sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O ESTUDO DA ECONOMIA, OS ECONOMISTAS, AS PREVISÕES ECONÔMICAS E O CIDADÃO COMUM


As ciências naturais se baseiam, em última análise, em fatos constatados por experiências em laboratório. As teorias físicas e biológicas são colocadas em confronto com esses fatos e são rejeitadas quando conflitam com eles. A perfeição dessas teorias tanto quanto o aperfeiçoamento da tecnologia e da terapêutica dependem de pesquisas de laboratório cada vez maiores e melhores. 

Essas experiências consomem tempo, esforços árduos de especialistas e gastos materiais vultosos. A pesquisa não pode mais ser conduzida por cientistas sem recursos, por mais talentosos que sejam. A pesquisa, hoje em dia, é feita em enormes laboratórios financiados pelos governos, pelas universidades, por fundações e por grandes empresas. O trabalho nessas instituições tornou-se uma rotina profissional. 

Os técnicos que lá trabalham registram fatos e experiências que serão usados pelos pioneiros — os quais às vezes são os próprios experimentadores — na elaboração de suas teorias.

No que concerne ao progresso das teorias científicas, a contribuição do pesquisador comum é apenas auxiliar. Às vezes, entretanto, suas descobertas têm aplicação prática imediata para a melhoria de métodos utilizados na atividade econômica e na terapêutica.

Por ignorarem a diferença epistemológica radical entre as ciências naturais e as ciências da ação humana, as pessoas pensam que para aprimorar o conhecimento econômico é necessário organizar a pesquisa econômica segundo os já testados métodos dos institutos de pesquisa médica, física e química. Grandes somas são gastas no que é denominado de pesquisa econômica. Na realidade, esses institutos não fazem mais do que estudar a história econômica do passado recente.

É certamente louvável que se estimule o estudo da história econômica. Entretanto, por mais instrutivo que seja o resultado de tais estudos, não se deve confundi-los com o estudo da economia. Deles não se pode esperar que resultem fatos ou dados no sentido com que esses termos são usados em relação a eventos testados em laboratório. Não fornecem material para a construção a posteriori de hipóteses e teoremas. Ao contrário, esses estudos são desprovidos de qualquer significação se não forem interpretados à luz de teorias elaboradas a priori sem qualquer referência a eles. Nenhuma controvérsia relativa às causas de um evento histórico pode ser esclarecida com base no exame de fatos, sem que se recorra a específicas teorias praxeológicas.

A criação de institutos para a pesquisa do câncer pode eventualmente contribuir para a descoberta de métodos destinados a combater e prevenir essa doença maligna. Mas um instituto de pesquisa sobre o ciclo econômico não pode oferecer qualquer ajuda a quem deseja evitar a recorrência de depressões. Por mais exatos e confiáveis que sejam, os dados apurados em relação às depressões econômicas do passado são de pouca utilidade para o nosso conhecimento. Os especialistas não discordam quanto aos dados; discordam quanto aos teoremas a que devem recorrer para interpretá-los.

Mais importante ainda é o fato de ser impossível coletar dados relativos a um evento concreto sem considerar quais são as teorias adotadas pelo historiador desde o início de seu trabalho. O historiador não relata todos os fatos, mas apenas aqueles que considera relevantes, em função das suas teorias; omite os dados que considera sem importância para a interpretação dos eventos. Se adotar teorias erradas, seu relato torna-se praticamente inútil.

Nenhuma análise de um momento da história econômica, ainda que de um período muito recente, por mais fiel que seja, pode substituir o raciocínio econômico. A economia, da mesma maneira que a lógica e a matemática, é um exercício de raciocínio abstrato. A ciência econômica não pode ser experimental e empírica. O economista não precisa de instalações custosas para realizar os seus estudos. Precisa apenas da capacidade de pensar lucidamente e de discernir, diante da infinidade de eventos que lhe são apresentados, entre os essenciais e os meramente acidentais.

Não há nenhum conflito entre a história econômica e a ciência econômica. Cada ramo do conhecimento tem seu próprio mérito e utilidade. Os economistas nunca pretenderam subestimar a importância da história econômica. Os autênticos historiadores também nunca se opuseram ao estudo da economia. O antagonismo entre essas duas disciplinas foi deliberadamente provocado pelos socialistas e pelos intervencionistas, que não puderam refutar as objeções, levantadas pelos economistas, às suas doutrinas. A Escola Historicista e os Institucionalistas tentaram desvirtuar a ciência econômica e substituí-la por estudos "empíricos" com o evidente propósito de neutralizar os argumentos dos economistas. A história econômica, para eles, foi um meio de destruir o prestígio da ciência econômica e de difundir as teses do intervencionismo.

A economia como profissão

Os primeiros economistas se dedicavam apenas ao estudo dos problemas de economia. Sua preocupação, ao fazer conferências e escrever livros, era a de transmitir aos seus concidadãos os resultados de suas reflexões. Tentavam, assim, influenciar a opinião pública para que prevalecessem as políticas mais consistentes. Nunca imaginaram que a economia pudesse ser concebida como uma profissão.

O desenvolvimento da profissão de economista é uma sequela do intervencionismo. O economista profissional é o especialista ao qual se precisa recorrer para que sejam elaboradas as várias medidas de intervenção do governo na atividade econômica. É um especialista no campo da legislação econômica, a qual, nos dias de hoje, tem invariavelmente o objetivo de perturbar o funcionamento da economia de mercado.

Existem milhares e milhares desses especialistas profissionais empregados nos órgãos do governo, nos diversos partidos políticos e grupos de pressão, nas redações dos jornais e revistas. Outros são contratados por empresas como consultores ou têm seu escritório independente. Alguns gozam de reputação nacional ou internacional; muitos acham-se entre as pessoas de maior prestígio de seu país. Ocorre serem frequentemente convidados a dirigir grandes bancos ou grandes empresas; são eleitos para o legislativo; são designados ministros do governo. Como grupo profissional, chegam a rivalizar com os advogados no comando político do país. O papel destacado que representam é uma das características mais marcantes dessa nossa época de intervencionismo.

Não há dúvida de que uma classe de homens tão influentes compreende indivíduos extremamente talentosos, até mesmo pessoas das mais eminentes de nosso tempo. Mas a filosofia que inspira as suas atividades limita-lhes a visão. Em virtude de suas relações com partidos políticos e grupos de pressão, que procuram obter privilégios especiais para os seus membros, passam a ter uma visão unilateral. Fecham os olhos às consequências de longo prazo das políticas que defendem; só se importam com os interesses imediatos do grupo a que estão servindo.

O objetivo final de seus esforços é a prosperidade de seu cliente à custa de outras pessoas. Procuram convencer-se de que o destino da humanidade coincide com os interesses de curto prazo de seu grupo; tentam vender essa ideia para o público. Ao lutarem por um preço maior da prata, do trigo ou do açúcar, por salários maiores para os membros do seu sindicato ou por uma tarifa sobre produtos estrangeiros mais baratos, proclamam estar lutando pelo bem supremo, por liberdade e por justiça, pelo florescimento de sua nação e pela civilização.

O público encara a prática de lobby com desconfiança e suspeição, e culpa os lobistas pelos aspectos funestos da legislação intervencionista. Entretanto o mal tem raízes mais profundas. A filosofia dos vários grupos de pressão está entranhada nas assembléias legislativas. Nos parlamentos de hoje existem representantes dos pecuaristas, das cooperativas agrícolas, das minas de prata, dos vários sindicatos, das indústrias que não podem suportar a concorrência com produtos estrangeiros sem a adoção de tarifas protecionistas, e de muitos outros grupos de pressão. Poucos são os que colocam os interesses da população acima dos interesses do seu grupo. 

O mesmo ocorre nos vários órgãos da administração pública. O ministro da agricultura se considera um defensor dos interesses dos produtores agrícolas; seu principal objetivo consiste em aumentar o máximo possível os preços dos produtos agrícolas. O ministro do trabalho se considera um defensor dos sindicatos; sua primeira meta é fazer com que os sindicatos sejam temidos e respeitados. Cada ministério cuida de sua própria vida e seus interesses conflitam com os de outros ministérios.

Muita gente atualmente deplora a falta de verdadeiros estadistas. Ora, onde predominam as ideias intervencionistas, só aqueles que se identificam com os objetivos de um grupo de interesse podem fazer uma carreira política. A mentalidade de um líder sindical ou de um dirigente de associação rural não é a mesma que a de um estadista de visão. O verdadeiro estadista procura invariavelmente estabelecer políticas de longo prazo; aos grupos de pressão só interessam os resultados de curto prazo. A causa do lamentável fracasso do regime de Weimar e da Terceira República francesa foi o fato de seus políticos não serem mais do que representantes dos interesses de grupos de pressão.

