sexta-feira, 20 de junho de 2014

'DISCÍPULA DE PAULO FREIRE ASSASSINA MACHADO DE ASSIS'


Localizado nas proximidades do Viaduto do Chá, que, desde a inauguração em 1892, se tornou, durante muitos anos, o principal cartão postal da cidade de São Paulo, o Vale do Anhangabaú será palco, em junho próximo, de um evento literário inusitado — um túnel construído não por concreto, mas por 60 mil livros. Trata-se do lançamento da nova edição de uma das mais importantes obras da língua portuguesa de todos os tempos, a novela O Alienista, de Machado de Assis, que, depois da morte do escritor em 1908, separou-se de Papéis A­vulsos, o volume de contos em que fora originalmente publicado em 1882, e se tornou um livro autônomo, traduzido em vários idiomas. Mas não se trata exatamente da obra-prima de Machado — o que o leitor vai encontrar nesse lançamento faraônico é uma adaptação de O Alienista, coordenada pela escritora Patrícia Secco e patrocinada pelo Ministério da Cultura, por intermédio da Lei Rouanet.

“Entendo por que os jovens não gostam de Machado de Assis. Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso”, disse Patrícia Secco, em 4 de maio último, numa entrevista ao jornalista Chico Felliti, da Folha de S. Paulo. Proprietária da Secco Assessoria Empresarial S/C Ltda., que juntamente com sua pessoa física já teve aprovados no Ministério da Cultura projetos que somam cerca de R$ 10 milhões captados, Patrícia Secco produz literatura infanto-juvenil em ritmo industrial, com mais de 200 títulos publicados, a maioria com temas da moda, como meio ambiente, direitos humanos e inclusão social. Com o propósito de facilitar a leitura de quatro clássicos da literatura brasileira, Secco pedira autorização ao Ministério da Cultura para captar R$ 1,53 milhão; por incrível que pareça, foi autorizada a captar R$ 1,45 milhão, ou seja, quase o montante que havia pedido para seu projeto. Na prática, conseguiu captar uma cifra milionária — R$ 1,039 milhão — para produzir dois livros a serem lançados num mesmo volume: O Alienista, de Machado de Assis, e A Pata da Gazela, de José de Alencar.

A princípio, a ideia de adaptar um clássico não é necessariamente condenável, especialmente se for para crianças. As adaptações de clássicos da literatura — começando pela Bíblia — devem ser tão antigas quanto o ato de ler. Em sua já clássica Uma História da Leitura, o argentino-canadense Alberto Man­guel conta que, em 1387, John de Trevisa, que estava traduzindo do latim para o inglês a epopeiaPolychronicon, do monge beneditino Ranulf Higden (c. 1280-1364), resolveu fazê-lo não em versos, mas em prosa, pois sabia que o público já não queria ouvir uma recitação pública da obra (que, por sinal, se tornaria muito popular no século XV), preferindo lê-la diretamente. Da mesma forma, a Divina Comédia, de Dante Alighieri, originalmente escrita em versos, mereceu adaptações em prosa e versões condensadas para crianças, que exploram o viés aventureiro de sua viagem ao Inferno, Purgatório e Céu, transformando-o numa espécie de Julio Verne do espírito.

Uma das primeiras justificativas para se adaptar uma obra é, sem dúvida, sua extensão. Poucas crianças são capazes de ler um romance ou uma epopeia que se estende por mais de 500 páginas. A boa adaptação é uma espécie de resumo que tenta extrair a essência da obra sem desvirtuá-la. Carlos Heitor Cony, que adaptou diversos clássicos para o público infanto-juvenil, como Dostoievski, Melville, Mark Twain, Dumas, Gogol, Eça, Manoel An­tônio de Almeida e Julio Verne, ao ser indagado numa entrevista à revista “Cult” se reescrevia ou resumia os livros, respondeu: “Era uma condensação. Eu eliminava pontos mortos, alguns diálogos, detalhes técnicos. Deixava o texto mais denso. Mas preservava a história, o clima e principalmente a expectativa”. Cony foi taxativo: ”O bom adaptador não falseia o original”.

Facilitação de Machado nega o escritor

Infelizmente, Patrícia Secco falseia Machado de Assis. Além de lhe desfigurar o estilo, ela o emburrece. Sua adaptação é um retrocesso, que sacrifica até os avanços linguísticos do estilo machadiano, já ousadamente próximo da linguagem coloquial, numa antecipação das vanguardas do modernismo que só iriam se consolidar no Brasil quase meio século de-pois. A autora esqueceu-se de que Machado, assim como Borges, Beckett, Graciliano, não dá para ser adaptado em prosa sem que se perca a essência de sua arte. A obra machadiana é basicamente linguagem. Em seus romances, não há enredos rocambolescos nem profusão de personagens, como há em Homero, Cervantes e nos clássicos românticos. Mesmo O Alienista, talvez o enredo mais movimentado de toda a sua obra, depende substancialmente da linguagem, pois é nela que moram a argúcia e a ironia do conto.

Para justificar sua adaptação, Patrícia Secco recorre a afirmações demagógicas. “Estou horrorizada. É muito triste pensar que algumas pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário”, disse a escritora-empresária à repórter Maria Fernanda Rodrigues, do Estadão, em matéria de 9 de maio último. Ora, quem disse que um faxineiro não pode compreender Machado de Assis? Se fosse assim, o próprio Machado — descendente de agregados e ex-escravos, somente com o ensino primário — nem existiria. Foi justamente porque em seu tempo não existia uma Patrícia Secco facilitando-lhe Camões, Vieira e Almeida Garrett que o Machadinho do Morro do Livramento embebeu-se dos clássicos, aprendeu francês sozinho e não apenas se tornou capaz de compreender os mestres da literatura universal como até mesmo se tornou um deles.

Com sua adaptação de O Alienista, a escritora-empresária Patrícia Secco destrói a universalidade da literatura de Machado de Assis com a pequenez ideológica da pedagogia de Paulo Freire. Foi o criador da “Pedagogia do Oprimido”, uma espécie de marxismo de autoajuda, quem consagrou a tese pedagógica de que o aprendizado é um epifenômeno das circunstâncias materiais e é somente a partir delas que se pode alfabetizar uma criança e despertar-lhe a consciência. O pedagogo brasileiro foi um grande admirador de Mao Tsé-Tung e, assim como o monstruoso comunista chinês mandava os lavradores arrancarem até as flores nativas, porque eram inúteis no universo do trabalho, Paulo Freire também arranca as palavras burguesas da cartilha do trabalhador, determinando a alfabetização a partir das tais “palavras geradoras”, como “tijolo”. É o que chamo de pedagogia análoga à escravidão — o filho do lavrador deve ter os olhos presos ao chão e está proibido de ouvir estrelas.

Patrícia Secco professa a mesma filosofia: se o faxineiro da farmácia não sabe o que é “boticário”, que se arranque então essa maldita palavra dos textos clássicos. Nunca ocorreu a ela que seria muito mais fácil, barato e respeitoso oferecer um dicionário ao faxineiro? Aliás, um trabalhador que resolva ler O Alienista — e isso está longe de ser raro — nem precisará de dicionário para descobrir o significado dessa palavra. O próprio conto, que sempre associa o boticário Crispim Soares a remédios, já lhe oferece a resposta. Além disso, tão logo veja a palavra no texto, o faxineiro irá se lembrar de que existe uma rede de perfumaria com esse nome e, por associação de ideias, poderá lembrar-se da palavra “botica” que pode ter ouvido a um parente mais velho. Caso não disponha de um dicionário em casa, o faxineiro machadiano sempre poderá consultar uma pessoa letrada de seu meio, parente ou um conhecido, que se não for capaz de sanar sua dúvida, saberá onde encontrar a resposta. Ou Patrícia Secco acha que só existe vida inteligente em seu meio social e que nas classes pobres não há ninguém capaz de trocar ideias com um faxineiro interessado em literatura?

Censo de 1872 abalou a literatura brasileira

O psicólogo Yves de La Taille, professor da USP e autor do livro Limites, considera que os limites morais comportam três dimensões, uma das quais significa desafio — uma pessoa, além de respeitar limites em face dos direitos dos outros e de impor limites em defesa de sua intimidade, deve também superar limites, o que significa superar a si mesma, buscando a maturidade e a excelência. É tudo o que Pa­trí­cia Secco não quer do leitor, com sua simplificação dos clássicos. Nin­guém aprende sem esforço próprio, recebendo tudo de mão bei­jada. Graciliano Ramos começou a ser escritor quando se sentiu de­safiado pelas mesóclises daCarta de ABC, do lendário A­bí­lio César Borges, o Barão de Ma­caú­bas, que trazia a máxima “fala pouco e bem, ter-te-ão por al­guém”. A frase o levaria a indagar à sua meia-irmã Mocinha se “ter-te-ão” era um homem. Co­mo Mo­ci­nha, a adolescente se­mial­fabetizada que o ensinou a ler, também não tinha ideia do que fosse aquilo, o me­nino Gra­ci­li­ano, enfezado vi­vente das Alagoas, criado a cascudos e beliscões, teve que descobrir so­zinho, devorando, antes dos dez anos, a prosa romântica de José de A­lencar, bem mais distante da linguagem comum do que a linguagem coloquial de Machado de Assis.

Ao se dar conta da indignação que sua proposta suscitou no País, desde um abaixo-assinado contrário até artigos e editoriais — Patrícia Secco publicou na Folha de S. Paulo, no dia 13 de maio, uma defesa de sua adaptação. O título do artigo não poderia ser menos machadiano: “Machado não gostaria de permanecer desconhecido para quem não lê”. Que afirmação mais esdrúxula! Ma­chado, revolucionariamente, sabia-se texto e, como tal, sabia-se também de­pendente do leitor. Em sua tese Os Leitores de Machado de Assis (Editora da USP, 2004), o professor da USP Hélio de Seixas Guimarães chega a sustentar que a obra machadiana foi influenciada pelo Censo de 1872 (o primeiro realizado no Brasil e divulgado em 1876), ao revelar que apenas 18,6% da população livre e 15,7% da população total, incluindo escravos, sabiam ler e escrever. “A tomada de consciência da escassez de leitores, problema que se inscreve de maneira cada vez mais radical em seus romances, parece-me fator relevante para ajudar a guinada que o escritor imprimiu a sua carreira”, escreve Seixas Guimarães.

Mas Machado de Assis, como sociólogo e psicólogo nato, também estava preocupado com os que não sabem — ou não querem — ler, oferecendo-lhes não a literatura-texto, mas a literatura-instituição, encarnada na Academia Brasileira de Letras, que detém até o monopólio legal da língua, tão grande é a sua importância. Aliás, ao contrário do que pensa Patrícia Secco, isso torna Machado de Assis o escritor mais conhecido pelos que não sabem — ou não querem — ler, nomeando ruas e escolas e simbolizando as letras nacionais da mesma forma que o desgrenhado Be­ethoven simboliza a música para quem nunca pisou numa sala de concerto e só conhece da música erudita o eterno “tchan-tchan-tchan” da Quinta Sinfonia. No próprio modo de composição da ABL, que aceita políticos e notáveis travestidos de escritores (como o Barão do Rio Branco, Marco Maciel e Ivo Pitan­guy), Machado de Assis revelou toda sua engenharia político-institucional, dando à literatura brasileira uma dignidade social que ela jamais poderia alcançar numa nação de analfabetos se continuasse sendo produzida em bares, por uma despreocupada geração de boêmios.

