma questão maior aqui, e que une os grandes detetives nesta concepção niilista de mundo: a experiência com a (sua própria) natureza humana. Sim, natureza humana, este conceito que muitos "especialistas" teimam em dizer que não existe.

Não vou entrar nesta discussão sem fim, prefiro usar a ideia de natureza humana como "licença poética". Há muito que não me importo com debates "especializados".

Sabe-se bem, mesmo entre policiais na vida real, que a proximidade com a miséria humana mais pura pode levar alguém à descrença na natureza dos homens.

Ainda que, como bem mostram esses três personagens, isso não impede virtudes como coragem, generosidade, sinceridade, doçura. Muito pelo contrário, muitas vezes é justamente a dureza do desencanto com a natureza humana e o sofrimento psicológico que ela traz no cotidiano (como no caso de Cohle) que possibilita tais virtudes.

A virtude é silenciosa e cresce sempre num terreno que lhe é hostil. Máxima ignorada por todos que, principalmente em épocas do novo puritanismo político que assola o mundo da cultura, cantam seu amor e sua misericórdia pelo mundo e pelos que sofrem. O amor ao mundo deve ser escondido como uma pérola.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

sábado, 31 de maio de 2014

BELEZA ROUBADA


Há muito suspeitava que um dia as mulheres mais bonitas iam ser de alguma forma castigadas por nossa sociedade. Meu temor, em parte, se confirmou. Incluindo aí também um castigo para os homens mais bonitos. E por quê? Porque pesquisas recentes parecem provar que homens mais bonitos e mulheres mais bonitas têm mais sucesso profissional, e isso é "imperdoável" num mundo em que a inveja e o ressentimento fazem a política das nações. Vivemos numa era do ressentimento.

Claro, dirão que critérios de beleza variam. Sim, numa certa medida mais gordinhas hoje parecem estar em baixa. As magrelinhas podem fazer sucesso em passarelas e nos espelhos de lojas, mas nem sempre encantam o desejo de todos os homens. E mais: não creio que as figuras das "bruxas" deixem alguma dúvida sobre o que era "feio" (não me refiro às mulheres, muitas delas bonitas, que hoje se dedicam a cultos da Europa pré-cristã).

De qualquer forma, o livro "Beauty Pays: Why Attractive People Are More Successful" (A beleza paga: por que as pessoas mais atraentes são mais bem-sucedidas), de Daniel Hamermesh (indicado pelo excelente artigo do "Valor Econômico"), aprofunda o que é essa beleza que paga bem no mercado profissional. O artigo parte da bela Marissa Meyer, CEO do Yahoo!, para discutir o novo problema a ser enfrentado pelos mais bem-sucedidos que forem mais belos.

Os burocratas dos tributos (em países como os EUA), parasitas que passam o dia pensando em como tirar dinheiro de quem produz dinheiro, já tiveram uma ideia incrível: taxar quem tiver mais sucesso profissional e for bonito.

Como será que esse personagem de Kafka (vejo-o como um rato cheio de formulários na mão) vai fazer para identificar a beleza como parte da razão de uma pessoa ser ainda mais achacada pelo fisco? Testemunhos dos "prejudicados" na carreira pela "injusta" beleza dos outros? O livro em questão, no seu capítulo oito, discute as possíveis "proteções legais para os feios"!

Difícil dizer, mas sem dúvida vão descobrir uma forma, porque o Estado está sempre aquém na "ponta da entrega", mas sempre além da imaginação em competência na "ponta da arrecadação".

A base do ódio organizado à beleza e à riqueza (travestido de taxação em nome da justiça "sócio-estética") é o velho ressentimento. Nietzsche é um analista social e político muito mais sofisticado do que o guru Marx. Luta de classes é o "nome fantasia" do ressentimento que se tem contra os mais afortunados e mais competentes. É difícil aceitar que algumas pessoas sejam mais capazes e mais afortunadas (a velha Fortuna de Maquiavel, que, como toda mulher, ama a ousadia e a coragem) do que outras.

Adam Smith, pai da noção de sociedade comercial (ou sociedade de mercado), sabia que havia um risco de crescimento da "frouxidão" generalizada com o enriquecimento. Mas a contingência (ou acaso ou fortuna) que está na base da visão de mundo de Smith fere nossa sensibilidade de carentes.

Sua "cosmologia" não parece reconhecer uma ordem inteligente superior que equilibre de modo "justo" as diferentes capacidades pessoais. A famosa "mão invisível" equilibraria apenas os resultados totais da riqueza, mas não a inveja de quem é menos capaz.

A sociedade de mercado é uma ferida narcísica incurável para quem nela fracassa. E é difícil não ser, uma vez que todos somos infelizes e carentes em algum nível. Os "marcadores" dessas diferenças que ninguém quer dizer o nome (beleza, riqueza, inteligência, originalidade), acolhidas pela sociedade de mercado, são detestados pelo narcisismo carente, fonte inesgotável de ressentimento.

Portanto, a psicologia nietzschiana do ressentimento deveria ser mais levada a sério quando se discute política no mundo contemporâneo.

Dica: o ódio às belas, rancor atávico das feias, o ódio aos mais capazes, rancor atávico dos menos capazes, nunca foi descrito de modo tão claro como pela filósofa Ayn Rand em seu "Revolta de Atlas" (uma das referências bibliográficas que nossa universidade nega a seus alunos), livro antídoto às mentiras do ressentimento. Leia. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP


sexta-feira, 30 de maio de 2014

A VITÓRIA DE KHOMEINI

LONDRES - Leio nesta Folha que o governo iraquiano pretende aprovar nova legislação matrimonial para mulheres xiitas. "Mulheres" é força de expressão: no Iraque, o casamento era possível para maiores de 18 anos.


Agora, com a provável reeleição do premiê Nuri al-Maliki, a ideia é passar para metade: com nove anos, a noiva pode subir ao altar, cumprir todos os desejos do marido e, caso o organismo o permita, engravidar.

Mas não pense que a nova lei "desprotege" os direitos das "mulheres" de nove anos: existe sempre a possibilidade de divórcio para elas desde que o marido seja impotente ou, melhor ainda, vítima de castração.
Imagino que, caso a castração seja efetuada pela própria "mulher" de nove anos, o caso não seja pacífico nos tribunais religiosos locais.

Confrontado com essa notícia, um sujeito racionalmente equilibrado dirá que a nova lei não é, em rigor, uma lei matrimonial. É uma expressão de selvageria, sancionando o abuso de crianças —ou, para não usar eufemismos, permitindo a violação pedófila para os grandes machos do Iraque, que temem sexualmente as mulheres adultas e por isso preferem caçar na escola primária.

Mas o Ocidente chegou a um tal ponto de covardia moral e miséria intelectual que qualquer crítica sobre o Outro será sempre um "preconceito" —e, pior que isso, um crime. Melhor não dizer nada.

