domingo, 8 de junho de 2014

CONTRA A ABSURDA LEI DA PALMADA

Você é a favor de que pais mantenham seus filhos em cárcere privado, sem água, comida e brinquedo, por dias a fio? Não? Então você tem que defender a proibição do castigo no quarto quando ele for malcriado. Colocar no quarto ou no cantinho é uma violência similar à do sequestro.

Achou meio exagerado? É exatamente esse o raciocínio que justificou a Lei da Palmada, ou Lei do Menino Bernardo. Dar uma palmada é torturar; é violentar.

No mundo real, por outro lado, palmada não é tortura e não traz danos às crianças. Como documentado, por exemplo, por Judith Rich Harris em The Nurture Assumption, as evidências a esse respeito em geral não controlam variáveis básicas (ex: influência genética, cultura do meio infantil do qual a criança participa, etc.) e descartam interpretações alternativas: crianças são mais violentas porque apanham mais ou apanham mais porque são mais violentas?

Quando têm algum rigor, os resultados são fracos, e sempre do tipo: crianças que levam palmada podem ser um pouco mais briguentas.

Mas veja: mesmo que haja algumas consequências negativas, nem por isso se segue que a palmada jamais deva ser usada. A necessidade de controlar a criança no presente pode justificar um pequeno desvio de comportamento futuro. (Ou por acaso é um dever moral deixar que os pimpolhos dominem o lar?) Esse tipo detrade-off é normal na criação dos filhos.

Peguemos exemplos de outras áreas. Ao levar o filho para a praia ou para uma piscina, os pais estão conscientemente aumentando o risco de morte da criança. Mesmo assim, julgam que a diversão daquele momento justifica o risco. Ao levar o filho para a casa da avó pra passar a noite, os pais voluntariamente aumentam as chances de o filho morrer ou de ter sequelas pela vida toda (ao colocá-lo num carro) para que possam desfrutar uma noite a dois. É tão horrível assim? Não. É natural.

Pequenos riscos e danos fazem parte da vida, e podem ser justificados por ganhos significativos em outras áreas. Da mesma forma, manter a paz no presente pode justificar um microaumento da probabilidade de que o filho arrume briga no parquinho.

A palmada é apenas uma alternativa para coibir maus comportamentos. Não é das melhores. Depender menos dela é bom. Aliás, quanto mais palmada se dá, menos eficaz ela se torna. Sua vantagem é ser uma punição imediata com baixo custo e alto poder de coibir malcriação. O castigo, a conversa séria, o "tirar brinquedos" também funcionam em diferentes contextos, mas todos exigem mais tempo e esforço dos pais, que às vezes estão exaustos demais. Às vezes, nada como uma boa palmada, ainda que não seja a ferramenta ideal.

Palmada é como ter um pneu remoldado de estepe. Pior e menos seguro, mas, quando necessário, quebra um galho; melhor com ele do que sem.

O ideal da criação sem palmada pode até ser admirado, mas na maioria dos casos não é realista e por isso não deveria em hipótese alguma ser obrigatório. A proibição só serve para abolir uma ferramenta dos pais, tornando a criação dos filhos algo mais cansativo, sem dar nada em troca. Com essas e outras neuroses perfeccionistas que assolam a relação entre pais e filhos, dá pra entender por que ninguém mais quer tê-los.

A proibição depende de imaginar um mundo fantasioso da infância perfeita; trata-se de algo similar à mentalidade que proibiu a propaganda infantil (que, como todo mundo sabe de primeira mão, é coisa inofensiva). Nesse sentido, a escolha da Xuxa como garota-propaganda foi perfeita: uma eterna adolescente que vive num mundo de fantasias infantis e conta com serviçais para toda e qualquer tarefa; e cuja filha, aos 15 anos, ainda tem babá.

O conteúdo da lei é só o começo dos problemas. É preciso implementar a proibição. E como é que a Justiça vai descobrir se a palmada ainda vigora nos lares? A princípio, é mais uma lei que não pegará.

Ou será que o estado vai levá-la a sério? Nesse caso, e na ausência de Fiscais da Família visitando-nos toda semana pra interrogar as crianças (ainda é cedo pra isso — quem sabe em 2050), a única saída é estimular a cultura da delação. Seus vizinhos, seus parentes, seus conhecidos; não arrume confusão com eles, ou já sabe…

Ensinamos as crianças a recorrerem à autoridade ao primeiro sinal de conflito, como se fosse um reflexo. Agora instaremos os adultos a fazê-lo também. Não é a primeira vez. Pode ter certeza de que interessa ao estado quebrar laços de confiança entre as pessoas. Quanto mais as pessoas confiam umas nas outras, menos o poder estatal é necessário. Já tivemos os Fiscais do Sarney, agora podemos ressuscitá-los, não para multar comerciantes, mas para arruinar famílias. Belo e moral!

Entre a lei que não pega e a vigilância totalitária, minha mulher apontou uma terceira alternativa, e essa é minha aposta. Para o grosso das pessoas, a lei não vai pegar. A vida seguirá como sempre. O custo social da implementação é alto demais. Mas, de vez em quando, quando um conflito ou desavença surgir, apossibilidade de delatar a palmada às autoridades será mais uma opção do cardápio; mais uma tática possível no arsenal de militantes bem-intencionados ou vizinhos invejosos. Virá à tona especialmente em disputas virulentas pela guarda dos filhos.

A Lei do Menino Bernardo entrará, assim, no rol das leis hipócritas: aquelas que ninguém espera que sejam seguidas, mas que continuam valendo quando convém. Como a Lei Seca. Desastrosa se aplicada de verdade, ela é aplicada arbitrariamente, de vez em quando. Sobrevive como um pequeno exercício de poder para ferrar a vida de algum azarado.

Agora não há mais escolha: ou se opera no (suposto) ideal, ou se está quebrando a lei e pode-se perder a guarda dos filhos e até mesmo ir para a cadeia por um período de 1 a 4 anos.

Mas me digam, o que será pior para uma criança: levar uma palmada no bumbum ou ser tirada à força de seus pais, dada aos cuidados da Assistência Social, ir e vir a tribunais familiares, e ser repassada a uma nova família?

Sendo assim, todo mundo que levou palmada na infância tem agora apenas duas opções: apontar o dedo na cara da mãe e dizer que ela é uma criminosa e que deveria ter sido presa, ou protestar em alto e bom som contra essa lei imbecil.

Joel Pinheiro da Fonseca é mestre em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta e escreve no blog Ad Hominem.


FASCISMO LIGHT

Reinaldo Azevedo escreveu na "Veja" um texto sobre o tabaco. Corrijo. Sobre a autoritária intenção do governo federal de proibir o fumo em lugares fechados. Como já acontece em São Paulo.


Subscrevo cada linha do meu colega e aproveito para responder à pergunta de Reinaldo sobre o glorioso mundo que espera o Brasil: é o mundo da União Europeia, com seus regulamentos absurdos e suas absurdas intromissões na liberdade individual —a respeito de sal, gorduras, açúcares, bebidas energéticas, exercício físico, exposição solar e qualquer manifestação de vida que seja um desvio da cartilha dos fanáticos.

Mas, antes de passarmos a esse mundo, relembremos o básico: a luta contra o fumo é uma luta médica, não política.

Os médicos podem "desaconselhar" o tabaco. Os cientistas podem provar os malefícios do fumo para a saúde do fumante (ativo), embora ainda esteja por provar qualquer relação consequente entre fumo (passivo) e câncer, por exemplo. Depois, em liberdade, cada um escolhe o modo de vida que entende com a informação de que dispõe.

Coisa diferente é afirmar que o fumo também pertence ao mundo do poder político. Não pertence. Se, como escreve Reinaldo Azevedo, os cigarros não são ilegais, não compete ao governo tratá-los como substâncias ilícitas. Sobretudo quando esse governo cobra impostos sobre o consumo, beneficiando os cofres do Estado com um vício que publicamente condena.

A hipocrisia do gesto fura os olhos de qualquer um: sob a capa da virtude, o governo rejeita os pulmões dos fumantes mas não o dinheiro deles.

Além disso, e mesmo que as proibições sejam em nome da saúde, não compete ao governo ser o "babysitter" de ninguém. Tentar aprimorar a qualidade da raça é coisa de regimes totalitários, não de democracias pluralistas.

Em democracias pluralistas, os indivíduos têm todo o direito de arruinar a própria saúde. Fumando. Bebendo. Transando sem camisinha. Rejeitando o "jogging" e abraçando o "zapping".

Aliás, não é apenas o direito de cada um dispor da sua saúde que deve ser respeitado. Existe um direito ainda mais básico que a proibição do fumo em lugares fechados viola clamorosamente: é o direito à propriedade privada.

Como escrevi nesta Folha quando a proibição de fumar em lugares fechados se abateu sobre São Paulo, não compete ao governo indicar ao proprietário de um bar ou restaurante o tipo de clientela que ele pode, ou não pode, aceitar no seu espaço.

