domingo, 14 de junho de 2015

FIM DE CONVERSA

Noam Chomsky passou por Portugal e, nas entrevistas de praxe, defendeu as ideias de praxe: o Ocidente pode horrorizar-se com o terrorismo islamita. Mas não será o Ocidente, e em particular os Estados Unidos, o maior terrorista que existe? Por que motivo não condenamos os crimes do império americano com o mesmo vigor com que descemos o pau sobre os fanáticos jihadistas?

A melhor forma de responder a essas perguntas passa por ler uma espantosa troca de argumentos entre Noam Chomsky e o neurocientista Sam Harris, agora tornada pública.

Esse duelo está disponível no site de Harris (www.samharris.org) e, com a imparcialidade possível (mentira: não há imparcialidade nenhuma), estou com Harris: o problema de Chomsky, nas suas comparações entre o terrorismo islamita e atos de violência bélica cometidos por Washington, está na incapacidade para distinguir diferentes tipos de violência e até comportamentos humanos que justificam essa violência.

Senão, vejamos: para Chomsky, as sanções econômicas que os Estados Unidos fizeram recair sobre o Iraque de Saddam Hussein foram responsáveis pela morte de meio milhão de crianças; e, como exemplo suplementar, o bombardeamento sobre uma fábrica de produtos farmacêuticos no Sudão levou à morte de milhares de pessoas, que morreram de doenças facilmente tratáveis com os medicamentos certos (tuberculose, malária etc.).

Sam Harris aceita uma das premissas de Chomsky: a guerra é um negócio brutal. E não há nenhum motivo para ficarmos nas sanções ao Iraque ou nos bombardeamentos ao Sudão. Olhamos para a história dos Estados Unidos e que vemos nós?

Matança de índios. Escravidão. Bombardeamentos criminosos no Camboja e, acrescento eu, na Guerra do Vietnã. Por outras palavras: só um fanático acredita que existe um governo, qualquer que ele seja, que detém a verdade, só a verdade, nada mais que a verdade.

O problema, porém, é que a moralidade dos atos de um governo depende da intenção com que esse governo os comete. Para Sam Harris, quando Bill Clinton ordenou o bombardeamento da fábrica sudanesa de Al-Shifa, o objetivo de Washington não era matar milhares de seres humanos com malária ou tuberculose.

O objetivo, compreensível e até louvável, era neutralizar uma fábrica que Clinton acreditava (erradamente) que servia para a produção de armamento químico para a Al Qaeda.

E existe uma diferença moral significativa entre atacar para eliminar um mal objetivo, mesmo que esse ataque seja um erro "a posteriori", e atacar em massa para infligir o maior dano possível a pessoas inocentes "a priori". Quem não entende essa diferença tem a bússola moral avariada.

Mas existe ainda uma segunda diferença entre a violência antiterrorista do Ocidente e os atos de terrorismo cometidos contra o Ocidente. E essa diferença está na reação dos seus autores.

Quando se ataca um complexo químico que é apenas uma fábrica de medicamentos, não há festejos nem proclamações de vitória. Há, isso sim, sentimentos de vergonha e, em certos casos, investigação criminal (como sucedeu, por exemplo, com os abusos americanos na prisão de Abu Ghraib).

O mesmo não sucede quando o único objetivo é derrubar Torres Gêmeas que não se confundem com nenhum complexo químico, biológico ou militar. No primeiro caso, mata-se por engano. No segundo, mata-se por instinto desumano.

Noam Chomsky responde a Sam Harris. E depois de afirmar (sem provas) que Clinton sabia que Al-Shifa era simplesmente uma fábrica de medicamentos, Chomsky tenta mostrar que a "política das boas intenções" é sempre ambígua em qualquer discussão ética. E dá um exemplo: aos seus olhos, Hitler tinha boas intenções quando liderou a máquina nazista no Holocausto.

O argumento é débil e obviamente desonesto: não é possível comparar um ditador que tem como objetivo exterminar um povo inocente; e um político ocidental que procura neutralizar organizações terroristas que matam inocentes.

Não existem sociedades perfeitas. Não existem governos perfeitos. Mas se o leitor joga na mesma sacola Clinton e Bin Laden, Bush e Hitler, não há espaço para nenhuma conversa racional. Essa, aliás, foi a conclusão de Harris depois de tentar falar com Chomsky: o silêncio final entre ambos é o silêncio de um abismo. 
Por: João pereira Coutinha Publicado na Folha de SP

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