Que o diga Paul Weston. Esclarecimento: o sr. Weston é um político britânico ligeiramente amalucado que se candidata às eleições europeias pelo extremista Liberty GB. As ideias do homem, que oscilam entre o ridículo e o lunático, não fazem a minha praia.

Mas um episódio recente fez manchetes nos jornais aqui de Londres: quando fazia campanha nas ruas, Paul Weston cometeu a imprudência de ler um trecho de Winston Churchill onde o antigo premiê britânico tecia considerações pouco simpáticas sobre os muçulmanos.

Foi o que bastou para que a polícia chegasse ao local e enfiasse Weston na cadeia.

Lendo o trecho em questão, não há nele qualquer incitamento ao ódio racial —e, pelos padrões do excêntrico Churchill, a prosa é relativamente anódina.
Mas o espantoso da situação é que o país que nos deu John Stuart Mill —um dos grandes defensores da liberdade, e sobretudo da liberdade para ofender terceiros- considera que é função do seu governo proteger a sensibilidade de grupos ou minorias de tudo aquilo que as desagrada ou ofende.

Como é evidente, o problema aqui não está no sr. Paul Weston, por mais desagradável que a criatura seja. Está no próprio texto de Churchill —e nos milhares de textos da cultura ocidental nos quais muçulmanos, judeus, cristãos, hindus, budistas, índios, negros, druidas, fadas ou gnomos são tratados com "desrespeito".

Quem prende um político por ler um desses trechos pode, pela mesma ordem de ideias, censurar qualquer texto, qualquer filme, qualquer quadro, qualquer escultura, qualquer peça de teatro que ofenda a sensibilidade dos mais sensíveis. O resultado lógico desse processo psicótico é a destruição retroativa da cultura que sobreviveu até nós.

Há precisamente 25 anos, o aiatolá Ruhollah Khomeini, sem ler "Os Versos Satânicos" de Salman Rushdie, condenou o escritor à morte por ofensas ao Profeta e ofereceu US$ 1,5 milhão a quem executasse o serviço.
Khomeini está morto, Rushdie está vivo e os otimistas afirmam que, na luta entre a escuridão e a luz, a luz acabou por vencer.

Os otimistas estão errados. Para começar, a "fatwa" de Khomeini continua válida sobre a cabeça de Rushdie. E, depois, mesmo em 1989 não faltaram escritores ocidentais que, entre a escuridão e a luz, optaram pelas trevas.

A revista "Vanity Fair", para celebrar a data, lembra o caso de John Le Carré, que escreveu um dos textos mais sabujos contra Rushdie (e "compreendendo" o desagrado do aiatolá). Eu já conhecia esse caso e confesso que desde 1989 não entra um único romance de Le Carré aqui em casa.

Passaram-se 25 anos, sim. Mas, esteja lá onde estiver, o aitolá Khomeini pode olhar cá para baixo e sentir-se orgulhoso com a descendência que deixou. O clima de medo que ele inaugurou contra Rushdie acabou por derrotar a coragem e a razão do Ocidente. Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

O NOME DE UM JORNAL

"Não queríamos nos apropriar do nome de Cuba para usá-lo como nossa marca e, no seu lugar, escolhemos o mais universal dos códigos: os números." Yoani Sánchez cumpriu a promessa que anunciou em sua visita ao Brasil e lançou, dias atrás, o jornal eletrônico 14ymedio. O nome inspira-se em referências temporais (2014) e espaciais (o andar do apartamento de Yoani, onde funciona a Redação), bem como na ideia de comunicação ("medio": veículo), e inclui um atestado de origem: o Y, referência a seu blog, "Generación Y". Num gesto de respeito à diversidade política, "Cuba" ficou de fora: 14ymedio está dizendo que Cuba é a pátria de todos os cubanos, não uma propriedade ideológica. É por isso que, horas depois da inauguração, o site do jornal foi bloqueado pelos servidores da Cuba castrista.


"Queremos produzir um jornal que não pretende ser anti-Castro, comprometido com a verdade e a realidade cotidiana dos cubanos", explicou o editor Reinaldo Escobar, demitido da publicação oficial "Juventud Rebelde" em 1988 e proibido de exercer sua profissão. 14ymedio evitará usar "palavras carregadas" como "ditadura" e "regime", preferindo expressões como "o chefe de Estado" ou "o presidente general Raúl Castro", completou Escobar. Não são iniciativas destinadas a obter uma (impossível) tolerância do regime, mas a demarcar o terreno: o veículo não é um jornal partidário, militante, mas apenas um jornal. É isso que o torna insuportável aos olhos da ditadura castrista.

"Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados." A célebre definição de Millôr Fernandes não representa um elogio da imprensa militante, mas uma constatação básica, cuja relevância aumenta na razão direta do crescimento dos gastos publicitários governamentais: o jornalismo independente sempre dirá aquilo que não interessa ao poder de turno. O caminho da moderação escolhido por 14ymedio não o torna menos oposicionista, especialmente num país onde discordar do governo é oficialmente classificado como trair a pátria. Em Cuba, os internautas que tentam acessar o novo jornal são redirecionados a uma página consagrada à difamação de Yoani Sánchez. A espúria identificação entre o governo e a pátria é um pilar essencial do regime castrista.

"Deem-me a liberdade de conhecer, de pronunciar e de debater livremente, de acordo com minha consciência, acima de todas as liberdades", escreveu John Milton em 1644 no "Areopagitica", que solicitava ao Parlamento inglês a anulação da exigência de licença oficial para imprimir. O panfleto de Milton está na origem da liberdade de imprensa e da aventura histórica do jornalismo. Seu argumento é que, ao longo do tempo, a obra coletiva de incontáveis autores individuais produziria um saber valioso, muito superior ao saber circunstancial dos censores a serviço do governo. Esse tema, tão antigo, conserva evidente atualidade na nossa era digital. O lançamento de 14ymedio reativa a polêmica deflagrada em meio à Guerra Civil Inglesa do século 17: a liberdade do jornal produzido no 14º andar de um edifício do centro de Havana não é um mero "problema cubano".

"Estou preso e sou feliz, pois me sinto mais livre que muitos que estão nas ruas ou na União de Escritores e Artistas de Cuba", respondeu Ángel Santiesteban, em entrevista publicada na edição inaugural de 14ymedio. Santiesteban já foi agraciado com o Prêmio Casa das Américas, principal distinção literária concedida pelo regime cubano. Há 13 meses cumpre pena por delito de opinião. Cuba é um teste político e moral para os intelectuais de esquerda. No Brasil, até agora e com honrosas exceções, eles foram reprovados. Não se viu um manifesto pela libertação de Santiesteban. Duvido que solicitem a liberdade para o 14ymedio. Eles acham que a liberdade deve ser um privilégio de usufruto restrito aos que concordam com eles. Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP


quinta-feira, 29 de maio de 2014

QUEM REALMENTE ESTÁ CAUSANDO A CARESTIA NO BRASIL


A percepção da carestia na rotina dos brasileiros é real. Nas filas de supermercados, nos restaurantes a quilo, no comércio em geral e nos serviços contratados, as reclamações já não se restringem a apenas um ou outro bem ou serviço. A realidade é que a palavra inflação voltou com tudo para o léxico dos consumidores.