Essa decisão pertence ao proprietário: é tão legítimo aceitar fumantes como recusá-los. O mercado e a concorrência, depois, que façam o seu papel: se eu não desejo frequentar um restaurante para fumantes, posso perfeitamente escolher jantar no restaurante do lado onde circula o ar puro de vales e montanhas.

As leis antifumo, que são hoje dominantes em toda a Europa, fazem parte de um programa mais vasto de "reeducação" dos homens em nome da Saúde (a única divindade que restou no mundo pós-religioso). E como se procede a essa "reeducação"?

Claro: criando um estigma sobre fumantes, obesos ou sedentários. Não admira que a esmagadora maioria dos fumantes brasileiros lamente a sua própria "fraqueza". Reinaldo Azevedo fala em 90%. Por razões de saúde? Admito que sim.

Mas também admito que muitos deles se olhem no espelho e se vejam como o governo e os novos "engenheiros de almas humanas" os retratam: seres fracos e repelentes —"vermes", na carinhosa expressão do velho Adolfo— que só servem para "contaminar" a sociedade.

Essa "contaminação" não é mais a contaminação tosca dos delírios nazistas sobre a "praga" judaica. É uma "contaminação" mais subtil, que pretende espalhar na sociedade uma forma de "apartheid" com a pergunta: "Por que motivo eu devo pagar com os meus impostos o tratamento médico de gente que poderia ter cuidado melhor da sua saúde?"

Como é evidente, essa pergunta só faria sentido se fumantes ou glutões não pagassem também impostos. E, como pagadores de impostos, não tivessem os mesmos direitos que qualquer contribuinte vegetariano, praticante de ioga e abstêmio radical.

Os hospitais não existem para tratar gente saudável. Relembrar o óbvio é o melhor retrato do "fascismo light" em que vivemos. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

sexta-feira, 6 de junho de 2014

DESCONSTRUINDO O MARXISMO EM 3 PASSOS

Ainda hoje, Marx é considerado uma figura ilustre, de uma forma ou de outra. Infame para os liberais, grande profeta para os socialistas, o pensador alemão foi de longe um dos homens mais influentes do mundo – especialmente por alguns de seus defensores terem assumido o poder em dezenas de países durante o último século, rachando o mundo numa batalha ideológica entre socialismo e capitalismo.

Nossa intenção aqui é apresentar algumas de suas teorias falseadas, com um pequeno resumo de como elas se mostraram equivocadas para que relembremos o fracasso do socialismo.
Luta de classes

Até hoje vemos muitos crentes de sua ideologia comportando variantes da mesma ideia, apresentando modificações que surgiram para contornar os problemas da teoria marxista, que com o tempo iam se mostrando completamente equivocadas. Talvez o melhor exemplo disso tudo seja a ideia de luta de classes entre proletários e burgueses que, gradualmente, abre alas para as mais distintas lutas de grupos: lutas de raça, lutas de gênero, lutas de credo, etc…

Altera-se a ideia, mas a essência permanece a mesma: a sociedade é dividida em grupos (ou castas), em que uns são dominantes (opressores) e outros são subjugados (oprimidos). A ideia é lutar pelos interesses do segundo grupo para derrubar o primeiro.

O problema é que, ao contrário do que se acredita, o capitalismo não é um sistema dividido em castas rígidas, onde o grande culpado pelo indivíduo da base da pirâmide não subir nessa hierarquia seja o próprio sistema. Mises explica que o capitalismo (de livre mercado), na verdade, permite que os indivíduos não apenas subam, como desçam nessa escala supostamente arbitrária de classes. E essa era até então uma concepção inédita na história da humanidade: o capitalismo foi o primeiro sistema econômico adotado em larga escala a permitir a mobilidade social. Membros da base da pirâmide que obtém sucesso em atender as demandas da população, melhoram sua situação econômica. O efeito contrário pode acontecer aos mais ricos. Como atesta Mises:

- Os ricos, que já estejam na posse de suas riquezas, não têm qualquer razão especial para desejar a preservação de um sistema de livre competição, aberto a todos; particularmente, se não ganharam, eles próprios, sua fortuna, mas a herdaram, têm mais a ter medo do que a esperar da concorrência. De fato, demonstram interesse especial no intervencionismo, que tem sempre a tendência de preservar a existente divisão das riquezas entre os que a possuem. Mas não podem esperar por qualquer tratamento especial do liberalismo, um sistema que não dá qualquer atenção a reivindicações de tradições consagradas pelo tempo, propostas por interesses investidos de riqueza estabelecida.

O capitalismo de livre mercado é um sistema dinâmico de ascensão e queda social. E mais do que isso: é um sistema que continuamente enriquece a sociedade como um todo. O cidadão mais pobre do atual continente europeu vive com mais conforto que qualquer rei da Idade Média.

A sociedade não apenas não é composta por castas, como tampouco é conflitante entre si. O que temos são indivíduos trabalhando para atender as demandas de outros indivíduos para, através dessas trocas, melhorarem suas próprias condições.
Das Condições dos Trabalhadores
Boa parte da teoria marxista é focada em tratar das relações entre trabalhadores e empregadores: mostrar que há uma relação de exploração entre eles. Esse é possivelmente o principal cerne das teorias dos pensadores socialistas, não apenas de Marx.

Para Marx, a exploração é fundamental para que o capitalista consiga se sustentar. Sem explorar, ele irá à falência. Mais do que isso, o fato dele ser o dono dos meios de produção lhe dará poder para explorar o proletário, dado que este não tem escolha: ou trabalha nas condições arbitrárias do dono dos meios de produção, ou morre de fome. Se tivesse poder aquisitivo, os próprios proletários teriam seus meios de produção garantidos e melhorariam suas condições, pois trabalhariam para si mesmos.

Aqui encontramos dois grandes equívocos. Ignora-se, primeiramente, que a concorrência entre diferentes empresas obriga o empresário a brigar pelos melhores funcionários – e isso ocorre fundamentalmente para aumentar sua própria eficiência, melhorar a qualidade de seu serviço e, por consequência, melhor atender as demandas da sociedade. Tal briga implica em ofertar as melhores condições de trabalho possíveis para determinado empregado, forçando a concorrência a aumentar seus salários e melhorar seus benefícios. Isso, ao contrário do que postula a teoria marxista, beneficia os trabalhadores como um todo. Basta analisarmos friamente a história: os salários continuamente tendem a crescer, jamais cair, especialmente quando falamos de países de economias mais livres. Ao longo desse meio século, o rendimento real per capita só desceu em 6 países (Afeganistão, Haiti, Congo, Libéria, Serra Leoa e Somália). Nos restantes, dispararam. Os ricos ficaram mais ricos, mas os pobres ficaram em condições ainda melhores. Os pobres do mundo em desenvolvimento aumentaram o seu consumo duas vezes mais depressa do que o mundo como um todo entre 1980 e 2000. Apesar de vermos a população mundial dobrar nessas últimas cinco décadas, até a porcentagem de pessoas que vivem na absoluta pobreza caiu mais da metade – para menos de 18%. Logo, mesmo que o trabalhador não tivesse escolha senão somente trabalhar em seus empregos ofertados, a concorrência inerente entre as empresas força os empresários a valorizarem as condições do trabalhador.

Agora, o segundo equívoco. Quem disse que o trabalhador gostaria de estar na condição de empresário? Consideremos as seguintes atribuições: preocupação com os lucros, com os salários dos funcionários, com o calvário da burocracia estatal, com o cálculo correto dos impostos, estar atento à variação natural dos preços dos insumos, escolher os melhores investimentos, aproveitar as melhores oportunidades de negócio, suportar quedas de demandas em quadros inflacionários, cumprir com as regulamentações mais arbitrárias possíveis, atender demandas de forma competente e ainda colocar a mão na massa em algum ponto do processo produtivo da empresa – em muitos casos, sobretudo nas empresas menores. Tudo isso são atribuições costumeiras de um empresário. É fato que muitos, à medida que prosperam, passam a delegar suas funções, contratando empregados para suas atribuições iniciais. Ainda assim, não há como delegar a terceiros a parte mais importante de todas: a de assumir os riscos. Se a empresa declina, quem está no prejuízo é o empresário. Certamente ele poderá optar por demissões para mitigar os custos – e isso é terrível para o empregado demitido. Mas ainda assim: o empregado receberá seu última salário, quando partirá para encontrar outro emprego.

Enquanto isso, a ocupação do empregado é cumprir com seu cargo. Normalmente, isso implica que sua única preocupação seja realizar uma função específica e receber seu salário por isso, independentemente do lucro ou do prejuízo do empresário. É verdade que alguns empregos demandam múltiplas funções e ainda que outros possuem condições precárias de trabalho, mas, à luz dos fatos, essas são condições em contínuo processo de melhoria, especialmente nos países com economia mais livre.