E quando procurou fazer da literatura brasileira também uma instituição social descarnada do texto, capaz de chamar a atenção da sociedade por outros meios, Machado de Assis não estava pensando exatamente nas camadas populares da nação — estou certo de que ele pensava, sobretudo, na preguiçosa elite nacional, que, mesmo sabendo e podendo ler, não lia, nem em seu tempo, nem hoje. Machado estava consciente de que, mesmo entre as elites, eram poucos os que tinham o habito da leitura, tanto que seu grande amigo José de Alencar se queixava de que o público conhecia mais O Guarani pelo teatro do que pelo texto do romance em si. Portanto, Patrícia Secco revela todo o seu preconceito contra os pobres quando cita uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo mostrando que 58% dos brasileiros não leram nenhum livro nos últimos seis meses e, logo em seguida, afirma que, “por trás desses números existem rostos e vidas”, mas ao desvendá-los só se lembra de pessoas como “Seu Roberto, motorista de táxi, o Cristiano, caixa da farmácia da esquina, a Dona Nice, copeira do escritório”, pois, segundo ela, “eles são não leitores”.

Ora, só eles? E quantos são leitores entre as elites econômica, social e política do País? Essa preocupação perpassa a obra de vários críticos ao longo do tempo, como José Ve­ríssimo, Sílvio Romero e Otto Maria Carpeaux, que se angustiavam com o grande número de profissionais liberais, como médicos, engenheiros, advogados, professores e outros profissionais de nível superior, que passam ao largo da literatura, limitando-se às leituras técnicas de suas respectivas áreas e reservando o tempo livre para outras formas de lazer, que nada têm a ver com as letras. Por isso, quando se pensa em pobre como sinônimo de não leitor, o que se quer, no fundo, é uma justificativa para arrancar dinheiro dos cofres públicos.

Simplificar livros agrava o problema da leitura

Linguagem difícil nunca foi o maior empecilho à leitura. Mário de Andrade, com seu espírito galhofeiro, disse que para se gostar de Machado de Assis é preciso já nascer velho. Eu vou mais longe: para se gostar de literatura é preciso envelhecer cedo. Por isso, o Eclesiastes diz que “o muito estudar enfado é da carne”. Em nenhuma época ou lugar, a leitura foi a mais popular das formas de lazer. A literatura é a mais reflexiva das artes e a maioria das pessoas abomina reflexão, que, para muitos, rima com depressão. Isso ocorre também com a música erudita. Quantas pessoas, ricas ou pobres, formadas ou não, tão logo se sentem tocadas por um concerto de Mozart, uma sonata de Beethoven, logo tendem a afastá-las dos ouvidos, pedindo uma “música alegre”, sob a alegação de que aquele tipo de música lhes provoca tristeza?

Creio que isso ocorre com qualquer povo, só que, no Brasil, fugir da reflexão como o diabo foge de cruz não é uma característica só das massas, mas também das elites. Uma frase de Machado de Assis talvez explique esse fenômeno: “A verdadeira ciência não é a que se incrusta para ornato, mas a que se assimila para nutrição”. Infelizmente, no Brasil, a educação nunca foi um meio de edificação intelectual e moral do indivíduo, como pregava Machado, mas um salvo-conduto para o sucesso social. Nas nações que levam a sério o conhecimento, o indivíduo primeiro busca o saber e, como consequência, conquista o diploma. No Brasil dá-se o contrário: o sujeito busca avidamente o diploma e, se sobrar tempo, vai à cata de algum conhecimento para fingir que não é de todo ignorante. Por isso, lê-se pouco no Brasil, mesmo entre a gente letrada: ler exige uma posição de sentido do espírito — que é cada vez mais rara numa nação que sempre desprezou o mérito.

Simplificar livros não resolve o problema — pelo contrário, agrava-o. Iniciativas como a de Patrícia Secco abastardam o povo brasileiro ao impedi-lo de conhecer o verdadeiro Machado de Assis, sufocado por uma montanha de 600 mil falsificações de sua obra. Nesta semana que passou, dormi menos de três horas por dia, em média, varando as madrugadas na comparação — linha por linha — da sagrada escritura de O Alienista de Machado de Assis com o apócrifo de mesmo nome da escritora Patrícia Secco. Ao cabo dessa ingente labuta (que Secco, toscamente, “traduziria” por “ao fim desse grande trabalho”), faço minha a indignação de Alcides Vilaça, professor da USP: “Apresentar como sendo de Machado de Assis uma mutilação bisonha de seu texto não devia dar cadeia?” Sim, devia dar cadeia, sobretudo para os tecnocratas do MEC que torraram mais de R$ 1 milhão dos cofres públicos nessa falsificação grosseira de Machado de Assis.

Machado de Assis para consumo próprio

Nem se pode chamar de adaptação esse trabalho de Patrícia Secco. Em sua arbitrária simplificação de O Alienista, com graves erros de interpretação de texto, a escritora-empresária embrutece o espírito do leitor ao falsear o estilo de Machado de Assis, descaracterizar seus personagens e descontextualizar sua obra. Segundo ela própria contou a Chico Felliti, da Folha, a equipe que “descomplica” o texto é formada “por um monte de gente” (expressão dela, segundo o jornalista), entre eles a própria escritora e “dois jornalistas amigos”. É como pegar pintores de parede num bar e levá-los para restaurar a Capela Sistina. O resultado não poderia ser pior. Onde Machado de Assis escreve: “Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simão Bacamarte”; Patrícia Secco traduz: “Uma curiosidade científica iluminou os olhos de Simão Bacamarte”. Além de destruir a musicalidade da frase, a troca de palavras assassina o sentido do texto: “volúpia” tem uma forte conotação sexual, imprescindível para se compreender a paixão de Bacamarte pela ciência, algo que se perde completamente com a palavra “curiosidade”. Além do mais, palavras como “volúpia” e “alumiar” não precisam de tradução: a primeira pode ser lida na Bíblia ou ouvidas em homilias católicas e pregações evangélicas e a segunda, em que pese fazer parte do repertório clássico da língua, é perfeitamente compreensível para qualquer lavrador que nunca frequentou escola, mas sabe perfeitamente o que é uma candeia alumiando.

A impressão que fica é que Patrícia Secco e sua equipe traduziram Machado de Assis para consumo próprio. Ou alguém imagina que uma pessoa esforçada o suficiente para ler um livro não vai ser capaz de compreender, com a ajuda do contexto da obra, palavras e expressões como “congregar”, “atarantado”, “estatelar-se”, “pessoa de consideração”, “déspota”, “laudas”, “demanda”, “estar em erro”, “arruaças e clamores”, “vereança”, “eloquência”, “aritméticos”, “abono”, “vestuário”, “gaiato”, “intuito”, “oficiou”, “lusitana”, “juiz-de-fora” e outras do mesmo nível? Pois todas essas palavras foram substituídas por sinônimos catados arbitrariamente no dicionário sem levar em conta o contexto da obra muito menos o estilo do autor. Analisei minuciosamente a adaptação de Patrícia Secco e hei de voltar a ela. Mas já adianto: trata-se de um caso clínico de analfabetismo funcional, digno de ser recolhido às dependências da Casa Verde de Simão Bacamarte. Em vários momentos, Secco e sua equipe não conseguem compreender o que Machado diz com sua peculiar clareza e desvirtuam completamente o original.

Machado de Assis escreve: “Simão Bacamarte começou por organizar um pessoal de administração; e aceitando essa ideia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Patrícia Secco deturpa: “Simão Bacamarte começou organizando um pessoal de administração. Convencendo o farmacêutico Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos”. Reparem no absurdo: a adaptadora transforma o alienista num subordinado do boticário, a quem precisa convencer sobre a necessidade de uma administração em seu próprio manicômio. Em outro trecho, o Padre Lopes diz: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo”. A adaptadora reescreve: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, prejudica o juízo”. Chega a ser inacreditável essa troca da popularíssima expressão “vira o juízo” por “prejudica o juízo”, um barbarismo que deve ter revirado o estômago do primeiro verme que roeu as frias carnes do defunto Brás Cubas!

Deturpando o enredo e a história

Machado conta que, como D. Evarista não conseguia ter filhos, o Dr. Simão Bacamarte “fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades italianas e alemãs, e acabou por aconselhar à mulher um regímen alimentício especial”. Entretanto, “a ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, — explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Qualquer dona de casa sem nenhum estudo compreende que D. Evarista, por amor à saborosa carne de porco de Itaguaí, não quis fazer a dieta proposta pelo marido e, por isso, não conseguiu ter filhos. Agora vejam a versão analfabeto-funcional de Patrícia Secco: “[Simão Bacamarte] acabou por indicar à mulher um regime alimentício especial. A ilustre dama, que deveria se alimentar exclusivamente com a carne de porco de Itaguaí, não atendeu aos conselhos do esposo. E, à sua teimosia — explicável, mas inqualificável — devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes”. Ela simplesmente está dizendo que o alienista receitou uma dieta de carne de porco à esposa, quando foi o contrário.

Mais adiante, quando descreve a revolta dos Canjicas contra a Casa Verde, Machado de Assis narra: “Os dragões pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. Patrícia Secco estropia o texto: “Os soldados pararam, o capitão intimou à multidão que se dispersasse. Mas, enquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte apoiou fortemente o barbeiro”. A adaptadora não faz ideia da conjunção “conquanto” e, em vez de recorrer a “embora”, a traduz por “enquanto”, transformado Machado em analfabeto. No mesmo episódio, o escritor diz que o capitão dos “dragões” mandou “carregar contra os Canjicas”. Patrícia Secco traduz “carregar” (que, no contexto, significa “investir contra”) por “disparar”, sem perceber que os dragões — como os “Dragões da Independência” de hoje — usavam espadas e não armas de fogo. Com isso, o leitor de sua adaptação vai achar que Machado de Assis fazia realismo mágico: uma tropa mete fogo na multidão e essa multidão arrosta as balas, sem medo da morte.

Uma das admiráveis qualidades do conto O Alienista é o cuidado com que a história aparece nele. Machado de Assis preocupa-se com os mínimos detalhes históricos e escreve que Simão Bacamarte era “o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”. Patrícia Secco corrige para “Espanha”, sem fazer a menor ideia de que, na época colonial em que se passa a história, a Espanha era oficialmente chamada de “Reino das Espanhas”. Em outro trecho, Machado diz que, para D. Evarista, ver o Rio de Janeiro “equivalia ao sonho do hebreu cativo”, sintetizando nessa expressão a sensação de exílio e confinamento que a acanhada Itaguaí produzia no espírito frívolo da mulher de Bacamarte. Patrícia Secco estraga a imagem, substituindo “hebreu cativo” por “judeu cativo”. Ela confunde os hebreus que se tornaram escravos no Egito e foram libertados por Moisés com os filhos da tribo de Judá que, já na terra prometida de Canaã, séculos depois, emprestariam o nome de sua tribo para todo o povo eleito. Se ao citar Dante, Machado tivesse dito, com precisão histórica, “poeta florentino”, não tenho dúvida de que Patrícia Secco iria corrigir para “poeta italiano”. Aliás, numa das raras e lacônicas notas de rodapé, a adaptadora faz isso: ela diz que Averrois é um filósofo e poeta “hispano-árabe”. É o mesmo que chamar Santo Agostinho de filósofo romano-argelino.

Por que Patrícia Secco e sua equipe cometem essa profusão de erros de extrema gravidade ao adaptar o conto de Machado de Assis? Sem dúvida, porque não estão à altura da tarefa. No fundo, a escritora e seus amigos jornalistas, a cada vez que buscam um sinônimo para um termo ou expressão do conto, estão traduzindo a obra para eles próprios e não para o eletricista, o faxineiro, o motorista de táxi, que precisam menos do que eles dessa facilitação. Para se ter uma ideia do quanto é absurda essa adaptação, Machado empregou o termo “transeuntes” e a adaptadora achou por bem substituí-lo pela expressão “os que por ali passavam”. Imagino Patrícia Secco ouvindo uma rádio AM do interior na década de 70, quando o Brasil era muito menos escolarizado do que hoje. Ela ficaria pasmada (ou “espantada” conforme sua tradução de Machado) ao se dar conta de que um dos grandes sucessos de Tonico & Tinoco, dedicado por peões de fazenda às suas respectivas namoradas, era a canção O Gondoleiro do Amor, um poema de Castro Alves, cantado pela dupla caipira ao som de violinos. Saudosos tempos em que uma dupla de lavradores elevava o povo até Castro Alves; hoje, gente como Patrícia Secco faz é rebaixar o povo quando dá a ele um Machado de Assis no nível de si mesma.

Por: José Maria e Silva Publicado no Jornal Opção de Goiânia

DA INUTILIDADE DOS CURSOS DE LETRAS*

Um mal-estar perpassa os cursos de Ciências Humanas neste final de século. É como se as vagas concêntricas provocadas pela queda do Muro de Berlim começassem a fazer submergir, em ondas tardias, o apoio logístico que a universidade sempre emprestou ao marxismo. Durante décadas, nos cursos mais alinhados com o finado "sentido da História", ai do candidato a mestre ou doutor que não citasse em suas pesquisas Marx ou epígonos menores.

Se hoje marxismo não passa de verbete de enciclopédias, para esclarecimento dos mais jovens, até quatro ou cinco anos atrás a "filosofia da praxis" era tida como ciência. Todas as áreas humanísticas da universidade, de Letras a História, passando pela Filosofia e Sociologia, foram contaminadas pela peste. No caso específico da Sociologia, estávamos ante um laboratório de utopias.

Os acadêmicos brasileiros parecem ter adotado a receita de José Carlos Mariátegui que, em 1928, em Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana, via a universidade como uma máquina de demolição da sociedade burguesa, uma instituição destinada a formar ativistas e militantes. Com o fim da URSS, as ditas Ciências Humanas perdem seu eixo. A história não era ciência, o marxismo muito menos. Cursos, cátedras, metodologias, teses, bibliografias, bibliotecas, perdem o sentido. Em outras palavras, os próprios professores, antes firmemente ancorados nas certezas da dialética, perdem o pé e soçobram neste maremoto. Em um século em que mesmo - e principalmente - a literatura foi contaminada pela ideologia, os cursos de Letras não permaneceriam ao abrigo da intempérie.

O Circo das Letras - Uma lufada deste mal-estar de fin de siècle parece ter atingido o professor Flávio Loureiro Chaves. Em entrevista para Porto e Vírgula, desvelou um segredo de polichinelo ao afirmar que "a área de Letras está morta". Por um lado está cheio de razão e ao mesmo tempo não tem razão alguma. Se sua afirmação acabasse aqui, englobando os cursos de Letras do país todo e do estrangeiro, eu seria o último dos escribas a contraditá-lo. Mas sua afirmação é tímida. Se restringe ao Curso de Letras da UFRGS, onde trabalhou durante 30 anos. Ou seja, onde colaborou por três décadas para levar o curso à condição de área morta. Agora, protegido pelo escudo da aposentadoria, dispara sua artilharia contra seus pares.

O professor vai mais longe ao falar do curso que o nutriu e embalou: "é uma área caracterizada por sua absoluta inutilidade social". No que não lhe falta razão. Se o programa nuclear brasileiro se revelou um projeto inútil, de qualquer ponto de vista que se olhe, que dizer dos currículos de um curso de Letras? Mas nosso crítico peca mais uma vez ao restringir sua crítica ao curso da UFRGS, como se o da USP, onde se doutorou, tivesse alguma outra utilidade social fora a de garantir-lhe uma prebenda melhor remunerada na província.

Se os cursos de Letras um dia forem encerrados, só serão pranteados pelos professores que deles tiram seu sustento e mordomias, pelo mundo editorial e agências de turismo que os parasitam. Nenhum estudante precisa freqüentá-los para conhecer literatura. Pelo contrário, é melhor deles tomar distância, assim será poupado de carradas de leituras absolutamente chatas, que só servem para afastar um jovem dos bons autores.

Esta inutilidade do curso cujas mordomias usufruiu por trinta anos foi muito bem percebida por Loureiro Chaves quando afirma que homens como Erico Verissimo, Maurício Rosenblatt e Paulo Fontoura Gastal, que não pertenciam à academia, lhe ensinaram mais que o curso de Letras inteiro. Precisou de três décadas para perceber isto? Ou preferiu aposentar-se para afirmá-lo? Se lhe sobra razão em sua constatação, faltou-lhe a coragem de dizê-lo em alto e bom som quando militava nos quadros da guilda.

Quantas vezes Loureiro Chaves participou, de um lado e de outro da banca - ora como réu, ora como inquisidor - dessa farsa que se chama tese? Quantas vezes participou dessa outra farsa, o concurso para o magistério, em verdade uma ação entre amigos, com cartas previamente marcadas?

De quantos espetáculos circenses, chamados simpósios ou congressos, participou o professor Loureiro Chaves? São absolutamente inúteis do ponto de vista social, custam fortunas, e as viagens, hotéis e mordomias outras são pagas, em última instância, pelo contribuinte. Passo Fundo parece ter entendido o espírito da coisa, tanto que costuma organizar o Circo das Letras. Neste circo universal, cujas sessões ocorrem tanto em Florianópolis ou São Paulo, como em Paris ou Londres, acodem professores de todos os quadrantes para desfilar suas vaidades e acrescentar seus ensaiozinhos recitados a uma platéia adormecida a seus currículos chochos.

Quando estudava em Paris, tive oportunidade de testemunhar uma dessas sessões de circo. Vi professoras transportadas de Brasília ou São Paulo a Paris - com dinheiro público, evidentemente - para apresentar uma comunicação anódina de vinte minutos, que ninguém estava interessado em ouvir. Imagine-se, por exemplo, o absurdo de uma professora deslocando-se de Porto Alegre a Tóquio, para uma exposição crucial sobre... Literatura Comparada. Mas a comunicação fica nos anais do simpósio, no currículo da professora e nos créditos do curso. Maravilha de país o nosso: crianças morrendo de fome nas ruas e a universidade pública financiando viagens transoceânicas para comunicações literárias - certamente de importância vital para o futuro do continente - de vinte minutos lá nas antípodas. 

Claro que em Passo Fundo a entrada para o circo é mais barata. Mas o show, salvo o fato de ser em português, em nada difere do exibido em Paris. Mas não era disso que pretendia falar.

A quem aproveita o crime? - Para algo hão de servir os cursos de Letras, já que estão disseminados mundo afora e parecem gozar de boa saúde. Bens materiais não produzem, é claro. Espirituais, muitos menos. Aliás, vivem da exploração destes mesmos bens, produzidos por criadores que, muitas vezes, morreram ou vivem na miséria. Para que serve então um curso de Letras? 

Em primeiro lugar, para dar bom padrão de vida aos professores de Letras. Que outra profissão oferece quatro meses de férias ao ano, isso sem falar nas greves? Não será fácil achar melhor mordomia numa sociedade que se pretende capitalista. Uma vez aceito pela corporação, o professor tem estabilidade e escapa deste cruel mundo competitivo. Isso sem falar em férias vendidas em períodos de recesso universitário, turismo acadêmico, muita viagem ao exterior, tudo isso pago pelo contribuinte, é claro. Não que estas mumunhas sejam exclusivas dos cursos de Letras. Mas a eles são extensivas.

Em segundo lugar, para manter a boa saúde da indústria textil. Textil, assim mesmo, sem circunflexo. Não confundir com a têxtil, esta é honesta e necessária. Por indústria textil, entenda-se a do texto universitário, essa fábrica de teses e pesquisas inúteis, que às vezes envergonham o próprio autor e são guardadas como segredo de Estado. Isso sem falar na fantástica máquina editorial acionada pelos cursos de Letras. Ela dá vida a autores de ficção que de outra forma jamais seriam publicados e a teóricos que ninguém leria a não ser sob coação.

Se nos primórdios da universidade o livro era um instrumento da vida acadêmica, hoje a universidade se tornou um instrumento do mundo editorial. Se um dia os cursos de Letras fechassem suas portas, nenhum editor seria suficientemente insano para publicar esses elefantes brancos tipo Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, etc. Dou um doce para quem me apresentar um jovem que, espontaneamente, compre um livro qualquer desses autores. Eles só existem porque são empurrados goela abaixo por exigências de vestibular e programas acadêmicos.

Depois, a indústria editorial dos teóricos. Nenhum leitor mentalmente sadio compraria autores como Greimas, Kristeva, Lacan ou Saussure. Forçado pelos professores, principalmente na pós-graduação, o coitado do aluno tem de gastar parte de sua bolsa adquirindo essas enfermidades gálicas. Aqui, de cambulhada, ganham também todos os participantes do ciclo do livro: gráficos, distribuidores, livreiros, etc.

Em terceiro lugar, não esqueçamos os interesses do turismo. Em Florianópolis, para facilitar o "intercâmbio" acadêmico, uma agência se instalou no prédio da própria reitoria. Cada congresso de Literatura Comparada ou Semiótica em Tóquio, Helsinki ou Amsterdã é uma festa para a indústria do turismo. Ganham as agências, as companhias aéreas, a indústria hoteleira, a restauração local, afinal literatura e gastronomia sempre constituíram boa parceria.

Ora, direis, os cursos de Letras formam professores de português. Cantiga para ninar pardais, como dizem os lusos. A formação de professores de português não exige curso superior. Vi quartanistas de Letras escrevendo "eu poço" por "eu posso" e outras analfabetices do gênero. Minha mãe, que só fez o secundário em Dom Pedrito, tinha uma redação impecável, de fazer inveja a muito jornalista egresso dos cursos de Comunicações. Aliás, de minha passagem pelo magistério universitário, cheguei a uma desoladora conclusão: a formação que tive em meus quatro anos de ginásio, lá naquela cidadezinha da Fronteira Oeste gaúcha, que mal tinha na época vinte mil habitantes, nenhum diplomado em Letras a tem hoje. Saí de lá falando espanhol, francês e inglês, arranhando um bom latim e escrevendo um português do qual até hoje não tenho porque envergonhar-me. Em meus dias de UFSC, raros eram meus alunos de final de curso que conseguiam escrever em vernáculo não digo elegante, mas pelo menos correto.

Pode-se alegar que os cursos de Letras formam tradutores e intérpretes. Bobagem. Quem quer realmente especializar-se nestes ofícios, vai para o exterior ou busca cursos privados. Sem falar que os grandes tradutores que Porto Alegre produziu, como Erico Verissimo, Mário Quintana, Herbert Caro, jamais passaram por um curso de Letras. Permito-me um testemunho pessoal. Já traduzi vinte títulos, do sueco, francês e espanhol, sem jamais ter passado por um curso de tradução.

A encampação da tradução pela universidade é muito suspeita. Ao que tudo indica, a guilda quer regulamentar a profissão, crime de lesa-cultura que já cometeram contra o jornalismo. Quanto aos cursos de línguas fornecidos pela universidade, estes jamais levaram a qualquer lugar. Nestes dias de CDs-ROM, professor de línguas virou peça de museu. Professor que ainda não percebeu isso, em breve será mais um desses tantos malucos que andam falando sozinho nas ruas. Com a diferença de que será bem pago para falar para quatro paredes.

Muitos outros setores ganham com esta indústria do inútil. Quem então sai perdendo? No caso das universidades públicas, em primeiro lugar o contribuinte, que ignora a festança que estão fazendo com seu dinheiro. Tudo em nome dos sagrados interesses da cultura, é claro. Em segundo lugar, o estudante de Letras. Caso não encontre colocação no escalões inferiores da Máfia, terá perdido preciosos anos de sua juventude, percorrendo currículos absurdos, teorias estapafúrdias e literaturas insossas. Quando poderia ter-se dedicado a estudar algo mais concreto, que lhe garantisse profissão decente, reservando seu lazer para um estudo sério da boa literatura. Por experiência, tanto de rua como de campus, sei que é muito mais fácil encontrar uma pessoa com boa cultura literária em um bar do que nos cursos de Letras. 

Sobre meu desencanto - Meu depoimento carrega o desencanto de quem perdeu boa parte de sua vida navegando pelas tais de Ciências Humanas. Estudei Filosofia na UFRGS, de 1965 a 1968. Discutimos, durante quatro anos, essa bosta de religião laica, o marxismo. Ou seja, foram quatro anos jogados ao vento. De minha passagem pela Filosofia me restou um ensinamento, o de que as diferentes visões de mundo se atropelam e se anulam com a passagem dos séculos. E só. Foi importante, eliminou em mim qualquer tentação de dogmatismo. Mas para chegar a essa conclusão, não precisava ficar com o traseiro pregado na universidade por quatro anos. Boas leituras de história me bastariam. Fiz também o curso de Direito em Santa Maria. Mais cinco anos jogados ao lixo. Optei pelo jornalismo, em época em que não existia esta excrescência criada pela ditadura militar, os cursos de jornalismo. Desta opção não me arrependo, embora o jornalismo hoje seja mais ficção que tradução dos fatos. Mas não o aprendi na universidade. Em jornalismo, me formei nos bares e redações. Universidade não forma ninguém em jornalismo. É outro curso inútil: o professor de comunicações, que muitas vezes jamais pisou numa redação, ganha muito mais que o redator ou repórter que sofre a profissão. Sem falar que goza de estabilidade no emprego, sonho que jornalista algum ousa sonhar na empresa privada.

Viajei pelo mundo das Letras. Durante quatro anos, estudei Letras Francesas e Comparadas, na Université de la Sorbonne Nouvelle, em Paris. Só não foram mais quatro anos jogados ao vento porque o que menos fiz foi estudar literatura. Dediquei-me a pesquisar Paris, a França e a história deste século. De meus professores de literatura, de meu curso, não recebi nada, mas nada mesmo. Tive um professor de poesia francesa contemporânea que se chamava M. Décaudin. Eu vivia mordendo a língua para não incorrer em um ato falho e chamá-lo de M. Décadent. Tinha um projeto de tese em torno à literatura de Ernesto Sábato. Levei-o a bom termo por respeito a Sábato e ao Ministério de Cultura francês, que me concedera uma bolsa. Defendi minha tese, fui ator bem comportado durante toda a encenação. Mas tinha perfeita consciência de que tudo era farsa.

Para que serviu minha tese? Para mim, garantiu quatro anos de Paris. Para meu orientador, abriu novos rumos em suas pesquisas. Mas e daí? Para Sábato, foi mais um título em sua fortuna literária. E só. Meu país não se tornou mais rico com minhas pesquisas, nem econômica nem espiritualmente. Muito menos a França ou a Argentina. Do ponto de vista da construção de uma sociedade, minha tese é uma peça perfeitamente inútil, descartável. Como aliás todas as teses literárias. Outra coisa é uma pesquisa sobre uma proteína mais barata, sobre uma vacina mais urgente, sobre um chip mais rápido. Estima-se em torno de 100 mil dólares ao ano a formação de um doutor. Logo, a França terá gastado uns 400 mil comigo. De minha parte, muito honrado. Mas para quê? Se analisarmos a questão a fundo, para nada.

Lecionei mais tarde Literatura Brasileira e Comparada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, nos cursos de graduação e pós-graduação em Letras. Para isso também serviu minha tese, para dar-me de comer e beber por mais quatro anos. Foi o período mais inútil de minha vida, que só me rendeu uma hipertensão. Cingido a obrigações curriculares, tive de digredir sobre esse suposto movimento literário, o modernismo brasileiro, no fundo uma ficção criada pelos PhDeuses uspianos. Lecionava para alunos que só queriam um papelucho ao final do curso para aumentar seus proventos na função pública.

Durante quatro anos fui pago para realizar um trabalho rumo a nada. Como eram, são e continuam sendo pagos, para marchar na mesma direção, as dezenas de colegas que tive no colegiado e os milhares de professores de Letras do país todo.

Puta velha - Quem presta este depoimento não é portanto uma virgenzinha que olha espantada para a realidade de um bordel, mas uma puta velha que muito girou bolsinha nos corredores universitários. Se vejo as defesas de tese e concursos como farsas, é porque também participei delas e por isso sei do que estou falando.

Dezenas de professores foram, são e serão enviados ao exterior para mestrados e doutorados. Muitos cumprem seus compromissos. Mas não poucos voltam de mãos abanando e tudo fica por isso mesmo. No caso do curso de Letras, observei que os candidatos a bolsas no exterior eram, em sua quase totalidade, moças mal-amadas, em geral solteiras ou divorciadas, que partiam em busca de maridos ou similares. Ao final de alguns anos, as mal-baisées voltavam sem tese nem marido. Não sei se o mesmo fenômeno ocorrerá na UFRGS. Mas deveria ser capitulado como crime, na legislação sobre a função pública, usar dinheiro do contribuinte para fazer turismo sexual às margens do Sena ou do Tâmisa. 

Quanto à crítica mais radical, que agora faço, me permito citar Chesterton: "só podemos conhecer uma catedral quando a olhamos de fora". O absurdo do ritmo de tartaruga dos cursos da área humanística me saltaram com força aos olhos quando passei a trabalhar com jornalismo eletrônico em São Paulo. A pesquisa que um professor achava difícil cumprir em cinco meses, um redator da Folha de São Paulo, por exemplo, tem de executá-la em cinco horas. E sem direito a errar.

Essa passagem da empresa pública para a privada, do emprego eterno para aquele sob a ameaça diária de um pontapé no traseiro, permite o contraste que evidencia o obsoletismo e a inutilidade de um curso de Letras. Se um professor de uma universidade pública fica quatro, cinco ou dez anos no estrangeiro para defender uma tese e volta de mãos vazias, nada acontece com ele. Não devolve o dinheiro público que lá despendeu nem perde seu emprego. Se um jornalista interpreta mal a declaração de um político - ou pior, se a interpreta com clareza excessiva - no dia seguinte pode estar no olho da rua.

O leitão e o cocho - Resumindo: os cursos de Letras constituem uma máquina autofágica, que se alimenta de si mesma. Professores de Letras formam professores de Letras que formarão professores de Letras, ad nauseam. Se a bicicleta pára, o ciclista cai. Loureiro Chaves ouviu o galo cantar, só não soube dizer onde. Intuiu a inutilidade dos cursos de Letras. Em um gesto de auto-defesa, excluiu a si mesmo do projeto do qual participou durante trinta anos. Foi cúmplice de todos os atos e fatos que levaram o curso a ser área morta. Agora acusa seus pares, como se suas mãos fossem imaculadas.

Se levar a crítica mais a fundo, terá de constatar a inutilidade de seus ensaios, de sua carreira, de sua tese, de sua vida, tão socialmente improdutiva quanto o curso que critica. Se o curso de Letras da UFRGS se caracteriza, nas palavras do professor, por sua “absoluta inutilidade social”, o mesmo pode se dizer de sua obra. Por que não estender, reitero, esta crítica à USP? Qual a utilidade social do curso de Letras da USP? A meu ver, a mesma de qualquer curso de Letras. Isto é, nenhuma.

Em meus dias de campo, tínhamos uma expressão para tal tipo de comportamento. Era o gesto do leitão mal-educado, que costumava virar o cocho onde comia. 

* Texto escrito nos estertores do século passado
Por: Janer Cristaldo Do site: http://cristaldo.blogspot.com.br/


quarta-feira, 18 de junho de 2014

SOBRE AS REFORMAS "NEOLIBERAIS" NA AMÉRICA LATINA E POR QUE ELAS FRACASSARAM

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Imagine que um grupo de vizinhos em seu bairro — que foram eleitos ou que se auto-elegeram governantes — decidem que ninguém, exceto eles, pode fornecer serviços de segurança e de resolução de contendas judiciais. 

E não apenas isso: além de estipularem e imporem taxas para custear gastos com iluminação, ruas e manutenção de todas as instalações e infraestruturas com as quais já nos acostumamos, suponha também que comecem a cobrar uma porcentagem do salário dos solteiros para pagar pela educação de quem tem filhos, uma porcentagem dos salários dos que têm um estilo de vida saudável para custear a saúde de quem quiser tais serviços gratuitamente, uma porcentagem do salário de todos para criar programas de fomento à cultura e para conceder empréstimos subsidiados a determinadas empresas, a criar empregos na administração do bairro para seus militantes — novamente, à custa de todos os vizinhos —, e a controlar toda uma série de elementos da própria vida das famílias.

Não é necessária muita imaginação para se criar novas justificativas para que o estado continue tomando dinheiro das pessoas com o intuito de financiar novos programas. E foi exatamente nisso que o estado se transformou para os latino-americanos ao longo das últimas gerações. Na maioria dos países do continente, já no final da década de 1970, o estado era eletricista, encanador, engenheiro, médico, professor, conselheiro matrimonial e familiar, e, acima de tudo, uma casa de beneficência.

Apesar deste diagnóstico agora evidente, e do fato de que o famoso (infame para a esquerda) Consenso de Washington se apresentou como sendo a cura para todos os males do continente, os resultados deixaram muito a desejar. Tanto é que os ungidos do populismo e do coletivismo estão — em termos eleitorais — mais fortes do nunca na região, justamente pelo fato de denunciarem diariamente as consequências das reformas impostas pelo Consenso. 

No entanto, se supostamente o final da década de 1980 e toda a década de 1990 trouxeram uma onda maciça de privatizações, desregulamentações e aparentes aberturas comerciais, o que foi que falhou? Será que os ungidos de fato têm razão ao afirmar que o "neoliberalismo" é intrinsecamente incapaz de gerara prosperidade geral? 

Voltemos à analogia do início do artigo. O que ocorrerá se os governantes — que mudaram apenas de rosto, mas não práticas políticas — decidirem abandonar muitas das atividades que até então efetuavam? Voltaremos ipso facto a uma situação natural? De jeito nenhum. O grupo de governantes pode, mediante a concessão de algumas atividades para grupos privados, tornar mais "eficiente" uma série de atividades; mas nós, os vizinhos, ainda não sentimos que somos donos de nossas vidas. O grupo de governantes pode ter deixado de efetuar determinadas atividades, mas ele ainda não permite que possamos efetuá-las. Apenas um pequeno grupo, selecionado a dedo pelos governantes, podem efetuar estas atividades. Os governantes ainda mantêm e impingem leis que ditam como e até que ponto tais atividades podem ser efetuadas. 

Ainda não somos donos de nossas vidas. No máximo, os governantes nos permitem determinadas iniciativas em nosso bairro, mas apenas com sua prévia permissão e somente sob sua supervisão técnica. De novo, não recuperamos realmente nada.

O problema com as reformas da década de 1990 é exatamente este. Para começar, não houve nenhuma genuína desestatização, mas sim apenas concessões de monopólios estatais para monopólios privados, arranjo esse que não permite nenhuma concorrência. Não há livre concorrência nos grandes setores econômicos da América Latina.

Desde a divisão de Buenos Aires em duas zonas, cada qual tendo apenas uma empresa telefônica monopolista, passando pela criação de várias agências reguladoras no Brasil que têm o intuito de cartelizar o mercado e proteger grandes empresas da concorrência externa, permitindo que pratiquem preços altos e mantenham serviços de baixa qualidade, chegando ao Ejido mexicano, que mantém o estado como proprietário de terras para uso agrícola coletivo (tendo o estado o poder de tomar terras privadas), e culminando nos sistemas de "seguridade social" em que o estado "poupa por nós" para nos proteger em nossa velhice, não há absolutamente nenhuma forma de liberalismo (não existe um prefixo "neo") no continente. Há apenas o velho e absoluto mercantilismo.

Ou seja, o remédio ministrado é somente um pouco melhor do que a própria enfermidade. Se tínhamos um estado obeso e empresário, agora temos um estado obeso que se sente um pouco menos empresário, mas que, por sua obesidade, confisca e monopoliza os recursos com os quais poderíamos ser nós mesmos os empresários. O estado nos mantém regulados, supervisionados, concessionados (o monopólio se mantém, embora a qualidade do serviço possa aumentar notavelmente em uma concessão), desprovidos, sobre-tributados e monopolizados juridicamente. E estes dois últimos fatores, embora sejam os menos notados e discutidos, são os mais importantes para o crescimento econômico.

Têm toda a razão aqueles que dizem que Austrália, Nova Zelândia, Estônia ou até mesmo Hong Kong e Cingapura não são sistemas liberais puros, mas ainda assim são as estrelas mundiais em termos de crescimento e prosperidade para seus habitantes. Da mesma maneira, países já ricos e, consequentemente, de crescimento baixo, como Dinamarca, Suécia, França, Itália, Canadá e Alemanha também não são puramente liberais. Mas há algo que todos eles têm em comum, algo que é o segredo, o requisito sine qua non do progresso: segurança jurídica para a propriedade e para os contratos voluntários. 

Eles têm isso há muito tempo; nós nunca tivemos.

Por que esse é o diferencial? Nada mais pode explicar por que 80% do fluxo de investimentos estrangeiros ocorrem entre os próprios países desenvolvidos quando se sabe que uma empresa como a Microsoft pagou 8% de dividendos a seus acionistas nos últimos anos ao mesmo tempo em que empresas bem-sucedidas no Equador pagaram 25%. Sendo assim, o capital estrangeiro não deveria estar chovendo sobre os países latino-americanos, onde os investimentos geram maiores taxas de retorno? Infelizmente não. Se um país da América Latina permite que você mantenha 60% do lucro gerado por uma empresa ao passo que na Dinamarca esse percentual é de apenas 40%, por que ainda assim a Dinamarca continuará sendo um destino preferencial para os investimentos? Porque a Dinamarca possui um sistema tradicional e reconhecidamente eficaz de proteção à propriedade, aos contratos e às decisões judiciais.

Isso significa que, na América Latina, o investidor pode até ter mais dinheiro após impostos, mas existem mais possibilidades de trapaças e de estelionatos por parte de um sócio local, mais conflitos trabalhistas, mais incerteza jurídica, maiores possibilidades de calotes serem protegidos pelo judiciário, e mais vários outros elementos que desmotivam empreendedores a fazer investimentos e a aplicar seu capital em nosso território. É por isso que os reinvestimentos são um ato de heroísmo, e que a repatriação de lucros se torna um ato mais racional e seguro.

Mas o assunto não termina aí. Hernando de Soto, em sua obra El Misterio del Capital, calcula que 80% da propriedade nos países em desenvolvimento está totalmente na informalidade. Ou seja, há dezenas de milhões de famílias em nosso continente que simplesmente não podem utilizar sua propriedade como garantia para a obtenção de crédito, com o qual poderiam abrir pequenas empresas, fornecer empregos e, de forma geral, se integrar ao sistema produtivo. Se a casa ou o terreno de uma família pobre não são formalmente seus, como no caso das favelas brasileiras, não há nenhuma medida de abertura econômica, de privatizações ou de ortodoxia fiscal e monetária que possam compensar tudo isso. Caso essas pessoas pudessem usufruir um título de propriedade, elas imediatamente começarão a usá-los como colateral ou a transacioná-los, aumentando sobejamente sua renda, sua riqueza e seu padrão de vida.

O atual arranjo faz com que, literalmente, a classe baixa e até mesmo boa parte da classe média sejam meras espectadoras do processo econômico. E os governantes sabem como capitalizar esta situação denunciando-a como sendo uma exclusão social. Eles estão corretos nesta percepção — embora tenham sido eles próprios que criaram esta situação —, mas estão errados ao proporem que a solução está na inclusão política ("vamos decidir o rumo do país em assembléias populares").

A resposta, sob o prisma da mentalidade empreendedorial, deve ser distinta e clara: sim, o mercantilismo é excludente, mas podemos caminhar em direção ao liberalismo caso massifiquemos o acesso à propriedade (com títulos e registros de propriedade para todos), tornemos o sistema judiciário mais rápido e confiável (arbitragens privadas são um ótimo começo), e aumentemos a segurança (com o policiamento privado liberado).

Em outras palavras, a liberdade econômica começa pela propriedade privada, pelo respeito aos contratos, e por um sistema judiciário confiável e eficiente. São secundárias, porém de suma importância, questões como impostos, as tarifas e as regulamentações. 

Uma economia livre é uma economia de proprietários, e não uma economia de proletários.


Por: Juan Fernando Carpio mora em Quito, Equador, possui mestrado em Economia Empreendedorial pela Universidad Francisco Marroquin, da Guatemala e é o presidente do Instituto para la Libertad, um think tank libertário equatoriano.

terça-feira, 17 de junho de 2014

PENSAR ESTÁ SE TORNANDO ALGO OBSOLETO

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Embora seja humanamente impossível responder a todos os e-mails e cartas que os leitores me enviam, muitos deles são bastante interessantes e intelectualmente instigantes, tanto no sentido positivo quanto no sentido negativo.

Por exemplo, um jovem me enviou um e-mail pedindo as fontes em que eu havia me baseado para citar alguns fatos negativos sobre o desarmamento em um artigo recente. É sempre bom checar os fatos — especialmente se você checar os fatos de ambos os lados da questão. 

Em contraste, um outro sujeito simplesmente me criticou por tudo o que eu havia dito nesse artigo. Ele não pediu as minhas fontes e nem quis saber se elas existiam; ele simplesmente saiu fazendo afirmações em contrário, como se essas suas assertivas fossem automaticamente corretas pelo simples fato de estarem sendo pronunciadas por ele, algo que, em sua mente, invalidaria automaticamente tudo o que eu havia escrito.

Ele se identificou como médico, e as alegações que ele fez sobre armas eram as mesmas que haviam sido feitas anos atrás em uma revista médica — alegações que já foram inteiramente desacreditadas desde sua publicação. Ele poderia ter aprendido isso caso houvesse me dado a oportunidade de responder às suas provocações, de um modo que nos engajássemos em um debate. Porém, ele próprio deixou claro desde o início que sua carta não tinha o objetivo de gerar um debate, mas sim apenas de me acusar e me denunciar. 

Esse tipo de comportamento se tornou um procedimento padrão no mundo atual.

É sempre surpreendente — e apavorante — constatar quantos assuntos extremamente sérios não são discutidos seriamente hoje em dia; as pessoas simplesmente saem emitindo afirmativas e contra-afirmativas, tudo de maneira generalizada. Seja em debates de internet ou até mesmo em programas de televisão, as pessoas simplesmente tentam calar seu opositor falando mais alto do que ele ou simplesmente recorrendo a frases de efeito de cunho emotivo.

Há inúmeras maneiras de fazer parecer que se está argumentando sem que na realidade se esteja produzindo absolutamente nenhum argumento coerente.

Décadas de educação escolar e universitária simplificada — para não dizer idiotizante — certamente têm algo a ver com a atual situação, mas isso não explica tudo. A educação não somente foi negligenciada no sistema educacional atual, como também já foi quase que completamente substituída pela doutrinação ideológica. A doutrinação que hoje é feita por professores e instituições supostamente educacionais é amplamente baseada na simples vocalização das mesmas pressuposições básicas e não-comprovadas de sempre.

Se as instituições educacionais de hoje — desde escolas a universidades — estivessem tão interessadas em diversidade de ideias quanto estão obcecadas com diversidade racial e sexual, os estudantes ao menos adquiririam experiência ao ver as pressuposições que existem por trás de diferentes visões, e entenderiam a função da lógica e da evidência ao debaterem tais diferenças. No entanto, a realidade é que um estudante pode passar por todo o seu ciclo educacional, desde o jardim de infância até seu doutoramento, sem entrar em contato com absolutamente nenhuma visão de mundo que seja fundamentalmente diferente daquela que prevalece dentro do espectro de opiniões autorizadas e politicamente corretas que domina o nosso sistema educacional.

No que mais, a perspectiva moral da visão ideológica predominante é completamente maniqueísta: as pessoas imbuídas dessas ideias realmente se veem como anjos combatendo todas as forças do mal — seja o assunto em questão o desarmamento, o ambientalismo, o racismo, o homossexualismo, o feminismo ou qualquer outro ismo.

Um monopólio moral é a antítese de um livre mercado de ideias. Um indicativo desta noção de monopólio moral dentre a intelligentsia esquerdista é o fato de que as instituições que estão majoritariamente sob seu controle — escolas, faculdades e universidades — são justamente aqueles que usufruem muito menos liberdade de expressão do que o resto da sociedade.

Por exemplo, ao passo que a defesa e até mesmo a promoção da homossexualidade é comum nos campi universitários — e comparecer a palestras e aulas que fazem tal promoção é frequentemente algo obrigatório nos cursos introdutórios —, qualquer crítica ao comportamento homossexual é imediatamente rotulada de "reacionarismo", "preconceito" e "incitação ao ódio", sujeita a imediata punição.

Enquanto porta-vozes de vários grupos raciais e étnicos são livres para denunciar com veemência "os brancos" por seus pecados passados e presentes, verdadeiros ou imaginários, qualquer estudante branco que similarmente venha a denunciar as transgressões ou os desvarios de grupos não-brancos garantidamente será punido, se não expulso.

Até mesmo estudantes que não defendem ou não promovem absolutamente nada podem ter de pagar um preço caso não concordem com a lavagem cerebral que ocorre nas salas de aula. Recentemente, nos EUA, um aluno da Florida Atlantic University que se recusou a pisotear um papel em que estava escrito a palavra "Jesus", a mando de seu professor, foi suspenso pela universidade. Felizmente, a história veio a público e gerou uma onda de protestos fora do mundo acadêmico.

A atitude deste professor pode ser descartada e ignorada como sendo um caso isolado de extremismo, mas o fato é que o establishment universitário saiu solidamente em sua defesa e atacou implacavelmente o estudante. Tal atitude mostra que a podridão moral que impera na academia vai muito mais além do que um simples professor adepto da doutrinação e da lavagem cerebral.

Estamos hoje vivenciando todo o esplendor do anti-intelectualismo que se espalhou por metástase ao longo de todo o mundo acadêmico. As universidades se tornaram tão dominadas por uma insistência na inviolabilidade de um determinado pensamento grupal, que qualquer professor "forasteiro", que não compactue com a predominância deste pensamento gregário, não mais pode falar a respeito de um determinado assunto sem antes ter sido devidamente credenciado por seus pares. Uma simples pesquisa sobre o tratamento dispensado a acadêmicos que ousam questionar a santidade do aquecimento global mostra bem esse ponto.

Já houve uma época em que um curso universitário era considerado um meio de introduzir as pessoas a uma ampla gama de assuntos que lhes permitiria pensar e falar inteligentemente sobre várias questões que estivessem afetando suas vidas. O pensamento coletivista — que hoje é predominante no meio universitário — rejeita tal ideia, conferindo o monopólio de determinadas questões apenas àquelas pessoas que são reconhecidas como "especialistas" por seus pares.

Este método educacional que recorre à intimidação e à simples repetição de frases de efeito de cunho emocional evidencia a completa falência do sistema educacional. Se professores universitários — teoricamente a nata intelectual da sociedade, pessoas que por vocação e profissão deveriam ser as mais rígidas seguidoras do rigor intelectual — agem assim, como podemos esperar que o restante da população apresente discernimentos mais profundos? 

Para sobreviver e progredir, seres humanos precisam saber pensar. Porém, estamos cada vez mais terceirizando esta função para acadêmicos, que por sua vez pautam o conteúdo da mídia. Tal terceirização de pensamento ajuda a explicar por que há hoje uma escassez de pensamentos originais e significativos. 

O fracasso do sistema educacional vai muito além da ausência de um aprendizado útil. O real fracasso está naquilo que de fato é ensinado — ou melhor, doutrinado — nas salas de aula, algo evidenciado pelos formandos que as universidades cospem para o mundo, seres incapazes de apresentar qualquer resquício de pensamento original. 

Jamais se preocupe em se aprofundar em qualquer assunto: os "especialistas" cujos empregos se resumem a promover a agenda do establishment político e cultural já têm tudo explicado para você.


Por: Thomas Sowell , um dos mais influentes economistas americanos, é membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford.  Seu website: www.tsowell.com.

Tradução de Leandro Roque

VOCÊ PROVAVELMENTE ENTENDE TANTO DE ECONOMIA QUANTO DE ASTROFÍSICA


Embora a frase seja normalmente atribuída a Mark Twain, foi seu amigo Charles Dudley Warner quem certa vez disse que "Todo mundo reclama sobre o tempo, mas ninguém faz nada a respeito."

Independentemente de quem a tenha dito, a frase era e continua sendo perfeita.

A título de comparação, podemos hoje criar uma frase semelhante: "Todo mundo reclama sobre a economia, e muitos infelizmentetentam fazer algo a respeito." 

'Política econômica' é o nome dado a essas tentativas de fazer "algo a respeito", tentativas essas que são efetuadas por burocratas e funcionários públicos em parceria com seus consultores e empresários favoritos. Para o público em geral, política econômica é uma questão trágica, pois, independentemente de o que cidadão comum pense a respeito, as ações do governo quase que invariavelmente tornam a situação econômica pior do que seria caso esses "estrategistas" não se intrometessem.

Não obstante a gigantesca profusão de monografias, trabalhos acadêmicos, colunas de jornal, palpites dados em programas televisivos ou meras opiniões expressadas em conversas informais, pelo menos 90% de toda essa logorreia é besteira pura. O economista Steve Hanke diria tratar-se da 'regra dos 95%': "noventa e cinco por cento de tudo que é dito sobre economia ou está errado ou é irrelevante." 

O que é ainda pior: a esmagadora maioria desta logorreia é realmente nociva.

Sim, eu sou um economista, e isso não é nenhum motivo de júbilo. Trata-se de uma mera descrição profissional. Se eu fosse um carpinteiro ou um encanador, também iria confessar de pronto esse meu status profissional. A questão é que dezenas de milhares de pessoas também se dizem economistas, mas poucas realmente o são em um sentido além do nominal. Elas podem até ter um Ph.D. em economia, mas ainda assim suas ideias sobre economia não são melhores do que as daquele seu vizinho excêntrico. 

Quase tudo o que se aprende nas faculdades de economia não passa de um amontoado de besteiras matemáticas cuja substância pode ser reduzida àquilo que F.A. Hayek rotulou de "pretensão do conhecimento". Para ser sucinto, os "especialistas" que as universidades produzem semestralmente são meros embusteiros com péssima formação. Meu palpite mais otimista é que não deve haver mais do que alguns poucos milhares de economistas de verdade em todo o mundo — e eu não me surpreenderia caso essa minha estimativa contenha uma margem de erro otimista.

Além dos profissionais verdadeiros e dos falsários, há centenas de milhares de outras pessoas — leigas — que têm a pretensão de possuir algum genuíno conhecimento sobre como o mundo econômico realmente funciona. Pelo menos 95% dessas pessoas não têm a mais mínima ideia do que falam. Para vivenciar isso, basta entrar na internet e ler os "artigos" produzidos por essas pessoas — bem como os comentários dos leitores — para entender as características dessa gente. É quase tudo lixo puro.

As pessoas são geralmente sensatas o bastante para não se aventurar a emitir comentários pretensamente profissionais sobre astrofísica. Elas reconhecem suas limitações sobre este assunto. Elas não saem por aí ventilando ideias tolas sobre o 'desvio para o vermelho' ou sobre os eventos que ocorreram no primeiro milionésimo de segundo após o Big Bang. Elas estão perfeitamente cientes de que fingir tal conhecimento sobre astrofísica faria com que elas parecessem idiotas perante qualquer um que se dispusesse a ouvir o que elas têm a dizer. Se ao menos as pessoas tivessem a mesma sensatez para entender que, com raras exceções, elas sabem o mesmo tanto de economia quanto de astrofísica, o mundo seria poupado desses pretensos engenheiros sociais.

Tenha em mente que saber como administrar bem uma empresa, saber como escrever uma coluna semanal de economia em uma revista prestigiada (ou em um jornal de grande circulação ou em um site de notícias de grande acesso), saber como ascender em sua profissão, e saber uma grande variedade de outras coisas não significa de maneira alguma que você sabe como uma economia realmente funciona. Quão melhor seria o mundo se, no que diz respeito a questões econômicas, todos se limitassem a pensar e agir em termos meramente locais e, acima de tudo, a jamais pedir que políticos e burocratas tomem medidas para "melhorar a economia".




Por: Robert Higgs um scholar adjunto do Mises Institute, é o diretor de pesquisa do Independent Institute.

Tradução de Leandro Roque

segunda-feira, 16 de junho de 2014

OS REIAIS BENEFICIADOS POR UM CAPITALISMO REGULADO


Proteja seu bolso: governo em conluio com grandes empresários

A palavra "capitalismo" é utilizada de duas maneiras contraditórias. Em algumas ocasiões, ela é utilizada com o intuito de denotar um mercado livre e desimpedido, ou laissez-faire. Em outras ocasiões, ela é utilizada para denotar exatamente o arranjo atual em que vive o mundo, uma economia mista em que o governo intervém para privilegiar grandes empresas, criando monopólios e oligopólios. 

Logicamente, "capitalismo" não pode ser ambas as coisas. Ou os mercados são totalmente livres, ou o governo os controla. Não é possível ter os dois arranjos ao mesmo tempo.

Mas a verdade é que não há um mercado genuinamente livre em nenhum país do mundo. As regulamentações governamentais, as tarifas, os subsídios, os decretos e as intromissões são generalizados, variando apenas o grau de intensidade com que ocorrem em cada país. Sendo assim, o termo "capitalismo" denotando mercados livres não pode ser aplicado nos dias de hoje.

O que existe é um capitalismo mercantilista, um capitalismo de compadrio, um capitalismo regulado em prol dos regulados e dos reguladores, e contra os consumidores.

O que seria esse capitalismo mercantilista? Trata-se de um sistema econômico no qual o mercado é artificialmente moldado por uma relação de conluio entre o governo, as grandes empresas e os grandes sindicatos. Neste arranjo, o governo concede a seus empresários favoritos uma ampla variedade de privilégios que seriam simplesmente inalcançáveis em um genuíno livre mercado, como restrições de importação, subsídios diretos, tarifas protecionistas, empréstimos subsidiados feitos por bancos estatais, e agências reguladoras criadas com o intuito de cartelizar o mercado e impedir a entrada de concorrentes estrangeiros. Em troca, as empresas beneficiadas lotam os cofres de políticos e reguladores com amplas doações de campanha e propinas.

O capitalismo mercantilista é tão antigo, que Adam Smith já o criticava — e combatia — no século XVIII. Atualmente, não é necessário procurar muito para se encontrar exemplos deste tipo de capitalismo. Basta olhar para o seu próprio país. Todos os cartéis, oligopólios e monopólios que você conhece estão em setores altamente regulados pelo governo, como o setor bancário, o setor aéreo, o setor de transportes terrestres, o setor de transportes aquaviários, o setor de telecomunicações, o setor elétrico, o setor energético (petróleo, postos de gasolina), o setor minerador, o setor farmacêutico etc.

