segunda-feira, 23 de junho de 2014

HOBBES DE BIKE

Outro dia, em visita profissional a uma das principais capitais do país (aliás, uma das minhas preferidas), vi uma cena muito significativa do Brasil atual. De primeira não acreditei, levando em conta o tipo de pessoa envolvida, mas, depois, fui obrigado a aceitar a realidade dos fatos. O que eu vi? Já conto. Antes alguns reparos.


Já disse nesta coluna que estou mais pra Hobbes do que Rousseau em termos de rompimento do contrato social e da ordem pública, porque inclusive muito dos movimentos ditos sociais superestimam sua representatividade. Quando multidões se formam, em poucos minutos podem virar um grande instrumento de violência de massa. Ninguém é "bonzinho" quando se sente parte de uma massa de "iguais".

Hobbes é o cara que viveu uma vida honesta e responsável e dizia que sem ordem degeneramos em violência porque a vida é precária, perigosa, breve e dolorosa. Rousseau é o carinha que mandou os filhos pro asilo, enlouqueceu sua mulher, mas dizia que somos anjinhos e que a propriedade privada e a ganância é que fazem sermos maus e que em multidões revolucionárias "curamos" o mundo.

Voltemos ao Brasil. Por exemplo, com relação à Copa, essa coisa de "não vai ter Copa" é uma tentativa de estragar a alegria da maioria que nunca mais terá a chance de ver uma Copa no país. Isso não significa que não tenha havido abusos e absurdos na condução da logística e infraestrutura, mas nada disso justifica querer tornar a vida das pessoas um inferno com manifestações um tanto totalitárias. Os demais movimentos são naturalmente oportunistas no sentido que a medicina dá a certos processos infecciosos.

E mais: duvido fortemente da suposta evidência de que sem movimentos de rua a sociedade deixe de se modernizar. A Revolução Francesa é um fetiche de professores que erotizam a política da violência "criadora". A França, como a Inglaterra, teria se modernizado sem a maldita revolução. A maioria dos movimentos políticos marcados por uma metafísica revolucionária (jacobinos, Rússia, Cuba, China, Vietnã, Leste Europeu até a queda do muro de Berlim e outros) não serviu para nada a não ser para matar seus inimigos com desculpas metafísicas ou enriquecer seus líderes corruptos com o passar do tempo.

É fato surpreendente que o mesmo tipo de gente que se diz contra guerras goza com a ideia de revoluções. Acho que muita dessa gente goza mais gritando frases de efeito na rua do que transando. Mas muito psicanalista (e similares) por aí acha mesmo que a "verdadeira" clínica é a política. Toda teoria política com metafísica é totalitária em algum momento.

Mas e a cena que eu vi? Conto pra você agora. Estávamos nós saindo de um restaurante à noite quando o farol em nossa frente fechou. Um grupo grande de ciclistas passou. Mas, quando o farol fechou pra eles, em vez de pararem de passar, como seria o correto, três deles barraram a passagem dos carros que tinham o direito legal de passar, como fazem os policiais militares em situações excepcionais. Ou seja, foram autoritários.

Até aí, apenas mais um exemplo de que mesmo grupos que se julgam "do bem" (salvam o planeta pedalando, socializam durante as noites passeando, têm grana porque pobre anda de bicicleta durante o dia e rico anda de bike durante a noite) degeneram em violência quando em bando.

Aí um quarto ciclista se aproximou das filas de carro barradas por eles, desceu da bike, levantou a "magrela" no ar com as duas mãos, como se fosse uma Uzi ou alguma metralhadora similar, e a sacudiu gritando algo incompreensível.

Já vi aqui em São Paulo ciclistas fecharem carros, furarem o farol xingando o motorista (que também nem sempre é educado, diga-se de passagem), correndo riscos de vida. Na Dinamarca, capital das bikes chiques, vi comportamentos agressivos semelhantes.

Fosse eu uma dessas pessoas que "postam fotos", o ciclista estaria famoso a esta altura. A pergunta é: com quem estaria ele se identificando? Eu tenho algumas hipóteses. Entre elas, o líder do Boko Haram da Nigéria e suas meninas raptadas.
Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

domingo, 22 de junho de 2014

SOCIEDADES ANÁRQUICAS

O que há de comum entre grevistas que desobedecem ordem judicial de assegurar serviço mínimo à população e a anexação da Crimeia pela Rússia? Ou entre os sem-teto que ocupam prédios e interrompem o trânsito e a concentração intimidatória de tropas na fronteira com a Ucrânia?


Em todos os casos, trata-se de grupos que julgam defender causa justa e talvez seja verdade, mas decidem agir "na lei ou na marra", obter seu direito "por la razón o por la fuerza", como dizia o lema chileno.

Em outros termos, nessas situações de conflito, um dos lados, o mais forte por natureza ou circunstâncias (proximidade eleitoral, realização da Copa), recorre à força por não crer na lei, devido a suas imperfeições ou pela demora e dificuldade de obter justiça. Os que assim agem perdem a razão que tinham; ao entrar no jogo da violência arriscam-se a serem as próximas vítimas.

Caminham para a anarquia as sociedades onde as violações são toleradas até pelas autoridades como comportamento rotineiro.

Uma das explicações do desassossego carregado de apreensão que toma conta da população brasileira provém do sentimento difuso de que estamos aos poucos escorregando rumo à anarquia.

Dizem os juristas que a sociedade internacional é anárquica. Não por lhe faltar a lei da Carta das Nações Unidas ou mecanismos de solução legal de conflitos como a Corte da Haia. O problema é que não existe poder ou autoridade capaz de obrigar os países a cumprir a Carta ou as decisões do Conselho de Segurança ou da Corte.

Nações de tradição autocrática, como a Rússia, tendem a violar as leis próprias e as alheias. Já a sociedade brasileira, semianárquica internamente, pois só consegue aplicar as leis de modo parcial e imperfeito, sempre se distinguiu no plano externo pela promoção e defesa do direito internacional.

É por isso que o Brasil deve acompanhar com atenção o risco contido nos graves precedentes de violação como os que vêm ocorrendo na Ucrânia. Pode ser que seja caso isolado, um mero acerto de contas com o passado. Ou pode anunciar tendência de comportamento futuro dos mais fortes no novo sistema internacional que se está gestando.

Critica-se com razão o abuso que os americanos fizeram de sua hegemonia unipolar, felizmente em vias de acabar. De nada serve, porém, trocá-la pelo multipolarismo do passado, o da política das grandes potências que levou, cem anos atrás, à Primeira Guerra Mundial.

Em si mesma, a difusão do poder entre vários atores poderosos não é garantia de um mundo de paz. Ao contrário, está aí a história para mostrar que foi esse o sistema responsável pelos piores conflitos, inclusive as duas guerras mundiais.

O multilateralismo de que precisamos é o do respeito à Carta da Organização das Nações Unidas e da solução de conflitos por vias institucionais. No momento em que os dois mais poderosos membros dos Brics se envolvem cada vez mais em atritos com os vizinhos, deve o Brasil, junto com a Índia e a África do Sul, defender com firmeza os valores da paz e da lei na próxima reunião do grupo em Fortaleza, que ocorrerá nos dias 15 e 16 de julho
Por: Rubens Ricupero Publicado na Folha de SP

UM PAÍS DE ANTÔNIOS

Antônio Belo é um cara bem sucedido. Aos 34 anos, ocupa um cargo de alta gerência em uma multinacional, tem prestígio e um bom salário. Com isso, conseguiu financiamento para comprar um bom apartamento e um carro bacana, que são muito desfrutados. Infelizmente, além das dívidas dos financiamentos do apartamento e do carro, Antônio também deve no cartão de crédito e no cheque especial e não sabe nem o tamanho das dívidas, nem quanto paga de juros.


Pessoas como Antônio, que mesmo ganhando bem, estão atoladas em dívidas são raras, certo? Infelizmente, não. Uma pesquisa exclusiva com 1555 brasileiros entre 18 e 60 anos das classes A, B e C em 255 municípios da minha empresa, a Ricam Consultoria, em parceria com a Ilumeo descobriu que os Antônios são a regra, não a exceção. Mais importante, ela aponta a principal causa do Brasil ter se tornado um país de Antônios: o analfabetismo financeiro.

O mau desempenho da educação no Brasil não é novidade para ninguém, porém um aspecto importante costuma ser relevado. Falta ensino sistemático em finanças pessoais desde nosso ensino básico. Nunca chegamos a aplicar em nossas vidas a maior parte do que aprendemos na escola, mas não aprendemos ou aprendemos mal algo que usaremos em toda a vida, finanças pessoais.

No Brasil da hiperinflação, as opções na vida financeira das pessoas eram limitadas e os horizontes curtos. Todos sabiam exatamente o que fazer com dinheiro. Assim que você recebia o salário, você comprava tudo que precisava porque já no dia seguinte tudo estaria mais caro e no final do mês, talvez, você só pudesse comprar metade do que comprou no dia 1º. Praticamente não havia oferta de crédito. Portanto, ninguém poderia se endividar, nem que quisesse. As opções de investimento também eram limitadas e de curtíssimo prazo, lideradas pelo overnight – investimentos em renda fixa renovados diariamente.

Há 20 anos, a hiperinflação ficou para trás e a realidade financeira no país mudou radicalmente. Acesso a crédito deixou de ser um problema, permitindo que dezenas de milhões de brasileiros comprassem produtos e serviços que antes só faziam parte dos seus sonhos. Por outro lado, com crédito farto, mas conhecimentos financeiros limitados, muitos se endividaram além das suas possibilidades. Segundo dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), hoje duas em cada três famílias brasileiras têm dívidas.

Mais grave, a pesquisa Ricam-Ilumeo indicou que dos que devem no cheque especial, por exemplo, 7 em cada 10 não sabem quanto pagam de juros e um em cada três não tem nenhum tipo de planejamento em relação a em quanto tempo pretende pagar as dívidas. Eu não conheço ninguém que compre um produto sem nem saber quanto custa, mas a maioria das pessoas faz exatamente isto quando se endivida. Apenas um em cada três brasileiros anota e controla seus gastos.