Mas Marx vai além. Em seu Manifesto Comunista, defende – e utiliza isso como base em sua obra magna – a ideia da velha lei de ferro dos salários, anterior ao próprio Marx, onde os salários estarão sempre no patamar mínimo necessário para que o proletário sobreviva e garanta a sobrevivência de sua prole. Para Marx, aumentar o salário só iria permitir com que os proletários tivessem mais filhos, uma vez que agora poderiam sustentá-los. Esse excedente de proletários geraria um aumento em suas fileiras, fazendo com que os salários declinassem. Em sua visão de mundo apocalíptica, a partir do instante em que os salários declinam, mais filhos morrem de fome, menos proletários estarão disponíveis e só a queda da oferta permitiria novamente com que os salários aumentassem, fazendo com que eles oscilem sempre no sentido de se manterem no menor patamar possível para garantir o sustento dos filhos, sem que isso cause uma grande variação do número dos proletários.

Mises já havia percebido que não apenas isso é falso, como contraditório com a principal defesa de Marx: a de que a tendência da exploração é sempre piorar a situação do trabalhador a um patamar insustentável onde ele não teria outra alternativa senão apelar para a força bruta e tomar para si o que lhe é de direito. Isso é terrivelmente falso porque trata os trabalhadores como criaturas não humanas. Como diz Eugen von Böhm-Bawerk:

- Os seres vivos não humanos têm necessidade de proliferar até os limites traçados pelo suprimento disponível de meios de subsistência. Nada, senão a quantidade de alimento possível de se obter, controla a multiplicação ilimitada de elefantes ou roedores, de pulgas e germes. Seu número se mantém no nível dos alimentos disponíveis. Mas essa lei biológica não se aplica ao homem. O homem também aspira a outros fins além daqueles relacionados às suas necessidades biológicas e fisiológicas. A lei de ferro presumia que o assalariado — o homem comum — não é melhor do que um coelho: não anseia por outras satisfações além de comer e proliferar-se, não sabe aplicar seus ganhos senão na perseguição dessas satisfações animais. É óbvio que essa é a coisa mais absurda que já se imaginou. O que caracteriza o homem enquanto homem e o eleva acima do nível dos animais é que ele aspira também a objetivos especificamente humanos, que podemos chamar fins mais altos. O homem não é, como os outros seres vivos, impelido apenas pelos apetites de seu ventre e de suas glândulas sexuais. Também o assalariado é um homem, ou seja, é uma pessoa moral e intelectual. Se ganha mais do que o mínimo que lhe é essencial, gasta isso na satisfação de seus anseios especificamente humanos, tenta tornar mais civilizada a sua vida e a de seus dependentes. 

Ainda sobre a condição do trabalhador, Marx alegava que as máquinas os substituíam, piorando sua condição, jogando-os no desemprego e, por consequência, pondo em queda seus salários. Felizmente a história mostra que isso não é verdade. Olhemos em volta: a evolução tecnológica em relação aos tempos do nosso velho barbudo é inquestionável. Ainda assim, desde 1800, a população mundial cresceu 6 vezes, mas a expectativa média de vida mais do que duplicou e o rendimento real aumentou mais de 9 vezes. Embora máquinas exerçam trabalhos braçais de dezenas de operários do passado, as demandas são infinitas e os trabalhadores do presente se alocam em outros tipos de serviços com demandas que, até então, nem sequer eram consideradas. O próprio mercado de informática é um exemplo disso. Hoje, programadores podem desenvolver softwares que permitem computadores, controladores, robôs e as mais variadas máquinas a desempenharem múltiplas tarefas até então apenas executadas com um grande número de pessoas – essas, por sua vez, podem agora se tornar vendedores, gerentes, cozinheiros ou assumir outras tantas profissões que se reinventaram com o tempo, trazendo diversidade e dinamismo para a economia mundial.

Em resumo: as máquinas não só não pioraram as condições do trabalhador, como a melhoram, potencializando sua produtividade e desempenhando trabalhos outrora mal remunerados – embora básicos para a indústria e a cadeia produtiva – agraciando os trabalhadores com o surgimento de demandas para trabalhos mais sofisticados – e consequentemente, melhor remunerados.
A teoria da exploração
Um dos principais alicerces de sua teoria está em provar a exploração dos trabalhadores. Se no ponto anterior demonstramos que ele observou evidências incompatíveis com a realidade que o capitalismo traria no futuro, esse é o ponto em que Marx teoriza a existência da exploração.

Um dos princípios dessa teoria é a de que o trabalhador tem direito sobre 100% do valor produzido pelo seu trabalho em cima daquele produto. Parece justo: você trabalha e recebe exatamente aquilo que ele vale.

O problema é que, para Marx, a roupa costurada manualmente tem a totalidade do seu valor produzido pelo trabalho de quem a costurou. O material de nada vale se não tiver trabalho nele cristalizado. Logo, se todo valor produzido para aquela mercadoria advém do trabalho, como o empresário lucraria com o produto vendido se todo o dinheiro da venda é, em tese, do trabalhador? Para Marx, isso somente seria possível se o dono do meio de produção se apropriasse de parte desse valor e entregasse ao trabalhador menos do que ele produziu em forma de trabalho, constituindo-se essa a exploração do trabalhador no modo de produção capitalista.

Essa ideia parece lógica se você aceita que o valor produzido é fruto somente do trabalho. O problema é que isso é falso.

E é aí que surge Böhm-Bawerk, com sua clássica refutação à teoria da exploração e à teoria de valor em Marx. O primeiro ponto que Böhm-Bawerk levanta é que os socialistas – e essa não é apenas uma crítica a Marx – ignoram a influência do tempo no valor das coisas. Em muitos casos, o salário é pago aos trabalhadores antes que o produto por eles produzido seja sequer vendido. Há, portanto, um investimento para o futuro.

Os trabalhadores em geral preferem receber dinheiro hoje em detrimento de amanhã – principalmente quando esse amanhã significa longo prazo. Isso é conhecido como preferência temporal. Como resultado: dinheiro no futuro vale menos que a mesma quantia no presente. Tal fato significa que, se os trabalhadores recebem antes do produto ser vendido, a quantidade de dinheiro recebido deve ser menor que o preço da venda no futuro, para que ambos os valores sejam equivalentes em dois tempos distintos, ainda que consideremos que a íntegra do valor produzido no produto seja de posse do trabalhador. Esse é o fenômeno do juro que Marx dizia ser só mais uma manifestação da famigerada Mais-Valia.

Contudo, o fenômeno do juro é real, contrariando a premissa de que, se o trabalhador tem direito a 100%, seu salário deveria ser igual ao preço praticado pelo produto no futuro. Se isso acontecesse, na prática, o trabalhador estaria ganhando mais do que deveria – e ironicamente explorando o dono do meio de produção, que estaria investindo dinheiro no presente para receber exatamente a mesma quantia no futuro, perdendo ele parte do valor investido.

Outra questão importante é que, se Marx diz ter encontrado o “tempo de trabalho socialmente necessário” para produzir uma mercadoria como único fator determinante comum a todas as mercadorias no valor final de troca, Böhm-Bawerk encontrou exceções que furam isso a que Marx chama de “Lei de Valor”:

1- Bens raros não obedecem a essa lei. Seus valores não se encontram proporcionais ao tempo médio de trabalho. Isso inclui quadros e outras obras de arte – exemplos que erroneamente levam as pessoas a acreditarem que essas são “pequenas exceções”, Mas a regra vai muito além: terrenos, bens patenteados, direitos autorais, segredos industriais e outros exemplos nos mostram o quão comum são esses tipos de produtos. Terras são rarefeitas por natureza, visto que não se pode replicar espaço físico. Existe uma quantidade infindável de bens que são rarefeitos, frutos de patentes, direitos autorais e segredos industriais. Embora não caiba aqui discutir se tais artifícios são corretos ou não, o fato é que sendo rarefeitos são valorizados e compõem uma grande parte da gama de produtos que o mercado possui. É, portanto, uma “exceção” bastante comum.

2- Produção por trabalho qualificado. Essa é uma exceção tão óbvia que nem Marx ousou negá-la. Ao contrário, tentou encaixá-la em sua teoria, afirmando que a mão de obra qualificada gera um efeitomultiplicador na proporção, ou seja, uma hora de trabalho qualificado valeria, digamos, duas horas de trabalho comum. Se uma ferrovia alega cobrar sua tarifa proporcionalmente à extensão da viagem do passageiro – cobrando, num trecho particularmente dispendioso, cada quilômetro computado como se fosse dois – será possível confirmar que o único princípio para a tarifação seja a extensão do trajeto ou qual tipo de trajeto esse passageiro tomou? E porque o tipo de trabalho que muda a proporção não seria um segundo princípio de determinação de valor, portanto, uma exceção? E exceção das grandes, pois muito do que temos hoje de bens e serviços são frutos de mão de obra qualificada.

3- Bens produzidos por mão de obra extraordinariamente mal paga. Análogo ao segundo ponto, mas no sentido inverso. Alguns trabalhos manuais como bordado, costura, malharia, etc, são pouco valorizados e, por isso, paga-se pouco por eles.