A previsão econômica como profissão

Quando os empresários finalmente se dão conta de que a expansão econômica criada pela expansão artificial do crédito acabará invariavelmente resultando numa recessão, torna-se importante para eles saber quando ocorrerá essa mudança da conjuntura. Procuram então o economista, na presunção de que ele poderá responder a essa questão.

O economista sabe que o boom deverá resultar numa depressão; mas não sabe e nem pode saber quando ocorrerá a crise. Depende das circunstâncias específicas de cada caso.

Inúmeros eventos políticos podem influenciar os acontecimentos. Não existem regras para predizer a duração do boom e quando ocorrerá a consequente depressão. E mesmo que essas regras existissem, de nada adiantariam aos empresários. O que um determinado empresário precisa, a fim de evitar perdas, é saber que a crise é iminente, enquanto os outros empresários ainda estão pensando que o boom irá perdurar. Essa específica percepção lhe permitirá ajustar convenientemente os seus negócios de maneira a passar incólume pela crise. Se o fim do período de boom pudesse ser calculado segundo alguma fórmula, todos os empresários saberiam qual seria esse momento. Seus esforços para se ajustarem a essa informação provocariam imediatamente o surgimento de todos os fenômenos da depressão. Seria tarde demais para que qualquer deles pudesse deixar de ser penalizado.

Se fosse possível saber a situação futura do mercado, o futuro não seria incerto. Não haveria nem lucro e nem perda empresarial. O que as pessoas esperam dos economistas está além da capacidade do ser humano.

A própria ideia de que o futuro seja passível de previsão, de que algumas fórmulas possam substituir aquela percepção específica que é a essência da atividade empresarial, e de que o conhecimento dessas fórmulas possa permitir que qualquer pessoa assuma o comando da atividade econômica é, sem dúvida, uma consequência do conjunto de falácias e equívocos que alimentam as atuais políticas anticapitalistas. Não há, no conjunto da obra habitualmente denominada de filosofia marxista, a menor referência ao fato de que a principal razão de ser da ação humana é preparar-se para um futuro incerto. O fato de o termo especulador ser atualmente utilizado com uma conotação pejorativa demonstra claramente que os nossos contemporâneos nem sequer suspeitam do que consiste o problema fundamental da ação humana.

Discernimento empresarial não é algo que possa ser comprado ou vendido. O empresário bem-sucedido que consegue auferir lucros é precisamente aquele cujas ideias não são as adotadas pela maioria das pessoas. Para obter lucros, não basta fazer uma previsão correta; é preciso prever melhor do que os outros. O prêmio vai para os dissidentes que não se deixaram enganar pelos erros comumente aceitos pela maioria. O que dá origem ao lucro do empresário é o atendimento de futuras necessidades que os seus concorrentes não souberam identificar.

Os empresários e os capitalistas só colocarão em risco o seu próprio bem-estar material se estiverem plenamente convencidos da consistência de seus planos. Jamais arriscariam o seu patrimônio só porque um especialista assim os aconselhou. Os tolos que aplicam recursos nas bolsas de valores ou de mercadorias, seguindo informações confidenciais, estão fadados a perder o seu dinheiro, qualquer que seja a fonte de sua "informação".

Na realidade, qualquer empresário judicioso tem plena consciência da incerteza do futuro. Tem consciência de que o economista, no máximo, pode elaborar uma interpretação dos dados estatísticos do passado, mas não uma informação segura sobre o que irá ocorrer no futuro. Para o capitalista e para o empresário, as opiniões dos economistas sobre o futuro valem apenas como conjecturas discutíveis. São céticos e não se deixam enganar facilmente.

Mas, como consideram importante e útil conhecer todas as informações de relevância para os seus negócios, interessam-se por jornais e revistas especializados em prognósticos econômicos. Com a preocupação de estar a par de todas as informações disponíveis, as grandes empresas empregam equipes de economistas e estatísticos.

As previsões econômicas não podem fazer desaparecer a incerteza do futuro e nem destituir a atividade empresarial de seu caráter intrinsecamente especulativo. Mesmo assim, podem prestar alguns serviços, uma vez que reúnem e interpretam dados disponíveis sobre as tendências econômicas e sobre a evolução econômica do passado recente.

A economia e o cidadão

A economia não pode ser relegada às salas de aula e aos departamentos de estatística, e nem pode ser deixada a cargo de círculos esotéricos. A economia é a filosofia da vida humana e da ação, e diz respeito a todos e a tudo. É o âmago da civilização e da própria existência do homem.

Mencionar este fato não significa ceder à fraqueza tão comum que consiste em supervalorizar a importância de seu próprio ramo do conhecimento. Não são os economistas que atribuem essa importância à ciência econômica; são as pessoas em geral.

Todos os temas políticos da atualidade tratam de problemas comumente denominados de econômicos. Todos os argumentos usados hoje em dia nos debates sociais e políticos são de natureza essencialmente praxeológica e econômica. Todas as mentes se preocupam com doutrinas econômicas. Filósofos e teólogos parecem estar mais interessados em problemas econômicos do que nos problemas que as gerações passadas consideravam objeto da filosofia e da teologia. Os romances e as peças teatrais de hoje tratam, todos, de temas humanos — inclusive as relações sexuais — sob o ângulo de doutrinas econômicas. O mundo todo, consciente ou inconscientemente, pensa em economia. Ao se filiar a um partido político, ao colocar o seu voto, o cidadão implicitamente está manifestando-se sobre teorias econômicas.

Nos séculos XVI e XVII, a religião era o tema central das controvérsias políticas européias. Nos séculos XVIII e XIX, na Europa como na América, a questão dominante era governo representativo versus absolutismo. Hoje, é economia de mercado versus socialismo.

Esse é, certamente, um problema cuja solução depende inteiramente da análise econômica. É inútil recorrer aslogans vazios ou ao misticismo do materialismo dialético.

Ninguém tem como fugir à sua responsabilidade pessoal. Quem — seja quem for — não usar o melhor de sua capacidade para examinar esses problemas estará voluntariamente submetendo seus direitos inatos a uma autodesignada elite de super-homens. Em assuntos tão vitais, confiar cegamente nos "entendidos" e aceitar passivamente mitos e preconceitos vulgares equivale a renunciar à sua própria autodeterminação e submeter-se à dominação de outras pessoas. Para o homem consciente, nada é mais importante na atualidade do que a economia. Está em jogo o seu próprio destino e o de sua descendência.

São muito poucos os que podem contribuir com alguma ideia que produza consequências para o acervo do pensamento econômico. Mas todos os homens sensatos precisam familiarizar-se com as lições da economia. Nos dias que correm, esse é um dever cívico primordial.

Queiramos ou não, o fato é que a economia não pode continuar sendo um esotérico ramo do conhecimento, acessível apenas a um grupo de estudiosos e de especialistas. A economia lida com problemas fundamentais da sociedade; concerne a todos e pertence a todos. É a preocupação mais importante e mais característica de todos os cidadãos.

A economia e a liberdade

O papel proeminente que as ideias econômicas representam na administração pública explica por que os governos, os partidos políticos e os grupos de pressão procuram restringir a liberdade de pensamento econômico. Procuram propagar a "boa" doutrina e silenciar as "más" doutrinas. Para eles, a verdade não tem força suficiente para impor-se por si mesma. Para poder prevalecer, a verdade precisa ser respaldada pela ação violenta da polícia ou de outros grupos armados. A verdade de uma doutrina depende de que seus defensores sejam capazes de derrotar pela força os partidários das outras doutrinas. F ica implícita a noção de que Deus ou alguma entidade mítica dirige o curso das atividades humanas e confere a vitória aos que lutam pela boa causa. O poder vem de Deus e sua missão sagrada é exterminar os heréticos.

Não vale a pena repisar as contradições e inconsistências dessa doutrina de intolerância e perseguição de dissidentes. Jamais em tempo algum o mundo conheceu um sistema de propaganda e de opressão tão bem arquitetado como o que é adotado pelos governos contemporâneos, pelos partidos políticos e pelos grupos de pressão. Apesar disso, todos esses edifícios desmoronarão como castelos de cartas, tão logo uma grande ideologia os enfrente.

Não só nos países governados por bárbaros ou por déspotas, mas também nas assim chamadas democracias ocidentais, o estudo de economia está praticamente proscrito. A discussão pública sobre os problemas econômicos ignora quase que inteiramente tudo o que os economistas disseram nos últimos duzentos anos. Preços, salários, juros, lucros são manipulados como se sua determinação não estivesse sujeita a qualquer lei. Os governos decretam e tentam impor valores máximos para as mercadorias e mínimos para os salários. As autoridades exortam os empresários a reduzir os lucros, a diminuir os preços e a aumentar os salários, como se esses assuntos dependessem apenas da boa vontade dos indivíduos. 