Quem cria cartéis, oligopólios e monopólios é e sempre foi o estado, seja por meio de regulamentações que impõem barreiras à entrada da concorrência no mercado (agências reguladoras), seja por meio de altos tributos que impedem que novas empresas surjam e cresçam, seja por meio da burocracia que desestimula todo o processo de formalização de empresas, seja por meio da imposição de altas tarifas de importação que encarecem artificialmente a aquisição de produtos importados (pense nas fabricantes de automóveis).

Um capitalismo de livre mercado é um sistema em que os lucros e os prejuízos são privados. Já um capitalismo mercantilista é um arranjo em que os lucros são privados, mas os prejuízos são socializados. Quando são bem-sucedidas, as empresas mantêm seus lucros; quando sofrem prejuízos, recorrem ao governo em busca ou de pacotes de ajuda ou de novas medidas que restrinjam a concorrência. No extremo, pedem ao governo para jogar a fatura do prejuízo sobre os pagadores de impostos.

O papel das regulamentações em um capitalismo mercantilista não é corretamente entendido pelos intervencionistas. Eles genuinamente acreditam que as regulamentações são uma forma de o governo subjugar e domar as grandes corporações. Só que, historicamente, as regulamentações sempre foram uma maneira tida como lícita de determinadas empresas (geralmente as grandes e bem-conectadas politicamente) ganharem vantagens à custa de outras, geralmente menos influentes. 

Por exemplo, em teoria, agências reguladoras existem para proteger o consumidor. Na prática, elas protegem as empresas dos consumidores. Por um lado, as agências reguladoras estipulam preços e especificam os serviços que as empresas reguladas devem ofertar. Por outro, elas protegem as empresas reguladas ao restringir a entrada de novas empresas neste mercado. No final, agências reguladoras nada mais são do que um aparato burocrático que tem a missão de cartelizar os setores regulados — formados pelas empresas favoritas do governo —, determinando quem pode e quem não pode entrar no mercado, e especificando quais serviços as empresas escolhidas podem ou não ofertar, impedindo desta maneira que haja qualquer "perigo" de livre concorrência.

Em seu cerne, a regulação é anti-livre iniciativa, anti-livre mercado e anti-concorrência. A regulação não se baseia nas preferências dos consumidores e nem nos valores subjetivos dos consumidores em relação aos bens e serviços ofertados. Ao contrário, ela faz com que as empresas ajam como se fossem ofertantes monopolistas, de modo que os preços passam a ser determinados pelos custos de produção das empresas e não pela preferência dos consumidores. 

Mas isso é apenas o primeiro passo: uma empresa regulada pode encontrar várias maneiras de fazer as regulações funcionarem em proveito próprio e contra os interesses dos consumidores. 

Por exemplo, não é incomum que grandes empresas façam lobby para criar regulamentações complicadas e onerosas sobre seu próprio setor. Por que elas fazem isso? Para dificultar uma potencial concorrência de empresas novas, pequenas e com pouco capital. Empresas grandes e já estabelecidas têm mais capacidade e mais recursos para atender regulações minuciosas e onerosas. Empresas pequenas, que querem entrar naquele mercado mas que ainda não possuem muitos recursos financeiros, não têm essa capacidade. Empresas grandes podem contratar lobistas (ou podem simplesmente subornar políticos) para elaborar padrões de regulação que elas já atendem ou que podem facilmente atender, mas que são impossíveis de serem atendidos por empresas pequenas e recém-criadas. 

O livro "The Big Ripoff: How Big Business and Big Government Steal Your Money", de Timothy Carney, explica em detalhes como a própria Phillip Morris estimulou a "guerra contra o tabaco" para se beneficiar, como a própria General Motors agitou pela aprovação de rígidas legislações ambientalistas nos EUA (cujas restrições mais rígidas afetariam a concorrência), e como a poderosa megacorporação Archer Daniels Midland se beneficia dos subsídios para o etanol (algo adorado pelos ambientalistas).

O apoio das grandes empresas às regulamentações criadas pelos governos não apenas não é algo raro, como, na realidade, sempre foi a norma.

Caso ainda não esteja convencido, apenas faça a si mesmo a seguinte pergunta: Qual destas tem uma maior probabilidade de ser afetada por vigorosas regulamentações: grandes corporações com boas conexões políticas e com enormes departamentos jurídicos e contábeis, ou micro e pequenas empresas ainda incipientes e em processo de formalização? 

Regulamentações aniquilam a concorrência — e as empresas já estabelecidas adoram que seja assim.

Este arranjo de economia mista é também, como já explicado, ótimo para os governos. Políticos e burocratas adquirem poderes sobre as empresas e, com tais poderes, garantem que seus cofres estejam sempre cheios. Políticos ganham generosas doações de campanha e reguladores ganham fartas propinas. Ambas essas contribuições são feitas pelas grandes empresas e pelos grandes sindicatos em troca da promessa de novas regulamentações que irão lhes favorecer e afetar a concorrência.

Trata-se de uma mistura de socialismo em um arranjo basicamente capitalista, uma mistura suficiente para manter fluidas as receitas do governo e garantir a continuidade dos assistencialismos sociais e corporativos. A porção capitalista dessa economia mista possibilita um confortável estilo de vida para políticos e para milhões de funcionários públicos.

Defensores das regulações não percebem que elas são essencialmente uma forma de controle estatal. É por isso que todos os partidos políticos atuais endossam agências reguladoras e todo o seu aparato burocrático. Afinal, qual político não gostaria de comandar amplos setores da economia? 

Em vez de proteger os inocentes e incautos, regulações estimulam os escroques e incentivam as grandes empresas a manipular o sistema com o intuito de aumentar sua própria fatia de mercado e seus lucros. Como sempre ocorre com todas as interferências governamentais nas questões econômicas e sociais, a regulação gera o efeito exatamente oposto do seu proclamado objetivo. E o pior: em um esforço para se tentar corrigir as inevitáveis consequências desastrosas das regulações, mais e mais regulações vão sendo criadas, levando a um controle estatal da economia cada vez mais paralisante.

Já passou da hora de a população entender a diferença entre livre mercado, que se baseia na liberdade e na concorrência, e capitalismo mercantilista, que se baseia em privilégios concedidos pelo estado.

A conclusão é que os socialistas se reinventaram, trocaram seu rótulo para social-democratas, deixaram de lado sua ânsia de estatizar diretamente os meios de produção e optaram por um mais suave modelo fascista, no qual estado e grandes empresas atuam em conluio para se beneficiar mutuamente e prejudicar o cidadão, que tem de aceitar serviços ruins e caros, pois não há mais livre mercado. Exatamente o intuito original dos socialistas.


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Participaram deste artigo:
Hans F. Sennholz  (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos.  Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou.  Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997.  Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.
Mark Borkowski é o presidente da corretora Mercantile Mergers & Acquisitions Corp., sediada em Toronto.
Leandro Roque é o editor e tradutor do site do  Instituto Ludwig von Mises Brasil.

CONTRA A ABSURDA LEI DA PALMADA

Você é a favor de que pais mantenham seus filhos em cárcere privado, sem água, comida e brinquedo, por dias a fio? Não? Então você tem que defender a proibição do castigo no quarto quando ele for malcriado. Colocar no quarto ou no cantinho é uma violência similar à do sequestro.


Achou meio exagerado? É exatamente esse o raciocínio que justificou a Lei da Palmada, ou Lei do Menino Bernardo. Dar uma palmada é torturar; é violentar. 

No mundo real, por outro lado, palmada não é tortura e não traz danos às crianças. Como documentado, por exemplo, por Judith Rich Harris em The Nurture Assumption, as evidências a esse respeito em geral não controlam variáveis básicas (ex: influência genética, cultura do meio infantil do qual a criança participa, etc.) e descartam interpretações alternativas: crianças são mais violentas porque apanham mais ou apanham mais porque são mais violentas? 

Quando têm algum rigor, os resultados são fracos, e sempre do tipo: crianças que levam palmada podem ser um pouco mais briguentas. 

Mas veja: mesmo que haja algumas consequências negativas, nem por isso se segue que a palmada jamais deva ser usada. A necessidade de controlar a criança no presente pode justificar um pequeno desvio de comportamento futuro. (Ou por acaso é um dever moral deixar que os pimpolhos dominem o lar?) Esse tipo detrade-off é normal na criação dos filhos. 

Peguemos exemplos de outras áreas. Ao levar o filho para a praia ou para uma piscina, os pais estão conscientemente aumentando o risco de morte da criança. Mesmo assim, julgam que a diversão daquele momento justifica o risco. Ao levar o filho para a casa da avó pra passar a noite, os pais voluntariamente aumentam as chances de o filho morrer ou de ter sequelas pela vida toda (ao colocá-lo num carro) para que possam desfrutar uma noite a dois. É tão horrível assim? Não. É natural. 

Pequenos riscos e danos fazem parte da vida, e podem ser justificados por ganhos significativos em outras áreas. Da mesma forma, manter a paz no presente pode justificar um microaumento da probabilidade de que o filho arrume briga no parquinho. 

A palmada é apenas uma alternativa para coibir maus comportamentos. Não é das melhores. Depender menos dela é bom. Aliás, quanto mais palmada se dá, menos eficaz ela se torna. Sua vantagem é ser uma punição imediata com baixo custo e alto poder de coibir malcriação. O castigo, a conversa séria, o "tirar brinquedos" também funcionam em diferentes contextos, mas todos exigem mais tempo e esforço dos pais, que às vezes estão exaustos demais. Às vezes, nada como uma boa palmada, ainda que não seja a ferramenta ideal. 

Palmada é como ter um pneu remoldado de estepe. Pior e menos seguro, mas, quando necessário, quebra um galho; melhor com ele do que sem. 

O ideal da criação sem palmada pode até ser admirado, mas na maioria dos casos não é realista e por isso não deveria em hipótese alguma ser obrigatório. A proibição só serve para abolir uma ferramenta dos pais, tornando a criação dos filhos algo mais cansativo, sem dar nada em troca. Com essas e outras neuroses perfeccionistas que assolam a relação entre pais e filhos, dá pra entender por que ninguém mais quer tê-los. 

A proibição depende de imaginar um mundo fantasioso da infância perfeita; trata-se de algo similar à mentalidade que proibiu a propaganda infantil (que, como todo mundo sabe de primeira mão, é coisa inofensiva). Nesse sentido, a escolha da Xuxa como garota-propaganda foi perfeita: uma eterna adolescente que vive num mundo de fantasias infantis e conta com serviçais para toda e qualquer tarefa; e cuja filha, aos 15 anos, ainda tem babá

O conteúdo da lei é só o começo dos problemas. É preciso implementar a proibição. E como é que a Justiça vai descobrir se a palmada ainda vigora nos lares? A princípio, é mais uma lei que não pegará. 

Ou será que o estado vai levá-la a sério? Nesse caso, e na ausência de Fiscais da Família visitando-nos toda semana pra interrogar as crianças (ainda é cedo pra isso — quem sabe em 2050), a única saída é estimular a cultura da delação. Seus vizinhos, seus parentes, seus conhecidos; não arrume confusão com eles, ou já sabe… 

Ensinamos as crianças a recorrerem à autoridade ao primeiro sinal de conflito, como se fosse um reflexo. Agora instaremos os adultos a fazê-lo também. Não é a primeira vez. Pode ter certeza de que interessa ao estado quebrar laços de confiança entre as pessoas. Quanto mais as pessoas confiam umas nas outras, menos o poder estatal é necessário. Já tivemos os Fiscais do Sarney, agora podemos ressuscitá-los, não para multar comerciantes, mas para arruinar famílias. Belo e moral! 