4- Ainda que os produtos obedeçam a uma proporção fiel de trabalho ao seu valor, essa valoração oscila em relação à oferta e à demanda. Marx diz que a Lei de Oferta e Demanda funciona como um fenômeno oscilatório em relação ao valor real determinado objetivamente pelo tempo de trabalho e que, no final, tudo irá obedecer à sua lei de valor. Entretanto, deve-se observar que essas oscilações de valor de troca são reais e que isso é uma evidência de que existem outros fatores desconhecidos que modificam esses valores. É como se um físico observasse a oscilação de um corpo em queda livre para, apenas quando ele se espatifasse no chão, afirmar que tudo não havia passado de meras oscilações passageiras, que o que vale mesmo é a gravidade, a única componente de força atuante sobre o corpo. A gravidade puxa para baixo e somente para baixo. Se um corpo, supostamente em queda livre, modifica sua trajetória de forma absolutamente contrária durante a queda, logo certamente há outras forças atuando sobre ele, ainda que desconhecidas.

5- Marx dizia que, dados dois produtos que contenham a mesma quantidade de trabalho médio cristalizado, aquele que teve maior quantidade de trabalho prévio seria o mais valioso. Entretanto, quando percebemos que levamos menos de 15 minutos de trabalho para se plantar um carvalho – que produz certamente uma valiosa madeira – não teremos como usar esse postulado para explicar porque, dadas duas mesas com o mesmo processo produtivo, a de carvalho ser mais valiosa, ainda que tenha custado menos trabalho prévio que a de uma mesa com outro material.

Dessa forma, temos uma plenitude de bens que desabam completamente a lei de valor, que postula a obediência à regra de que o valor é proporcional ao trabalho cristalizado. É interessante notar que Marx chamava de transgressão da lei de valor o fato de alguma mercadoria não obedecer a essa lei. E – dado que lei, na ciência, descreve uma realidade exaustivamente verificada com inúmeros testes – podemos concluir que, segundo Marx, somos todos infratores da realidade, dada a frequência com que essa lei é transgredida.

Os erros desse ilustre pensador são muito mais do que os citados nesse artigo. Diversas críticas foram feitas a muitos pontos de suas teoria e metodologias. Paul Johnson chega a mostrar evidências históricas de que Marx usou dados falsos para atestar sua tese quanto à condição dos trabalhadores. Muito embora sua principal defesa seja a de supostamente advogar em favor da melhoria de condição do proletário, ele parecia não fazer ideia do que realmente melhoraria sua situação, nem o que estava em processo com o capitalismo. Por melhores que estivessem suas intenção, como o próprio Marx costumava dizer, “o caminho para o Inferno está pavimentado de boas intenções”. O marxismo, de fato, leva o trabalhador à ruína. Como atestou o alemão Hans Sennholz:

- Do ponto de vista das consequências econômicas e sociais, a teoria marxista provoca a desgraça. A legislação trabalhista que sobrevêm com a sua adoção não apenas reduz a produtividade do trabalho e o salário, mas também traz descontentamento e conflitos sociais. Tanto as legislações de salário mínimo, como outras tentativas de elevar os salários acima dos níveis determinados pelo mercado, estão criando desemprego e depressão, o que, por sua vez, fomenta um coletivismo radical. O seguro social compulsório torna seus receptores tutelados do estado, destruindo a sua autoconfiança, sua responsabilidade individual e sua independência. As taxas de confisco que incidem sobre o capital e o ganho de nossos empresários e capitalistas — impostas em benefício dos que ganham menos — prejudicam o crescimento econômico e causam estagnação. Encorajam o desperdício e a ineficiência, baixam os salários, causam rigidez econômica e criam as classes sociais. Por fim, os sindicatos de trabalhadores não apenas reduzem a eficiência do trabalho, através de uma multiplicidade de medidas, que causam desajustamentos e desemprego, mas também agem como eficientes propagadores da ideologia socialista. Todas essas políticas e medidas, juntas, estão provocando o controle econômico geral e a onipotência do governo.

E se você, caro leitor, está realmente preocupado em lutar por mecanismos que melhorarem as condições de vida do trabalhador, segue a dica: abrace o livre mercado.


quinta-feira, 5 de junho de 2014

A 'IMAGEM DO BRASIL'

Fernando Haddad proferira a palavra "guerrilha", referindo-se à greve dos motoristas de ônibus. Na terça, Dilma Rousseff pronunciou a palavra "baderna", referindo-se às manifestações de rua. Minutos depois, liderados por um movimento de sem-teto e por índios armados com arcos e flechas, 2.500 pessoas interromperam o trânsito em Brasília. "É a imagem do Brasil que estará em jogo", explicou a presidente, avisando que "vai chamar o Exército, imediatamente", para reprimir a "baderna" durante a Copa do Mundo. A "imagem" toca num nervo sensível do governo. Em nome dela, por um mês e às custas da ordem democrática, Dilma promete assegurar o direito de ir e vir das pessoas comuns.

A "baderna" é, há tempo, a "imagem do Brasil" –com a diferença, apenas, de que o mundo não estava vendo. Sob o influxo do PT, movimentos minoritários aprenderam que, reunindo algumas centenas de manifestantes, têm a prerrogativa de parar cidades inteiras. A tática, esporádica durante anos, tornou-se rotineira depois das multitudinárias "jornadas de junho". Nas metrópoles, os cidadãos converteram-se em reféns de militantes iracundos, que não buscam persuadir maiorias, mas unicamente provocar o colapso da vida urbana. O problema de Dilma é que chegou a hora da Copa: agora, a "baderna" ameaça a sacrossanta "imagem do Brasil", não os desprezíveis direitos das pessoas.

O conflito entre direitos é um traço marcante das democracias. A liberdade de expressão é regulada por leis que protegem a privacidade e a imagem dos indivíduos. O direito de greve é regulado por disposições que asseguram o funcionamento de serviços essenciais. O direito de manifestação pública é limitado por regras que impedem a anulação do direito de circulação das pessoas. No Brasil do lulopetismo, contudo, aboliu-se tacitamente o direito de ir e vir. Acuadas pelo PT, as autoridades renunciaram ao dever de garanti-lo, curvando- se à vontade soberana de dirigentes sindicais e lideranças de movimentos sociais.

Nas democracias, o equilíbrio entre os direitos de manifestação e de circulação no espaço público deriva de uma série de regras. Manifestações são autorizadas mediante aviso prévio às autoridades e acertos sobre lugares de concentração e trajetos de passeatas. No Brasil, nada disso existe pois não interessa ao Partido: a vigência de regras gerais, de aplicação indistinta, restringiria as oportunidades de orquestração de ações de "baderna" moduladas em cenários de disputa eleitoral. O problema de Dilma é que, na hora da Copa, emergiram movimentos que nem sempre se subordinam às conveniências do Partido. A presidente resolveu, então, militarizar provisoriamente o país. No poder, o lulopetismo oscila entre a política da "baderna" e o recurso ao autoritarismo.

"Não vai acontecer na Copa do Mundo o que aconteceu na Copa das Confederações", garantiu Dilma a uma plateia de aflitos empresários. Não mesmo. Os protestos multitudinários provavelmente não se repetirão porque os "black blocs" cumpriram a missão de afastar das ruas as pessoas comuns. Os envelopes urbanos das "arenas da Fifa", perímetros consagrados aos negócios, serão circundados por cordões policiais de magnitude inédita. Já a "baderna" arquitetada para provocar colapsos de circulação em dias de jogos terá que desafiar a hipótese de resposta militar. Na Copa, excepcionalmente, o direito de ir e vir estará assegurado.

Dilma promete "chamar o Exército". A força militar aparece, hoje, como a única mola capaz de conciliar o "padrão Fifa" com o "padrão Brasil" de ordem pública. Um estado de sítio não declarado instaurará um efêmero parêntesis no tormento cristalizado pela política da "baderna" nas principais cidades do país. Nos 30 dias da competição, a "imagem do Brasil" brilhará sobre um pano de fundo verde-oliva. Depois, tudo volta ao "normal". 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 4 de junho de 2014

GRAMSCI E AS PRÓXIMAS ELEIÇÕES

Estamos a ver as últimas etapas do “orgasmo político” gramsciano.


O que esperam das eleições os revolucionários conscientes da causa e todos aqueles que consideram o Parlamento eleito pelo sufrágio universal uma máscara da ditadura burguesa? Essa foi a pergunta que o ideólogo socialista italiano Antonio Gramsci fez em seu artigo “Os revolucionário e as eleições” escrito em 1919. Essa é a pergunta que o eleitor brasileiro, ou pelo menos aquele que é formador de opinião, tem de se fazer.

Alguns se perguntariam qual a necessidade de tal questionamento. Contudo, nunca é tarde para lembrar: os integrantes do partido que hoje nos governa vêm fazendo a mesma pergunta há pelo menos 40 anos. Tentar entender as possíveis respostas dessa pergunta é essencial, pois os ditos de Antonio Gramsci compõem a fundação teórica desse mesmo partido.

É verdade que os partidos e intelectuais de cunho revolucionário jamais pararam de confabular, conjecturar e exercitar dialeticamente seus termos. Não obstante, ao ler Antonio Gramsci logo se vê que embora adequações tenham sido feitas ao que ele disse, a base e o modus operandi do Partido dos Trabalhadores ainda segue majoritariamente os ditames do ideólogo italiano.