Nas relações econômicas internacionais, as pessoas recorrem irresponsavelmente a um mercantilismo primário. São poucos os que têm consciência dos erros de todas essas doutrinas em voga, e que compreendem por que tais políticas invariavelmente provocam desastres.

Esta é a triste realidade. Mas só há uma maneira de modificá-la: prosseguir, sem descanso, na busca da verdade.

Ludwig von Mises  foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O TAMANHO NÃO CONTA

Sérgio Dávila escreveu nesta Folha a favor da polarização em política. Será que o sistema brasileiro, com seus 30 partidos, é mais desejável do que o sistema bipartidário norte-americano, onde republicanos e democratas se alternam no poder? Dávila pensa que não --e pensa muito bem.
Há anos que, em Portugal, travo a mesma batalha: a democracia lusa estaria melhor servida se existissem dois grandes partidos --um de esquerda, outro de direita-- capazes de deterem maiorias sólidas e de serem solidamente responsabilizados por seus atos.
Não é uma batalha fácil: sempre que alguém levanta a bandeira do bipartidarismo, chovem acusações de fechamento democrático e de horror ao pluralismo. Em minha defesa, só posso invocar o nome de um dos maiores apologistas da "sociedade aberta": o filósofo Karl Popper.
Em 1987, Popper, então com 85 anos, esteve em Lisboa para uma notável conferência sobre a sua vida e, em especial, a sua teoria da democracia.
Sobre a vida, os fatos são conhecidos: nascido em Viena em 1902, Popper atravessou a Primeira Guerra Mundial; encantou-se com o comunismo; desencantou-se logo a seguir; assistiu, horrorizado, à ascensão do nazismo; e construiu uma impressionante obra filosófica no exílio.
Mas nesse encontro em Lisboa, o velho filósofo concentrou-se sobretudo na sua teoria da democracia. Para Popper, a democracia é um problema eminentemente prático e técnico. Ela procura saber como remover os maus governantes sem derramamento de sangue.
Naturalmente que cabe ao povo, pela força do voto, essa punição exemplar. Mas Popper sublinhava que essa punição só é verdadeiramente exemplar --um "dia do juízo final", dizia ele-- em sistemas tendencialmente bipartidários.
A afirmação pode soar bizarra: o aumento do número de partidos deveria significar mais escolha, mais ideias em circulação, melhor distribuição de poder e influência.
Um erro, avisava Popper. Para começar, a existência de muitos partidos traz dificuldades acrescidas à formação de governos coesos --para não falar do funcionamento e da duração desses governos.
Em Portugal, esse aviso é uma evidência empírica: desde a instauração da democracia, há mais de 35 anos, o país teve oito governos de coalização. Nenhum deles --repito: nem um-- chegou ao fim do seu mandato. Só governos de um único partido o conseguiram.
Aliás, o atual governo de coalização ilustra o ponto: eleito há pouco mais de um ano, as fissuras são já gritantes. Poucos creem na sua sobrevivência a curto prazo.
Mas há mais: sistemas pluripartidários tendem a conceder aos pequenos partidos um poder que pode revelar-se, ironicamente, antidemocrático. Se a democracia significa a escolha da maioria, não cabe a uma minoria determinar a vontade livremente expressa das maiorias.
Os pequenos partidos, explicava Popper, acabam por adquirir um poder desproporcionado na formação de governos e no processo decisório desses governos.
Finalmente, o argumento de peso: enganam-se os que pensam que sistemas bipartidários têm menor flexibilidade ideológica. Os dois grandes partidos americanos, por exemplo, apresentam uma capacidade de reforma e autocrítica internas sem paralelo com qualquer outro sistema pluripartidário.
Essa capacidade --mais: esse imperativo de reforma e autocrítica-- está diretamente ligada com a dimensão e o significado das derrotas eleitorais.
Nos Estados Unidos, quem perde, perde a sério. A derrota não é apenas um prejuízo facilmente dissolúvel em dezenas de pequenos partidos. É uma derrota clara que exige uma resposta clara de explicação para essa derrota; e de busca de novas ideias para regressar ao poder.
Como dizia Popper, nas democracias bipartidárias os partidos vivem "em alerta permanente". O que significa uma atenção redobrada (e permanente) às necessidades reais do país e, claro, ao comportamento do partido rival na forma como governa e nas decisões que toma enquanto está no poder.
Bipartidarismo é maturidade, escrevia Dávila. Acrescento: maturidade e qualidade. Quem disse que o tamanho não conta estava só a pensar na quantidade das siglas partidárias.
Por: João Pereira Coutinho, Folha de SP

SANTA CIÊNCIA

Policiais inspecionam casas ao redor da sede do governo em Áquila, cidade mais afetada pelo terremoto
E o anedótico aconteceu: sete cientistas italianos foram condenados a seis anos de prisão. Motivo?

Foram incapazes de prever o terremoto de Áquila, em 2009, que matou mais de 300 pessoas. "Homicídio culposo", decretou o tribunal: antes do terremoto propriamente dito, vários tremores de baixa intensidade tinham assolado a região. Os cientistas deveriam ter feito "mais".

O quê, por exemplo?

Ninguém sabe. Nem sequer a ciência: vários geólogos foram consultados durante e depois da sentença. O pasmo e a indignação eram gerais: não é possível, cientificamente falando, prever com rigor um terremoto. Como é possível a um tribunal de um estado democrático condenar a ciência por ser incapaz de fazer o impossível?

Boa pergunta. Infelizmente, ela ignora o espírito do nosso tempo: um tempo que não aceita a inevitabilidade de qualquer desastre natural; um tempo que procura sempre falhas humanas, demasiado humanas, para explicar o imponderável.

De certa forma, continuamos em pleno século 18, repetindo velhos argumentos com roupagens novas. Em 1755, por exemplo, Lisboa foi devastada pelo Grande Terremoto. A hecatombe representou o início de uma discussão filosófica que percorreu a Europa religiosa e letrada.

Para os religiosos, o terremoto era um castigo divino destinado a punir a licenciosidade dos homens. O italiano Gabriel Malagrida (1689 - 1761) foi um dos rostos mais fervorosos desse fervor: o sismo tinha sido um castigo, sim, mas era apenas um primeiro aviso. Os homens que se preparassem para o verdadeiro Juízo Final - e que se arrependessem dos seus pecados entretanto.

Para as inteligências seculares, com Voltaire à cabeça, o terremoto era o oposto: a prova acabada de que Deus não existia. Ou, se existia, não passava de um demiurgo cruel, entretido a esmagar as suas criaturas.

No debate sobre o Grande Terremoto de Lisboa, cada um aproveitou a desgraça para cavalgar os seus próprios preconceitos ideológicos.

O que poucos fizeram foi aceitar o básico: que Lisboa tremera; que o mar engolira a cidade; e que os incêndios destruiram tudo o resto.

Passaram 250 anos. Mas o progresso material do Ocidente não eliminou da nossa cabeça hominídea a necessidade de encontrar uma causa que tudo explique e justifique. E se Deus é um luxo a que não nos podemos permitir, como dizia um personagem célebre de Woody Allen, alguém tem que ocupar o Seu lugar.

E esse alguém somos nós, homens, herdeiros da técnica e fazedores de ciência. Nós somos os responsáveis pela destruição do planeta. Nós temos a obrigação de o salvar.

E se por acaso um cataclismo natural emerge sem aviso, nós somos responsáveis pela falta de aviso. As religiões tradicionais podem ter recuado como princípio e fim das explicações mundanas. Mas esse trono não ficou vazio. A Santa Ciência (com maiúscula) ocupou o seu lugar.

Hoje, sete geólogos são condenados por não terem evitado o inevitável e por não terem previsto o imprevisível. Amanhã, não será de admirar que os tribunais comecem a condenar os médicos por não terem abolido a morte dos pacientes; ou então os astrofísicos por não terem abolido os meteoritos gigantes e potencialmente fatais.

O ideal, aliás, era condenar já, por antecipação e precaução, a Humanidade inteira. Assim, quando um desses meteoritos aqui chegar, os tribunais não serão culpados por não terem encontrado a tempo alguém para culpar.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

NONA LIÇÃO

Dez lições de economia para iniciantes - Nona lição: moeda e preços 



israel-coin-Tara-Todras-AP-heads.jpgUm dos maiores avanços de todos os tempos foi sem dúvida a invenção da moeda. Sim, hoje é difícil pensar que as transações eram realizadas sem dinheiro, mas na mais remota antiguidade o que existiam eramtrocas diretas: se você, por exemplo, criava galinhas e desejava comprar arroz, deveria levar algumas galinhas até o mercado (que era um espaço físico) e procurar alguém que, ao mesmo tempo estivesse interessado nas suas galinhas e que tivesse arroz para trocar por elas. É fácil perceber que isso dificultava tremendamente as trocas, porque os custos de transação envolvidos eram gigantescos.

