sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A MÍSTICA DO BOM SELVAGEM

comunaseindios



O trabalho feito por organizações ambientalistas e indigenistas de viés progressista – amplamente financiadas por organizações “filantrópicas” internacionais – está longe de ser a solução para esses problemas. Ao contrário: elas são justamente a causa desses problemas.


Jean-Jacques Rousseau, um dos grandes inspiradores dos ideais que culminaram na sangrenta Revolução Francesa de 1789, acreditava piamente naquilo que se chama “bom selvagem”. Rousseau defendia que o homem era naturalmente bom, e que era a sociedade que o corrompia, deformando sua essência em algo vil e perverso. Para impedir esse processo de mutilação do homem, era necessário destruir a sociedade tal como era, substituindo-a por uma sociedade que resgatasse a natureza benévola inerente ao ser humano. O processo pelo qual essa nova sociedade – e, por conseguinte, o novo homem – deveria surgir passava necessariamente pela demolição dos valores sobre os quais a velha sociedade estava alicerçada; todas as instituições que trabalhavam para a manutenção da velha sociedade – a Igreja, a família, a Coroa, o ensino, a cultura, as artes – deveriam necessariamente ruir para que o homem voltasse àquela Era de Ouro há muito perdida e ansiada.

O que motivou o surgimento do mito do “bom selvagem” foi o impacto que o contato com tribos nativas no continente americano e na região do Pacífico causou no imaginário literário europeu da época, sobretudo nos séculos XVII e XVIII. Vistos literalmente como descendentes de Adão e Eva que pareciam não terem sido atingidos pelo pecado original, os povos indígenas eram idealizados como ajuntamentos de pessoas puras, inocentes, cujo isolamento da civilização as manteve à salvo de deturpações em sua conduta e deformações em sua alma. Sua vida seria marcada por uma perfeita integração com a natureza, venerada pelos povos nativos como algo tão sagrado que qualquer interferência humana era considerada sacrílega e abominável, dependendo unicamente da prodigalidade da Mãe Terra para tirarem seu sustento.

Exatos 250 anos após a publicação de sua obra “Do Contrato Social” (1762), o pensamento revolucionário de Rousseau e a errônea concepção do índio como uma criatura pura, inocente (e, acima de tudo, indefesa) são mais fortes do que jamais foram. Quando se toca na questão indígena, sobretudo no Brasil, existem determinados traços paradigmáticos: 1) o índio deve ser protegido como um indivíduo parcialmente incapaz, que não possui faculdades mentais nem aptidões humanas suficientes para fazer suas próprias escolhas; 2) sua cultura tradicional deve ser preservada a qualquer custo, mesmo que muitos índios a abandonem espontaneamente; e 3) seus comportamentos são ontologicamente imunes a qualquer crítica que o “homem branco” possa fazer, uma vez que eles são dotados daquela sabedoria natural intrínseca à natureza humana que foi perdida por todos aqueles contaminados pela mácula da civilização. Esse estranho dueto de infantilização e sacralização tem provocado algumas bizarrices verdadeiramente assustadoras.

O assunto da vez é a situação de 140 índios guarani-kaiowá que, há cerca de um ano, invadiram parte de uma fazenda nas proximidades de Iguatemi, cidade do interior do Mato Grosso do Sul. A invasão foi batizada de comunidade Pyelito Kue. O proprietário das terras invadidas entrou com um pedido de reintegração de posse junto à Justiça Federal de Navirai, que determinou a retirada dos indígenas da região. Em reação à ordem, a comunidade Pyelito Kue emitiu um comunicado dizendo que a decisão judicial “é parte da ação de genocídio e extermínio histórico ao povo indígena”, e completou:

Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais. Já aguardamos esta decisão da Justiça Federal. Decretem a nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e enterrem-nos aqui. Visto que decidimos integralmente a não sairmos daqui com vida e nem mortos.