De fato, os números da carestia são bastante preocupantes. No setor de serviços, por exemplo, a inflação de preços acumulada em 12 meses foi de 9,1% em março. Esse foi osegundo maior valor desde 1999 (ano em que foram adotados o sistema de metas de inflação e o uso da SELIC como ferramenta básica para a política monetária). O maior valor ocorreu em janeiro de 2012, quando a taxa acumulada em 12 meses foi de 9,2%.

Já a inflação acumulada em 12 meses para os bens não-comercializáveis — ou seja, todos os produtos e serviços que não sofrem concorrência de importados — fechou março em 8,09%, após chegar ao pico de 9,70% em maio de 2013.

Em todo o governo Dilma, a média da inflação de preços do setor de serviços está, no momento, em 8,45% ao ano. E a média da inflação de preços dos bens não-comercializáveis está em 8,28%. Para ambos os casos, trata-se da maior média já observada desde 1999

Ou seja, esses dois lamentáveis recordes de carestia pertencem ao governo Dilma e à atual equipe do Banco Central, que já se consolidou como a pior da era do real. Tal incompetência, no mínimo, ajuda a explicar por que as pessoas repentinamente se tornaram preocupadas com a carestia e por que a popularidade da presidente segue em queda.

No entanto, um fenômeno inusitado vem chamando a atenção: no início de abril de 2013, a taxa SELIC estava em 7,25%. Um ano depois, ela já está em 11%. A inflação de preços, no entanto, segue impávida.

Esse fenômeno açulou uma controvérsia que até então estava razoavelmente adormecida: afinal, o Banco Central elevar a taxa básica de juros funciona ou não para combater a inflação? 

Até mesmo alguns colunistas mais experientes se mostram particularmente atordoados. Segundo eles, após todo esse "aperto monetário" promovido pelo Banco Central, era para a inflação de preços ter arrefecido. Mas isso não ocorreu. Pior ainda: a carestia não apresenta o mais mínimo sinal de folga. Por quê?

A pergunta que várias pessoas estão fazendo é: se a economia está crescendo pouco — a média do crescimento econômico do governo Dilma só será melhor que a média obtida nos 3 anos do governo Collor — e a criação de empregos está estagnada há um ano, de onde está vindo a pressão para essa carestia? Por que os preços seguem subindo e não dão sinais de arrefecimento?

Há duas causas.

A primeira causa

A primeira causa — que não é a principal — está ligada às expectativas ruins dos agentes econômicos. 

Segundo alguns analistas, a falta de uma política fiscal mais austera e transparente seria o principal motivo de as expectativas de inflação ainda se mostrarem resistentes. Essas expectativas negativas dos agentes econômicos, que pioram continuamente, estariam estimulando remarcações preventivas nos preços.

Já outros analistas afirmam que o governo errou ao permitir que a inflação se mantivesse longe do centro da meta — de 4,5% ao ano — por tanto tempo. Isso enviou aos agentes econômicos a mensagem de que o governo é tolerante com a inflação, o que ampliou a onda de pessimismo e desconfiança.

Para piorar, a evidente submissão da atual equipe do Banco Central às pretensões políticas de Dilma — que, junto com Guido Mantega e Arno Augustin, implantou uma malfadada "Nova Matriz Econômica" — jogou a credibilidade do BACEN ao chão. 

Empenhada em ter a menor SELIC da história, Dilma pressionou para que o BACEN atuasse nesse sentido. Obediente, o BACEN reduziu a taxa básica de juros para 7,25% em outubro de 2012, o menor nível de sua história. E nesse valor ela permaneceu por seis meses, mesmo com a carestia já em ascensão. Ao mostrar essa submissão ao Palácio do Planalto, o Banco Central perdeu toda aquela confiança que usufruía junto ao mercado durante a gestão Henrique Meirelles.

Portanto, para esses analistas, o maior problema da economia brasileira é a desconfiança gerada pelo governo. Ela estaria inibindo os investimentos produtivos que poderiam aditivar a economia, gerar um aumento da oferta e, com isso, arrefecer um pouco a pressão sobre os preços. 

Aquelas distorções que sempre oprimiram a economia brasileira, e com as quais fomos forçados a conviver passivamente — como infraestrutura precária, carga tributária sufocante, burocracia asfixiante e baixa qualidade da mão-de-obra —, não estão, no momento, no topo da lista de reclamações. Por ora, não são esses os problemas que estão inibindo empresários a aumentar seus investimentos. O problema realmente é a falta de credibilidade do governo.

Ao colocar em risco os fundamentos mais básicos da economia, ao aceitar a inflação de preços no teto na meta por tanto tempo, ao gastar mais do que arrecada, e ao fazer intervencionismos pontuais — como intervir em contratos no setor de energia, alterar o marco do setor petrolífero, segurar os preços dos combustíveis, e adotar políticas de impostos e de tarifas de importação com o intuito de incentivar alguns setores escolhidos segundo critérios políticos e eleitoreiros —, o governo criou insegurança e se transformou no maior inibidor dos investimentos, cuja ausência restringe a oferta e pressiona os preços para o alto.

Muito bem.

Todos esses argumentos apresentados pelos analistas estão corretos. Os fatos são verdadeiros e a lógica é impecável. Com efeito, a questão das expectativas é essencial para o bom funcionamento de uma economia. O economista americano Robert Higgs, seguidor da Escola Austríaca, cunhou o termo "Incerteza Gerada pelo Regime", e sua obra explica cristalinamente tudo isso que estamos vivenciando na prática aqui no Brasil.

Havendo previsibilidade, regras claras, inflação sob controle e um governo comprometido com um orçamento equilibrado, até mesmo deficiências graves como infraestrutura precária, impostos altos, burocracia soviética e mão-de-obra cara e pouco produtiva não se tornam obstáculos intransponíveis. Os investimentos ainda ocorrem. Porém, quando o governo intervém, passa a fazer microgerenciamentos, e deixa claro que questões básicas como inflação de preços e responsabilidade fiscal não mais são importantes, a coisa degringola. As questões objetivas, como os problemas estruturais do país, deixam de pesar nas decisões empresariais. Um fator subjacente — a desconfiança — ganha proeminência e se torna o mais influente.

No entanto, ainda há um problema: embora todos esses fatos e argumentos sejam verdadeiros, eles, por si sós, não explicam completamente a carestia. Há algo mais poderoso por trás de tudo isso, e que está dando sustento a esses contínuos e inabalados aumentos de preços.