Para citar um exemplo dentre vários dessa adequação: mesmo que o pensador alemão Herbert Marcuse tenha trazido o novo insight sobre a necessidade da classe revolucionária ser representada pelos párias da sociedade [1] e não pelos proletários – que hoje se engalfinharam na corrida capitalista –, ainda assim vemos o Príncipe partidário gramsciano como o regente de todo o aparato revolucionário.

E o Príncipe sempre é partidário e eleitoral na realidade gramsciana, pois segundo o pensador italiano, “os resultados da luta eleitoral [...], modificam, sem dúvida, as relações de força entre as instituições em que se encarna a luta, de classe, em que se encarna hoje o processo de desenvolvimento da revolução” [2].

Para o ideólogo, tal necessidade eleitoral se faz também por conta de que uma revolução brusca e violenta poderia suscitar o apoio à uma contrarrevolução muito mais forte e muito mais brusca vinda da tal burguesia reacionária. Sendo assim, é necessário para Gramsci 

“que o esforço eleitoral do proletariado [hoje adequado também a outra classe, conforme vimos acima] consiga fazer entrar no Parlamento um bom nervo de militantes do Partido Socialista e que esse seja bastante numeroso e aguerrido para tornar impossível, a cada líder da burguesia, a constituição de um governo estável e forte, para obrigar, portanto, a burguesia a sair do equívoco democrático, a sair da legalidade, e determinar uma sublevação dos estratos mais profundos e vastos da classe trabalhadora contra a oligarquia dos exploradores” [3].

Não foi exatamente isso que aconteceu desde que o Partido dos Trabalhadores tomou o poder? Em 2004, já dez anos após o primeiro aviso dado sobre os perigos do PT e do gramscismo na obra A Nova Era e a Revolução Cultural, o filósofo Olavo de Carvalho dava outro aviso no artigo “Assunto encerrado” ao dizer: 

“O PT, como digo há anos, não veio para alternar-se no poder com outros partidos -- muito menos com os da ‘direita’ -- segundo o rodízio normal do sistema constitucional-democrático. Ele veio para destruir esse sistema, para soterrá-lo para sempre nas brumas do passado, trocando-o por algo que os próprios petistas não sabem muito bem o que há de ser, mas a respeito do qual têm uma certeza: seja o que for, será definitivo e irrevogável”. 

Olavo tornou ainda mais inteligível o que Gramsci disse há quase um século atrás.

Um olhar sobre os protestos de junho de 2013
Muito se falou após junho de 2013 sobre os perigos que o PT enfrentaria nas próximas eleições. Seriam eles verdadeiros? Uma Presidente Dilma pálida de pânico proferindo um discurso desconexo em rede nacional à época dos protestos fazia parecer que sim. Ledo engano. Dilma estava sendo avaliada pelo próprio partido acerca da sua aptidão para governante em um cenário de ruptura revolucionária. Se ela foi aprovada ou não pelos seus pares é algo que descobriremos no futuro.

Os protestos em si, mesmo que tenham imprevistamente englobado as classes de fato insatisfeitas, no final só serviram para deixar o PT mais forte do que nunca. As massas fizeram exatamente aquilo que o Partido Príncipe espera: pediram ajuda a ele. O partido vendeu a solução dos problemas que ele mesmo criou.

A resposta para tal manobra novamente está em Gramsci. Ao dizer que o condottiero maquiavélico é a encarnação da vontade pública, ele logo em seguida dá o pulo do gato e diz que é necessário que o próprio Partido – e não uma única pessoa – se torne esse condottiero, mas não seguindo as vontades de fato públicas, mas criando novas necessidades que só sejam realizáveis pelo próprio Partido, de modo que ele próprio – o Partido – se torne a única possibilidade no horizonte e a encarnação mesma da vontade popular. 

Diz Gramsci:

“O moderno Príncipe, desenvolvendo-se, subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais; na medida em que o seu desenvolvimento significa de fato que cada ato é concebido como útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso; mas só na medida em que tem como ponto de referência o próprio moderno Príncipe e serve para acentuar o seu poder, ou contrastá-lo. O Príncipe toma o lugar, nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a base de um laicismo moderno e de uma laicização completa de toda a vida e de todas as relações de costume” [4].

É o que aconteceu em 2013: o movimento revolucionário vem há décadas criando os entraves socioculturais e há uma década os políticos. Chegamos ao ponto em que a única vontade disponível no horizonte de consciência do povo é a vontade que os atuais governantes querem que tenhamos, de modo que, como disse Olavo de Carvalho em A Nova Era e a Revolução Cultural, a instauração da última etapa de um regime totalitário vem a ser apenas um “orgasmo político”. Não é de se estranhar, portanto, que mesmo entre os bem intencionados e não-militantes, os pedidos eram por mais estado (mais educação, mais saúde, mais segurança, etc.). Tudo conforme o plano de poder do Partidão.

E ainda diz mais o ideólogo italiano sobre os protestos:

“Uma das condições de triunfo da revolução é a organicidade unitária e centralizada da psicologia popular, é portanto a existência da sociedade humana com uma sua configuração real e precisa. Era necessário um acontecimento pré-revolucionário que fizesse convergir simultaneamente a atenção das massas para os seus problemas e para as soluções que, em relação a estes problemas, propõem as várias correntes políticas.” [5].

Em outras palavras, a revolução gramsciana só prospera quando todos estiverem pensando da mesma maneira e as alternativas à revolução forem impensáveis por esse mesmo bloco, isto é, mesmo que haja uma genuína vontade de alternativas à revolução, os meios linguísticos e culturais já foram destruídos de tal modo, que não há sequer um repertório imaginativo para tal mudança.

A conclusão é temerosa: dada a estreiteza da cosmovisão do povo, em parte provocada pela revolução cultural gramsciana, dificilmente a presidência mudará de mãos neste ano de 2014. Esperemos então o avanço nas agendas abortistas, desarmamentistas e a ideologização cada vez maior do sistema educacional. Enfim, estamos a ver as últimas etapas do “orgasmo político” gramsciano. As últimas semanas não deixam dúvidas acerca disso.


Notas:
[1] termo usado pelo próprio Herbert Marcuse na obra O homem unidimensional para se referir às classes ditas oprimidas, que logo se organizaram em movimentos que hoje conhecemos por “movimentos de minoria”: feministas, abortistas, gayzistas, africanistas, etc.
[2] Antonio Gramsci, Escritos políticos, vol. II. “As eleições”, p. 73.
[3] op. cit. “Os revolucionários e as eleições”, p. 65. Grifo meu.
[4] Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere. Caderno 8. “O moderno príncipe”.
[5] Antonio Gramsci, Escritos políticos, vol. II. “Os resultados que esperamos”, p. 70.
Leonildo Trombela Junior é jornalista e tradutor.

terça-feira, 3 de junho de 2014

O DESMAZELO FISCAL

O volume de empréstimos do Tesouro a bancos públicos aumentou cerca de vinte vezes desde 2007, passando de 0,5% para mais de 9% do PIB


Alguns analistas repetem o refrão: vistos em conjunto os governos Itamar Franco/Fernando Henrique e Lula/Dilma serão percebidos no futuro como uma continuidade. Houve a estabilização da economia, as políticas sociais foram ativadas e, a democracia, mantida. Sim e não, digo eu. É certo que, no primeiro mandato de Lula, as políticas macroeconômicas foram sustentadas pelo chamado “tripé” (Lei de Responsabilidade Fiscal, metas para a inflação e câmbio flutuante) e que a crise de 2008 foi razoavelmente bem manejada. Mas depois o governo lulista sentiu-se à vontade para levar adiante o sonho de alguns de seus membros.

A, então poderosa, ministra-chefe da Casa Civil se opôs desde logo aos economistas, inclusive do governo, que propunham limitar a expansão do gasto público ao crescimento do PIB. Na área fiscal, só fizemos piorar. Ao mesmo tempo, pouco se fez para sanear a máquina pública, infiltrada por militantes e operadores financeiros, e estancar a generalização do dá cá (apoio ao governo e votos), toma lá (nomeações para ministérios, empresas públicas e áreas administrativas). O governo alardeia estar cumprindo as metas de superávit primário, quer dizer, o resultado das contas públicas antes do pagamento dos juros da dívida. Cumprir essas metas é essencial para assegurar a queda da dívida como proporção do PIB. Desde 2009, o governo vem se valendo de expedientes para “cumpri-las”, às vezes mediante fabricação de receitas por contabilidade criativa, como em 2012, ora com uso de receitas extraordinárias, como em 2014, quase sempre com o adiamento de despesas que vão engordando os chamados restos a pagar.

Afirma o governo que o superávit de 2014 será igual do ano anterior. Será? Custo a crer, pois o superávit de 2013 computou o resultado do leilão da concessão de exploração de petróleo no poço de Libra (R$ 15 bilhões) e a antecipação incentivada à Receita de R$ 22 bilhões devidos por empresas. Somados esses recursos geraram R$ 37 bilhões, ou 0,8% do PIB, quase a metade do superávit primário do ano passado (1,9%). De onde virão as receitas extraordinárias em 2014? Fará o governo leilões do pré-sal usando a “amaldiçoada” lei anterior que não exige capitalização da Petrobras e antecipa maiores recursos ao Tesouro? Seria a suprema ironia.

