domingo, 8 de abril de 2018

QUERO MEU BRASIL DE VOLTA


"Primeira Missa no Brasil", óleo de Vitor Meirelles (1861)

“Se vemos mais e mais adiante deles, não é por causa de nossos olhos límpidos e de nossos altos corpos, mas porque somos mantidos no alto pela gigantesca estatura dos antigos.” (Bernardo de Chartres) 


Inicio este artigo em lágrimas, emocionado após assistir ao quinto episódio da série Brasil – A Última Cruzada, produzida pela trupe incansável do Brasil Paralelo. Não só porque sou um dos entrevistados (risos), mas porque está belíssimo! Caso você ainda não conheça, caro leitor, Brasil Paralelo é uma produtora de conteúdo, independente, formada por um grupo de jovens de Porto Alegre, no Sul do Brasil, que vem desenvolvendo um trabalho audiovisual impressionante, tanto no debate político conturbado de nosso país quanto na revisão inovadora da historiografia nacional. A série Brasil – A Última Cruzada, que estreou em dezembro de 2017 e já foi vista por mais de 1,5 milhão de pessoas, tem renovado o nosso amor por nossa pátria, há muito sequestrada por oligarcas e ideólogos irresponsáveis, mais preocupados com seus próprios interesses do que com o bem comum. 


Eis o trailer:






Ao assistir a essa série, percebo a quantidade de informações que nos foi escamoteada por tantos anos, e como as interpretações ideológicas subverteram a verdade. Há séculos sofremos não só com a sanha daqueles que julgam lícito conquistar o poder e fazer fortuna à custa do sofrimento de milhões, mas também com aqueles que buscam, inconsequentemente, transformar o mundo em vez de compreendê-lo. 

Tal distorção da realidade nos afetou profundamente, pois, impossibilitados de assumirmos a nossa vocação, passamos a viver das aparências e do famigerado jeitinho brasileiro, como constatou o filósofo Mário Vieira de Mello em seu estupendo Desenvolvimento e Cultura – O problema do estetismo no Brasil­, publicado em 1963: 

“Num país como o nosso, onde tudo se faz por amizade, seria com efeito absurdo, para quem quer prosperar, criar deliberadamente limites à manipulação de um tal sentimento, fazer distinções, estabelecer critérios de seleção na escolha de amigos. O mais sensato naturalmente seria desencadear um processo inflacionário da amizade que nos permitisse ter sempre à mão a moeda capaz de promover nosso interesse.” 

Mas antes ainda, em 1908, o grande Sílvio Romero diagnosticara um problema ainda mais profundo na alma brasileira, descrito em seu ensaio Nosso maior mal: 

“[…] a maior parte dos erros, dos embaraços, das decepções, das quedas, dos prejuízos, dos desastres e até da total ruína que cada um de nós comete, encontra ou sofre na vida provém pura e simplesmente, quase sempre, desta coisa tão simples, tão rudimentar, tão indesculpável — o desconhecimento de nós mesmos. […] A inconsciência em que a maior parte das pessoas vive das lacunas de sua inteligência, da insuficiência de seu saber, dos vícios de seu caráter, da fraqueza de sua vontade — é a origem da precipitação, da leviandade, da arrogância, dos falsos cálculos, dos passos errados, das loucuras praticadas.” 

Ou seja, a perda da nossa identidade. Não reconhecendo o que somos, queremos ser o que não somos. 

O Brasil, país jovem, nasceu sob os auspícios da modernidade. As nações mais antigas já tinham se estruturado culturalmente, alimentadas, durante longos séculos, pela Antiguidade clássica e pelo Cristianismo; por isso, desfrutavam de considerável estabilidade e uniformidade de pensamento quando os portugueses aportaram em solo brasileiro. Numa colônia, cujo processo civilizatório é sempre muito complexo, há o risco de as disputas políticas ocuparem todo o espaço de formação da sociedade, prejudicando sensivelmente seu desenvolvimento. Os desafios são enormes, e os elementos capazes de gerar uma Tradição – a língua, a religião e a alta cultura, nas palavras do filósofo Olavo de Carvalho – na qual a identidade nacional repousa e fortalece a sensação de pertencimento de cada cidadão, só podem ser desenvolvidos sob a severa responsabilidade (e notória competência) administrativa dos governantes, a consciência missionária da elite cultural (sacerdotes, educadores, intelectuais e artistas) e a liberdade individual dos cidadãos. 