Se o quadro é preocupante com relação a gastos e endividamento, não é melhor em relação a poupança e investimentos. 43% dos pesquisados nunca ouviram nenhuma dica ou orientação financeira. Apenas 12% já investiram em previdência privada. Em um país em que a solvência da previdência pública daqui a algumas décadas está longe de ser garantida, não planejar a aposentadoria pode custar muito caro.

Pior, apenas 3% já investiram em ações, contra 64% que já investiram na caderneta de poupança. Infelizmente, em períodos longos de tempo, a segurança da caderneta de poupança acaba custando muito caro. Tanto nos últimos 10 anos quanto nos últimos 20 anos, a rentabilidade da poupança ficou para trás da dos títulos públicos, dos CDBs, da Bolsa, dos imóveis e do ouro.

Felizmente, cada vez mais, instituições financeiras, como bancos e corretoras, e empresas em geral investem na capacitação financeira de clientes e funcionários. Bancos, por exemplo, não têm interesse em que as pessoas se endividem além do que podem pagar, pois neste caso, acabarão levando calotes. Para as empresas, funcionários com problemas financeiros são muito menos produtivos porque sua atenção não está no trabalho.

O que nossa pesquisa sugere é que o trabalho de alfabetização financeira de nossos Antônios é cada vez mais urgente e importante.

Por: Ricardo Amorim Apresentador do Manhattan Connection da Globonews, colunista da revista IstoÉ, presidente da Ricam Consultoria, único brasileiro entre os melhores e mais importantes palestrantes mundiais segundo o Speakers Corner e economista mais influente do Brasil segundo o Klout.com

sábado, 21 de junho de 2014

A LISTA DO PT

Lula só pensa naquilo. Diante das vaias (normais no ambiente dos estádios) e dos xingamentos (deploráveis em qualquer ambiente) a Dilma Rousseff na abertura da Copa, o presidente de facto construiu uma narrativa política balizada pela disputa eleitoral.

A “elite branca” e a “mídia”, explicou, difundem “o ódio” contra a presidente-candidata. Os conteúdos dessa narrativa têm o potencial de provocar ferimentos profundos numa convivência democrática que se esgarça desde a campanha de ataques sistemáticos ao STF deflagrada pelo PT.

O partido que ocupa o governo decidiu, oficialmente, produzir uma lista de “inimigos da pátria”. É um passo típico de tiranos — e uma confissão de aversão pelo debate público inerente às democracias. Está lá, no site do PT, com a data de 16 de junho (LeiaAQUI).

O artigo assinado por Alberto Cantalice, vice-presidente do partido, acusa “os setores elitistas albergados na grande mídia” de “desgastar o governo federal e a imagem do Brasil no exterior” e enumera nove “inimigos da pátria” — entre os quais, este colunista.

Nas escassas 335 palavras da acusação, o representante do PT não cita frase alguma dos acusados: a intenção não é provar um argumento, mas difundir uma palavra de ordem. Cortem-lhes as cabeças!, conclama o texto hidrófobo. O que fariam os Cantalices sem as limitações impostas pelas instituições da democracia?

O artigo do PT é uma peça digna de caluniadores que se querem inimputáveis. Ali, entre outras mentiras, está escrito que os nove malditos “estimulam setores reacionários e exclusivistas a maldizer os pobres e sua presença cada vez maior nos aeroportos, nos shoppings e nos restaurantes”.

Não há, claro, uma única prova textual do crime de incitação ao ódio social. Sem qualquer sutileza, Cantalice convida seus seguidores a caçar os “inimigos da pátria” nas ruas. Comporta-se como um miliciano (ainda) sem milícia.

Os nove malditos quase nada têm em comum. Politicamente, mais discordam que concordam entre si. A lista do PT orienta-se apenas por um critério: a identificação de vozes públicas (mais ou menos) notórias de críticos do governo federal.

O alvo óbvio é a imprensa independente, na moldura de uma campanha de reeleição comandada pelo ex-ministro Franklin Martins, o arauto-mor do “controle social da mídia”. A personificação dos “inimigos da pátria” é um truque circunstancial: os nomes podem sempre variar, aos sabor das conveniências.

O truque já foi testado uma vez, na campanha contra o STF, que personificou na figura de Joaquim Barbosa o ataque à independência do Poder Judiciário. Eles gostariam de governar um outro país — sem leis, sem juízes e sem o direito à divergência.

Cortem-lhes a cabeça! A palavra de ordem emana do partido que forma o núcleo do governo. Ela está dirigida, imediatamente, aos veículos de comunicação que publicam artigos ou difundem comentários dos “inimigos da pátria”.

A mensagem direta é esta: “Nós temos as chaves da publicidade da administração direta e das empresas estatais; cassem a palavra dos nove malditos.” A mensagem indireta tem maior amplitude: no cenário de uma campanha eleitoral tingida de perigos, trata-se de intimidar os jornais, os jornalistas e os analistas políticos: “Vocês podem ser os próximos”, sussurra o persuasivo porta-voz do presidente de facto.

No auge de sua popularidade, Lula foi apupado nos Jogos Pan-Americanos de 2007. Dilma foi vaiada na Copa das Confederações. As vaias na abertura da Copa do Mundo estavam escritas nas estrelas, mesmo se o governo não experimentasse elevados índices de rejeição.

O governo sabia que viriam, tanto que operou (desastrosamente) para esconder a presidente-candidata dos olhos do público. Mas, na acusação desvairada de Cantalice, os nove malditos figuram como causa original da hostilidade da plateia do Itaquerão contra Dilma!

O ditador egípcio Hosni Mubarak atribuiu a revolução popular que o destronou a “potências estrangeiras”. Vladimir Putin disse que o dedo de Washington mobilizou um milhão de ucranianos para derrubar o governo cleptocrático de Viktor Yanukovich. O PT bate o recorde universal do ridículo quando culpa nove comentaristas pela recepção hostil a Dilma.

Quanto aos xingamentos, o exemplo nasce em casa. Lula qualificou o então presidente José Sarney como “ladrão” e, dias atrás, disse que FHC “comprou” a reeleição (uma acusação que, nos oito anos do Planalto, jamais levou à Justiça). O que gritaria o presidente de facto no anonimato da multidão de um estádio?

Na TV Estadão, critiquei o candidato presidencial José Serra por pregar, na hora da proclamação do triunfo eleitoral de Dilma Rousseff, a “resistência” na “trincheira democrática”.

A presidente eleita, disse na ocasião, é a presidente de todos os brasileiros — inclusive dos que nela não votaram. Dois anos mais tarde, escrevi uma coluna intitulada “O PT não é uma quadrilha”, publicada nos jornais O GLOBO e “O Estado de S. Paulo” (25/10/2012), para enfatizar que “o PT é a representação partidária de uma parcela significativa dos cidadãos brasileiros” e fazer o seguinte alerta às oposições: “Na democracia, não se acusa um dos principais partidos políticos do país de ser uma quadrilha.”

A diferença crucial que me separa dos Cantalices do PT não se encontra em nossas opiniões sobre cotas raciais, “conselhos participativos” ou Copa do Mundo. Nós divergimos, essencialmente, sobre o valor da liberdade política e da convivência democrática.

Se, de fato, como sugere o texto acusatório do PT, o que mais importa é a “imagem do país no exterior”, o “inimigo da pátria” chama-se Cantalice. Nem mesmo os black blocs, as violências policiais ou a corrupção sistemática são piores para a imagem de uma democracia que uma “lista negra” semioficial de críticos do governo.
Por: Demétrio Magnoli é sociólogo. Publicado em O Globo

POR QUE O BC PAROU DE SUBIR OS JUROS?

Depois de nove reuniões consecutivas aumentando os juros Selic, o Copom encerrou o ciclo de aperto monetário na última quarta feira, com voto unânime de seus membros.


Muitos analistas questionarão esta decisão com o argumento de que, apesar do choque de juros, a inflação em 12 meses deve continuar a subir nos próximos meses. A possibilidade de, em algum momento do segundo semestre, a taxa em 12 meses superar o chamado teto da banda é muito grande. Então por que parar?

Para mim, a decisão do Copom está correta, pois o objetivo principal desta escalada do custo do dinheiro era o de desacelerar a economia. A partir daí teríamos redução da demanda em mercados importantes como o de trabalho e o de serviços pessoais, aliviando assim as pressões inflacionárias.

E isto já ocorreu. Os juros mais altos agiram também de forma indireta sobre a inflação, na medida em que, ao atrair capitais financeiros de curto prazo, valorizam o real e reduzem a pressão do câmbio em outros setores como o de alimentos e de combustíveis.

Aliás, este foi o maior erro de previsão dos defensores do cenário chamado de TEMPESTADE PERFEITA, no momento em que as taxas de juros no primeiro mundo voltaram a flertar com seus níveis mais baixos no passado recente.

Os últimos indicadores de atividade econômica no Brasil –sejam eles relativos à atividade corrente ou às expectativas com o futuro– têm mostrado uma desaceleração importante, talvez até assustadora.

Os mais atingidos são os chamados índices de expectativas, tanto os medidos junto aos empresários como os que quantificam os humores dos consumidores, e que mostram um cenário para o segundo semestre nada animador.

Outra informação que ficou disponível quando escrevia esta coluna -os dados sobre o mercado de crédito- aponta também na direção de que os efeitos gerados pela freada dos juros já passaram do razoável.

A concessão de créditos a pessoas físicas pelos bancos públicos e privados está estagnada há mais de três anos e, quando medida na ponta, já apresenta taxas negativas de crescimento. Mais um dos vários foguetes auxiliares que turbinaram o crescimento dos anos Lula cai ao mar sem combustível.

Ou seja, os efeitos da política monetária sobre a atividade econômica e a inflação já bateram no teto ao provocar uma reversão nos humores dos brasileiros.

Insistir no aumento dos juros só iria ter efeito sobre o nível de atividade, sem contribuir para uma queda maior na inflação. E como não se pode esperar que outros instrumentos de política econômica sejam acionados pelo governo, às vésperas das eleições, para auxiliar a política de juros, a decisão do Copom está coberta de boas razões.