A única certeza é a de que a expansão do gasto público é crescente: em janeiro do ano em curso (mês no qual em geral as despesas caem com relação a dezembro do ano anterior) houve uma expansão de R$ 4 bilhões. Ou seja, o que não foi pago em dezembro de 2013 será pago no ano em curso. Se tivesse sido pago, o superávit de 2013 teria sido de apenas 1%, dos quais 0,8% proveniente de receitas extraordinárias! A tendência à expansão do gasto vem de longe. E se acentuou no governo de Dilma. Em 2013, a despesa atingiu 19% do PIB (era de 11% em 1990). O crescimento do gasto como proporção do PIB nesses últimos três anos foi mais de duas vezes superior ao observado em meu segundo governo, quando se instituiu o regime de metas de inflação e responsabilidade fiscal, com metas de superávit primário e controle do gasto público. O governo atual alega que a dívida líquida não cresceu nesse período e que a dívida bruta, embora tenha aumentado, estaria sob controle. É fato que, como proporção do PIB, a dívida líquida não cresceu e que a bruta, em comparação com a de alguns países desenvolvidos, aparentemente não deveria nos preocupar. Seria verdade, não fosse pelo “detalhe” de que o custo da nossa dívida é muito maior. Basta um exemplo: no ano passado, com uma dívida bruta de 66% (segundo o FMI) ou um pouco menos de 60% (segundo o governo), o Brasil gastou 5,2% do PIB com juros da dívida. Já a arruinada Grécia, com uma dívida bruta de mais de 170% do PIB, gastou 4%!

O não crescimento da dívida líquida se deve, em boa medida, mais uma vez, a um truque fiscal. Ele consiste em fazer o Tesouro tomar dinheiro emprestado no mercado, mais de R$ 300 bilhões desde 2009, e repassar o dinheiro ao BNDES. Na contabilidade da dívida líquida, uma operação anula a outra, pois a dívida contraída com o setor privado pelo Tesouro se transforma em crédito do mesmo Tesouro contra o BNDES, que é 100% controlado pelo governo. Ocorre que os juros que incidem sobre a dívida contraída com o mercado são muito mais altos do que os juros cobrados pelos empréstimos do BNDES, para não falar no risco de parte desses empréstimos não ser paga jamais. O Tesouro deveria compensar o BNDES por esta benevolência, mas não o vem fazendo. Ao final de 2013, já eram R$ 17 bilhões devidos pelo Tesouro ao BNDES para equalizar a diferença nas taxas de juros. Os empréstimos do Tesouro ao BNDES não são um caso isolado. Dados do economista Mansueto Almeida mostram que o volume de empréstimos do Tesouro a bancos públicos aumentou cerca de vinte vezes desde 2007, passando de 0,5%, para mais de 9% do PIB! Vamos, de truque em truque, em marcha firme para a produção do que, no passado, chamávamos de “esqueletos” ou dívidas não reconhecidas.

Tudo isso foi feito com a justificativa de que era necessário para estimular a economia. Porém, em lugar de mais investimento e mais crescimento, colhemos apenas mais inflação e maior fragilidade fiscal.

Como o lulopetismo sabe que é difícil enganar sempre, tenta agora desacreditar os adversários. Alardeia que diante desse quadro, se o PSDB e as oposições ganharem, vão tratar os consumidores e o povo a pão e água. Puro desvario. O controle sobre o desarranjo fiscal e a inflação não precisa recair sobre o povo. As bolsas consomem apenas 0,5% do PIB. Fizemos a estabilização da moeda, controlamos gastos do governo e, ao mesmo tempo, aumentamos o salário mínimo, realizamos a reforma agrária, universalizamos o ensino fundamental, fortalecemos o SUS e introduzimos programas de combate à pobreza.

Está na hora de pôr ordem na casa, e o governo nas mãos de quem sabe governar.
Por: Fernando Henrique Cardoso  Publicado no Globo

ELEIÇÕES NA COLÔMBIA: FIM DAS NEGOCIAÇÕES EM HAVANA?

Embora poucas pessoas percebam, as eleições presidenciais na Colômbia têm um peso decisório  no futuro do nosso continente.


No domingo 25 de maio ocorreram duas eleições de considerável importância no nosso continente: na Venezuela, não pelos cargos disputados mas pela resposta da oposição venezuelana ao autoritarismo do ilegal presidente Nicolás Maduro e na Colômbia, fundamental para decidir se o país se transformará em mais um satélite castro-comunista com as FARC no poder.

Em meados de fevereiro deste ano, Maduro, sob as ordens dos ditadores Castro, depôs e fez colocar na cadeia com uma condenação de 12 meses de prisão, dois prefeitos que se opuseram a combater os manifestantes que armavam barricadas para se defender dos ataques da Polícia e Guarda Nacional que atacavam os estudantes sob as ordens de Maduro. Depostos os prefeitos Daniel Ceballos, de San Cristóbal, estado Táchira, e Enzo Scarano, de San Diego, estado Carabobo, Maduro decretou os cargos vacantes e convocou eleições para 25 de maio. O que ele não contava é que as esposas dos prefeitos encarcerados iriam concorrer aos cargos para dar continuidade ao trabalho de seus maridos.

Em resposta aos desmandos autoritários do governo ilegítimo de Maduro, o povo respondeu à convocatória e votou maciçamente nestas duas senhoras. Patrícia de Ceballos, esposa de Daniel, se converteu na nova prefeita de San Cristóbal com 73,60% dos votos, e Rosa Brandonisio Scarano, esposa de Enzo, conquistou a prefeitura de San Diego com 87,74% dos votos. Insatisfeito com o resultado, porque seus prepostos foram rechaçados rotundamente, Maduro ainda no domingo “advertiu” que estava havendo eleições em dois municípios porque os prefeitos “cometeram delitos graves para o país”, e que a oposição poderia governar mas se “se se tornassem loucos e começassem a queimar o município outra vez, se convocarão eleições a cada três meses até que haja paz”, como se os responsáveis por tantos assassinatos fossem esses prefeitos e não os supostos agentes da ordem por determinações suas.

Embora poucas pessoas percebam, as eleições presidenciais na Colômbia têm um peso decisório no futuro do nosso continente, considerando que o atual presidente, Juan Manuel Santos, vem há mais de um ano facilitando, com o apoio dos ditadores Castro, a legalização dos terroristas das FARC que pretendem fazer do país mais um feudo comunista.

Com menos de um ano de criação e oficialização do partido Centro Democrático (CD), o ex-presidente Uribe elegeu-se Senador da República com mais de 80% de votos, e ainda elegeu a maioria dos senadores e deputados federais que ocuparão as cadeiras do Parlamento colombiano. Desesperado com este resultado, o presidente Santos tramou de todas as maneiras que pôde para impedir que o CD tivesse um candidato à presidência e que este resultasse vencedor nas eleições que se celebraram no último domingo.

Faltando aproximadamente um mês para as eleições, Santos, através da revista Semana de propriedade de sua família, divulgou um vídeo onde aparecia o candidato do CD, Oscar Iván Zuluaga, em conversa com o suposto hacker Andrés Sepúlveda, onde “tramavam um golpe para derrubar Santos”. A fraude foi grosseira. Vários peritos em informática analisaram o vídeo e apontaram até 30 edições que modificavam o que fora conversado. O advogado de Zuluaga, Jaime Granados, entrou com uma denúncia no Ministério Público contra essa fraude criminosa, anexando os laudos periciais, mas na primeira avaliação - apressada, evidentemente - o MP alegou que o vídeo era autêntico, entretanto, a sentença final ainda não saiu e Zuluaga pôde concorrer legalmente.

O escândalo provocou efeito contrário aos planos de Santos pois, revelada a fraude, a rejeição dos colombianos a ele, que já era enorme por conta do tal “acordo de paz”, além de ver as mentiras das FARC que assinaram um cessar fogo que seria de 20 a 28 de maio e NUNCA deixaram de cometer assassinatos e atos terroristas, resultou em que preferiram acreditar no candidato de Uribe.

A resposta a esse rechaço veio nas urnas: Oscar Iván Zuluaga obteve 29,27% dos votos e Juan Manuel 25,59%, com 60% de abstenção (na Colômbia o voto não é obrigatório), um dos índices mais altos que se tenha notícia, contrastando com as eleições de 2010, quando Santos elegeu-se com a plataforma de Uribe e traiu-a no dia seguinte à tomada de posse reatando relações com a Venezuela e declarando Chávez seu “mais novo melhor amigo”. Com esse resultado a disputa vai para um segundo turno que ocorrerá em 15 de junho.

Quem acompanhou as eleições de 2010, como eu, e que via uma população esperançosa de que finalmente o país voltaria a viver em paz com o fim das FARC, compreende a desconfiança do povo em decidir os destinos do país, daí tão grande índice de abstenção. Santos era o candidato de Uribe e o traiu vergonhosamente, então, como confiar em outro que aparece com as mesmas promessas? As “negociações de paz” em Havana têm-se mostrado um fracasso rotundo para os anseios dos colombianos e uma vitória para as FARC mas não foram concluídas antes das eleições, o que deu uma folga para Zuluaga que já afirmou que vai suspendê-las. 