Não foi à toa que, no século 19, dom Pedro II investiu tanto no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, na Academia Imperial de Belas-Artes e no Colégio Pedro II, financiando cientistas, artistas, exposições e assistindo a exames de muitos alunos. Seu amor pela educação, pelas artes e, sobretudo, pelo Brasil pode ser expresso em sua famosa frase, encontrada num de seus Diários: “Se não fosse imperador do Brasil, quisera ser mestre-escola”. Sua intenção era criar uma identidade nacional que revelasse a opulência de nosso país não só interna, mas externamente; e isso foi revelado em sua influência ativa e direta nesse processo: patrocinou, pessoalmente, a instrução de muitos estudantes no exterior – dentre eles, o notável pintor Pedro Américo; a primeira médica brasileira, Maria Augusta Generoso Estrela; e o compositor que colocou o Brasil no circuito musical internacional: Antônio Carlos Gomes. A estreia de O Guarani, em 19 de março de 1870, no Teatro Alla Scala, de Milão, foi um marco no reconhecimento do altíssimo nível da música brasileira. 

No entanto, tais aspectos de nossa história e da nossa cultura, que poderiam nos servir de referência, são pouquíssimo explorados por nossos professores, cujo empenho, ao tratarem do nosso passado, parece ter sempre um caráter crítico – quando não difamatório. Sem contar que, como tratei em artigo anterior, a cultura clássica foi quase totalmente substituída pela cultura popular; essa em detrimento daquela, chamada de elitista. Desse modo, perdemos as referências históricas e imaginativas capazes de nos orientar. 

Após o golpe militar de 1889, chamado pomposamente de Proclamação da República, nossa história foi recontada pelos positivistas, a fim de menosprezar o legado monárquico e dar ares de progresso à sua sanha revolucionária. Posteriormente, os comunistas a reescreveram novamente, sob o maniqueísmo socioeconômico dos exploradores versus explorados. Assim, a verdadeira história de nosso país segue praticamente desconhecida da população atual. E, com a substituição da matriz curricular clássica – que privilegiava o conteúdo, a informação, a ciência – pela moderna, através dos quatro pilares da educação – aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser –, sandice do ideólogo francês Jacques Delors, adotados pela Unesco, há pouquíssimas chances de revertermos esse quadro. Veja o que diz o Currículo de Ciências Humanas e Suas Tecnologias, do ensino fundamental e médio, do estado de São Paulo: 

“[…] fica claro que o primeiro objetivo geral do ensino fundamental é levar os alunos à compreensão da ‘cidadania como participação social e política. A partir dessa compreensão, espera-se despertar a consciência em relação ao exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais’, adotando, ‘no dia a dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito’. Assim, os estudantes devem desenvolver um posicionamento crítico frente aos problemas que afetam a vida social, reconhecendo o diálogo como ponto de partida fundamental para a tomada de decisões coletivas.” 

Ou seja, em vez de ensinar História, deve-se ensinar a criticar a História. Em vez dos fatos, as interpretações. Em vez da ciência, a opinião (a doxa, que Platão tanto criticou). Não que seja errado interpretar os fatos e emitir opiniões, mas tal método parte do princípio de que sempre há uma intenção por detrás do texto, que não há, jamais, isenção num fato narrado, e que cumpre ao historiador desmascarar a “farsa”, não sem antes “despertar a consciência em relação ao exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais”. E, embora nada disso seja ruim em si mesmo – pois não sou avesso à ideia de que a escola também educa, e que a educação para a cidadania seja algo louvável –, essa não é a função primordial do ambiente acadêmico. A função da escola é transmitir um conjunto básico de conhecimentos para formar intelectualmente o aluno. E, para que isso seja possível, a disciplina, a atenção, a dedicação e o foco, que são elementos de ordem – educativos, por assim dizer –, são essenciais. 