O passo seguinte, centenas de anos depois, em um processo de evolução chamado ordem espontânea, em que as coisas vão sendo descobertas como consequência da ação das pessoas, mas sem que elas planejem como serão descobertas, foi a chamada moeda-mercadoria. Algumas mercadorias, por serem duráveis, por serem fáceis de transportar e, principalmente, por serem aceitas em quase todas as trocas, transformaram-se na moeda da época. O sal foi a principal dessas mercadorias. Então, você não precisava mais levar suas galinhas ao mercado para trocá-las por arroz, bastava levar certa quantidade de sal.

Mais tarde, sempre seguindo essa evolução espontânea, os metais preciosos, como ouro e prata, passaram a ser usados como moeda, especialmente depois da invenção do processo de cunhagem. A etapa seguinte foi a da chamada moeda-papel, um certificado nominativo que você recebia do seu banqueiro declarando que você havia depositado certa quantidade de ouro e que só você poderia pegar de volta quando desejasse. Quando esses papéis passaram a ser ao portador, se transformaram no papel-moeda. E o que chamamos de moeda ou dinheiro passou a ser composto por aqueles certificados (que se transformaram com o tempo nas cédulas) e as moedas metálicas.

Posteriormente, quando os banqueiros descobriram que poderiam emprestar parte do dinheiro que recebiam como depósitos (mesmo este dinheiro não lhes pertencendo, o que é um absurdo) ao público, esses empréstimos, ao gerarem novos depósitos, transformaram-se no que conhecemos como moeda escritural. E a moeda ou dinheiro passou a ser o papel-moeda (mais as moedas metálicas) e os depósitos à vista do público nos bancos comerciais. A faceta mais moderna desse processo evolutivo é a chamada moeda eletrônica, que são os cartões magnéticos utilizados largamente a partir do final do século XX. Qual será o próximo passo? É impossível dizermos, porque, como ressaltamos, a moeda é uma ordem espontânea, um produto da ação humana, porém não planejada.

Os economistas austríacos sempre disseram que aumentos na quantidade existente de moeda não geram benefícios para a sociedade, basicamente porque eles não alteram os serviços de troca que a moeda proporciona; apenas diluem o poder de compra de cada unidade monetária. Portanto, não existe nenhuma "necessidade social" que justifique o crescimento da quantidade de moeda, nem mesmo se a produção ou a população aumentarem: simplesmente, as pessoas poderão manter uma proporção maior de dinheiro para uma dada quantidade de moeda, gastando menos, o que fará subir o poder de compra desse dinheiro. Conforme Mises escreveu no capítulo XVII de "Ação Humana", em 1948, "... a quantidade de moeda disponível em toda a economia é sempre suficiente para assegurar a todos tudo o que a moeda faz e pode fazer".

A inflação — que não deve ser entendida simplesmente como um aumento contínuo e generalizado de preços (este é o seu efeito, não a sua causa), mas como uma queda progressiva do poder de compra da unidade monetária e a correspondente elevação dos preços — é um método pelo qual o governo, o sistema bancário que ele controla e os grupos que ele favorece politicamente adquirem a capacidade de expropriar parte da riqueza dos demais grupos da sociedade. Portanto, é mais do que aconselhável — é crucial — que a sociedade, mediante o estabelecimento de instituições adequadas, impeça que os governos e os políticos tomem conta da quantidade de moeda, emitindo a seu bel prazer. O economista Friedrich von Hayek, um dos gigantes da Escola Austríaca, tem uma frase muito apropriada para descrever esse perigo: "Entregar o controle da oferta monetária aos políticos é o mesmo que pedir a um gato para tomar conta de um pires de leite".

Por sinal, antigamente não eram os governos que emitiam as moedas: elas eram emitidas por banqueiros privados e competiam entre si. Posteriormente é que os governos descobriram que era um grande negócio para eles serem os detentores do monopólio da moeda e inventaram a chamada "moeda de curso legal", aquela que, por decreto, é a moeda "oficial" de um país ou grupo de países. 

Vamos abordar agora uma questão importante e que está sempre relacionada com a moeda. O que vem a ser a inflação? Sua causa primária, sempre e em qualquer lugar, é um crescimento na moeda e no crédito sem lastro em aumentos correspondentes na produção, na produtividade e na população. Na verdade, a inflação deve ser definida mais propriamente como essa ampliação na oferta de moeda e crédito, e não da forma que se tornou usual — como um aumento contínuo e generalizado de preços. A utilização da palavra "inflação" com este segundo significado tem gerado muitas interpretações incorretas ao longo dos anos, produzindo diagnósticos equivocados e terapias desastrosas. Obviamente, expansões monetárias não são o mesmo que as elevações em todos os preços que elas provocam, porque causa não é efeito.

Inflação significa simplesmente que se a moeda e o crédito são "inflados", os agentes econômicos passam a dispor de mais dinheiro para comprar bens e serviços; ora, se a oferta desses últimos não cresce à mesma velocidade que a das emissões — o que é de se esperar, pois, no mundo real, tartarugas não conseguem acompanhar lebres —, então seus preços crescerão e continuarão a aumentar enquanto a causa persistir.

Como disse o Professor Mises, a batata é mais barata do que o caviar porque sua oferta é muito mais abundante. Pois em um processo inflacionário, a moeda e o crédito desempenham o papel da batata e os demais bens e serviços o do caviar: para comprar as mesmas quantidades de produtos, serão necessárias cada vez mais unidades monetárias, assim como para comprar caviar se gasta mais do que para comprar batatas. É tão simples! Se há mais reais circulando sem lastro, nada mais natural do que o valor do real diminuir relativamente aos dos demais bens!

Uma das falácias mais repetidas é a de que a causa da inflação não são excessos de moeda e crédito, mas "escassez" de produtos. É verdade que um aumento de preços — que não deve ser confundido com inflação — pode ser causado tanto por expansões da moeda e do crédito como por escassez de produtos, ou por ambos. O preço do trigo, por exemplo, pode crescer temporariamente por conta de algum problema na safra, mas não há caso, mesmo em economias de guerra, de aumentos generalizados de preços gerados por escassez universal de bens. Na Alemanha pós-guerra de 1923, por exemplo, os preços subiam astronomicamente, todos reclamavam contra a escassez generalizada, mas levas de estrangeiros entravam no país para comprar produtos alemães, porque muitos preços eram menores na Alemanha do que em seus países.

Guarde o seguinte: existe inflação, mas não existe "inflação dos alimentos", ou "inflação" da cenoura, do chuchu, dos barbeiros, das pizzas, do cafezinho ou do petróleo. Por mais importante que seja na economia, nenhum produto é capaz de provocar aumentos permanentes em todos os demais, mas, devido ao péssimo hábito de se olhar apenas para o que os índices mensais de preços refletem, sempre é possível encontrar o vilão da vez, o bandido do mês, aquele preço que subiu acima da média...

Sair em uma noite fria sem estar agasalhado costuma causar gripe, cujos sintomas — dores no corpo, prostração e entupimento nasal — apenas se manifestam dois ou três dias depois. Da mesma forma, a inflação nasce quando ocorre crescimento sem lastro na moeda e no crédito e se torna visível alguns meses depois, quando todos os preços começam a subir sem parar.

As variações na quantidade de moeda em circulação não são "neutras" porque não afetam todos os preços de maneira uniforme e, portanto, alteram os preços relativos e, assim, a estrutura de capital, como veremos na próxima aula!

A idéia central dos austríacos é que o dinheiro novo entra em um ponto específico do sistema econômico e, sendo assim, ele é gasto em certos bens e serviços particulares, até que, gradualmente, vai-se espalhando por todo o sistema, assim como um objeto qualquer, ao ser atirado na superfície de um lago, forma círculos concêntricos com diâmetros progressivamente maiores, ou como quando se derrama mel no centro de um pires e ele vai-se espalhando a partir do montículo que se forma no ponto em que está sendo derramado (analogias, respectivamente, de Mises e Hayek). Por isso, alguns gastos e preços mudam antes e outros mudam depois e, enquanto a mudança monetária — digamos, uma expansão do crédito — for mantida, sua irradiação para gastos e preços persiste em movimento.

Assim, as alterações provocadas nos preços relativos, que são definidos como as comparações de todos os preços tomados dois a dois, produzem mudanças na alocação de recursos. Quando ocorre uma expansão do crédito bancário, supondo que as expectativas quanto à inflação futura não existam, as taxas de juros, inicialmente, caem, mantendo-se abaixo dos níveis que alcançariam se o crédito não tivesse aumentado. O efeito disso é que, necessariamente, os padrões de gastos sofrerão alterações: os gastos de investimentos subirão relativamente aos gastos de consumo corrente e às poupanças. Portanto, a expansão monetária, necessariamente, provoca uma descoordenação entre os planos de poupança e de investimento do setor privado. Esse impacto descoordenador da política monetária é essencial na visão hayekiana, mas não é levado em conta pela teoria macroeconômica convencional.