Entre a lei que não pega e a vigilância totalitária, minha mulher apontou uma terceira alternativa, e essa é minha aposta. Para o grosso das pessoas, a lei não vai pegar. A vida seguirá como sempre. O custo social da implementação é alto demais. Mas, de vez em quando, quando um conflito ou desavença surgir, apossibilidade de delatar a palmada às autoridades será mais uma opção do cardápio; mais uma tática possível no arsenal de militantes bem-intencionados ou vizinhos invejosos. Virá à tona especialmente em disputas virulentas pela guarda dos filhos. 

A Lei do Menino Bernardo entrará, assim, no rol das leis hipócritas: aquelas que ninguém espera que sejam seguidas, mas que continuam valendo quando convém. Como a Lei Seca. Desastrosa se aplicada de verdade, ela é aplicada arbitrariamente, de vez em quando. Sobrevive como um pequeno exercício de poder para ferrar a vida de algum azarado. 

Agora não há mais escolha: ou se opera no (suposto) ideal, ou se está quebrando a lei e pode-se perder a guarda dos filhos e até mesmo ir para a cadeia por um período de 1 a 4 anos. 

Mas me digam, o que será pior para uma criança: levar uma palmada no bumbum ou ser tirada à força de seus pais, dada aos cuidados da Assistência Social, ir e vir a tribunais familiares, e ser repassada a uma nova família? 

Sendo assim, todo mundo que levou palmada na infância tem agora apenas duas opções: apontar o dedo na cara da mãe e dizer que ela é uma criminosa e que deveria ter sido presa, ou protestar em alto e bom som contra essa lei imbecil.
Por: Joel Pinheiro da Fonseca, mestre em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta e escreve no blog Ad Hominem.


domingo, 15 de junho de 2014

NÃO SE DEIXE EDUCAR PELO ESTADO



Não é nenhuma coincidência que os governos de todos os países do mundo queiram estar no controle da educação das crianças. Os serviços de educação fornecidos pelo aparato estatal supostamente devem ser vistos como uma evidência da bondade do estado e da preocupação de seus burocratas para com nosso bem-estar. Mas o real objetivo é bem menos bajulador, e muito fácil de entender: se toda a propaganda governamental inculcada nas salas de aula conseguir criar raízes dentro das crianças à medida que elas crescem e se tornam adultas, estas crianças não serão nenhuma ameaça ao aparato estatal. Elas mesmas irão prender os grilhões aos seus próprios tornozelos.

H.L. Mencken certa vez disse que o estado não quer apenas fazer com que você obedeça às suas ordens inquestionavelmente. O estado quer fazer com que você queira obedecê-lo voluntariamente. E isso é algo que a educação controlada pelo estado — não importa muito se as escolas são públicas ou privadas, desde que seja o estado quem esteja ditando os currículos — faz muito bem.

Um pensador político há muito esquecido, Étienne de la Boétie, nunca deixava de se questionar por que as pessoas sempre toleravam regimes opressivos. Afinal, os governados estão em maioria esmagadora em relação aos governantes. Sendo assim, as pessoas poderiam pôr um fim a todo o autoritarismo se elas realmente quisessem. E, no entanto, isso raramente acontecia.

Por ora, gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto eles têm vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolerá-lo a contradizê-lo. Coisa extraordinária, por certo; e, porém, tão comum que se deve mais lastimar-se do que espantar-se ao ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um...

Chamaremos isso de covardia? ... Se cem, se mil aguentam os caprichos de um único homem, não deveríamos dizer que eles não querem e que não ousam atacá-lo, e que não se trata de covardia e sim de desprezo ou desdém? Se não vemos cem, mil homens, mas cem países, mil cidades, um milhão de homens se recusarem a atacar um só, de quem o melhor tratamento fornecido é a imposição da escravidão e da servidão, como poderemos nomear isso? Será covardia? ... Quando mil ou um milhão de homens, ou mil cidades, não se defendem da dominação de um homem, isso não pode ser chamado de covardia, pois a covardia não chega a tamanha ignomínia. . . Logo, que monstro de vício é esse que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante . . . ?

De la Boétie concluiu que a única maneira pela qual qualquer regime poderia sobreviver seria se o público lhe desse seu consentimento. Tal consentimento poderia ser tanto um apoio entusiasmado quanto uma resignação estóica. Mas se tal consentimento desaparecesse, os dias do regime estariam contados.

E, de fato, é necessário um sistema educacional enormemente distorcido para fazer com que as pessoas emprestem seu consentimento a qualquer arranjo estatal. Afinal, o que é o estado? É um grupo dentro da sociedade que clama para si o direito exclusivo de controlar e espoliar a vida de todos. Para isso, ele utiliza um arranjo especial de leis que permite a ele fazer com os outros tudo aquilo que esses outros são corretamente proibidos de fazer: atacar a vida, a liberdade e a propriedade.

Por que uma sociedade, qualquer sociedade, permitiria que tal quadrilha desfrutasse incontestavelmente desse privilégio? Mais ainda: por que uma sociedade consideraria legítimo esse privilégio? É aqui que o controle da mente entra em cena. A realidade do estado é inquestionável: trata-se de uma máquina de extorsão, pilhagem e autoritarismo — tudo isso em larga escala. Sendo assim, por que tantas pessoas clamam por sua expansão? Aliás, por que sequer toleramos sua existência? A própria ideia da instituição estado é tão implausível por si só que é preciso que ele, o estado, coloque sobre si um manto de santidade para que consiga apoio popular

E é por isso que a educação autônoma — a verdadeira educação — é uma enorme ameaça para qualquer regime. É por isso que ela é combatida tão veementemente pelo estado e seus burocratas. Se o estado perder o controle daquilo que entra em sua mente, ele perde o segredo de sua própria sobrevivência.

E o estado já está começando a perder este controle. A mídia tradicional, aquela que sempre se esforçou disciplinadamente para carregar água na peneira pelo estado desde tempos imemoriais, já está se sentindo ameaçada por vozes independentes na internet. Não creio que hoje qualquer pessoa com menos de 25 anos leia algum jornal. Algumas escolas públicas nos EUA já estão implementando um programa abertamente despótico, mas necessário para sua sobrevivência: as crianças têm de usar braceletes eletrônicos que monitoram sua exata localização durante os horários de aula. A intenção clara é se certificar de que as crianças estão comparecendo regularmente à escola para ouvir o que o estado tem a lhes dizer.

Como tudo isso irá acabar? Impossível saber de antemão, mas os prospectos da liberdade são animadores. Por mais que a mídia e a classe política operem em conjunto para sustentar a santidade do estado, tal blindagem já foi rompida. E esta tendência é irreversível.

É por isso que o nosso desafio é o mais radical que já foi apresentado ao estado. Nossa intenção não é tornar o estado mais "eficiente", ou dar ideias de como ele pode aumentar suas receitas. Tampouco queremos mudar seu padrão de protecionismo, de privilégios e de redistribuição de riqueza. Nossa intenção não é dizer qual programa de subsídio é o melhor e qual deve ser alterado, ou qual tipo de imposto faria com que o sistema fosse gerido mais harmoniosamente. Não queremos alterações pontuais no estado. Rejeitamos o atual sistema por completo.

E não nos opomos a essa máquina de extorsão, pilhagem e autoritarismo que é o estado por ele ser 'ineficiente' ou 'improdutivo'. Nós nos opomos ao estado porque extorsão, pilhagem e autoritarismo nunca podem ser medidas moralmente aceitáveis.

O estado moderno nada mais é do que uma disputa de poder entre quadrilhas, cada qual visando seus próprios interesses e os de sua base de apoio. Quem está interessado apenas em liberdade, não apenas está sem representação como também é obrigado a sustentar ambos os grupos. Por isso, não imploramos pelas migalhas que eventualmente caem da mesa do banquete totalitário. Tampouco queremos um assento a esta mesa. O que queremos é derrubar a mesa totalmente.

Há muito trabalho a ser feito. Um número incontável de indivíduos foi persuadido de que é do interesse deles ser roubado, proibido de adquirir bens estrangeiros, ter seu poder de compra destruído e ter de obedecer a todas as ordens ditadas por uma elite governamental que na realidade não está nem aí para nosso bem-estar e cujo único objetivo é aumentar seu poder e sua riqueza à custa do nosso padrão de vida.

A mais letal e antissocial instituição da história da humanidade continua a se autodescrever como sendo a fonte essencial de toda a civilização. A partir do momento em que o governo assumiu o controle da educação, as pessoas aprenderam que o estado está ali para protegê-las da pobreza, dos remédios estragados e até dos dias chuvosos; para dar estímulos quando a economia estiver ruim e para nos defender de todos aqueles elementos perigosos ou gananciosos que estão fora da máquina estatal (pois dentro dela eles não existem). Esta visão, por sua vez, é diariamente reforçada e intensificada pela mídia impressa e eletrônica, os porta-vozes do regime.

Se o público foi iludido, cabe a nós a imprescindível tarefa de desiludi-lo. É necessário rasgar o manto de santidade sob o qual o estado se esconde. Esta é a tarefa mais crucial de nossa época. E qualquer um pode fazer sua parte.

Comece consigo próprio. Eduque-se. Aprenda tudo o que puder sobre uma sociedade livre. Leia os grandes, como Frédéric Bastiat, Ludwig von Mises, Murray Rothbard, Henry Hazlitt, Hans Sennholz, George Reisman, Tom Woods,Thomas DiLorenzo e Jesús Huerta de Soto. À medida que você for aprofundando seus conhecimentos, compartilhe o que você está lendo e aprendendo. Crie um blog. Crie um canal no YouTube. Oragnize um grupo de estudos. O que quer que faça, aprenda e espalhe seu conhecimento. Jamais pare.

Se foi por meio da propaganda que as pessoas irrefletida e insensatamente aceitaram as alegações do estado, então será por meio da educação que elas serão trazidas de volta ao seu juízo.

Com a mídia — o suporte indispensável do estado — em franca decadência, será cada vez mais difícil para o aparato estatal fazer com que suas alegações sejam prontamente aceitas; será difícil o estado continuar persuadindo as pessoas a aceitarem suas mentiras e propagandas.

Você certamente já ouviu dizer que a pena é mais poderosa que a espada. Pense na espada como se ela fosse o estado. Pense na pena como se ela fosse você divulgando as ideias da liberdade. Qual, no final, terá mais chances de ganhar os corações e a mente das pessoas?

Tenha sempre em mente esta constatação de Étienne de la Boétie: todo e qualquer governo depende do consentimento das pessoas; tão logo o público retirar seu consentimento, qualquer regime estará condenado.

É por isso que o regime ora nos ridiculariza, ora nos teme. E é por isso que, não obstante todos os horrores que lemos diariamente, podemos ter a ousadia de olhar para o futuro com alguma esperança.

Por: Lew Rockwell,  chairman e CEO do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State

Tradução de Leandro Roque  Do site: http://www.mises.org.br/