A segunda e principal causa da carestia

Poucos sabem, mas, no Brasil, por determinação do governo federal, praticamente metade dos empréstimos feitos pelos bancos cobram juros menores do que a SELIC. 

Em outras palavras, isso significa que metade dos empréstimos feitos pelos bancos praticamente não são afetados por aumentos da taxa básica de juros da economia, a qual, supostamente, deveria servir de baliza para todas as outras taxas de juros da economia. 

Ou, falando ainda mais claramente, isso significa que o Banco Central pode subir a SELIC o quanto quiser — as taxas de juros destes empréstimos praticamente não serão afetadas.

Esta modalidade de crédito é chamada de "crédito direcionado" ou também de "crédito com recursos direcionados". Consiste na obrigatoriedade do fornecimento de empréstimos subsidiados para o setor rural, para o setor imobiliário (aquisição de imóveis), para o setor exportador e para grandes barões do setor industrial. 

E quem são os bancos que fazem esses empréstimos cujos juros praticamente não são afetados pela SELIC? Os bancos estatais, majoritariamente Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e BNDES. 

Veja aqui nesta tabela alguns valores. Observe na coluna "taxa de juros" os valores cobrados das pessoas físicas e das pessoas jurídicas. De abril de 2013 a março de 2014, a SELIC subiu de 7,25% para 11%. No entanto, neste mesmo período, a média das taxas de juros do crédito direcionado quase não se moveu: para as pessoas jurídicas, a média dos juros subiu de 7,2% para 8%; e para as pessoas físicas, subiu de 6,7% para 7,2% em fevereiro, e depois para 8% em março.

Quer um exemplo prático do que isso significa? Um conhecido meu (eu sei, também odeio esse clichê de "conhecido meu", mas juro que o caso é verídico), que é produtor rural, comprou uma Strada de R$40.000 por meio de um programa do governo federal chamado Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar). Esse programa obriga o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a fazerem empréstimos a juros subsidiados para produtores rurais. A taxa de juros cobrada? Meros 3% ao ano. É sério, pode conferir aqui, no item 9. Essa taxa de juros é simplesmente metade da taxa de inflação anual. Aliás, como mostra o link, dependendo do preço do maquinário adquirido, a taxa de juros pode ser de mísero 1,5% ao ano.

Outro exemplo: o Banco do Brasil está oferecendo empréstimos para a aquisição de imóveis a juros de 6,37% ao ano, uma taxa que também é menor do que a inflação de preços. Um banquete para os especuladores imobiliários. E há também o inefável BNDES, cujos empréstimos para o grande baronato industrial cobram juros de ínfimos 5% ao ano.

E então, você sabia que, para a metade do seu crédito, o Brasil tem um dos menores juros reais do mundo?

A taxa SELIC influencia apenas o chamado "crédito livre" ou "crédito com recursos livres". Como o próprio nome diz, trata-se dos empréstimos que os bancos podem fazer para quem quiser, cobrando juros de mercado. Eis aqui a tabela com os juros desta modalidade. Bem mais altos e variando de acordo com a SELIC.

E qual a consequência de tudo isso? O gráfico abaixo mostra de maneira translúcida.

A linha azul mostra o total de crédito concedido pelos bancos privados (Itaú, Bradesco, Santander, HSBC, Citibank e outros pequenos). A linha vermelha mostra o total de crédito concedido pelos bancos estatais (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES e demais bancos públicos estaduais, como Banrisul, BRB, Banco do Nordeste, Banco da Amazônia, Banestes )



Antes de fazermos algumas constatações, tenha em mente que, no nosso atual sistema monetário e bancário, quando uma pessoa ou empresa pega empréstimo, os bancos criam dinheiro do nada — na verdade, meros dígitos eletrônicos — e simplesmente acrescentam esses dígitos na conta do tomador do empréstimo. Ou seja, todo esse processo de expansão de crédito nada mais é do que um mecanismo que aumenta a quantidade de dinheiro na economia. (Mesmo o BNDES, que antigamente utilizava apenas recursos do FAT, teve sua operação alterada, e agora também se tornou uma máquina de criar dinheiro, ainda que de maneira indireta

O gráfico acima, portanto, mostra quanto dinheiro foi criado pelos bancos privados (linha azul) e pelos bancos estatais (linha vermelha) em operações de concessão de empréstimo.

Eis algumas constatações óbvias:

1) O crédito no Brasil já se encontra efetivamente estatizado, pois o volume de crédito fornecido pelos bancos estatais ultrapassou o volume de crédito fornecido pelos bancos privados.

2) A partir de 2008, o crescimento do crédito fornecido pelos bancos estatais assumiu um formato exponencial, e, até a presente data, vem se mostrando totalmente indiferente a alterações na SELIC. Isso ocorre porque o crédito fornecido pelos bancos estatais é majoritariamente do tipo 'crédito direcionado'.

3) O comportamento dos bancos privados ocorre estritamente de acordo com as expectativas para a economia. Foi comedido em 2003, eufórico de 2004 a 2008, comedido em 2009, eufórico em 2010, razoavelmente cauteloso em 2011 e desanimado a partir de 2012.

4) Os bancos estatais estão completamente fora de controle, criando dinheiro e jogando esse dinheiro na economia de forma exponencial. De 2008 até hoje, eles sozinhos jogaram mais de R$1 trilhão na economia brasileira. Estão claramente seguindo ordens políticas.

5) São os bancos estatais os principais causadores da carestia que estamos vivenciando no Brasil. Quanto mais dinheiro eles jogam na economia, maior é a pressão sobre os preços.

6) Os bancos privados, ao reduzirem substancialmente o ritmo de seus empréstimos, aliviaram um pouco da pressão altista nos preços.

7) As causas desse ritmo mais brando na concessão de crédito pelos bancos privados são várias, mas as duas principais são o alto endividamento da população (o que reduz a demanda por crédito e piora o histórico de crédito dos tomadores) e a deterioração das expectativas quanto ao futuro da economia.

8) Caso os bancos privados estivessem tão descontrolados quanto os estatais, a inflação de preços provavelmente já estaria nos dois dígitos.

Conclusão

Atualmente, a política de juros do Banco Central não afeta aquela linha vermelha. Ela afeta apenas a linha azul. Ou seja, a política monetária atua apenas sobre o crédito livre, que é quase todo fornecido pelos bancos privados. Na prática, os bancos estatais estão fora do âmbito da política monetária do BC. Isso significa que o combate à carestia via simples aumento da SELIC exigirá um esforço dobrado. 

E isso gerou uma sinuca do bico: se o próximo governo quiser realmente atacar a carestia, a SELIC terá de ser elevada a níveis mais fabulosos (em 2003, ela teve de ir a 26,5%). Só que isso irá asfixiar o crédito dos bancos privados, e consequentemente elevar ainda mais o grau de estatização do crédito.