A principal vitória da política de juros do BC foi a de ancorar as expectativas dos agentes econômicos e, com isto, evitar uma escalada da inflação que já dava sinais preocupantes.

Mas seus resultados estarão limitados a isto, ficando para o próximo mandato presidencial em 2015 a responsabilidade -ou não- de trazer os índices de inflação para níveis mais seguros.

O custo maior da política defensiva dos juros vai recair sobre a atividade econômica e também no humor de grande parte da sociedade no momento das eleições.

Uma barbeiragem muito grande segundo o manual do político competente em administrar a economia com os olhos voltados para as eleições majoritárias. A regra deste pessoal é simples: apertar o cinto nos primeiros dois anos do mandato e soltá-lo depois.

O PIB do primeiro trimestre deste ano, que será conhecido quando esta coluna já tiver sido escrita, deve refletir o quadro descrito acima e mostrar um número medíocre da ordem de 1,2 % em 12 meses.

Os indicadores recentes que medem as expectativas dos agentes econômicos pioraram nos últimos meses, o que indica taxas de crescimento ainda mais baixas nos próximos meses.

As previsões de analistas experientes já apontam para o ano de 2014 como um todo taxa de crescimento abaixo de 1,5%

Por: Luiz Carlos Mendonça de Barros  Publicado na Folha de São Paulo

sexta-feira, 20 de junho de 2014

'DISCÍPULA DE PAULO FREIRE ASSASSINA MACHADO DE ASSIS'


Localizado nas proximidades do Viaduto do Chá, que, desde a inauguração em 1892, se tornou, durante muitos anos, o principal cartão postal da cidade de São Paulo, o Vale do Anhangabaú será palco, em junho próximo, de um evento literário inusitado — um túnel construído não por concreto, mas por 60 mil livros. Trata-se do lançamento da nova edição de uma das mais importantes obras da língua portuguesa de todos os tempos, a novela O Alienista, de Machado de Assis, que, depois da morte do escritor em 1908, separou-se de Papéis A­vulsos, o volume de contos em que fora originalmente publicado em 1882, e se tornou um livro autônomo, traduzido em vários idiomas. Mas não se trata exatamente da obra-prima de Machado — o que o leitor vai encontrar nesse lançamento faraônico é uma adaptação de O Alienista, coordenada pela escritora Patrícia Secco e patrocinada pelo Ministério da Cultura, por intermédio da Lei Rouanet.

“Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis. Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso”, disse Patrícia Secco, em 4 de maio último, numa entrevista ao jornalista Chico Felliti, da Folha de S. Paulo. Proprietária da Secco Assessoria Empresarial S/C Ltda., que juntamente com sua pessoa física já teve aprovados no Ministério da Cultura projetos que somam cerca de R$ 10 milhões captados, Patrícia Secco produz literatura infanto-juvenil em ritmo industrial, com mais de 200 títulos publicados, a maioria com temas da moda, como meio ambiente, direitos humanos e inclusão social. Com o propósito de facilitar a leitura de quatro clássicos da literatura brasileira, Secco pedira autorização ao Ministério da Cultura para captar R$ 1,53 milhão; por incrível que pareça, foi autorizada a captar R$ 1,45 milhão, ou seja, quase o montante que havia pedido para seu projeto. Na prática, conseguiu captar uma cifra milionária — R$ 1,039 milhão — para produzir dois livros a serem lançados num mesmo volume: O Alienista, de Machado de Assis, e A Pata da Gazela, de José de Alencar.

A princípio, a ideia de adaptar um clássico não é necessariamente condenável, especialmente se for para crianças. As adaptações de clássicos da literatura — começando pela Bíblia — devem ser tão antigas quanto o ato de ler. Em sua já clássica Uma História da Leitura, o argentino-canadense Alberto Man­guel conta que, em 1387, John de Trevisa, que estava traduzindo do latim para o inglês a epopeiaPolychronicon, do monge beneditino Ranulf Higden (c. 1280-1364), resolveu fazê-lo não em versos, mas em prosa, pois sabia que o público já não queria ouvir uma recitação pública da obra (que, por sinal, se tornaria muito popular no século XV), preferindo lê-la diretamente. Da mesma forma, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, originalmente escrita em versos, mereceu adaptações em prosa e versões condensadas para crianças, que exploram o viés aventureiro de sua viagem ao Inferno, Purgatório e Céu, transformando-o numa espécie de Julio Verne do espírito.

Uma das primeiras justificativas para se adaptar uma obra é, sem dúvida, sua extensão. Poucas crianças são capazes de ler um romance ou uma epopeia que se estende por mais de 500 páginas. A boa adaptação é uma espécie de resumo que tenta extrair a essência da obra sem desvirtuá-la. Carlos Heitor Cony, que adaptou diversos clássicos para o público infanto-juvenil, como Dostoievski, Melville, Mark Twain, Dumas, Gogol, Eça, Manoel An­tônio de Almeida e Julio Verne, ao ser indagado numa entrevista à revista “Cult” se reescrevia ou resumia os livros, respondeu: “Era uma condensação. Eu eliminava pontos mortos, alguns diálogos, detalhes técnicos. Deixava o texto mais denso. Mas preservava a história, o clima e principalmente a expectativa”. Cony foi taxativo: ”O bom adaptador não falseia o original”.

Facilitação de Machado nega o escritor

Infelizmente, Patrícia Secco falseia Machado de Assis. Além de lhe desfigurar o estilo, ela o emburrece. Sua adaptação é um retrocesso, que sacrifica até os avanços linguísticos do estilo machadiano, já ousadamente próximo da linguagem coloquial, numa antecipação das vanguardas do modernismo que só iriam se consolidar no Brasil quase meio século de-pois. A autora esqueceu-se de que Machado, assim como Borges, Beckett, Graciliano, não dá para ser adaptado em prosa sem que se perca a essência de sua arte. A obra machadiana é basicamente linguagem. Em seus romances, não há enredos rocambolescos nem profusão de personagens, como há em Homero, Cervantes e nos clássicos românticos. Mesmo O Alienista, talvez o enredo mais movimentado de toda a sua obra, depende substancialmente da linguagem, pois é nela que moram a argúcia e a ironia do conto.

Para justificar sua adaptação, Patrícia Secco recorre a afirmações demagógicas. “Estou horrorizada. É muito triste pensar que algumas pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário”, disse a escritora-empresária à repórter Maria Fernanda Rodrigues, do Estadão, em matéria de 9 de maio último. Ora, quem disse que um faxineiro não pode compreender Machado de Assis? Se fosse assim, o próprio Machado — descendente de agregados e ex-escravos, somente com o ensino primário — nem existiria. Foi justamente porque em seu tempo não existia uma Patrícia Secco facilitando-lhe Camões, Vieira e Almeida Garrett que o Machadinho do Morro do Livramento embebeu-se dos clássicos, aprendeu francês sozinho e não apenas se tornou capaz de compreender os mestres da literatura universal como até mesmo se tornou um deles.

Com sua adaptação de O Alienista, a escritora-empresária Patrícia Secco destrói a universalidade da literatura de Machado de Assis com a pequenez ideológica da pedagogia de Paulo Freire. Foi o criador da “Pedagogia do Oprimido”, uma espécie de marxismo de autoajuda, quem consagrou a tese pedagógica de que o aprendizado é um epifenômeno das circunstâncias materiais e é somente a partir delas que se pode alfabetizar uma criança e despertar-lhe a consciência. O pedagogo brasileiro foi um grande admirador de Mao Tsé-Tung e, assim como o monstruoso comunista chinês mandava os lavradores arrancarem até as flores nativas, porque eram inúteis no universo do trabalho, Paulo Freire também arranca as palavras burguesas da cartilha do trabalhador, determinando a alfabetização a partir das tais “palavras geradoras”, como “tijolo”. É o que chamo de pedagogia análoga à escravidão — o filho do lavrador deve ter os olhos presos ao chão e está proibido de ouvir estrelas.

Patrícia Secco professa a mesma filosofia: se o faxineiro da farmácia não sabe o que é “boticário”, que se arranque então essa maldita palavra dos textos clássicos. Nunca ocorreu a ela que seria muito mais fácil, barato e respeitoso oferecer um dicionário ao faxineiro? Aliás, um trabalhador que resolva ler O Alienista — e isso está longe de ser raro — nem precisará de dicionário para descobrir o significado dessa palavra. O próprio conto, que sempre associa o boticário Crispim Soares a remédios, já lhe oferece a resposta. Além disso, tão logo veja a palavra no texto, o faxineiro irá se lembrar de que existe uma rede de perfumaria com esse nome e, por associação de ideias, poderá lembrar-se da palavra “botica” que pode ter ouvido a um parente mais velho. Caso não disponha de um dicionário em casa, o faxineiro machadiano sempre poderá consultar uma pessoa letrada de seu meio, parente ou um conhecido, que se não for capaz de sanar sua dúvida, saberá onde encontrar a resposta. Ou Patrícia Secco acha que só existe vida inteligente em seu meio social e que nas classes pobres não há ninguém capaz de trocar ideias com um faxineiro interessado em literatura?

Censo de 1872 abalou a literatura brasileira

O psicólogo Yves de La Taille, professor da USP e autor do livro Limites, considera que os limites morais comportam três dimensões, uma das quais significa desafio — uma pessoa, além de respeitar limites em face dos direitos dos outros e de impor limites em defesa de sua intimidade, deve também superar limites, o que significa superar a si mesma, buscando a maturidade e a excelência. É tudo o que Pa­trí­cia Secco não quer do leitor, com sua simplificação dos clássicos. Nin­guém aprende sem esforço próprio, recebendo tudo de mão bei­jada. Graciliano Ramos começou a ser escritor quando se sentiu de­safiado pelas mesóclises daCarta de ABC, do lendário A­bí­lio César Borges, o Barão de Ma­caú­bas, que trazia a máxima “fala pouco e bem, ter-te-ão por al­guém”. A frase o levaria a indagar à sua meia-irmã Mocinha se “ter-te-ão” era um homem. Co­mo Mo­ci­nha, a adolescente se­mial­fabetizada que o ensinou a ler, também não tinha ideia do que fosse aquilo, o me­nino Gra­ci­li­ano, enfezado vi­vente das Alagoas, criado a cascudos e beliscões, teve que descobrir so­zinho, devorando, antes dos dez anos, a prosa romântica de José de A­lencar, bem mais distante da linguagem comum do que a linguagem coloquial de Machado de Assis.