Como este curso é dirigido a iniciantes em economia, não vamos discutir a importantes questões: os governos devem continuar detendo o monopólio sobre a moeda? Os bancos centrais devem mesmo existir? Para incentivar você a se aprofundar no fascinante mundo econômico, vamos apenas dizer que a resposta de alguns austríacos (entre os quais me incluo) para ambas as perguntas é: não!

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 

EDUCAÇÃO E LIBERDADE


Educação e liberdade: apontamentos para uma prática pedagógica não coercitiva


Introdução

education-.jpg
No debate sobre temas referentes à liberdade, a perspectiva abordada pela tradição liberal é ver a liberdade como liberdade negativa. Neste ponto de vista a liberdade é um conceito formal, sendo resumido à máxima "liberdade é ausência de coação". Para uma discussão política puramente teórica é importante que o termo esteja bem definido, porém há outros pontos que podem enriquecer o debate acerca da liberdade.

O que a tradição — não apenas liberal, mas filosófica — negou durante muito tempo foi a presença do corpo. A liberdade pode ser conceituada, mas a condição de estar livre é sentida no corpo. Uma algema retirada do pulso não é simplesmente a ausência da coação para com a mobilidade, há uma experimentação física. O metal gelado é retirado da pele, o sangue passa a circular melhor e há o regozijo da troca da condição de preso para a condição de livre. Todo regozijo é sentido no corpo, há alteração da frequência cardíaca, no ritmo da respiração e diversas outras mudanças físicas e hormonais que vão do suor à tremedeira.

Com isto, não intento dizer que a liberdade resume-se às alterações físicas que proporciona. Contudo, a coação para com o indivíduo não pode ser resumida como uma coação apenas formal, pois a coação é também uma coação para com o corpo. É intuito abordar a liberdade num contexto escolar-educacional levando em conta os processos de amarras físicas que a escolarização produz e multiplica.

Uma abordagem apenas política e econômica é capaz de discutir temas referentes à qualidade, à eficiência e ao direito, por exemplo. A perspectiva deste trabalho é discutir a possibilidade de um ensino não coercitivo.

É tema recorrente nos escritos deste autor a questão da obrigatoriedade. A realização política prussiana da obrigatoriedade legal do envio dos infantes, reproduzida posteriormente pelas outras nações que se consolidavam na modernidade, não é uma obrigatoriedade apenas conceitual. As consequências físicas para este tipo de decisão constitucional são a retirada do tempo de vida, o confinamento espacial, o condicionamento físico e motor, bem como todo tipo de conformismo social através do domínio psicológico. Estas formas de controle e domínio poderiam ser facilmente abolidas com a abolição do sistema educacional e das condições jurídico-criminais que obrigam os pais a enviarem seus filhos para a escola.

Entretanto, seria ingenuidade imaginar que apenas a não obrigatoriedade educacional-escolar construiria um ambiente de plena ausência de coação. Há diversos fatores que impedem a plena realização da liberdade dentro deste tema. Um primeiro problema é a constatação de que nem todos os pais possuem condições intelectuais e temporais para realizarem o ensino domiciliar (homeschooling). É preciso frisar que uma defesa da liberdade é a defesa de que os pais que desejarem aplicar esta modalidade de ensino devem estar livres para fazê-lo. Sem a obrigatoriedade de enviar filhos para uma escola, alguns pais escolheriam ensiná-los em casa, mas muitos outros pais, desejosos em educar e seus filhos e sem tempo ou condições, continuariam a enviá-los para uma escola. Por este motivo é preciso pensar não apenas num ambiente sem coação estatal, mas também numa prática pedagógica não coercitiva. É incompatível uma luta contra o poder coercitivo do estado e a manutenção de uma prática coercitiva.

Prática pedagógica livre

A primeira necessidade é discutir o modelo pedagógico desejado para a prática da liberdade, tendo em vista que as escolas não deixarão de existir mesmo com o fim da obrigatoriedade da escolarização.

Começando com a produção bibliográfica libertária há o livro Education: Free and Compulsory de Murray Rothbard. Neste paper, o fundador do moderno libertarianismo aponta que o melhor ensino é aquele realizado numa relação um para um (ROTHBARD, 1999). Significa que vê no antigo modelo de tutoria, no qual o preceptor se dedicava exclusivamente ao aprendiz, a melhor realização do processo de ensino-aprendizagem. Não é um mero detalhe o fato deste modelo ter um alto custo. É preciso um preceptor que possua fluência em diversos saberes. Seu tempo de dedicação é um bem e precisa ser justamente ressarcido, isto é, o valor pago deve ser um acordo entre ele a família de seu aprendiz. O custo elevado torna esta modalidade inviável para todos os bolsos, além de sua inviabilidade devido a falta de profissionais capacitados.

Na esfera do factível Rothbard (1999) retoma um antigo conceito. Defende um ensino de conteúdos primários, isto é, ler, escrever e contar. A criança precisa tomar posse da leitura e escrita para que possa usar tais ferramentas para conhecer a produção intelectual da humanidade. A matemática é a ferramenta necessária para desenvolver o raciocínio lógico e é o suporte para se relacionar com os números. Saber contar é saber viver no mundo, saber trocar, medir, pesar.

É certo que um conteúdo basilar permite uma abertura de horizontes e possibilidades. A discussão acerca do que ensinar é extensa. Contudo, faz-se mister comentar um pouco sobre um ponto doravante esquecido ou deixado à margem nas discussões libertárias que priorizam os aspectos políticos e econômicos, a saber, o como ensinar.

Conteúdos devem ser pensados conjuntamente com o método de ensino. Independente de ser escolar, domiciliar, tutorial, o ensino precisa ser dado de modo que não exista coação. É preciso aliar um ensino eficaz com a liberdade e aqui é preciso pensar em alguns pontos.

Referente ao ensino escolar, contexto no qual há uma estrutura hierárquica, um colegiado e discentes das mais variadas culturas, a escola tradicional impõe uma excelência e disciplina que necessita ser seguida. Neste sentido trata os alunos da mesma forma que a tradição liberal trata os cidadãos. Todos são formalmente iguais. Esta igualdade formal não leva em conta a individualidade, a pessoalidade e o fato de indivíduos possuírem estruturas mentais e psíquicas diferentes dos demais pares. Formalmente o tratamento igual pode ser uma caracteriza interessante, mas pedagogicamente é preciso levar em conta o indivíduo, sem lidar com uma sala de aula como se houvesse homogeneidade.

Se o melhor ensino é o individual, não o coletivo, como educar coletivamente sem que o ritmo e os conteúdos sejam violentos para as crianças? No pensamento pedagógico há algumas possibilidades.

Um modelo pedagógico que se preocupou, em parte, com esta problemática foi o movimento da Escola Nova. Um dos pontos levados em conta por pensadores como John Dewey, Maria Montessori e, salvo as devidas diferenças, Jean Piaget, é pensar em quem está sendo ensinado. É preciso compreender o indivíduo que está aprendendo, seus interesses, anseios e estrutura psicológica. Neste sentido, a escola precisa levar em conta o tempo de aprendizado da criança, seu interesse em aprender e suas capacidades motoras, psicológicas e intelectuais. Apesar de não serem totalmente não dirigistas, os escolanovistas pensaram elementos que permitem uma liberdade de aprendizado e, em certo grau, levam em conta o momento e interesse da própria criança. Tais princípios colaboram na elaboração de uma pedagogia não coercitiva em comparação com a pedagogia tradicional.

Muito mais centrada na ideia de não direcionar a criança está a proposta não diretiva de educação, da qual Carl Rogers é seu principal defensor. Para ele o professor deve ser um facilitador do desenvolvimento, mas este ocorre internamente na criança. A educação é centrada na criança, que deve se autorrealizar enquanto indivíduo. O centro deste modelo educacional é o self (eu). A criança precisa valorizar e buscar constituir a si mesma. Currículos e avaliações não possuem espaço, pois "toda intervenção é ameaçadora, inibidora da aprendizagem" (LUCKESI, 2011, p. 79).

De encontro aos modos de pensar acima há o pensamento progressista, que foca na construção de um indivíduo crítico perante a realidade. Este projeto libertador, na concepção freireana, é marcado por um engajamento político de transformação social. A transformação, porém, é marcada por uma visão de mundo inerentemente marxista. Neste sentido, visa influenciar não diretamente o contexto escolar, mas extraescolar, com o intuito de transformar a sociedade conjuntamente com a escola.