Portanto, a solução mais óbvia e prática é acabar com esse descontrole dos bancos estatais e enquadrá-los nas mesmas regras vigentes para os bancos privados. Como disse Edmar Bacha, "Em Brasília, os presidentes dessas instituições dão tchauzinho para o pessoal do BC". 

Em última instância, são os bancos estatais os responsáveis pelos juros e pela inflação de preços serem altos no Brasil. Dado que eles são imunes à SELIC e dado que eles são responsáveis pela metade dos empréstimos feitos no Brasil, a conclusão óbvia é que a SELIC tem de estar em um nível duplamente mais alto apenas para encarecer os empréstimos feitos pelos bancos privados e, com isso, reduzir um pouco o processo de criação de dinheiro.

Caso os bancos estatais operassem sob as mesmas leis que valem para os bancos privados, a SELIC seria menor e, consequentemente, os juros cobrados pelos bancos privados também seriam menores do que são hoje; por outro lado, os juros cobrados pelos bancos estatais seriam maiores do que são hoje. No geral, teríamos taxas de juros (do crédito livre) e de inflação de preços um pouco mais civilizadas.

Essa situação anômala que estamos vivenciando é apenas mais um exemplo prático das nefastas consequências do intervencionismo estatal, dessa vez no crucial setor bancário. Da próxima vez que você vir algo cujo preço aumentou substancialmente nos últimos meses, pense nos logotipos da CEF, do BB e do BNDES. E lembre-se dos políticos que dão ordens a essas instituições.


Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

THOMAS PIKETTY E SEUS DADOS IMPROVÁVEIS



O principal livro de Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, está repleto de teoria econômica. Há apenas duas páginas contendo dados, e Keynes ainda desqualifica esses dados dizendo que são "improváveis".

Em contraste, o novo livro do francês Thomas Piketty, O Capital do Século XXI, que é a sensação mundial do momento, é recheado de dados. Ironicamente, Piketty se considera um sucessor daquele mesmo economista cujos dados Keynes descartou como improváveis: Simon Kuznets. Quase todas as pessoas que realmente leram o livro admitem que o argumento teórico de Piketty é fraco. No entanto, seus defensores prontamente contra-argumentam: "Mas veja todos esses dados! Não dá para argumentar contra todo esse volume de evidências históricas!"

O principal argumento de Piketty é que a riqueza (que tende a se concentrar em poucas mãos) cresce mais rapidamente do que a economia, de modo que aqueles que já possuem muita riqueza vão se tornando cada vez mais ricos em relação a todos os outros. Supostamente, esta seria uma característica inevitável do capitalismo.

(Se essa tese lhe soa familiar, é porque ela realmente é: a teoria de Piketty é apenas uma repetição mais atualizada do que Marx e Keynes já haviam dito, embora seja válido lembrar que Keynes zombou da maioria das coisas ditas por Marx, classificando-as como "embuste").

Mas qual seria então a prova de que a riqueza cresceu mais rápido do que a economia?

Analisemos o gráfico abaixo, que foi adaptado do livro de Piketty. A linha roxa é o retorno sobre o capital e a linha amarela é a taxa de crescimento da economia mundial. A linha roxa supostamente mostra como os ricos estão se saindo e a linha amarela, como o cidadão médio está progredindo. Observe que as partes de ambas as linhas localizadas na extrema direita do gráfico são meramente uma projeção de Piketty, e não dados históricos.



Este gráfico é espantoso por várias razões. Em primeiro lugar, ele sugere que o capital apresentou um retorno de 4,5% ou mais, por ano, no período que vai do ano 0 ao ano 1800. Este valor é insano. Por exemplo, se toda a raça humana houvesse começado o ano 1 com uma riqueza total de apenas US$10, um crescimento composto de 4,5% ao ano durante 1.800 anos faria com que, atualmente, fossemos mais de um trilhão de vezes mais ricos do que realmente somos — lembrando que a riqueza total do mundo foi estimada pelo Credit Suisse em US$241 trilhões de dólares.

Esse valor de 4,5% de retorno sobre o capital também é insano porque o próprio Piketty argumenta, e muito corretamente, que todo o crescimento econômico ocorrido antes da Revolução Industrial foi insignificante, o que significa que retornos tão altos para os ricos simplesmente não são compatíveis com um crescimento tão ínfimo. A verdade é que, durante boa parte desse período, os ricos estavam mais interessados em gastar ou em esconder suas riquezas a investi-las, pois, naquela época, expor suas riquezas significava se tornar suscetível a ser roubado — ou por bandidos ou pelo governo.

Por fim, se analisarmos mais atentamente a parte mais atual do gráfico (1913 a 2012) e ignorarmos a projeção feita para o futuro, veremos que as linhas também não dão sustentação à tese de Piketty. A ideia de que, no capitalismo, os ricos sempre necessariamente se tornam mais ricos em relação a todos os outros simplesmente não é corroborada pelos dados que ele apresenta.

Já o gráfico seguinte mostra a fatia da riqueza nas mãos dos 10% mais ricos da Europa ao longo do tempo (linha azul-escura), a fatia de riqueza nas mãos dos 10% mais ricos dos EUA (a linha verde clara), a fatia da riqueza nas mãos do 1% mais rico da Europa (linha azul-clara) e a fatia da riqueza nas mãos do 1% mais rico dos EUA (a linha verde-escuro).

Este gráfico também não corrobora a tese de Piketty. Sim, a fatia dos ricos cresceu desde 1970, mas só depois de ter caído acentuadamente antes.



Finalmente, o próximo gráfico mostra a renda dos 10% mais ricos dos EUA ao longo do tempo em termos da porcentagem da renda total do país.

Renda, neste caso, inclui também os ganhos de capital, que, em termos práticos, não representam renda verdadeira, mas sim apenas uma troca de um ativo por outro. E exclui as transferências de renda feitas pelo governo, exclusão essa gera uma grande alteração nos resultados. Ainda assim, mais uma vez, não se observa nenhum aumento inexorável na renda dos mais ricos ao longo do tempo. Longe disso.



O que realmente vemos no gráfico acima são dois picos para as pessoas de maior renda: um imediatamente antes da crise de 1929 e o outro imediatamente antes da crise de 2008. Ambos os picos ocorreram justamente durante as duas maiores bolhas econômicas da história americana, nas quais o Banco Central americano, em conluio com o sistema bancário, estimulou a expansão do crédito e criou muito dinheiro, o que gerou uma falsa e insustentável prosperidade. Ambas também foram eras que representaram o ápice do capitalismo corporativista — também chamado de "capitalismo de compadrio" —, no qual aquelas pessoas ricas que tinham conexões com os governos utilizaram o dinheiro criado pelo sistema bancário para se tornar ainda mais ricas ou simplesmente se beneficiaram de outras políticas governamentais que as favoreciam.