Ao se dar conta da indignação que sua proposta suscitou no País, desde um abaixo-assinado contrário até artigos e editoriais — Patrícia Secco publicou na Folha de S. Paulo, no dia 13 de maio, uma defesa de sua adaptação. O título do artigo não poderia ser menos machadiano: “Machado não gostaria de permanecer desconhecido para quem não lê”. Que afirmação mais esdrúxula! Ma­chado, revolucionariamente, sabia-se texto e, como tal, sabia-se também de­pendente do leitor. Em sua tese Os Leitores de Machado de Assis (Editora da USP, 2004), o professor da USP Hélio de Seixas Guimarães chega a sustentar que a obra machadiana foi influenciada pelo Censo de 1872 (o primeiro realizado no Brasil e divulgado em 1876), ao revelar que apenas 18,6% da população livre e 15,7% da população total, incluindo escravos, sabiam ler e escrever. “A tomada de consciência da escassez de leitores, problema que se inscreve de maneira cada vez mais radical em seus romances, parece-me fator relevante para ajudar a guinada que o escritor imprimiu a sua carreira”, escreve Seixas Guimarães.

Mas Machado de Assis, como sociólogo e psicólogo nato, também estava preocupado com os que não sabem — ou não querem — ler, oferecendo-lhes não a literatura-texto, mas a literatura-instituição, encarnada na Academia Brasileira de Letras, que detém até o monopólio legal da língua, tão grande é a sua importância. Aliás, ao contrário do que pensa Patrícia Secco, isso torna Machado de Assis o escritor mais conhecido pelos que não sabem — ou não querem — ler, nomeando ruas e escolas e simbolizando as letras nacionais da mesma forma que o desgrenhado Be­ethoven simboliza a música para quem nunca pisou numa sala de concerto e só conhece da música erudita o eterno “tchan-tchan-tchan” da Quinta Sinfonia. No próprio modo de composição da ABL, que aceita políticos e notáveis travestidos de escritores (como o Barão do Rio Branco, Marco Maciel e Ivo Pitan­guy), Machado de Assis revelou toda sua engenharia político-institucional, dando à literatura brasileira uma dignidade social que ela jamais poderia alcançar numa nação de analfabetos se continuasse sendo produzida em bares, por uma despreocupada geração de boêmios.

E quando procurou fazer da literatura brasileira também uma instituição social descarnada do texto, capaz de chamar a atenção da sociedade por outros meios, Machado de Assis não estava pensando exatamente nas camadas populares da nação — estou certo de que ele pensava, sobretudo, na preguiçosa elite nacional, que, mesmo sabendo e podendo ler, não lia, nem em seu tempo, nem hoje. Machado estava consciente de que, mesmo entre as elites, eram poucos os que tinham o habito da leitura, tanto que seu grande amigo José de Alencar se queixava de que o público conhecia mais O Guarani pelo teatro do que pelo texto do romance em si. Portanto, Patrícia Secco revela todo o seu preconceito contra os pobres quando cita uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostrando que 58% dos brasileiros não leram nenhum livro nos últimos seis meses e, logo em seguida, afirma que, “por trás desses números existem rostos e vidas”, mas ao desvendá-los só se lembra de pessoas como “Seu Roberto, motorista de táxi, o Cristiano, caixa da farmácia da esquina, a Dona Nice, copeira do escritório”, pois, segundo ela, “eles são não leitores”.

Ora, só eles? E quantos são leitores entre as elites econômica, social e política do País? Essa preocupação perpassa a obra de vários críticos ao longo do tempo, como José Ve­ríssimo, Sílvio Romero e Otto Maria Carpeaux, que se angustiavam com o grande número de profissionais liberais, como médicos, engenheiros, advogados, professores e outros profissionais de nível superior, que passam ao largo da literatura, limitando-se às leituras técnicas de suas respectivas áreas e reservando o tempo livre para outras formas de lazer, que nada têm a ver com as letras. Por isso, quando se pensa em pobre como sinônimo de não leitor, o que se quer, no fundo, é uma justificativa para arrancar dinheiro dos cofres públicos.

Simplificar livros agrava o problema da leitura

Linguagem difícil nunca foi o maior empecilho à leitura. Mário de Andrade, com seu espírito galhofeiro, disse que para se gostar de Machado de Assis é preciso já nascer velho. Eu vou mais longe: para se gostar de literatura é preciso envelhecer cedo. Por isso, o Eclesiastes diz que “o muito estudar enfado é da carne”. Em nenhuma época ou lugar, a leitura foi a mais popular das formas de lazer. A literatura é a mais reflexiva das artes e a maioria das pessoas abomina reflexão, que, para muitos, rima com depressão. Isso ocorre também com a música erudita. Quantas pessoas, ricas ou pobres, formadas ou não, tão logo se sentem tocadas por um concerto de Mozart, uma sonata de Beethoven, logo tendem a afastá-las dos ouvidos, pedindo uma “música alegre”, sob a alegação de que aquele tipo de música lhes provoca tristeza?

Creio que isso ocorre com qualquer povo, só que, no Brasil, fugir da reflexão como o diabo foge de cruz não é uma característica só das massas, mas também das elites. Uma frase de Machado de Assis talvez explique esse fenômeno: “A verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição”. Infelizmente, no Brasil, a educação nunca foi um meio de edificação intelectual e moral do indivíduo, como pregava Machado, mas um salvo-conduto para o sucesso social. Nas nações que levam a sério o conhecimento, o indivíduo primeiro busca o saber e, como consequência, conquista o diploma. No Brasil dá-se o contrário: o sujeito busca avidamente o diploma e, se sobrar tempo, vai à cata de algum conhecimento para fingir que não é de todo ignorante. Por isso, lê-se pouco no Brasil, mesmo entre a gente letrada: ler exige uma posição de sentido do espírito — que é cada vez mais rara numa nação que sempre desprezou o mérito.

Simplificar livros não resolve o problema — pelo contrário, agrava-o. Iniciativas como a de Patrícia Secco abastardam o povo brasileiro ao impedi-lo de conhecer o verdadeiro Machado de Assis, sufocado por uma montanha de 600 mil falsificações de sua obra. Nesta semana que passou, dormi menos de três horas por dia, em média, varando as madrugadas na comparação — linha por linha — da sagrada escritura de O Alienista de Machado de Assis com o apócrifo de mesmo nome da escritora Patrícia Secco. Ao cabo dessa ingente labuta (que Secco, toscamente, “traduziria” por “ao fim desse grande trabalho”), faço minha a indignação de Alcides Vilaça, professor da USP: “Apresentar como sendo de Machado de Assis uma mutilação bisonha de seu texto não devia dar cadeia?” Sim, devia dar cadeia, sobretudo para os tecnocratas do MEC que torraram mais de R$ 1 milhão dos cofres públicos nessa falsificação grosseira de Machado de Assis.

Machado de Assis para consumo próprio

Nem se pode chamar de adaptação esse trabalho de Patrícia Secco. Em sua arbitrária simplificação de O Alienista, com graves erros de interpretação de texto, a escritora-empresária embrutece o espírito do leitor ao falsear o estilo de Machado de Assis, descaracterizar seus personagens e descontextualizar sua obra. Segundo ela própria contou a Chico Felliti, da Folha, a equipe que “descomplica” o texto é formada “por um monte de gente” (expressão dela, segundo o jornalista), entre eles a própria escritora e “dois jornalistas amigos”. É como pegar pintores de parede num bar e levá-los para restaurar a Capela Sistina. O resultado não poderia ser pior. Onde Machado de Assis escreve: “Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte”; Patrícia Secco traduz: “Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte”. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: “volúpia” tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra “curiosidade”. Além do mais, palavras como “volúpia” e “alumiar” não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvidas em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando.

A impressão que fica é que Patrícia Secco e sua equipe traduziram Machado de Assis para consumo próprio. Ou alguém imagina que uma pessoa esforçada o suficiente para ler um livro não vai ser capaz de compreender, com a ajuda do contexto da obra, palavras e expressões como “congregar”, “atarantado”, “estatelar-se”, “pessoa de consideração”, “déspota”, “laudas”, “demanda”, “estar em erro”, “arruaças e clamores”, “vereança”, “eloquência”, “aritméticos”, “abono”, “vestuário”, “gaiato”, “intuito”, “oficiou”, “lusitana”, “juiz-de-fora” e outras do mesmo nível? Pois todas essas palavras foram substituídas por sinônimos catados arbitrariamente no dicionário sem levar em conta o contexto da obra muito menos o estilo do autor. Analisei minuciosamente a adaptação de Patrícia Secco e hei de voltar a ela. Mas já adianto: trata-se de um caso clínico de analfabetismo funcional, digno de ser recolhido às dependências da Casa Verde de Simão Bacamarte. Em vários momentos, Secco e sua equipe não conseguem compreender o que Machado diz com sua peculiar clareza e desvirtuam completamente o original.

Machado de Assis escreve: “Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Patrícia Secco deturpa: “Simão Bacamarte começou organizando um pessoal de administração. Convencendo o farmacêutico Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Reparem no absurdo: a adaptadora transforma o alienista num subordinado do boticário, a quem precisa convencer sobre a necessidade de uma administração em seu próprio manicômio. Em outro trecho, o Padre Lopes diz: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo”. A adaptadora reescreve: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, prejudica o juízo”. Chega a ser inacreditável essa troca da popularíssima expressão “vira o juízo” por “prejudica o juízo”, um barbarismo que deve ter revirado o estômago do primeiro verme que roeu as frias carnes do defunto Brás Cubas!

Deturpando o enredo e a história

Machado conta que, como D. Evarista não conseguia ter filhos, o Dr. Simão Bacamarte “fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial”. Entretanto, “a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Qualquer dona de casa sem nenhum estudo compreende que D. Evarista, por amor à saborosa carne de porco de Itaguaí, não quis fazer a dieta proposta pelo marido e, por isso, não conseguiu ter filhos. Agora vejam a versão analfabeto-funcional de Patrícia Secco: “[Simão Bacamarte] acabou por indicar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, que deveria se alimentar exclusivamente com a carne de porco de Itaguaí, não atendeu aos conselhos do esposo. E, à sua teimosia — explicável, mas inqualificável — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Ela simplesmente está dizendo que o alienista receitou uma dieta de carne de porco à esposa, quando foi o contrário.

Mais adiante, quando descreve a revolta dos Canjicas contra a Casa Verde, Machado de Assis narra: “Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. Patrícia Secco estropia o texto: “Os soldados pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse. Mas, enquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. A adaptadora não faz ideia da conjunção “conquanto” e, em vez de recorrer a “embora”, a traduz por “enquanto”, transformado Machado em analfabeto. No mesmo episódio, o escritor diz que o capitão dos “dragões” mandou “carregar contra os Canjicas”. Patrícia Secco traduz “carregar” (que, no contexto, significa “investir contra”) por “disparar”, sem perceber que os dragões — como os “Dragões da Independência” de hoje — usavam espadas e não armas de fogo. Com isso, o leitor de sua adaptação vai achar que Machado de Assis fazia realismo mágico: uma tropa mete fogo na multidão e essa multidão arrosta as balas, sem medo da morte.

Uma das admiráveis qualidades do conto O Alienista é o cuidado com que a história aparece nele. Machado de Assis preocupa-se com os mínimos detalhes históricos e escreve que Simão Bacamarte era “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”. Patrícia Secco corrige para “Espanha”, sem fazer a menor ideia de que, na época colonial em que se passa a história, a Espanha era oficialmente chamada de “Reino das Espanhas”. Em outro trecho, Machado diz que, para D. Evarista, ver o Rio de Janeiro “equivalia ao sonho do hebreu cativo”, sintetizando nessa expressão a sensação de exílio e confinamento que a acanhada Itaguaí produzia no espírito frívolo da mulher de Bacamarte. Patrícia Secco estraga a imagem, substituindo “hebreu cativo” por “judeu cativo”. Ela confunde os hebreus que se tornaram escravos no Egito e foram libertados por Moisés com os filhos da tribo de Judá que, já na terra prometida de Canaã, séculos depois, emprestariam o nome de sua tribo para todo o povo eleito. Se ao citar Dante, Machado tivesse dito, com precisão histórica, “poeta florentino”, não tenho dúvida de que Patrícia Secco iria corrigir para “poeta italiano”. Aliás, numa das raras e lacônicas notas de rodapé, a adaptadora faz isso: ela diz que Averrois é um filósofo e poeta “hispano-árabe”. É o mesmo que chamar Santo Agostinho de filósofo romano-argelino.

Por que Patrícia Secco e sua equipe cometem essa profusão de erros de extrema gravidade ao adaptar o conto de Machado de Assis? Sem dúvida, porque não estão à altura da tarefa. No fundo, a escritora e seus amigos jornalistas, a cada vez que buscam um sinônimo para um termo ou expressão do conto, estão traduzindo a obra para eles próprios e não para o eletricista, o faxineiro, o motorista de táxi, que precisam menos do que eles dessa facilitação. Para se ter uma ideia do quanto é absurda essa adaptação, Machado empregou o termo “transeuntes” e a adaptadora achou por bem substituí-lo pela expressão “os que por ali passavam”. Imagino Patrícia Secco ouvindo uma rádio AM do interior na década de 70, quando o Brasil era muito menos escolarizado do que hoje. Ela ficaria pasmada (ou “espantada” conforme sua tradução de Machado) ao se dar conta de que um dos grandes sucessos de Tonico & Tinoco, dedicado por peões de fazenda às suas respectivas namoradas, era a canção O Gondoleiro do Amor, um poema de Castro Alves, cantado pela dupla caipira ao som de violinos. Saudosos tempos em que uma dupla de lavradores elevava o povo até Castro Alves; hoje, gente como Patrícia Secco faz é rebaixar o povo quando dá a ele um Machado de Assis no nível de si mesma.

Por: José Maria e Silva Publicado no Jornal Opção de Goiânia

DA INUTILIDADE DOS CURSOS DE LETRAS*

Um mal-estar perpassa os cursos de Ciências Humanas neste final de século. É como se as vagas concêntricas provocadas pela queda do Muro de Berlim começassem a fazer submergir, em ondas tardias, o apoio logístico que a universidade sempre emprestou ao marxismo. Durante décadas, nos cursos mais alinhados com o finado "sentido da História", ai do candidato a mestre ou doutor que não citasse em suas pesquisas Marx ou epígonos menores.

Se hoje marxismo não passa de verbete de enciclopédias, para esclarecimento dos mais jovens, até quatro ou cinco anos atrás a "filosofia da praxis" era tida como ciência. Todas as áreas humanísticas da universidade, de Letras a História, passando pela Filosofia e Sociologia, foram contaminadas pela peste. No caso específico da Sociologia, estávamos ante um laboratório de utopias.

Os acadêmicos brasileiros parecem ter adotado a receita de José Carlos Mariátegui que, em 1928, em Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana, via a universidade como uma máquina de demolição da sociedade burguesa, uma instituição destinada a formar ativistas e militantes. Com o fim da URSS, as ditas Ciências Humanas perdem seu eixo. A história não era ciência, o marxismo muito menos. Cursos, cátedras, metodologias, teses, bibliografias, bibliotecas, perdem o sentido. Em outras palavras, os próprios professores, antes firmemente ancorados nas certezas da dialética, perdem o pé e soçobram neste maremoto. Em um século em que mesmo - e principalmente - a literatura foi contaminada pela ideologia, os cursos de Letras não permaneceriam ao abrigo da intempérie.

O Circo das Letras - Uma lufada deste mal-estar de fin de siècle parece ter atingido o professor Flávio Loureiro Chaves. Em entrevista para Porto e Vírgula, desvelou um segredo de polichinelo ao afirmar que "a área de Letras está morta". Por um lado está cheio de razão e ao mesmo tempo não tem razão alguma. Se sua afirmação acabasse aqui, englobando os cursos de Letras do país todo e do estrangeiro, eu seria o último dos escribas a contraditá-lo. Mas sua afirmação é tímida. Se restringe ao Curso de Letras da UFRGS, onde trabalhou durante 30 anos. Ou seja, onde colaborou por três décadas para levar o curso à condição de área morta. Agora, protegido pelo escudo da aposentadoria, dispara sua artilharia contra seus pares.

O professor vai mais longe ao falar do curso que o nutriu e embalou: "é uma área caracterizada por sua absoluta inutilidade social". No que não lhe falta razão. Se o programa nuclear brasileiro se revelou um projeto inútil, de qualquer ponto de vista que se olhe, que dizer dos currículos de um curso de Letras? Mas nosso crítico peca mais uma vez ao restringir sua crítica ao curso da UFRGS, como se o da USP, onde se doutorou, tivesse alguma outra utilidade social fora a de garantir-lhe uma prebenda melhor remunerada na província.

Se os cursos de Letras um dia forem encerrados, só serão pranteados pelos professores que deles tiram seu sustento e mordomias, pelo mundo editorial e agências de turismo que os parasitam. Nenhum estudante precisa freqüentá-los para conhecer literatura. Pelo contrário, é melhor deles tomar distância, assim será poupado de carradas de leituras absolutamente chatas, que só servem para afastar um jovem dos bons autores.

Esta inutilidade do curso cujas mordomias usufruiu por trinta anos foi muito bem percebida por Loureiro Chaves quando afirma que homens como Erico Verissimo, Maurício Rosenblatt e Paulo Fontoura Gastal, que não pertenciam à academia, lhe ensinaram mais que o curso de Letras inteiro. Precisou de três décadas para perceber isto? Ou preferiu aposentar-se para afirmá-lo? Se lhe sobra razão em sua constatação, faltou-lhe a coragem de dizê-lo em alto e bom som quando militava nos quadros da guilda.

Quantas vezes Loureiro Chaves participou, de um lado e de outro da banca - ora como réu, ora como inquisidor - dessa farsa que se chama tese? Quantas vezes participou dessa outra farsa, o concurso para o magistério, em verdade uma ação entre amigos, com cartas previamente marcadas?

De quantos espetáculos circenses, chamados simpósios ou congressos, participou o professor Loureiro Chaves? São absolutamente inúteis do ponto de vista social, custam fortunas, e as viagens, hotéis e mordomias outras são pagas, em última instância, pelo contribuinte. Passo Fundo parece ter entendido o espírito da coisa, tanto que costuma organizar o Circo das Letras. Neste circo universal, cujas sessões ocorrem tanto em Florianópolis ou São Paulo, como em Paris ou Londres, acodem professores de todos os quadrantes para desfilar suas vaidades e acrescentar seus ensaiozinhos recitados a uma platéia adormecida a seus currículos chochos.

Quando estudava em Paris, tive oportunidade de testemunhar uma dessas sessões de circo. Vi professoras transportadas de Brasília ou São Paulo a Paris - com dinheiro público, evidentemente - para apresentar uma comunicação anódina de vinte minutos, que ninguém estava interessado em ouvir. Imagine-se, por exemplo, o absurdo de uma professora deslocando-se de Porto Alegre a Tóquio, para uma exposição crucial sobre... Literatura Comparada. Mas a comunicação fica nos anais do simpósio, no currículo da professora e nos créditos do curso. Maravilha de país o nosso: crianças morrendo de fome nas ruas e a universidade pública financiando viagens transoceânicas para comunicações literárias - certamente de importância vital para o futuro do continente - de vinte minutos lá nas antípodas. 

Claro que em Passo Fundo a entrada para o circo é mais barata. Mas o show, salvo o fato de ser em português, em nada difere do exibido em Paris. Mas não era disso que pretendia falar.

A quem aproveita o crime? - Para algo hão de servir os cursos de Letras, já que estão disseminados mundo afora e parecem gozar de boa saúde. Bens materiais não produzem, é claro. Espirituais, muitos menos. Aliás, vivem da exploração destes mesmos bens, produzidos por criadores que, muitas vezes, morreram ou vivem na miséria. Para que serve então um curso de Letras? 

Em primeiro lugar, para dar bom padrão de vida aos professores de Letras. Que outra profissão oferece quatro meses de férias ao ano, isso sem falar nas greves? Não será fácil achar melhor mordomia numa sociedade que se pretende capitalista. Uma vez aceito pela corporação, o professor tem estabilidade e escapa deste cruel mundo competitivo. Isso sem falar em férias vendidas em períodos de recesso universitário, turismo acadêmico, muita viagem ao exterior, tudo isso pago pelo contribuinte, é claro. Não que estas mumunhas sejam exclusivas dos cursos de Letras. Mas a eles são extensivas.

Em segundo lugar, para manter a boa saúde da indústria textil. Textil, assim mesmo, sem circunflexo. Não confundir com a têxtil, esta é honesta e necessária. Por indústria textil, entenda-se a do texto universitário, essa fábrica de teses e pesquisas inúteis, que às vezes envergonham o próprio autor e são guardadas como segredo de Estado. Isso sem falar na fantástica máquina editorial acionada pelos cursos de Letras. Ela dá vida a autores de ficção que de outra forma jamais seriam publicados e a teóricos que ninguém leria a não ser sob coação.

Se nos primórdios da universidade o livro era um instrumento da vida acadêmica, hoje a universidade se tornou um instrumento do mundo editorial. Se um dia os cursos de Letras fechassem suas portas, nenhum editor seria suficientemente insano para publicar esses elefantes brancos tipo Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, etc. Dou um doce para quem me apresentar um jovem que, espontaneamente, compre um livro qualquer desses autores. Eles só existem porque são empurrados goela abaixo por exigências de vestibular e programas acadêmicos.

Depois, a indústria editorial dos teóricos. Nenhum leitor mentalmente sadio compraria autores como Greimas, Kristeva, Lacan ou Saussure. Forçado pelos professores, principalmente na pós-graduação, o coitado do aluno tem de gastar parte de sua bolsa adquirindo essas enfermidades gálicas. Aqui, de cambulhada, ganham também todos os participantes do ciclo do livro: gráficos, distribuidores, livreiros, etc.

Em terceiro lugar, não esqueçamos os interesses do turismo. Em Florianópolis, para facilitar o "intercâmbio" acadêmico, uma agência se instalou no prédio da própria reitoria. Cada congresso de Literatura Comparada ou Semiótica em Tóquio, Helsinki ou Amsterdã é uma festa para a indústria do turismo. Ganham as agências, as companhias aéreas, a indústria hoteleira, a restauração local, afinal literatura e gastronomia sempre constituíram boa parceria.

Ora, direis, os cursos de Letras formam professores de português. Cantiga para ninar pardais, como dizem os lusos. A formação de professores de português não exige curso superior. Vi quartanistas de Letras escrevendo "eu poço" por "eu posso" e outras analfabetices do gênero. Minha mãe, que só fez o secundário em Dom Pedrito, tinha uma redação impecável, de fazer inveja a muito jornalista egresso dos cursos de Comunicações. Aliás, de minha passagem pelo magistério universitário, cheguei a uma desoladora conclusão: a formação que tive em meus quatro anos de ginásio, lá naquela cidadezinha da Fronteira Oeste gaúcha, que mal tinha na época vinte mil habitantes, nenhum diplomado em Letras a tem hoje. Saí de lá falando espanhol, francês e inglês, arranhando um bom latim e escrevendo um português do qual até hoje não tenho porque envergonhar-me. Em meus dias de UFSC, raros eram meus alunos de final de curso que conseguiam escrever em vernáculo não digo elegante, mas pelo menos correto.

Pode-se alegar que os cursos de Letras formam tradutores e intérpretes. Bobagem. Quem quer realmente especializar-se nestes ofícios, vai para o exterior ou busca cursos privados. Sem falar que os grandes tradutores que Porto Alegre produziu, como Erico Verissimo, Mário Quintana, Herbert Caro, jamais passaram por um curso de Letras. Permito-me um testemunho pessoal. Já traduzi vinte títulos, do sueco, francês e espanhol, sem jamais ter passado por um curso de tradução.

A encampação da tradução pela universidade é muito suspeita. Ao que tudo indica, a guilda quer regulamentar a profissão, crime de lesa-cultura que já cometeram contra o jornalismo. Quanto aos cursos de línguas fornecidos pela universidade, estes jamais levaram a qualquer lugar. Nestes dias de CDs-ROM, professor de línguas virou peça de museu. Professor que ainda não percebeu isso, em breve será mais um desses tantos malucos que andam falando sozinho nas ruas. Com a diferença de que será bem pago para falar para quatro paredes.

Muitos outros setores ganham com esta indústria do inútil. Quem então sai perdendo? No caso das universidades públicas, em primeiro lugar o contribuinte, que ignora a festança que estão fazendo com seu dinheiro. Tudo em nome dos sagrados interesses da cultura, é claro. Em segundo lugar, o estudante de Letras. Caso não encontre colocação no escalões inferiores da Máfia, terá perdido preciosos anos de sua juventude, percorrendo currículos absurdos, teorias estapafúrdias e literaturas insossas. Quando poderia ter-se dedicado a estudar algo mais concreto, que lhe garantisse profissão decente, reservando seu lazer para um estudo sério da boa literatura. Por experiência, tanto de rua como de campus, sei que é muito mais fácil encontrar uma pessoa com boa cultura literária em um bar do que nos cursos de Letras. 

Sobre meu desencanto - Meu depoimento carrega o desencanto de quem perdeu boa parte de sua vida navegando pelas tais de Ciências Humanas. Estudei Filosofia na UFRGS, de 1965 a 1968. Discutimos, durante quatro anos, essa bosta de religião laica, o marxismo. Ou seja, foram quatro anos jogados ao vento. De minha passagem pela Filosofia me restou um ensinamento, o de que as diferentes visões de mundo se atropelam e se anulam com a passagem dos séculos. E só. Foi importante, eliminou em mim qualquer tentação de dogmatismo. Mas para chegar a essa conclusão, não precisava ficar com o traseiro pregado na universidade por quatro anos. Boas leituras de história me bastariam. Fiz também o curso de Direito em Santa Maria. Mais cinco anos jogados ao lixo. Optei pelo jornalismo, em época em que não existia esta excrescência criada pela ditadura militar, os cursos de jornalismo. Desta opção não me arrependo, embora o jornalismo hoje seja mais ficção que tradução dos fatos. Mas não o aprendi na universidade. Em jornalismo, me formei nos bares e redações. Universidade não forma ninguém em jornalismo. É outro curso inútil: o professor de comunicações, que muitas vezes jamais pisou numa redação, ganha muito mais que o redator ou repórter que sofre a profissão. Sem falar que goza de estabilidade no emprego, sonho que jornalista algum ousa sonhar na empresa privada.

Viajei pelo mundo das Letras. Durante quatro anos, estudei Letras Francesas e Comparadas, na Université de la Sorbonne Nouvelle, em Paris. Só não foram mais quatro anos jogados ao vento porque o que menos fiz foi estudar literatura. Dediquei-me a pesquisar Paris, a França e a história deste século. De meus professores de literatura, de meu curso, não recebi nada, mas nada mesmo. Tive um professor de poesia francesa contemporânea que se chamava M. Décaudin. Eu vivia mordendo a língua para não incorrer em um ato falho e chamá-lo de M. Décadent. Tinha um projeto de tese em torno à literatura de Ernesto Sábato. Levei-o a bom termo por respeito a Sábato e ao Ministério de Cultura francês, que me concedera uma bolsa. Defendi minha tese, fui ator bem comportado durante toda a encenação. Mas tinha perfeita consciência de que tudo era farsa.

Para que serviu minha tese? Para mim, garantiu quatro anos de Paris. Para meu orientador, abriu novos rumos em suas pesquisas. Mas e daí? Para Sábato, foi mais um título em sua fortuna literária. E só. Meu país não se tornou mais rico com minhas pesquisas, nem econômica nem espiritualmente. Muito menos a França ou a Argentina. Do ponto de vista da construção de uma sociedade, minha tese é uma peça perfeitamente inútil, descartável. Como aliás todas as teses literárias. Outra coisa é uma pesquisa sobre uma proteína mais barata, sobre uma vacina mais urgente, sobre um chip mais rápido. Estima-se em torno de 100 mil dólares ao ano a formação de um doutor. Logo, a França terá gastado uns 400 mil comigo. De minha parte, muito honrado. Mas para quê? Se analisarmos a questão a fundo, para nada.

Lecionei mais tarde Literatura Brasileira e Comparada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, nos cursos de graduação e pós-graduação em Letras. Para isso também serviu minha tese, para dar-me de comer e beber por mais quatro anos. Foi o período mais inútil de minha vida, que só me rendeu uma hipertensão. Cingido a obrigações curriculares, tive de digredir sobre esse suposto movimento literário, o modernismo brasileiro, no fundo uma ficção criada pelos PhDeuses uspianos. Lecionava para alunos que só queriam um papelucho ao final do curso para aumentar seus proventos na função pública.

Durante quatro anos fui pago para realizar um trabalho rumo a nada. Como eram, são e continuam sendo pagos, para marchar na mesma direção, as dezenas de colegas que tive no colegiado e os milhares de professores de Letras do país todo.

Puta velha - Quem presta este depoimento não é portanto uma virgenzinha que olha espantada para a realidade de um bordel, mas uma puta velha que muito girou bolsinha nos corredores universitários. Se vejo as defesas de tese e concursos como farsas, é porque também participei delas e por isso sei do que estou falando.

Dezenas de professores foram, são e serão enviados ao exterior para mestrados e doutorados. Muitos cumprem seus compromissos. Mas não poucos voltam de mãos abanando e tudo fica por isso mesmo. No caso do curso de Letras, observei que os candidatos a bolsas no exterior eram, em sua quase totalidade, moças mal-amadas, em geral solteiras ou divorciadas, que partiam em busca de maridos ou similares. Ao final de alguns anos, as mal-baisées voltavam sem tese nem marido. Não sei se o mesmo fenômeno ocorrerá na UFRGS. Mas deveria ser capitulado como crime, na legislação sobre a função pública, usar dinheiro do contribuinte para fazer turismo sexual às margens do Sena ou do Tâmisa. 

Quanto à crítica mais radical, que agora faço, me permito citar Chesterton: "só podemos conhecer uma catedral quando a olhamos de fora". O absurdo do ritmo de tartaruga dos cursos da área humanística me saltaram com força aos olhos quando passei a trabalhar com jornalismo eletrônico em São Paulo. A pesquisa que um professor achava difícil cumprir em cinco meses, um redator da Folha de São Paulo, por exemplo, tem de executá-la em cinco horas. E sem direito a errar.

Essa passagem da empresa pública para a privada, do emprego eterno para aquele sob a ameaça diária de um pontapé no traseiro, permite o contraste que evidencia o obsoletismo e a inutilidade de um curso de Letras. Se um professor de uma universidade pública fica quatro, cinco ou dez anos no estrangeiro para defender uma tese e volta de mãos vazias, nada acontece com ele. Não devolve o dinheiro público que lá despendeu nem perde seu emprego. Se um jornalista interpreta mal a declaração de um político - ou pior, se a interpreta com clareza excessiva - no dia seguinte pode estar no olho da rua.

O leitão e o cocho - Resumindo: os cursos de Letras constituem uma máquina autofágica, que se alimenta de si mesma. Professores de Letras formam professores de Letras que formarão professores de Letras, ad nauseam. Se a bicicleta pára, o ciclista cai. Loureiro Chaves ouviu o galo cantar, só não soube dizer onde. Intuiu a inutilidade dos cursos de Letras. Em um gesto de auto-defesa, excluiu a si mesmo do projeto do qual participou durante trinta anos. Foi cúmplice de todos os atos e fatos que levaram o curso a ser área morta. Agora acusa seus pares, como se suas mãos fossem imaculadas.

Se levar a crítica mais a fundo, terá de constatar a inutilidade de seus ensaios, de sua carreira, de sua tese, de sua vida, tão socialmente improdutiva quanto o curso que critica. Se o curso de Letras da UFRGS se caracteriza, nas palavras do professor, por sua “absoluta inutilidade social”, o mesmo pode se dizer de sua obra. Por que não estender, reitero, esta crítica à USP? Qual a utilidade social do curso de Letras da USP? A meu ver, a mesma de qualquer curso de Letras. Isto é, nenhuma.

Em meus dias de campo, tínhamos uma expressão para tal tipo de comportamento. Era o gesto do leitão mal-educado, que costumava virar o cocho onde comia. 

* Texto escrito nos estertores do século passado
Por: Janer Cristaldo Do site: http://cristaldo.blogspot.com.br/


quarta-feira, 18 de junho de 2014

SOBRE AS REFORMAS "NEOLIBERAIS" NA AMÉRICA LATINA E POR QUE ELAS FRACASSARAM

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Imagine que um grupo de vizinhos em seu bairro — que foram eleitos ou que se auto-elegeram governantes — decidem que ninguém, exceto eles, pode fornecer serviços de segurança e de resolução de contendas judiciais. 

E não apenas isso: além de estipularem e imporem taxas para custear gastos com iluminação, ruas e manutenção de todas as instalações e infraestruturas com as quais já nos acostumamos, suponha também que comecem a cobrar uma porcentagem do salário dos solteiros para pagar pela educação de quem tem filhos, uma porcentagem dos salários dos que têm um estilo de vida saudável para custear a saúde de quem quiser tais serviços gratuitamente, uma porcentagem do salário de todos para criar programas de fomento à cultura e para conceder empréstimos subsidiados a determinadas empresas, a criar empregos na administração do bairro para seus militantes — novamente, à custa de todos os vizinhos —, e a controlar toda uma série de elementos da própria vida das famílias.

Não é necessária muita imaginação para se criar novas justificativas para que o estado continue tomando dinheiro das pessoas com o intuito de financiar novos programas. E foi exatamente nisso que o estado se transformou para os latino-americanos ao longo das últimas gerações. Na maioria dos países do continente, já no final da década de 1970, o estado era eletricista, encanador, engenheiro, médico, professor, conselheiro matrimonial e familiar, e, acima de tudo, uma casa de beneficência.

Apesar deste diagnóstico agora evidente, e do fato de que o famoso (infame para a esquerda) Consenso de Washington se apresentou como sendo a cura para todos os males do continente, os resultados deixaram muito a desejar. Tanto é que os ungidos do populismo e do coletivismo estão — em termos eleitorais — mais fortes do nunca na região, justamente pelo fato de denunciarem diariamente as consequências das reformas impostas pelo Consenso. 

No entanto, se supostamente o final da década de 1980 e toda a década de 1990 trouxeram uma onda maciça de privatizações, desregulamentações e aparentes aberturas comerciais, o que foi que falhou? Será que os ungidos de fato têm razão ao afirmar que o "neoliberalismo" é intrinsecamente incapaz de gerara prosperidade geral? 

Voltemos à analogia do início do artigo. O que ocorrerá se os governantes — que mudaram apenas de rosto, mas não práticas políticas — decidirem abandonar muitas das atividades que até então efetuavam? Voltaremos ipso facto a uma situação natural? De jeito nenhum. O grupo de governantes pode, mediante a concessão de algumas atividades para grupos privados, tornar mais "eficiente" uma série de atividades; mas nós, os vizinhos, ainda não sentimos que somos donos de nossas vidas. O grupo de governantes pode ter deixado de efetuar determinadas atividades, mas ele ainda não permite que possamos efetuá-las. Apenas um pequeno grupo, selecionado a dedo pelos governantes, podem efetuar estas atividades. Os governantes ainda mantêm e impingem leis que ditam como e até que ponto tais atividades podem ser efetuadas. 

Ainda não somos donos de nossas vidas. No máximo, os governantes nos permitem determinadas iniciativas em nosso bairro, mas apenas com sua prévia permissão e somente sob sua supervisão técnica. De novo, não recuperamos realmente nada.

O problema com as reformas da década de 1990 é exatamente este. Para começar, não houve nenhuma genuína desestatização, mas sim apenas concessões de monopólios estatais para monopólios privados, arranjo esse que não permite nenhuma concorrência. Não há livre concorrência nos grandes setores econômicos da América Latina.

Desde a divisão de Buenos Aires em duas zonas, cada qual tendo apenas uma empresa telefônica monopolista, passando pela criação de várias agências reguladoras no Brasil que têm o intuito de cartelizar o mercado e proteger grandes empresas da concorrência externa, permitindo que pratiquem preços altos e mantenham serviços de baixa qualidade, chegando ao Ejido mexicano, que mantém o estado como proprietário de terras para uso agrícola coletivo (tendo o estado o poder de tomar terras privadas), e culminando nos sistemas de "seguridade social" em que o estado "poupa por nós" para nos proteger em nossa velhice, não há absolutamente nenhuma forma de liberalismo (não existe um prefixo "neo") no continente. Há apenas o velho e absoluto mercantilismo.

Ou seja, o remédio ministrado é somente um pouco melhor do que a própria enfermidade. Se tínhamos um estado obeso e empresário, agora temos um estado obeso que se sente um pouco menos empresário, mas que, por sua obesidade, confisca e monopoliza os recursos com os quais poderíamos ser nós mesmos os empresários. O estado nos mantém regulados, supervisionados, concessionados (o monopólio se mantém, embora a qualidade do serviço possa aumentar notavelmente em uma concessão), desprovidos, sobre-tributados e monopolizados juridicamente. E estes dois últimos fatores, embora sejam os menos notados e discutidos, são os mais importantes para o crescimento econômico.

Têm toda a razão aqueles que dizem que Austrália, Nova Zelândia, Estônia ou até mesmo Hong Kong e Cingapura não são sistemas liberais puros, mas ainda assim são as estrelas mundiais em termos de crescimento e prosperidade para seus habitantes. Da mesma maneira, países já ricos e, consequentemente, de crescimento baixo, como Dinamarca, Suécia, França, Itália, Canadá e Alemanha também não são puramente liberais. Mas há algo que todos eles têm em comum, algo que é o segredo, o requisito sine qua non do progresso: segurança jurídica para a propriedade e para os contratos voluntários. 

Eles têm isso há muito tempo; nós nunca tivemos.

Por que esse é o diferencial? Nada mais pode explicar por que 80% do fluxo de investimentos estrangeiros ocorrem entre os próprios países desenvolvidos quando se sabe que uma empresa como a Microsoft pagou 8% de dividendos a seus acionistas nos últimos anos ao mesmo tempo em que empresas bem-sucedidas no Equador pagaram 25%. Sendo assim, o capital estrangeiro não deveria estar chovendo sobre os países latino-americanos, onde os investimentos geram maiores taxas de retorno? Infelizmente não. Se um país da América Latina permite que você mantenha 60% do lucro gerado por uma empresa ao passo que na Dinamarca esse percentual é de apenas 40%, por que ainda assim a Dinamarca continuará sendo um destino preferencial para os investimentos? Porque a Dinamarca possui um sistema tradicional e reconhecidamente eficaz de proteção à propriedade, aos contratos e às decisões judiciais.

Isso significa que, na América Latina, o investidor pode até ter mais dinheiro após impostos, mas existem mais possibilidades de trapaças e de estelionatos por parte de um sócio local, mais conflitos trabalhistas, mais incerteza jurídica, maiores possibilidades de calotes serem protegidos pelo judiciário, e mais vários outros elementos que desmotivam empreendedores a fazer investimentos e a aplicar seu capital em nosso território. É por isso que os reinvestimentos são um ato de heroísmo, e que a repatriação de lucros se torna um ato mais racional e seguro.

Mas o assunto não termina aí. Hernando de Soto, em sua obra El Misterio del Capital, calcula que 80% da propriedade nos países em desenvolvimento está totalmente na informalidade. Ou seja, há dezenas de milhões de famílias em nosso continente que simplesmente não podem utilizar sua propriedade como garantia para a obtenção de crédito, com o qual poderiam abrir pequenas empresas, fornecer empregos e, de forma geral, se integrar ao sistema produtivo. Se a casa ou o terreno de uma família pobre não são formalmente seus, como no caso das favelas brasileiras, não há nenhuma medida de abertura econômica, de privatizações ou de ortodoxia fiscal e monetária que possam compensar tudo isso. Caso essas pessoas pudessem usufruir um título de propriedade, elas imediatamente começarão a usá-los como colateral ou a transacioná-los, aumentando sobejamente sua renda, sua riqueza e seu padrão de vida.

O atual arranjo faz com que, literalmente, a classe baixa e até mesmo boa parte da classe média sejam meras espectadoras do processo econômico. E os governantes sabem como capitalizar esta situação denunciando-a como sendo uma exclusão social. Eles estão corretos nesta percepção — embora tenham sido eles próprios que criaram esta situação —, mas estão errados ao proporem que a solução está na inclusão política ("vamos decidir o rumo do país em assembléias populares").

A resposta, sob o prisma da mentalidade empreendedorial, deve ser distinta e clara: sim, o mercantilismo é excludente, mas podemos caminhar em direção ao liberalismo caso massifiquemos o acesso à propriedade (com títulos e registros de propriedade para todos), tornemos o sistema judiciário mais rápido e confiável (arbitragens privadas são um ótimo começo), e aumentemos a segurança (com o policiamento privado liberado).

Em outras palavras, a liberdade econômica começa pela propriedade privada, pelo respeito aos contratos, e por um sistema judiciário confiável e eficiente. São secundárias, porém de suma importância, questões como impostos, as tarifas e as regulamentações. 

Uma economia livre é uma economia de proprietários, e não uma economia de proletários.


Por: Juan Fernando Carpio mora em Quito, Equador, possui mestrado em Economia Empreendedorial pela Universidad Francisco Marroquin, da Guatemala e é o presidente do Instituto para la Libertad, um think tank libertário equatoriano.

terça-feira, 17 de junho de 2014

PENSAR ESTÁ SE TORNANDO ALGO OBSOLETO

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Embora seja humanamente impossível responder a todos os e-mails e cartas que os leitores me enviam, muitos deles são bastante interessantes e intelectualmente instigantes, tanto no sentido positivo quanto no sentido negativo.

Por exemplo, um jovem me enviou um e-mail pedindo as fontes em que eu havia me baseado para citar alguns fatos negativos sobre o desarmamento em um artigo recente. É sempre bom checar os fatos — especialmente se você checar os fatos de ambos os lados da questão. 

Em contraste, um outro sujeito simplesmente me criticou por tudo o que eu havia dito nesse artigo. Ele não pediu as minhas fontes e nem quis saber se elas existiam; ele simplesmente saiu fazendo afirmações em contrário, como se essas suas assertivas fossem automaticamente corretas pelo simples fato de estarem sendo pronunciadas por ele, algo que, em sua mente, invalidaria automaticamente tudo o que eu havia escrito.

Ele se identificou como médico, e as alegações que ele fez sobre armas eram as mesmas que haviam sido feitas anos atrás em uma revista médica — alegações que já foram inteiramente desacreditadas desde sua publicação. Ele poderia ter aprendido isso caso houvesse me dado a oportunidade de responder às suas provocações, de um modo que nos engajássemos em um debate. Porém, ele próprio deixou claro desde o início que sua carta não tinha o objetivo de gerar um debate, mas sim apenas de me acusar e me denunciar. 

Esse tipo de comportamento se tornou um procedimento padrão no mundo atual.

É sempre surpreendente — e apavorante — constatar quantos assuntos extremamente sérios não são discutidos seriamente hoje em dia; as pessoas simplesmente saem emitindo afirmativas e contra-afirmativas, tudo de maneira generalizada. Seja em debates de internet ou até mesmo em programas de televisão, as pessoas simplesmente tentam calar seu opositor falando mais alto do que ele ou simplesmente recorrendo a frases de efeito de cunho emotivo.

Há inúmeras maneiras de fazer parecer que se está argumentando sem que na realidade se esteja produzindo absolutamente nenhum argumento coerente.

Décadas de educação escolar e universitária simplificada — para não dizer idiotizante — certamente têm algo a ver com a atual situação, mas isso não explica tudo. A educação não somente foi negligenciada no sistema educacional atual, como também já foi quase que completamente substituída pela doutrinação ideológica. A doutrinação que hoje é feita por professores e instituições supostamente educacionais é amplamente baseada na simples vocalização das mesmas pressuposições básicas e não-comprovadas de sempre.

Se as instituições educacionais de hoje — desde escolas a universidades — estivessem tão interessadas em diversidade de ideias quanto estão obcecadas com diversidade racial e sexual, os estudantes ao menos adquiririam experiência ao ver as pressuposições que existem por trás de diferentes visões, e entenderiam a função da lógica e da evidência ao debaterem tais diferenças. No entanto, a realidade é que um estudante pode passar por todo o seu ciclo educacional, desde o jardim de infância até seu doutoramento, sem entrar em contato com absolutamente nenhuma visão de mundo que seja fundamentalmente diferente daquela que prevalece dentro do espectro de opiniões autorizadas e politicamente corretas que domina o nosso sistema educacional.

No que mais, a perspectiva moral da visão ideológica predominante é completamente maniqueísta: as pessoas imbuídas dessas ideias realmente se veem como anjos combatendo todas as forças do mal — seja o assunto em questão o desarmamento, o ambientalismo, o racismo, o homossexualismo, o feminismo ou qualquer outro ismo.

Um monopólio moral é a antítese de um livre mercado de ideias. Um indicativo desta noção de monopólio moral dentre a intelligentsia esquerdista é o fato de que as instituições que estão majoritariamente sob seu controle — escolas, faculdades e universidades — são justamente aqueles que usufruem muito menos liberdade de expressão do que o resto da sociedade.

Por exemplo, ao passo que a defesa e até mesmo a promoção da homossexualidade é comum nos campi universitários — e comparecer a palestras e aulas que fazem tal promoção é frequentemente algo obrigatório nos cursos introdutórios —, qualquer crítica ao comportamento homossexual é imediatamente rotulada de "reacionarismo", "preconceito" e "incitação ao ódio", sujeita a imediata punição.

Enquanto porta-vozes de vários grupos raciais e étnicos são livres para denunciar com veemência "os brancos" por seus pecados passados e presentes, verdadeiros ou imaginários, qualquer estudante branco que similarmente venha a denunciar as transgressões ou os desvarios de grupos não-brancos garantidamente será punido, se não expulso.

Até mesmo estudantes que não defendem ou não promovem absolutamente nada podem ter de pagar um preço caso não concordem com a lavagem cerebral que ocorre nas salas de aula. Recentemente, nos EUA, um aluno da Florida Atlantic University que se recusou a pisotear um papel em que estava escrito a palavra "Jesus", a mando de seu professor, foi suspenso pela universidade. Felizmente, a história veio a público e gerou uma onda de protestos fora do mundo acadêmico.

A atitude deste professor pode ser descartada e ignorada como sendo um caso isolado de extremismo, mas o fato é que o establishment universitário saiu solidamente em sua defesa e atacou implacavelmente o estudante. Tal atitude mostra que a podridão moral que impera na academia vai muito mais além do que um simples professor adepto da doutrinação e da lavagem cerebral.

Estamos hoje vivenciando todo o esplendor do anti-intelectualismo que se espalhou por metástase ao longo de todo o mundo acadêmico. As universidades se tornaram tão dominadas por uma insistência na inviolabilidade de um determinado pensamento grupal, que qualquer professor "forasteiro", que não compactue com a predominância deste pensamento gregário, não mais pode falar a respeito de um determinado assunto sem antes ter sido devidamente credenciado por seus pares. Uma simples pesquisa sobre o tratamento dispensado a acadêmicos que ousam questionar a santidade do aquecimento global mostra bem esse ponto.

Já houve uma época em que um curso universitário era considerado um meio de introduzir as pessoas a uma ampla gama de assuntos que lhes permitiria pensar e falar inteligentemente sobre várias questões que estivessem afetando suas vidas. O pensamento coletivista — que hoje é predominante no meio universitário — rejeita tal ideia, conferindo o monopólio de determinadas questões apenas àquelas pessoas que são reconhecidas como "especialistas" por seus pares.

Este método educacional que recorre à intimidação e à simples repetição de frases de efeito de cunho emocional evidencia a completa falência do sistema educacional. Se professores universitários — teoricamente a nata intelectual da sociedade, pessoas que por vocação e profissão deveriam ser as mais rígidas seguidoras do rigor intelectual — agem assim, como podemos esperar que o restante da população apresente discernimentos mais profundos? 

Para sobreviver e progredir, seres humanos precisam saber pensar. Porém, estamos cada vez mais terceirizando esta função para acadêmicos, que por sua vez pautam o conteúdo da mídia. Tal terceirização de pensamento ajuda a explicar por que há hoje uma escassez de pensamentos originais e significativos. 

O fracasso do sistema educacional vai muito além da ausência de um aprendizado útil. O real fracasso está naquilo que de fato é ensinado — ou melhor, doutrinado — nas salas de aula, algo evidenciado pelos formandos que as universidades cospem para o mundo, seres incapazes de apresentar qualquer resquício de pensamento original. 

Jamais se preocupe em se aprofundar em qualquer assunto: os "especialistas" cujos empregos se resumem a promover a agenda do establishment político e cultural já têm tudo explicado para você.


Por: Thomas Sowell , um dos mais influentes economistas americanos, é membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford.  Seu website: www.tsowell.com.

Tradução de Leandro Roque