A candidata Marta Lucía Ramírez, do Partido Conservador - que não lhe deu qualquer apoio e que foi grosseiramente mal tratada pela mídia inteira -, já declarou que vai apoiar Zuluaga, o que representa mais de 15% dos eleitores que lhe deram seu voto. Os outros dois candidatos, Enrique Peñalosa do Partido Verde e Claudia López do Polo Democrático Alternativo que pertence ao Foro de São Paulo, certamente apoiarão a Santos. Porém, não se pode esquecer que os 60% que não foram votar demonstraram seu rechaço a Santos e que, agora, com um bom trabalho do Centro Democrático, poderão ir às urnas em 15 de junho e depositar sua confiança em Zuluaga porque os colombianos odeiam as FARC de morte e não querem vê-las livres e impunes de tantos crimes hediondos.

O que se teme agora é que Santos acelere a assinatura final dos acordos para apresentar-se como o candidato que “selou a paz” e acabou com um conflito que dura mais de 50 anos, mas isso poderá ser o tiro de misericórdia em suas pretensões de conquistar o Prêmio Nobel da Paz e mais um mandato de 4 anos. Só nos resta torcer e aguardar que o povo colombiano decida pelo melhor, pelo fim desse flagelo maldito chamado FARC, pois isto será um golpe também para os ditadores Castro, aos que tramam desde Havana e ao Foro de São Paulo.
Por: Graça Salgueiro   Do site: http://notalatina.blogspot.com


segunda-feira, 2 de junho de 2014

JESUS CAN'T BE BORING

Não, o título deste texto não é uma citação, apenas uma expressão que em inglês soa melhor. Se formos falar "Jesus não pode encher o saco" ou "Jesus não pode entediar", isso não capta o sentido contemporâneo de Jesus como "commodity".

Inglês é o idioma ideal para o mundo da mercadoria, porque vendemos tudo melhor em inglês. Imagine se fôssemos fazer um comercial sobre como Jesus tem que ser legal para você, se você for um jovem ou uma jovem de 20 anos? "Jesus can't be boring" soaria muito melhor... Ou seja: Jesus tem que ser legal... E somar à sua vida... (ou "agregar valor", expressão que eu pessoalmente detesto).

Estamos falando de mercado religioso. Sim, as religiões competem no mercado de "bens religiosos": festas, significados para vida e para o sofrimento, laços sociais e afetivos dentro das comunidades de fiéis, casamentos, educação de filhos, narrativas de fim de mundo, rituais mágicos ou não, ferramentas de comunicação espiritual ou similares como TV ou mídias sociais, enfim, tudo o que uma religião oferece em termos de "bens de consumo".

A vida não tem sentido aparente, é curta (só parece longa quando sua vida é muito péssima), precária, escassa, frustrante; logo, uma hora dessas, ou Jesus ou Frontal vai bater na sua porta. Se você for mais chique, um Buda light serve.

Vale lembrar que tudo o que falamos aqui sobre Jesus poderia ser falado sobre qualquer outra figura religiosa de peso. Não se trata de nenhuma forma de ironia ou sarro com o cristianismo especificamente. Como estamos numa sociedade majoritariamente cristã, nas suas diversas denominações, podemos falar em "Jesus como bem religioso" como símbolo de todo o processo de commoditização das religiões.

Commoditização das religiões significa a transformação das religiões em bens de consumo tratados via ferramentas de marketing, num mercado de comportamentos em que elas devem competir entre si e com as opções seculares.

Opções seculares são: ateísmo, quase ateísmo, agnosticismo ("não temos provas definitivas nem de que Deus existe nem de que não existe", afirmação que para os ateus é ateísmo que não saiu do armário), humanismo ateu como o do autor britânico A. C. Grayling em seu livro "The God Argument, The Case Against Religion and for Humanism", ou simplesmente, "bode dos deuses, e vamos viver o dia a dia para ver no que dá".

As religiões devem vencer umas às outras como produto, e aos seculares também. É briga de cachorro grande. Nesse processo, a Igreja Católica apanha dos protestantes que já nasceram com a vocação para o business. As afro-brasileiras têm a seu favor a coisa de que são religiões de vítimas sociais -e ,se você é branco e vai nelas, você é legal e sem preconceitos.

Como dizem os especialistas em religião e mídia Stewart M. Hoover e Lynn S. Clark, na coletânea organizada por eles, "Practicing Religion in the Age of the Media", da Columbia University Press, de 2002, ou Heidi A. Campbell, no recente, de 2013, "Digital Religion: Understanding Religious Practices in New Media Worlds", da editora inglesa Routledge: as religiões combatem o risco de invisibilidade num mundo veloz e pautado por projetos do self (já digo o que é isso), aprendendo a se tornarem commodities que circulam nas mídias falando a língua de pessoas voltadas para o consumo de bens de comportamento que tornem a vida mais fácil.

"Projetos do self", conceito discutido por Hoover e Clark, são modos de viver em que tudo deve ser ajustado a personalidades narcísicas (leia "Cultura do Narcisismo", de Christopher Lasch, clássico de 1979, sobre o que é ser um narcisista no mundo contemporâneo).

Essa personalidade "líquida", como diz o Bauman, não tolera nada que pese como uma mala sem alça.

Amores, viagens, trabalho (claro, se eles têm grana, se não todo esse papinho vira pó), sexo, deuses, Jesus, tudo deve nos ajudar a emagrecer, a ter uma vida saudável, a cuidar de nosso corpo, e a me ensinar que eu sou a coisa mais importante para mim mesmo.

Sério! Quem quer um Jesus "para baixo"? Logo Jesus terá que vir de bike para a missa, e nada de cruz nas costas. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

RELATÓRIO SOBRE ABELHAS

Há alguns meses, por uma dessas contingências da vida, acordei, no meio de uma tarde de verão quente, com gritos. Desci as escadas em minha frente e vi uma nuvem negra sobre o quintal. Tratava-se de uma invasão de abelhas.


Mais tarde, o especialista me explicou que elas haviam decidido se instalar ali, e logo que começassem a produzir mel se tornariam agressivas. Era urgente que, com todo cuidado que seres em extinção merecem, fossem convencidas a partir. Do contrário, se tornariam senhoras da casa.

Antes de continuar, um reparo: ainda movido pelo espanto, tentamos com as autoridades competentes do local uma solução para a invasão. Soubemos, com novo espanto, que apenas especialistas poderiam dar conta do fenômeno relacionado à decisão das abelhas de ali se instalarem. Sem dúvida que, para elas, detalhes como o fato de aquilo tudo ter sido fruto do trabalho de alguns outros seres que não elas pouco importavam.

Diante da pergunta, "mas se não acharmos um especialista em convencê-las a sair, teremos que aceitá-las em nossa casa?", as autoridades responderam sem pestanejar, "nada se pode fazer contra elas". De novo, com ainda mais espanto, ingenuamente, perguntamos, "mas estamos trancados com todos os cachorros e crianças em casa porque elas tomaram conta do quintal!". De novo, com a tranquilidade de quem enuncia algo decidido numa assembleia soberana: "Nada se pode fazer contra elas". Resumo da ópera: tudo dependia do especialista.

Mas paremos o relatório por enquanto. Voltemos ao momento em que eu despertava do sono. Quando eu contemplava a chegada das abelhas e sua decisão de habitar ali, pensei que maravilha deve ser viver assim, de modo coletivo. A paixão pela vida coletiva deve ser algo inspirado pelos deuses, esse seres que gostam de nos atormentar, às vezes fingindo que não existem, às vezes nos chicoteando para que evoluamos na direção da vida em colmeia.

Já não me lembro se sonhei ou se esse fragmento que narro abaixo de fato aconteceu na minha conversa com o especialista.

Disse-me ele que alguns estudos avançados em ciências cognitivas mostram o nível de prazer (o "gozo da colmeia") que elas, abelhas, esses seres evoluídos, sentem quando colocadas em frente a telas coloridas e cheias de luz. As abelhas, esses seres evoluídos, realizam melhor suas superconsciências coletivas quando colocadas diante de redes compostas por letras, imagens e números.

De volta ao que de fato sabemos que ocorreu naquela tarde quente de verão quando acordei com a chegada das abelhas livres. Para mim foi impossível não pensar no grande Franz Kafka, o profeta da esquizofrenia moderna.

Sabemos que certa feita o sábio de Praga falou que o darwinismo não o assustava pelo que dizia do nosso passado, mas sim o assustava pelo que poderia significar para as próximas gerações. Nutro uma grande simpatia, como o leitor atento bem sabe, pelo darwinismo e sua tragédia cósmica de violência, ordem cega e acaso. Mas não posso deixar de pensar que nosso sábio de Praga tinha alguma razão quanto ao efeito nefasto que uma teoria que nos aproxima tanto dos animais poderia ter sobre as gerações futuras.