Infelizmente, após a crise de 2008, o ativismo dos bancos centrais ao redor do mundo inflou outra bolha nos mercados de capitais. Isso elevou a fatia da renda dos mais ricos novamente para o patamar de 50% da renda total em 2012, baseando-se em dados foram disponibilizados após a publicação do livro. Só que essa nova bolha também irá estourar, o que derrubará a fatia da renda dos mais ricos de volta ao patamar dos 40% observados em 1910, início do período analisado pelo gráfico.

Talvez a afirmação mais surpreendente do livro de Piketty é a de que as burocracias governamentais terão de ser reformadas para que possam fazer um uso mais eficiente de toda a receita adicional que será gerada pelos novos impostos sobre renda e sobre a riqueza que ele recomenda. A suposição é a de que o controle governamental quase que completo sobre a economia seria o melhor arranjo, só que esse mecanismo ainda necessita de alguns ajustes para ser definitivamente implantado.

Ludwig von Mises demonstrou, há quase 100 anos, que uma economia gerenciada pelo estado simplesmente não tem como funcionar, pois, entre outros problemas, ela não é capaz de estabelecer preços racionais. Só uma economia guiada pelos consumidores pode fazer isso. Os socialistas têm tentado refutar a tese de Mises desde então, mas nunca conseguiram. Piketty deveria ao menos ler Mises.



_________________________________________


Para ver outro artigo que refuta, com fatos e dados empíricos, a tese central de Piketty, leia este:

Tradução de Pedro Borges Griese

Hunter Lewis é autor de nove livros, dentre eles dois novos: Free Prices Now!  e Crony Capitalism in America: 2008-2012. Lewis é o co-fundador do movimento anti-corporativista Against Crony Capitalism.org.  Também foi criador e presidente da Cambridge Associates, uma empresa de investimentos atuando em nível global.  Já participou do conselho de 15 organizações sem fins lucrativos, dentre elas organizações ambientalistas, pedagógicas, culturais e de pesquisa.  Também já foi membro do Banco Mundial.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

A IGUALDADE ECONÔMICA É IMORAL E ATENTA CONTRA O "BEM COMUM"


"Pessoas livres não são iguais, e pessoas iguais não são livres".

Gostaria muito de saber quem foi a primeira pessoa a proferir essa máxima. Ela certamente está entre as maiores verdades de todos os tempos, uma que é ao mesmo tempo simples e repleta de profundos significados.

A igualdade perante a lei — por exemplo, ser julgado inocente ou culpado baseando-se exclusivamente em você ter cometido o crime, e não em sua cor, gênero ou crença — é um ideal nobre ao qual nenhuma pessoa de bom senso se opõe. Por isso, não é o tema deste artigo. A "igualdade" a que a frase acima se refere está relacionada à renda econômica e à riqueza material.

Colocando de outra maneira, portanto, a frase pode ser lida da seguinte forma: "Pessoas livres terão rendas distintas. Em arranjos nos quais as pessoas têm obrigatoriamente a mesma renda, elas não podem ser livres".

A igualdade econômica em uma sociedade livre é uma miragem com a qual os redistributivistas sonham — e frequentemente se mostraram muito dispostos a derramar sangue para implantá-la.

A questão é que indivíduos livres são indivíduos intrinsecamente diferentes entre si, de modo que não deveria ser surpresa nenhuma o fato de que eles terão rendas distintas. Nossos talentos e nossas capacidades não são idênticos. Nem todos nós trabalhamos com o mesmo afinco, com a mesma dedicação e com a mesma qualidade. Cada um de nós nasceu em famílias distintas, sendo que cada família possui suas vantagens e suas desvantagens. Também nascemos em diferentes vizinhanças, somos cercados por diferentes tipos de pessoas, recebemos diferentes tipos de incentivos e temos diferentes graus de oportunidade.

É até compreensível que, perante esse ponto de partida desigual, os progressistas queiram remediar a situação implantando políticas governamentais "corretivas". O que eles realmente não entendem é que a cura que eles propõem é muito pior do que doença. Qualquer tentativa de corrigir desequilíbrios nas famílias e nas vizinhanças irá gerar outras desigualdades que podem ser piores do que as originais. 

Thomas Sowell certa vez disse que "Tentativas de se equalizar os resultados econômicos geram desigualdades maiores e mais perigosas de poder político". Ou, como concluiu Milton Friedman, "Uma sociedade que coloca a igualdade à frente da liberdade terminará sem as duas. O uso da força para alcançar a igualdade irá destruir a liberdade, e a força, introduzida com bons propósitos, irá terminar nas mãos de pessoas que irão utilizá-la para promover seus próprios interesses".

Ademais, mesmo se todos nós, magicamente e subitamente, passássemos a ter a mesma riqueza, já no dia seguinte voltaríamos a ser desiguais, pois alguns iriam gastar seu dinheiro e outros iriam poupá-lo.

Em uma economia de mercado, rendas distintas sempre serão uma realidade. E tem de ser assim. Essa diferença de renda ocorrerá em decorrência de fenômenos tão distintos quanto incontroláveis, como talento nato, ambição, energia, disposição, saúde, sorte, percepção correta quanto às demandas do consumidor, parceria com as pessoas corretas etc. Sendo assim, a igualdade econômica só poderá ser tentada (mas nunca alcançada) por meio de monstruosas e contínuas agressões empreendidas por funcionários do governo. O resultado mais provável será uma igualdade de miséria (muito embora os membros da elite política serão mais iguais do que o resto do povo). Igualdade a um nível decente de prosperidade é algo que está muito além da capacidade do estado, como bem ilustram Cuba e Coréia do Norte.

Para produzir uma mínima quantidade de igualdade econômica, os governos teriam de expedir as seguintes ordens (e estar disposto a impingi-las com pelotões de fuzilamento e agentes carcerários): "Não se sobressaia, não trabalhe com mais afinco do que seu vizinho, não tenha boas e novas ideias, não corra nenhum risco, e não faça nada de diferente em relação ao que você já fez ontem". 

Em outras palavras, não seja humano.

Pessoas obcecadas com igualdade econômica — ou, para empregar um termo mais clínico, com o igualitarismo — tendem a fazer coisas estranhas. Elas se tornam invejosas. Elas passam a cobiçar o que é dos outros. Elas dividem a sociedade em dois grupos: vilões e vítimas. Elas gastam mais tempo e energia tentando derrubar e destruir uma pessoa bem sucedida do que se esforçando para se aprimorar, para se tornar uma pessoa melhor e, com isso, subir na vida. São pessoas ressentidas e rancorosas, e não é nada divertido estar perto delas. Quando tais pessoas eventualmente conseguem chegar ao poder, os estragos que elas fazem podem ser irreversíveis. Elas não mais apenas chamam a polícia; elas passam a ser a polícia.

