quinta-feira, 1 de novembro de 2012

SANTA CIÊNCIA

Policiais inspecionam casas ao redor da sede do governo em Áquila, cidade mais afetada pelo terremoto
E o anedótico aconteceu: sete cientistas italianos foram condenados a seis anos de prisão. Motivo?

Foram incapazes de prever o terremoto de Áquila, em 2009, que matou mais de 300 pessoas. "Homicídio culposo", decretou o tribunal: antes do terremoto propriamente dito, vários tremores de baixa intensidade tinham assolado a região. Os cientistas deveriam ter feito "mais".

O quê, por exemplo?

Ninguém sabe. Nem sequer a ciência: vários geólogos foram consultados durante e depois da sentença. O pasmo e a indignação eram gerais: não é possível, cientificamente falando, prever com rigor um terremoto. Como é possível a um tribunal de um estado democrático condenar a ciência por ser incapaz de fazer o impossível?

Boa pergunta. Infelizmente, ela ignora o espírito do nosso tempo: um tempo que não aceita a inevitabilidade de qualquer desastre natural; um tempo que procura sempre falhas humanas, demasiado humanas, para explicar o imponderável.

De certa forma, continuamos em pleno século 18, repetindo velhos argumentos com roupagens novas. Em 1755, por exemplo, Lisboa foi devastada pelo Grande Terremoto. A hecatombe representou o início de uma discussão filosófica que percorreu a Europa religiosa e letrada.

Para os religiosos, o terremoto era um castigo divino destinado a punir a licenciosidade dos homens. O italiano Gabriel Malagrida (1689 - 1761) foi um dos rostos mais fervorosos desse fervor: o sismo tinha sido um castigo, sim, mas era apenas um primeiro aviso. Os homens que se preparassem para o verdadeiro Juízo Final - e que se arrependessem dos seus pecados entretanto.

Para as inteligências seculares, com Voltaire à cabeça, o terremoto era o oposto: a prova acabada de que Deus não existia. Ou, se existia, não passava de um demiurgo cruel, entretido a esmagar as suas criaturas.

No debate sobre o Grande Terremoto de Lisboa, cada um aproveitou a desgraça para cavalgar os seus próprios preconceitos ideológicos.

O que poucos fizeram foi aceitar o básico: que Lisboa tremera; que o mar engolira a cidade; e que os incêndios destruiram tudo o resto.

Passaram 250 anos. Mas o progresso material do Ocidente não eliminou da nossa cabeça hominídea a necessidade de encontrar uma causa que tudo explique e justifique. E se Deus é um luxo a que não nos podemos permitir, como dizia um personagem célebre de Woody Allen, alguém tem que ocupar o Seu lugar.

E esse alguém somos nós, homens, herdeiros da técnica e fazedores de ciência. Nós somos os responsáveis pela destruição do planeta. Nós temos a obrigação de o salvar.

E se por acaso um cataclismo natural emerge sem aviso, nós somos responsáveis pela falta de aviso. As religiões tradicionais podem ter recuado como princípio e fim das explicações mundanas. Mas esse trono não ficou vazio. A Santa Ciência (com maiúscula) ocupou o seu lugar.

Hoje, sete geólogos são condenados por não terem evitado o inevitável e por não terem previsto o imprevisível. Amanhã, não será de admirar que os tribunais comecem a condenar os médicos por não terem abolido a morte dos pacientes; ou então os astrofísicos por não terem abolido os meteoritos gigantes e potencialmente fatais.

O ideal, aliás, era condenar já, por antecipação e precaução, a Humanidade inteira. Assim, quando um desses meteoritos aqui chegar, os tribunais não serão culpados por não terem encontrado a tempo alguém para culpar.

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