A paixão pelo "gozo da colmeia" (fato científico) me faz pensar nessa profecia kafkiana. O modo como as invasoras decidiam, ali mesmo, em meio ao ar, em sua assembleia de consciências coletivas, para aonde iam, quem ia fazer o quê, e quem mandava, me causou espanto. O quanto ainda teríamos que avançar para chegar em tal estado de equilíbrio e qualidade de vida?

Por fim, confesso, reli o fabuloso "Relatório para uma Academia" de Kafka (um conto "evolucionista" no qual ele narra a epopeia de um macaco que "vira" humano, ao longo de uma viagem em que aprende a imitar homens e é levado a academia como grande trunfo da ciência). Abri o texto assim como quem busca um versículo que ilumine a vida e achei a seguinte pérola:

"Durante o dia não quero vê-la; pois ela tem no olhar a loucura do perturbado animal amestrado; isso só eu reconheço e não consigo suportá-lo". Por: LUiz Felipe Pondé  Publicado na Folha de SP

domingo, 1 de junho de 2014

'ESPERANÇA DO MUNDO'

"Nunca confiei na felicidade", diz o personagem de Robert Duvall no filme "Tender Mercies" ("A Força do Carinho", título brasileiro bem infeliz para o filme), papel com o qual ganhou o Oscar de melhor ator em 1983. O filme narra a derrocada de um cantor de música country e sua sofrida redenção, graças ao amor e generosidade de uma mulher.


No filme, salta aos olhos o deserto do Texas, a solidão de todas as planícies e a total ausência de qualquer metafísica barata, coisa comum hoje no cinema, seja ela moral, psicológica, ambiental ou política. O homem e a mulher são seres abandonados no mundo e devem cuidar de suas vidas porque ninguém mais o fará.

Aliás, por falar em metafísica, a pior é a política. Mas da política trato apenas por obrigação profissional, porque, como diz Albert Camus nos seus "Cadernos" (o primeiro tem como título "Esperança do Mundo"), ouvindo aqueles que se dedicam à política, podemos apenas concluir que as pessoas se importam pouco com esta parte das suas vidas, uma vez que todos na política mentem.

Acrescentaria, além dos políticos profissionais, os intelectuais que a ela se voltam como redenção do mundo e forma de obrigar os outros a viverem de acordo com os delírios que alimentam em seus gabinetes.
Enfim, no fundo, a política pouco me interessa. Trato-a assim como quem deve cuidar de uma ferida —do contrário ela se infectará.

Noutro filme, "Alabama Monroe" (2012), do diretor Felix van Groeningen, a personagem feminina Elise, interpretada por Veerle Baetens, diz algo semelhante ao final: "Sempre soube que tudo aquilo não podia durar, porque a felicidade sempre acaba". Referia-se ela ao amor por seu marido Didier e pela pequena filha morta.

Sinto-me em casa quando ouço pessoas dizerem coisas assim. Pois se existem apenas "três ou quatro atitudes diante do mundo", como dizia em seu "Breviário da Decomposição" Emil Cioran, filósofo romeno indispensável para quem suspeita que os trágicos gregos são quem tem razão na filosofia, esta é a minha. E seguramente a dele. E também a de Camus.

Na mesma obra, Cioran faz um diagnóstico preciso: "A obsessão pelos remédios marca o fim de uma civilização, e, pela salvação, o fim da filosofia". Por isso ele afirma que desistiu da filosofia quando viu que em Kant não havia nenhuma tristeza. Os filósofos, diz Cioran, quase todos acabam bem, prova máxima contra a honestidade deles.

Sempre sinto um cheiro de mesquinharia quando ouço alguém falar de uma nova dieta. A vida, talvez seja esta sua maior tragédia, se apequena quando não é de algum modo dada em sacrifício. Talvez seja isso que o cristianismo queira dizer quando afirma que só quando se perde a vida se ganha a vida. E não há saída: somos a civilização da mesquinharia. Até Cristo deve ser saudável.

Sei que Camus considerava o suicídio o único problema filosófico ("O Mito de Sísifo"). E sei também que ele considerava um milagre um momento em que não tivesse que falar de si mesmo (caderno "Esperança do Mundo"). Detalhe: Camus usa expressões como "milagre", conhecia bem teólogos como Blaise Pascal e conceitos como o de "graça", citando-os com precisão.

Mas eu suspeito que um dos maiores problemas da filosofia, e certamente um dos maiores milagres na vida, para quem tem um temperamento que desconfia da felicidade (trágico), é justamente o problema que Camus diz "ser um bom título": a esperança do mundo.

Como ter esperança no mundo sem ter que abdicar da capacidade de vê-lo tal como é? Por isso, sinto um halo de graça quando vejo a esperança visitar o mundo. Afora as ilusões, só a generosidade é capaz de acolher a esperança.

Talvez o próprio Camus dê uma pista neste "Caderno", sendo ele um filósofo, e sabendo, como nós todos, que nós filósofos sofremos da vaidade intelectual como pecado capital. Camus diz que "a obsessão em ter razão é a marca suprema de uma inteligência grosseira". Portanto, talvez, a humildade, virtude capital para Camus, seja a esperança para a filosofia. Ou, como dizia Santo Agostinho, o que falta ao filósofo é chorar.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

' TRUE PHILOSOPHER'

"Há uma luta entre a luz e as trevas", diz o detetive Rust Cohle (Matthew McConaughey) na série "True Detective", na última cena do último episódio da primeira temporada.


Já disse e repito que as séries americanas são hoje, de longe, o maior experimento dramatúrgico nos EUA, porque o cinema americano quase não existe, derretido pelo medo do politicamente correto, esta praga que em breve terá destruído toda a criatividade ocidental, à semelhança da arte soviética. Qualquer artista que submeta sua arte ao projeto "para um mundo melhor" é um artista ruim.

A ideia de que há uma luta deste tipo é comum à filosofia, teologia e literatura. Dostoiévski diz algo semelhante nos "Irmãos Karamazov": "Há uma luta entre Deus e o Diabo e o placo é o coração humano".

Nos "Manuscritos do Mar Morto", textos judaicos datados do período em torno do nascimento da era cristã, encontrados em cavernas do mar Morto nos anos 40, afirma-se a mesma luta entre os filhos da luz e os filhos das trevas. Nathan de Gaza, século 17, "profeta" do falso Messias Sabatai Tzvi, dizia que o mundo, assim como a alma de Tzvi, um melancólico, era dilacerado por forças antagônicas de luz e trevas. Vejo nisso uma poética da agonia como habitat da alma humana.

Rust Cohle é um detetive filósofo típico da tradição que vai de Sam Spade (interpretado por Humphrey Bogart) a Philip Marlowe (interpretado por Elliott Gould e Robert Mitchum). Niilistas, todos eles trazem a marca de uma visão pessimista sobre a humanidade.

Cohle, no primeiro episódio, afirma que é pessimista (e define essa condição como sendo "ruim em festas"). E afirma sua "cosmologia": a consciência humana é um erro da evolução.

Segundo nosso "true philosopher", todos pensamos que somos "eus", mas somos apenas seres que arrastam essa ilusão em meio a uma programação genética que nos obriga a sobreviver. Um diálogo entre o niilismo nietzschiano e o determinismo darwinista de Richard Dawkins não seria muito diferente.

De onde vem esse pessimismo que dá a esses detetives um tom maior do que meros personagens à procura de criminosos?

No caso especifico de Cohle, esse pessimismo vem de uma família de origem destroçada, de uma filha morta muito jovem, de um casamento destruído devido a esta morte, de muita bebida e muita droga, de quatro anos infiltrado no narcotráfico e de uma longa investigação entre satanistas, pedófilos "cristãos" e serial killers de mulheres (esta investigação é o conteúdo dramatúrgico dos oito capítulos da primeira temporada).

Entretanto, sua grandeza não é redutível às suas "pequenas causas" psicológicas. Se assim o fosse, ele seria apenas um deprimido. Sua grandeza como personagem se dá devido ao modo como ele constrói, a partir de sua miséria pessoal, um julgamento preciso da humanidade. Julgamento este que impacta por sua possível consistência.

Há uma questão maior aqui, e que une os grandes detetives nesta concepção niilista de mundo: a experiência com a (sua própria) natureza humana. Sim, natureza humana, este conceito que muitos "especialistas" teimam em dizer que não existe.

Não vou entrar nesta discussão sem fim, prefiro usar a ideia de natureza humana como "licença poética". Há muito que não me importo com debates "especializados".

Sabe-se bem, mesmo entre policiais na vida real, que a proximidade com a miséria humana mais pura pode levar alguém à descrença na natureza dos homens.

Ainda que, como bem mostram esses três personagens, isso não impede virtudes como coragem, generosidade, sinceridade, doçura. Muito pelo contrário, muitas vezes é justamente a dureza do desencanto com a natureza humana e o sofrimento psicológico que ela traz no cotidiano (como no caso de Cohle) que possibilita tais virtudes.

A virtude é silenciosa e cresce sempre num terreno que lhe é hostil. Máxima ignorada por todos que, principalmente em épocas do novo puritanismo político que assola o mundo da cultura, cantam seu amor e sua misericórdia pelo mundo e pelos que sofrem. O amor ao mundo deve ser escondido como uma pérola.
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP