domingo, 21 de agosto de 2016

UMA EUROPA CHAMADA ROMA


Da próxima vez que o estrépito de um atentado nos distrair dos Pokémons, em vez de desabafarmos no facebook será mais útil ir estudar os romanos. O imperador Honório e a sua galinha Roma andam por aí,


Isto não acontece num país longínquo. Acontece aqui. Num país da NATO. Ao nosso lado.

Horas antes do golpe na Turquia tivera lugar em França mais um atentado e mais uma vez o Presidente francês dissera que a França era forte. E os jornais escreviam que “um camião matou”, como se o camião se tivesse posto em marcha sozinho.

Face ao atentado de Nice repetia-se que havia que compreender os motivos do homem que praticara tal acto sendo que neste contexto o verbo compreender não é sinónimo de adquirir conhecimento para melhor agir sobre o agressor mas sim para aceitar com maior resignação o papel de vítima.

Como sempre o facebook encheu-se de vídeos virais em que os likes fazem as vezes das convicções e o máximo da decisão passa por pintar a Torre Eiffel com as cores da bandeira francesa. Desta vez já nem houve muitas velas nas ruas, talvez para não atrapalhar as corridas atrás dos Pokémons.

De repente, o drama desta Europa, uma Europa que foi capaz de garantir ao maior número de cidadãos um conjunto mais alargado de direitos mas que se condenou a si mesma à decadência, parece-me decalcado desse outro drama vivido por outra civilização extraordinária – o império romano. Um drama que simbolicamente terminou numa noite de Agosto de 410 dC, em Ravena. Nessa noite um mensageiro (há sempre uma mensagem e um mensageiro, o tempo apenas muda a natureza do mensageiro) entrou a correr no palácio de Ravena onde o imperador Honorio estava retirado para escapar ao cerco que o rei visigodo Alarico montara em torno de Roma. A notícia é tão grave que os presentes resolvem acordar Honorio: Roma caíra às mãos do invasor.

Perante a notícia, o imperador Honorio declara consternado “Ainda há pouco comeu da minha mão”. O desalento desconcertante da resposta do imperador leva um dos presentes a esclarecer Honorio: Roma, a sua galinha preferida, estava bem. Fora sim a capital do seu império e não a sua preferida que caíra perante o invasor. Honorio terá suspirado de alívio pois por momentos pensara que fosse a sua galinha e não a cidade a soçobrar.

Há oito séculos que Roma era inviolável. Mas nesse Agosto de 410 dC, o rei visigodo Alarico atravessara a Porta Salaria e entrara em Roma à frente dos seus homens. O saque começou. A própria irmã do imperador, Gala Placidia, estava cativa de Alarico, um chefe militar que soube tirar partido das fraquezas do outrora grande império.

Valha a verdade que o saque de Alarico foi apenas o primeiro – e nem sequer o pior – dos vários que reduzirão a orgulhosa Roma a um símbolo da decadência. A dado momento os romanos antecipar-se-ão até aos invasores e antes que estes montem mais um cerco abrem-lhes as portas da cidade para que no momento do inevitável saque se mostrassem mais misericordiosos (não mostraram).

A história da reacção de Honório ao saber do saque de Roma foi muito provavelmente romanceada mas tem servido para ilustrar o que bondosamente designamos como decadência do império romano. Perante essa fabulosa civilização que se condenou a si mesma à derrota poucas coisas ilustrarão melhor o comportamento das elites romanas do que esse imperador a chorar a sua galinha e não a sua cidade.

Neste século XXI, Honorio, a sua cidade e a sua galinha andam por aí. Simplesmente Roma agora chama-se Europa. E os europeus, tal como o imperador Honorio, desdenham dos aliados, não resolvem o essencial, assistem abúlicos aos ataques de que são alvo e perante a catástrofe fazem de conta que não a vêem. Ou apenas vêem a morte da sua galinha – com quantas causas fúteis se entretêm semanalmente os parlamentos da Europa? – e não a queda da sua cidade.

Enquanto escrevo os presos na Turquia contam-se aos milhares e a purga na justiça e entre os militares é profunda. Nas televisões europeias confunde-se apoio e bandeirinhas nas redes sociais com legitimidade. Erdogan entretanto avisa que quem estiver com os rebeldes, está “em guerra com a Turquia”, sendo que o conceito de “estar com os rebeldes” é muito lato. Por exemplo, não entregar à Turquia os oito militares turcos que pediram asilo político à Grécia é sinónimo de estar com os rebeldes? E como vai daqui em diante a Turquia usar os seus controlos fronteiriços para pressionar a Europa a deixar de “estar com os rebeldes”, queira isso dizer o que queira? E o que fazem os líderes europeus caso Erdogan, com menos folclore, mais racionalidade e umas forças armadas purgadas mas bem treinadas, entre na espiral de confronto-amizade-chantagem como durante anos fez Kadafi? Telefonam para Washington e esperam que o presidente norte-americano, seja ele qual for, mobilize os nascidos no Ohio ou no Kansas para reforçarem a presença militar nas bases norte-americanas na Europa, precisamente aquelas contra as quais não houve estudante europeu que não achasse de bom tom manifestar-se?

Na escola aprendíamos como os romanos fizeram o seu império. Na verdade devíamos ter estudado mais como o desfizeram. Porque Honorio e a sua galinha não aconteceram por acaso. Eles são o resultado de uma sociedade que se derrotou a si mesma antes de ser derrotada pelos outros. De um império que acabou a ter de pagar para não ser atacado por aqueles a quem antes pagara para que o defendessem.

Da próxima vez que o estrépito de um atentado nos distrair dos Pokémons, em vez de desabafarmos no facebook será bem mais útil ir estudar os romanos. Honorio e a sua galinha fazem parte do nosso passado e nós já estivemos mais longe de nos refugiarmos em Ravena.
Por: Helena Matos Do site: http://observador.pt/

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