Uma perspectiva mais "libertária", no sentido mais anarquista e menos libertarista, ataca a própria estrutura escolar. O ensino deve ter como base a autogestão e a autonomia. Nos termos do pensamento do educador brasileiro Tragtenberg, esta autogestão e autonomia estão relacionadas com o coletivo, no caso os alunos. Esta linha do pensamento, que também faz uma ponte com a ideia de Rogers, tem muito a acrescentar quando se pensa numa educação não coercitiva. Obviamente que numa perspectiva individualista a ideia da construção coletiva tende a encaminhar a prática para determinada heteronomia. Entretanto, o convívio com outros não é determinante para a construção do indivíduo, visto que este não é apenas fruto de interações sociais. A vivência, a experiência e as trocas favorecem o desenvolvimento da individualidade e da pessoalidade dos sujeitos. Por outro lado, numa perspectiva de gestão escolar, escolas autogeridas e cooperativas de pais para proporcionar ensino aos seus filhos são soluções inteligentes no sentido de dissolver custos e propiciar métodos pedagógicos alternativos que estejam de acordo com o ideal de ensino defendido pela associação de pais.

A abertura de possibilidades para pensar uma prática pedagógica livre está feita. Controles escolares como conteúdos, horários, uniformes, uso do espaço arquitetônico, hierarquia e métodos são e devem ser criticados. Todos eles afetam diretamente a ideia de que a criança é dona de si mesma, tratando-a como pertencente aos responsáveis por sua educação, como os pais, professores, sociedade e estado. O não cerceamento da prática escolar possibilita invenções e reinvenções. Este é o papel dos pensadores, professores, educadores e pais que desejam educar.

Certamente que num ambiente sem intervenções como a do Ministério da Educação haveria uma "concorrência" de modelos escolares. Pais observariam resultados e colocariam seus filhos em colégios que se adequassem a aquilo que buscam para seus filhos. Nesta busca por uma utilidade do ensino, pais que visam educar, no sentido amplo do termo, devem se ater aos aspectos não apenas conteudistas, mas também a uma forma de ensino que leve em conta a criança como um indivíduo único.

Homeschooling e relação entre pais e flhos

Discutimos modelos e práticas pedagógicas escolares. Precisamos discutir um pouco outro aspecto da educação, aquela que se dá no primeiro ambiente socializador, a família.

Não há ambiente mais contraditório do que a família. A relação pais-filhos é permeada por problemáticas que envolvem responsabilidades e direitos individuais. O papel e função dos pais e seus limites de atuação constituem enorme debate. A criança ainda não está totalmente constituída e por este motivo há o debate sobre até que ponto os pais devem direcionar seus filhos.

Um bom resumo sobre a questão foi apresentado por Stephan Kinsella, baseando-se nos escritos de Hoppe e Rothbard, ao escrever "quem é o dono do corpo de uma criança? Inicialmente, os pais o são, como um tipo de tutor temporário." (2008).

Ao que se segue: os pais têm mais direitos sobre a criança do que quaisquer estranhos, por causa de seu elo natural com a criança. Entretanto, quando a criança se "apropriar" de seu corpo, estabelecendo o necessário elo objetivo suficiente para estabelecer a auto-propriedade, a criança se torna um adulto, por assim dizer, e agora passa a ter uma melhor reivindicação sobre seu corpo em relação a seus pais. (Idem)

Esta abordagem nos leva a pensar que, enquanto tutores temporários, os pais não devem interferir na propriedade (autopropriedade) de seus filhos, muito menos suprimir suas liberdades tornando suas casas aprisionamentos. A criança deve ser livre para poder sair de casa e é este o argumento de Rothbard para a realização da maioridade, a condição de poder se autossustentar.

Deixando de lado a discussão legal sobre direitos positivos, amplamente discutida por Rothbard e Hoppe, os pais possuem geralmente um desejo moral em educar seus filhos. É neste ponto que é preciso pensar a prática educacional em casa como possibilitador da compreensão da liberdade.

O primeiro ponto é a agressão física. Por mais que ideologicamente pais defendam a palmada, este recurso não é efetivamente bom. Uma punição física pela não adequação a uma regra ou ordem ensina a criança que a agressão é um recurso válido socialmente para conduzir terceiros no caminho esperado. Definições de regras claras, construídas com as crianças são formas mais eficazes. É preciso levar a criança a refletir sobre suas ações para que perceba a violação da liberdade e propriedade de terceiros. Uma educação livre não é obviamente um total deixar fazer. É deixar fazer tudo aquilo que não agrida a liberdade e propriedade de terceiros.

É preciso ter cuidado para que o convívio doméstico não se torne um aprisionamento. Este aprisionamento é uma das críticas feitas aos adeptos do homeschooling. Tendo em vista as práticas pedagógicas centradas na liberdade, os pais precisam estudar e se apropriar das ideias de não dirigismo. Uma das maiores diferenças entre um ensino em casa e um ensino escolar é a possibilidade da criança aprender o que deseja no tempo que deseja. A intencionalidade da criança é o que a motivará a direcionar seus estudos para aquilo que considera de mais valia e esteja de acordo com suas aptidões naturais.

A restrição de atividades, horários e conteúdos torna-se uma reprodução do ambiente escolar tradicional. O aprisionamento corporal pode dar-se em casa, tendo resultados contrários aos desejados pelos pais.

Conclusão

Desejando-se pensar sobre educação e liberdade também é necessário desejar uma educação não coercitiva. Os controles e restrições escolares afetam diretamente o desenvolvimento intelectual, psíquico e físico. É preciso não apenas pensar uma escola sem determinantes políticos e econômicos e seus dirigismos estatais, mas pensar um ensino não coercitivo.

Retirar o estado das questões educacionais possibilita novas invenções pedagógicas da mesma forma que a retirada da coerção pedagógica leva a novas invenções individuais. A realização da plenitude do indivíduo autônomo não ocorrerá sem um ambiente propício. Assim, é preciso que os defensores de liberdades individuais e econômicas pensem sobre suas ações. Pais e professores desejosos em ensinar a liberdade possuem esta tarefa moral para com suas crianças. 

Texto originalmente publicado na Revista Estudos Pela Liberdade, nº 2
Bibliografia
LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. 3ª. Ed. São Paulo: Cortez, 2011.
ROTHBARD, Murray Newton. Education: free and compulsory. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 1999. Original em 1972.

 C.F.: Hoppe. Uma teoria sobre socialismo e capitalismo. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010, e Rothbard, A ética da liberdade. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010.

Filipe Celeti é bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma instituição.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

UM PAÍS EMPERRADO


A empresa brasileira gasta em média 2.600 horas, cada ano, para cuidar dos impostos. A empresa colombiana, 203. Na União Europeia, o dispêndio é de 193 horas. Indicadores desse tipo mostram uma economia travada, onde os empresários têm muito menos tempo que seus concorrentes estrangeiros para cuidar de inovação, produção, qualidade e estratégia comercial. São forçados a enfrentar, no dia a dia, uma sequência absurda de obstáculos criados quase sempre pelo setor público – por excessos burocráticos, por inépcia administrativa ou simplesmente por omissão. Mais uma vez a pesquisa Doing Business, realizada anualmente pelo Banco Mundial, mostra o Brasil em péssima posição na escala internacional de facilidades – ou dificuldade – de fazer negócios. O levantamento cobre principalmente as condições de operação de pequenas e médias empresas em 185 países, mas as diferenças encontradas valem, de modo geral, para o conjunto de cada economia. O ambiente de negócios é descrito com base em dez tópicos – abertura da empresa, licenças de construção, acesso à eletricidade, registro de propriedade, obtenção de crédito, segurança do investidor, pagamento de impostos, comércio internacional, garantia de contratos e processos de insolvência. O relatório aponta avanços em muitos países em desenvolvimento, mas, no caso brasileiro, as mudanças têm sido escassas e de alcance limitado.

Somadas e ponderadas todas as notas, o Brasil, como no ano anterior, ficou em 130.º lugar na classificação geral, logo depois de Bangladesh e um posto à frente da Nigéria. Só um dos Brics, a Índia, apareceu em posição pior, a 132ª. A África do Sul ocupou o 39º posto, a China, o 91º, e a Rússia, o 112º. A Itália, terceira maior economia da zona do euro, foi a 73ª colocada, mas, de modo geral, as potências capitalistas foram bem classificadas, com os Estados Unidos em 4º lugar, depois de Cingapura, Hong Kong e Nova Zelândia.