Se a desigualdade econômica é uma opressão, punir o esforço, o mérito e o sucesso não é uma cura. Medidas coercivas que visam à redistribuição de riqueza farão apenas com que os espertos e os politicamente bem-relacionados enviem sua riqueza para o exterior ao passo que os desafortunados terão de arcar com o fardo do inevitável declínio econômico. Uma medida muito mais produtiva seria reduzir o imenso e burocrático aparato governamental — que, com suas regulações que impedem a livre concorrência, com sua inflação que destrói o poder de compra, com suas tarifas de importação que proíbem a aquisição de produtos bons e baratos do exterior — faz com que os pobres se perpetuem nessa condição.

Por outro lado, é fato que há algumas formas de desigualdade econômica condenáveis. Por exemplo, a desigualdade produzida por um capitalismo mercantilista, no qual o estado — por meio de agências reguladoras, tarifas de importação e subsídios — protege os grandes empresários, certamente é indesejável. Por isso, é importante fazermos uma distinção entre empreendedores econômicos e empreendedores políticos. Os primeiros criam valor para a sociedade; ao passo que os últimos simplesmente descobriram como transferir recursos de terceiros para seus próprios bolsos.

Em vez de apenas confiscar a riqueza dos mercantilistas — uma medida inócua que manteria intacto todo o aparato de redistribuição dos pobres para os ricos —, muito mais sensato seria abolir todos os arranjos que permitem o corporativismo, o que levaria à imediata bancarrota desses mercantilistas. Curiosamente, os progressistas de hoje parecem não se importar muito com esse arranjo.

Quando fazemos essa distinção entre mercantilistas e genuínos empreendedores, é possível ver a diferença entre produtores e parasitas. A desigualdade oriunda do empreendedorismo honesto, longe de indicar que algo está errado, significa que há um progresso generalizado na economia. Em um sistema no qual todos melhoram sua situação por meio da atividade criativa e das trocas voluntárias, algumas pessoas inevitavelmente irão se tornar ricas. Trata-se de uma característica natural do sistema — um sistema que recompensa empreendedores e investidores por terem sido bons administradores do capital. 

Obviamente, quando tais pessoas não se mostram bons administradores do capital, elas quebram. Em outras palavras, pessoas que fazem investimentos ruins ou que não servem bem aos consumidores não permanecerão ricas por muito tempo — a menos que o governo decida intervir para salvá-las.

A menos que ela tenha enriquecido contratando advogados e lobistas em vez de pesquisadores e criadores, uma pessoa rica enriqueceu porque criou bens e serviços valiosos para seus consumidores. Sendo assim, a ausência de pessoas muito ricas é um péssimo sinal em uma economia, especialmente para os pobres. Tal ausência, com efeito, indicaria uma das duas coisas a seguir: ou muito pouca coisa de valor foi criada (dificilmente haveria coisas boas e gostosas, como iPhones e trufas) ou o governo incorreu em uma predatória política de redistribuição de renda, destruindo os incentivos para as pessoas serem criadoras de valor e boas gestoras de capital.

No que mais, vale a pena enfatizar que diferenças na propriedade de ativos não significam uma igual diferença no padrão de vida, muito embora várias pessoas tenham esse fetiche. Por exemplo, a riqueza de Bill Gates de ser 100.000 vezes maior do que a minha. Mas será que ele ingere 100.000 vezes mais calorias, proteínas, carboidratos e gordura saturada do que eu? Será que as refeições dele são 100.000 vezes mais saborosas que as minhas? Será que seus filhos são 100.000 vezes mais cultos que os meus? Será que ele pode viajar para a Europa ou para a Ásia 100.000 vezes mais rápido ou mais seguro? Será que ele pode viver 100.000 vezes mais do que eu? 

O capitalismo que gerou essa desigualdade é o mesmo que hoje permite com que boa parte do mundo possa viver com uma qualidade de vida muito melhor que a dos reis de antigamente. Hoje vivemos em condições melhores do que praticamente qualquer pessoa do século XVIII.

Sempre que você vir ou ouvir uma pessoa parolando sobre desigualdade, faça a si mesmo a seguinte pergunta: será que ela está genuinamente preocupada com os pobres ou está apenas indignada com os ricos? Eis uma maneira de descobrir a diferença: sempre que alguém reclamar sobre a desigualdade de renda, pergunte a ela se aceitaria que os ricos ficassem ainda mais ricos se isso, no entanto, significasse condições de vida melhores para os mais pobres. Se a resposta for "não", então ela está admitindo que está importunada apenas com o que os ricos têm, e não com o que os pobres não têm. Já se a resposta for "sim", então a tal desigualdade de renda é irrelevante. Em outras palavras, a preocupação deveria ser com a pobreza absoluta, e não com a pobreza relativa.

Em quase todas as discussões sobre desigualdade de renda, há uma básica dinâmica emocional atuando. Uma pessoa descobre que possui menos do que a outra, e passa ter a inveja. Já outra descobre que tem mais do que o resto, e passa se sentir culpada. Inveja, culpa e indignação. São realmente essas emoções primitivas que deveriam conduzir as políticas públicas? 

Toda essa ideia de igualdade econômica não representa nenhuma genuína forma de compaixão. Quando é somente uma ideia, é fraca. Quando se torna política pública, torna-se um desastre em larga escala.

O fato de que pessoas livres não são iguais em termos econômicos não deve ser lamentado. Ao contrário, é motivo de regozijo. A desigualdade econômica, quando oriunda da interação voluntária de indivíduos criativos, e não de conexões políticas, é um testemunho do fato de que as pessoas estão sendo elas mesmas, cada qual colocando seus talentos e aptidões ímpares para funcionar de maneiras que são gratificantes para elas próprias e que geram bens e serviços valiosos para terceiros. Como diriam os franceses em um contexto mais diferenciado,Vive la difference!


EU SOU UM GENUÍNO LIBERTÁRIO


Eu sou um libertário. Não sou afiliado a nenhum partido político. Não sou progressista nem conservador. Não sou de esquerda nem de direita. Não sou moderado nem radical. Não sou um fusionista. Não estou aberto a concessões.

Sou um libertário puro e inflexível. Para mim, há apenas uma única forma de libertarianismo: aquela que se baseia única e exclusivamente no Princípio da Não-Agressão. Isso significa que, para um genuíno libertário, a lei deveria proibir a iniciação de violência contra pessoas inocentes (tanto as que não cometeram crimes quanto as que querem apenas empreender) e contra sua propriedade. Ponto. O libertarianismo é apenas isso e nada mais do que isso. Não há nada mais no libertarianismo do que as implicações desse axioma básico — o que já é muita coisa.

Por que estou dizendo isso? Porque, de uns tempos para cá, tem havido algumas tentativas, tanto da esquerda quanto da direita, de sequestrar o movimento libertário. 

A esquerda vem tentando sequestrar o movimento libertário acrescentando ao Princípio da Não-Agressão sua típica agenda progressista. Daí surgem bizarrices como dizer que um libertário tem de ser publicamente contrário ao patriarcalismo, ao machismo, a uma hierarquia de poderes dentro das famílias, à homofobia, ao racismo, ao preconceito, ao brutalismo etc. 