Por isso, iniciei o ano letivo fazendo aos meus alunos uma provocação: por que o Brasil se tornou uma nação tão estranha a nós, brasileiros? Por que, por exemplo, ao mesmo tempo em que não reconhecemos nossa classe política, considerando-a um grupo de bandidos inescrupulosos – salvo raríssimas exceções –, não percebemos que fomos nós que os elegemos? Não é curioso pensar que somos, paradoxalmente, vítimas e algozes de nosso destino? Que a solução pela qual sempre clamamos é aquela que, cada vez mais, nos aprisiona? E estamos lendo alguns textos clássicos a fim de analisarmos e compreendermos nossa situação atual. 

Tal contradição foi analisada com maestria ímpar por meu amigo e colega de Gazeta do Povo Bruno Garschagen, em seu best-seller Pare de Acreditar no Governo, através do questionamento que o levou a escrever o livro: “por qual razão nós, que tínhamos uma imagem tão compreensivelmente negativa sobre os políticos, achávamos que o governo deveria resolver os problemas do país”? 

Como percebemos, o problema é antigo, mas creio que tenha sido agravado, e muito, pelo golpe republicano de 1889. O jornalista e escritor Eduardo Prado, em Fastos da Ditadura Militar no Brasil, seu libelo contra aquele golpe, publicado em 1890, disse: “A fatalidade reservava, porém, à geração que viu extinguir-se a escravidão doméstica o espetáculo da escravidão política”. E, para completar, a sucessão de golpes de Estado que sofremos desde então, tornou nossa liberdade um anseio ainda mais distante. 

Mas Bruno oferece algumas dicas que creio serem utilíssimas: 

“O que fará a diferença para impedir, minimizar ou reduzir a mentalidade estatista e, por tabela, o intervencionismo como agenda política é mostrar às pessoas a natureza das ideologias que disputam espaço e como elas podem ser prejudicadas pelo governo. Isso fornece instrumentos que nos permitem reconhecer e rejeitar os projetos de poder baseados na ideia de que o Estado deve ser o principal agente da vida em sociedade”. 

E completa, citando o filósofo britânico Roger Scruton: 

“O nosso grande desafio é ‘menos político do que cultural — uma educação da compreensão, que nos exige virtudes (como a imaginação, a criatividade e o respeito pela alta cultura) que têm um espaço cada vez menor no mundo da política’. Se a armadilha não pode ser totalmente desarmada, podemos mostrar às pessoas que ela existe e como não cair na arapuca intervencionista.” 

E assim voltamos ao início deste artigo. A (re)criação de uma identidade nacional, que nos fornecerá perspectivas de um futuro se não glorioso, ao menos livre, passa pela reformação de nossa imaginação moral através da educação como Paidéia , que exigirá de pais, professores, intelectuais e artistas o comprometimento com aquilo que realmente importa. Platão explica, em sua República (401c-d, 402a): 

“Devemos […] procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza habilitou a seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito, a fim de que os jovens, tal como os habitantes de um lugar saudável, tirem proveito de tudo, de onde quer que algo lhes impressione os olhos ou os ouvidos, procedente de obras belas, como uma brisa salutar de regiões sadias, que logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar de harmonia com a razão formosa. […] Ao passo que as coisas feias, com razão as censuraria e odiaria desde a infância, antes de ser capaz de raciocinar, e, quando chegasse à idade da razão, haveria de saudá-la e reconhecê-la pela sua afinidade com ela, sobretudo por ter sido assim educado”. 

Não há atalhos; levará tempo. Mas, nas palavras do célebre Antônio Pereira Rebouças – pai de André, o famoso engenheiro e abolicionista: “não é na rapidez, mas sim na segurança, que consiste a excelência dos progressos da liberdade”. 

Aceita o desafio?
Por Paulo Cruz  Publicado originalmente em www.gzetdopovo.com.br 


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