Com 13 procedimentos e 119 dias para abrir um negócio (contra 13 dias na Colômbia, por exemplo), o empreendedor brasileiro precisa de muita persistência só para iniciar a atividade. A obtenção de licenças para construção consome no Brasil 131 dias, bem mais que a média regional, 95. O acesso à eletricidade é uma das poucas vantagens comparativas do empresário brasileiro – demora de 57 dias, contra 98 nos países ricos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas essa vantagem se perde no meio de uma porção de entraves, como os 14 procedimentos (o dobro da média regional) e 34 dias necessários para registrar uma transferência de propriedade.Num estudo mais amplo de competitividade seria preciso levar em conta fatores como o peso e a qualidade dos impostos, a infraestrutura, os investimentos em inovação, a qualidade e a disponibilidade da mão de obra, entre outros fatores. Nesse caso, as vantagens das economias mais desenvolvidas seriam mais nítidas e a classificação geral seria diferente. Mas o ambiente de negócios, foco da pesquisa Doing Business, também afeta a eficiência e o poder de competição das empresas e, no caso do Brasil, o peso negativo desse conjunto de fatores é indiscutível. Vários países latino-americanos ficaram em posições bem melhores na classificação geral – casos do Chile (37ª), do Peru (43ª), da Colômbia (45ª) e do México (48ª).

O Brasil perde também quando se trata das condições do comércio exterior. Nesse quesito, o País ficou em 123º lugar na classificação global. Os países da União Europeia ficaram em 36.º e as economias de alta renda da OCDE em 33º. O Chile foi classificado na 48.ª posição e o Peru, na 60.ª. As empresas brasileiras precisam de 7 documentos para exportar (4 na União Europeia) e de 13 dias para o embarque – posição até razoável diante dos padrões globais (10 dias para as economias mais ricas da OCDE). Mas os custos são desastrosos: US$ 2.215 por contêiner, contra US$ 1.004 na União Europeia, US$ 980 no Chile e US$ 890 no Peru. Procedimentos (burocracia excessiva, por exemplo) e infraestrutura são alguns dos itens considerados.

Esses indicadores mostram apenas alguns dos entraves à eficiência. Um quadro completo incluiria vários outros fatores, como o fracasso dos investimentos públicos, as deficiências do transporte, os custos da segurança, o peso e a inadequação do sistema tributário e a situação desastrosa do ensino fundamental. Parte dos empresários e dos analistas prefere, no entanto, discutir a taxa de câmbio. Há quem defenda R$ 2,40 por dólar. Por quanto tempo? É uma atitude confortável para o governo, porque reforça o discurso contra os tsunamis monetários, justifica a solução simplista do protecionismo e torna mais aceitável a política dos incentivos parciais. Já começou a campanha por mais uma prorrogação do IPI reduzido. Para que perder tempo com assuntos de maior alcance?Por: Rolf Kuntz Fonte: O Estado de S. Paulo, 24/10/2012

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

UM OLHAR SOBRE 2013

Nas últimas semanas houve uma boa convergência nas expectativas para 2013. Vejamos os pontos mais relevantes.


O crescimento do final do ano corrente será algo mais lento do que o imaginado. É possível até que a expansão do quarto trimestre sobre o terceiro seja menor que a deste último sobre o segundo. O mesmo ocorre com a visão para 2013: os mais otimistas estão revisando seus números para a faixa de 3,5/4,0%.

Aqui na MB mantemos a projeção para a faixa de 3,0%/3,5% que mencionei nesta coluna no início de agosto ("2012 está perdido. O que será de 2013?").

Reafirma-se hoje que o canal externo não vai melhorar no próximo ano. Embora o risco de uma crise bancária tenha sido mais uma vez afastado pelo Banco Central Europeu, continuam em cena o baixo crescimento da região, o alto desemprego nos países devedores e um lento avanço nas reformas institucionais, que buscam elevar a integração europeia.

A economia americana ainda tem de atravessar seu precipício fiscal e a chinesa chegou, como esperado, aos 7,5% de expansão do PIB. Tudo somado, o mundo não deverá crescer mais que 3,5% em 2013. Com isto, expectativas e exportações seguirão fracas. No caso destas últimas, as coisas serão piores, dada nossa opção preferencial pelos perdedores da América do Sul, em especial a Argentina, pois devemos em especial ao protecionismo da presidente Kirchner a queda observada de 3,5% no quantum exportado de manufaturados, de janeiro a setembro deste ano em relação a 2011. Este é um tema que pretendo abordar proximamente.

A retomada do consumo também será mais lenta do que o desejado, por duas razões, pelo menos: os sucessivos estímulos à compra de veículos garantiram um desempenho razoável para a indústria neste ano. Entretanto, é evidente que parte do resultado é uma antecipação de consumo, que já está levando a uma desaceleração nas vendas. Ao mesmo tempo, tenho convicção de que a expansão de crédito pessoal nos bancos públicos está servindo muito mais para refinanciar um passivo já existente junto ao setor privado, do que novas compras, ao contrário do que ocorreu em 2008/2009. É por isso que o índice das expectativas do consumidor da FGV ainda não mostra melhora consistente até outubro.

Continua sendo verdade que os investimentos estão muito mal. Conforme cálculos da Inter.B Consultoria, que aqui já mencionei, as inversões em infraestrutura vêm caindo sistematicamente de 2,5% do PIB em 2009 para 1,96% neste ano, número incapaz de sustentar crescimento de alguma expressão. Notícias recorrentes de atrasos em grandes projetos, como a transposição do São Francisco, complementam-se com a recente avaliação feita pela Confederação Nacional dos Transportes, de uma sensível perda de qualidade nas estradas brasileiras nos dois últimos anos.

Na mesma direção, o conhecido trabalho realizado pelo Banco Mundial "Doing Business" mostra, na edição de 2013, uma piora expressiva na posição brasileira. Em dois anos caímos dez posições no ranking!

A decisão de conceder uma série de projetos para o setor privado é bem vinda. Entretanto, o sucesso destas ações depende de uma regulação adequada. Infelizmente, a experiência recente na área federal não é favorável, pela recorrência de dois problemas: excesso de objetivos e interferência em questões que devem ser resolvidas pelo concessionário e pelos mecanismos do leilão. Esses fatores explicam o insucesso da concessão de rodovias de 2007, a insatisfação com o modelo dos aeroportos e as dificuldades, que já mencionei aqui, da Petrobrás em atender simultaneamente os objetivos de elevar rapidamente a produção, com um bom padrão tecnológico, a preços parecidos com os internacionais e, ao mesmo tempo, com 60% de utilização de componentes nacionais. O resultado neste caso tem sido a estagnação da produção de petróleo, atrasos nos projetos, fenomenais estouros de orçamento e um enorme stress sobre a companhia.

O mesmo parece acontecer com o recente pacote elétrico, algo que deixamos para analisar mais adiante.

Estes três vetores sugerem que o crescimento de 3% a 3,5% para o ano que vem está de bom tamanho. Neste caso, a economia brasileira terá crescido apenas 2,4% ao ano entre 2011 e 2013.

Embora não exista, evidentemente, consenso, devo dizer que nunca vi tanta gente se convencendo que estamos presos numa armadilha de baixo crescimento, convicção que partilho já há algum tempo. De um lado, a expansão global deverá ser modesta, como se sabe. Ademais, vários analistas vêm chamando atenção para a forte desaceleração do desempenho econômico dos Brics, que pode ser mais tendencial do que apenas de curto prazo. A The Economist trouxe o declínio da África do Sul como tema de capa, argumentando que o baixo crescimento deve se manter por muito tempo. Também não é difícil construir casos semelhantes para a Rússia e para a Índia. Apenas na China, admite-se que a taxa de expansão de 7,5% ao ano possa ser mantida por mais tempo (aos interessados, sugiro a leitura do trabalho de Ruchir Sharma, do número de outubro da Foreign Affairs).

O caso brasileiro, entretanto, parece-me bem forte. Além do fator externo, há hoje uma grande convergência na aceitação de que temos baixíssima competitividade e um modestíssimo crescimento na produtividade. Como consequência, a expansão do Brasil se dá pela incorporação de mão de obra, que não só se tornou escassa, mas é pouco treinada para as necessidades da produção. Há também um vasto consenso que o nosso sistema educacional é paupérrimo e que tem avançado muito pouco. Ademais, apesar de todos os esforços, as empresas brasileiras são pouco inovadoras.

Argumenta-se, corretamente, que a queda na taxa de juros abre espaço para maior investimento. Entretanto, está para mim cada vez mais claro que a queda dos juros pagos pelo Tesouro Nacional será substituída, em larga medida, por maiores gastos de custeio, e não de investimento. Neste caso, parte significativa dos benefícios da queda da Selic se perderá, e o modesto crescimento da economia poderá continuar. Por: JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS  O Estado de S.Paulo - 28/10

A ORIGEM DAS MAZELAS DO BRASIL

A República Velha foi um período de crescimento pífio e muita confusão. Mas a principal característica do Brasil que deixava para trás o Império e a escravidão era o desconforto com o moderno e com a mudança — um tema pra lá de recorrente ao longo da história brasileira.