Outros vão ainda mais longe e dizem que um libertário deve ser abertamente feminista, pró-movimento gay, e deve fazer apologia de movimentos contra-culturais e ser adepto de estilos de vida alternativos. Alguns chamam isso de libertarianismo humanitário, outros de libertarianismo denso (porque engloba várias características), e ainda há aqueles que chamam isso de "Novo Libertarianismo".

O que essas pessoas não entendem é que ser libertário significa única e exclusivamente se opor à iniciação de agressão contra inocentes. Ponto. É só isso e nada mais do que isso. É perfeitamente possível você ser um racista nojento, ter total aversão a gays e ainda assim ser libertário: basta você guardar para si sua visão de mundo e não implantá-la sobre terceiros. Você pode ser totalmente contra a prática do homossexualismo e totalmente avesso a qualquer ideia feminista; o que você não pode fazer é iniciar agressão contra essas pessoas. Aja assim e você será um libertário.

Quão difícil é entender isso?

Mas o problema não vem apenas da esquerda. Uma tentativa de guinar o libertarianismo para a direita também vem ocorrendo de maneira igualmente intensa. Há alguns direitistas que, assim como os esquerdistas, também querem criar sua própria forma de "libertarianismo denso", exortando libertários a aceitar ideias conservadoras.

Daí a necessidade de fazer estes esclarecimentos.

Sou um libertário. Não sou um libertário "denso" nem "diluído". Não sou brutalista nem humanista. Não sou holista ou solipsista. Não sou moralista nem consequencialista. Não sou aberto nem fechado. Não sou um libertário modal, nem cosmopolita, nem cultural, nem sofisticado. Tampouco sou um "libertário de bom coração". Não sou neo, nem milenar, nem de segunda onda. Sou simplesmente um libertário, do tipo que não precisa de rótulos, não cria advertências, não faz concessões e nem pede desculpas.

Sou libertário. O libertarianismo é uma filosofia política que se preocupa exclusivamente com o uso da coerção e da violência. Não se trata de uma filosofia política que diz que o melhor tipo de governo é um governo limitado. Não se trata de uma filosofia política socialmente liberal e economicamente conservadora. Não se trata de uma filosofia política que diz que o governo é menos eficiente do que o setor privado. Não se trata de uma filosofia política que diz que a liberdade pode ser alcançada por meio da promoção de determinadas políticas governamentais em detrimento de outras. Não se trata de uma filosofia política que advoga um "liberalismo com impostos baixos". 

O libertarianismo não é a ausência de racismo, de machismo, de homofobia, de xenofobia, de nacionalismo, de nativismo, de classismo, de autoritarismo, de patriarcado, de desigualdade ou de hierarquia. Libertarianismo não é diversidade ou ativismo. Libertarianismo não é igualitarismo. Libertarianismo não é tolerância ou respeito. Libertarianismo não é uma atitude social, estilo de vida, ou sensibilidade estética.

Sou um libertário. Sou seguidor do Princípio da Não-Agressão, o qual diz que o único papel adequado para a violência é o de defender o indivíduo e a propriedade contra agressões, e que qualquer uso da violência que vá além de tal defesa é em si mesma agressiva, injusta e criminosa. O libertarianismo, portanto, é uma teoria que afirma que todos devem estar imunes a agressões e que devem ser livres para fazer o que lhes aprouver, desde que isso não signifique agredir a pessoa ou a propriedade de outro.

Meu interesse é nas ações; não estou preocupado com os pensamentos. Estou interessado apenas nas consequências negativas de pensamentos. Acredito que o Princípio da Não-Agressão tem de ser estendido ao governo. Os libertários devem, portanto, se opor à — ou tentar limitar ao máximo a — intromissão dos governos tanto em nível doméstico quanto internacional, pois os governos são os maiores violadores do Princípio da Não-Agressão.

Sou um libertário. Acredito na regra de ouro. Acredito na filosofia do "viva e deixe viver". Acredito que uma pessoa deve ser livre para fazer o que quiser, desde que sua conduta seja pacífica. Acredito que os vícios não são crimes.

Sou um libertário. Nosso inimigo é o estado. Nossos inimigos não são a religião, as corporações, as instituições, as fundações ou as organizações. Elas só têm hoje o poder de nos fazer mal por causa de sua ligação com o estado. Retire os subsídios, as medidas protecionistas, e as regulações que as protegem da concorrência, e elas rapidamente passarão a ser inócuas. Mais ainda: serão inteiramente subserviente a nós consumidores.

Sou um libertário. Acredito no laissez- faire. Qualquer indivíduo deve ser livre para incorrer em qualquer atividade econômica, sem licença, permissão, proibição ou interferência do estado. O governo não deve intervir na economia de nenhuma forma. Acordos de livre comércio, vouchers educacionais e a privatização da Previdência Social não são de forma alguma ideias libertárias.

Sou um libertário. O único governo bom é aquele que não existe. O segundo melhor governo é aquele que menos governa. Como disse Voltaire, governo, em seu melhor estado, é um mal necessário e, no seu pior estado, é intolerável. A melhor coisa que qualquer governo poderia fazer seria simplesmente nos deixar em paz.

Sou um libertário. Imposto é roubo praticado pelo governo. O governo não tem direito a uma determinada porcentagem da renda de ninguém. O código tributário não tem de ser simplificado nem reduzido, e não precisa ser mais justo ou menos intrusivo. As alíquotas de imposto não têm de ser nem diminuídas, nem igualadas e nem se tornar menos graduais. O imposto de renda não precisa de mais e maiores deduções, e nem de lacunas, abrigos, créditos ou isenções. Todo esse sistema pútrido tem de ser abolido. As pessoas têm o direito de manter para si tudo o que ganharam e decidir por si mesmas o que fazer com seu dinheiro: gastá-lo, desperdiçá-lo, torrá-lo, doá-lo, legá-lo, guardá-lo, investi-lo, queimá-lo, apostá-lo.

Sou um libertário. Não sou um libertino. Não sou um hedonista. Não sou um relativista moral. Não sou devoto de algum estilo de vida alternativo. Não sou um revolucionário. Não sou um niilista. E não desejo me associar a ninguém que tenha essas características; mas também não desejo agredir aqueles que têm. Acredito na liberdade absoluta de associação e discriminação.

Eu sou um libertário.

Espero não haver mais dúvidas.


_________________________________________
Participaram deste artigo:
Laurence Vance, acadêmico associado ao Mises Institute, escritor freelancer, professor adjunto de contabilidade da Pensacola Junior College, em Pensacola, Flórida, e autor dos livros Social InsecurityThe War on Drugs is a War on Freedom, King James, His Bible, and Its Translators e War, Empire, and the Military: Essays on the Follies of War and U.S. Foreign Policy