Sobre essa época, o jornalista Euclides da Cunha diria que o país vivia “num ambiente completamente fictício de uma civilização de empréstimo”. Mais ao final da primeira fase da República, uma resenha diria tratar-se da “história de uma longa e persistente desilusão”.

Essas observações descrevem com precisão o que se passou com a economia nesses anos e fornecem pistas sobre o Brasil de hoje. Não conseguimos ter crescimento econômico — no perío­do, a média anual foi inferior a 1%. Pior: em quatro décadas, aprofundamos a distância que nos separava de outras nações.

Em 1890, a Argentina era 2,7 vezes mais rica do que o Brasil. Em 1930, era 3,8 vezes mais próspera. Na comparação com os Estados Unidos, o número saiu de 4,2 para 5,9. “Nosso mal tem sido este: quisemos ter estátuas, academias, ciência e arte, antes de ter cidades, esgotos, higiene, conforto”, disse o poeta Olavo Bilac em 1903.

Exemplos extraordinários da desconexão entre o Brasil profundo e a minoria educada que conduzia os destinos do país não faltaram. O desafio da modernidade se transformou em conflito com Antônio Conselheiro e a Guerra de Canudos no final do século 19.

Logo em seguida, veríamos a Revolta da Vacina, detonada por uma campanha de erradicação da varíola e pela remoção de casas no centro do Rio de Janeiro. O Brasil era um país de excluídos inclusive na política. De uma população que atingiu 33 milhões em 1930, menos de 100 000 votavam — e os pleitos eram quase totalmente dominados por fraudes.

Na economia, o tema recorrente era o padrão ouro, ou a conversibilidade da moeda a uma sempre polêmica taxa de paridade. Como o sistema métrico decimal, a eletricidade e as largas alamedas próprias das grandes cidades, o padrão ouro era a credencial para que um país participasse de uma economia internacional em grande expansão, processo semelhante ao que hoje denominamos globalização.

O acalorado debate sobre o assunto nada mais era do que uma discussão sobre as políticas cambial e monetária, sobre a organização e o mandato da autoridade monetária — o que pode haver de mais atual? O que pode haver de mais familiar do que a queixa contra o câmbio valorizado?

Em vários sentidos, a primeira década republicana foi um espantoso prenúncio para todo o século que viria logo a seguir. Antes de completar dois anos de idade, a República foi atingida por uma dessas crises financeiras do mundo globalizado. Sua origem estava na Argentina, mas as dificuldades que criava em Londres paralisavam os influxos de capital para o Brasil.

O que se vê em seguida no país é uma crise cambial, logo transformada em crise bancária de dimensões sistêmicas. Surge, então, uma longa discussão sobre o salvamento de vários bancos, entre os quais o que depois se tornaria o Banco do Brasil. Por fim, a década termina com uma dolorosa renegociação da dívida externa, bem no contexto de um programa como os patrocinados pelo FMI em nossos dias.

Ao fim da primeira fase republicana, já era claro que os grandiosos sonhos de modernização e progresso eram somente isto: sonhos. Em 1926, as autoridades brasileiras usaram a criatividade e combinaram o padrão ouro (portanto, câmbio fixo) com operações de compra de estoques excedentes de café, numa espécie de reprise de 1906. Tudo com o objetivo de manter os preços e alcançar percentuais de crescimento mais altos. No total, no entanto, esses mecanismos não duraram muito.

Nos anos posteriores a 1930, as taxas de crescimento do país foram bem maiores, e já se pode falar em industrialização por substituição de importações. Esse bom desempenho ocorrido enquanto a economia internacional se desagregava após a crise de 1929 resultou num enigma: como pudemos crescer tão pouco durante a época mais próspera da economia internacional, quando mais se acentuou a globalização, e acelerar substancialmente o crescimento no momento em que essa ordem internacional entrou em colapso?

Esse enigma acabou resultando na formulação de várias teorias sobre o caráter perverso da ordem econômica internacional. A “dependência” e as “assimetrias” do mundo anterior a 1930 rapidamente se tornaram maldições e, tacitamente, estabeleceu-se uma relação causal entre crescimento e nacionalismo, cuja expressão mais completa foi a substituição de importações e a busca da autossuficiência, ideias ainda hoje muito caras a certos economistas e políticos brasileiros.

O mal-estar com a modernidade e, sobretudo, com uma de suas mais diletas criaturas, a globalização, encontrou apoio nesses conceitos. Mais adiante, porém, quando o mundo retomou e aprofundou a globalização, ficou claro que o grau de abertura de um país era um componente crucial para seu crescimento — não o contrário.

Um encontro com o passado
O pífio crescimento econômico registrado nesses anos foi consequência direta de conhecidos fatores internos nos­sos. Claramente faltou investimento em capital humano. No Brasil, os níveis de analfabetismo e mortalidade infantil foram altos do começo ao fim da Velha República.

Isso num período em que vários outros países registraram “milagres” em matéria de crescimento econô­mi­co justamente por terem investido nessa área, além, claro, de terem aplicado em infraestrutura e construído insti­tui­ções próprias de uma economia de mercado. O estudo da história na Primeira República parece confirmar a sabedoria de uma observação do economista Roberto Cam­pos, morto em 2001, segundo a qual, no Brasil, “é menos importante ter explicações do que bodes expiatórios”.

Durante muitos anos, a culpa pelo nosso atraso foi creditada ao mundo exterior, que supostamente havia roubado nossos tesouros e nos condenado a uma condição subordinada numa ordem internacional de caráter perverso. O professor Mario Henrique Simonsen, ministro da Fazenda nos anos 70, morto em 1997, tinha uma sábia observação sobre a natureza das perversidades econômicas.

Quando se discutia se a inflação brasileira tinha caráter financeiro ou inercial, ele sempre lembrava: “Inflação não tem caráter”. O mesmo pode ser dito a respeito da história econômica da Primeira República. Quem procurar assimetrias e injustiças ensejadas pela ordem internacional da época da Pax Britanica ou da Belle Époque não encontrará coisa alguma. Essa parte de nossa história, tal como a inflação, não teve nenhum caráter. 
Por: Gustavo H. B. Franco Fonte: revista “Exame”

domingo, 28 de outubro de 2012

A RELIGIÃO DO MOMENTO

CARO IRMÃO, você que está vivendo uma situação desesperadora, que se sente esgotado, estressado, sem saída, eis aqui um convite. Junte-se a nós, dê uma chance ao poder divino da política, venha descobrir que o Estado pode salvar a sua vida.

O jovem cheio de esperança, a senhora solitária que veio até aqui nos conhecer, tenham certeza que há um candidato olhando para vocês, um vereador proibindo alguma coisa na cidade, uma presidente com poder e sabedoria guiando o país.
É verdade, irmãos, que os últimos tempos não têm favorecido a crença no Estado. Há séculos pregamos que a educação, a saúde e o transporte público vão funcionar, e o que vemos são enfermeiras de postos de saúde injetando café com leite na veia de senhoras idosas.
Apesar disso, irmãos, o Estado nos pede que ignoremos esses problemas e perseveremos na fé -a fé de que um dia algum político nos conduzirá a um reino de paz e justiça social.
Irmãos, a mensagem mais importante a vocês é sobre dois graves riscos que nós corremos nas eleições deste domingo. O primeiro deles é que religiões influenciem a disputa para a chefia de nossos alvíssimos palácios. Isso é um absurdo, irmãos!
Religiões se baseiam em mundos imaginários, irmãos! Em ideias obscuras! Nós, ao contrário, lidamos com o mundo real! Com princípios científicos! Por exemplo, quando almejamos postos de saúde com a mesma qualidade dos melhores hospitais particulares, ou bancos estatais livres da influência de partidos: é a realidade, senhores! Nossos sonhos são perfeitamente realistas, irmãos!
A outra ameaça é eleger sacerdotes que não creem nos poderes do Estado. Gritem comigo: eles são hereges! Eles são demônios! Eles são neoliberais! Querem privatizar a Entidade Nacional do Reino Estatal! Precisamos atirá-los nos calabouços das derrotas eleitorais, irmãos!
Calma, senhora, não precisa jogar cheques e notas em nossos pés. Os sacerdotes fiscais já trataram de reter parte de seu salário e embutir nos preços do mercado a taxa de manutenção de nossas obras divinas. O valor está passando um pouco do dízimo -beira 40% de sua renda- mas acredite, minha senhora: todo ele é destinado ao bom caminho, à construção do paraíso escandinavo, ao poder infinito e sagrado do Estado.
Leandro Narloch jornalista e autor de "Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil" e coautor de "Guia Politicamente Incorreto da América Latina".