O comunicado causou uma celeuma daquelas – coisa muito comum em um país onde as pessoas efetivamente perderam sua capacidade de perceber e valorar problemas de acordo com seu real significado –, sobretudo nas redes sociais: começou a se falar em suicídio coletivo, pipocaram manifestações no Facebook e congêneres, abaixo-assinados foram iniciados, enfim, um grande circo midiático se armou em torno desse fato. A pedido do Governo Federal, a Justiça Federal de MS cassou a decisão que determinava a desocupação da área, de modo que os índios poderão ficar na região até o fim do trabalho de pesquisa que visa à demarcação das terras.

Chamar a situação dos guarani-kaiowá de genocídio é, no mínimo, um exagero sentimentalóide e despropositado. No entanto, é verdade que a situação das populações indígenas no Brasil é bastante injusta. Diversas comunidades passam por situações de risco social considerável: desnutrição, violência, desemprego, alto índice de mortalidade infantil e de doenças, falta de escolaridade, ausência de tratamento de saúde, enfim, um sem-número de problemas. No entanto, o trabalho feito por organizações ambientalistas e indigenistas de viés progressista – amplamente financiadas por organizações “filantrópicas” internacionais – está longe de ser a solução para esses problemas. Ao contrário: elas são justamente a causa desses problemas.

Um exemplo emblemático que serve de base a essa conclusão é a situação atual da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima. Com aproximadamente 17.500 km² – maior, portanto, do que Líbano (10.400 km²), Irlanda do Norte (13.843 km²) e Timor-Leste (14.874 km²) –, a reserva teve a homologação de sua demarcação contínua confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 20 de março de 2009. Produtores rurais e comerciantes que residiam e trabalhavam dentro da área da reserva foram retirados com a promessa de indenização do governo federal. As indenizações não vieram para a grande maioria deles, e outros receberam um valor irrisório por suas propriedades. Segundo reportagem da revista Veja intitulada “Uma reserva de miséria”, da edição nº 2219 (1º de junho de 2011), esse é o caso do ex-pecuarista Wilson Alves Bezerra. Sua propriedade, em que criava 1.300 cabeças de gado, possuía 5 mil hectares. Tendo o valor das edificações da propriedade sido orçado em R$ 350 mil, e levando em consideração um valor de R$ 1.000,00 por hectare – o que equivale a 1/3 do valor mínimo médio do mercado brasileiro –, o Sr. Wilson Bezerra deveria ter recebido pouco mais de R$ 5 milhões de indenização do governo. O valor total que recebeu foi de R$ 72 mil, cerca de 1,44% do valor total. Na época da reportagem da revista, ele sobrevivia vendendo churrasquinhos no centro de Boa Vista, o que lhe rendia R$ 40,00 por noite.

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Empreendimentos rurais como o do Sr. Wilson Bezerra empregavam muitos habitantes da região, sobretudo indígenas. Sem emprego, sem opção de sobrevivência e sem respaldo governamental, muitos índios se viram obrigados a também ir para Boa Vista. Muitos deles sobrevivem em condições precárias, conseguindo uma renda ínfima da cata de lixo e materiais recicláveis. Se antes havia uma perspectiva de desenvolvimento econômico e social para essas pessoas, hoje essa perspectiva não é mais do que um sonho distante e improvável. E a que se deve isso? À parceria de organizações indígenas e ambientais financiadas com recursos de fundações internacionais com órgãos do governo federal, como a Funai, e o Ministério Público Federal. São distorções como essa que levam o estado de Roraima a ter o pior PIB dentre as UFs brasileiras: cerca de 70% de seu território são compostos por reservas ambientais e indígenas, lugares em que atividades econômicas de base não podem ser conduzidas, o que gera um subdesenvolvimento generalizado no estado.


Ronald Reagan costumava dizer que o governo não é a solução para os problemas, mas o próprio problema. Nesse caso, o problema não é o governo, as ONGs e outros grupos de pressão, mas aquilo que os impregna até a medula: a mística do “bom selvagem”. Parece que 250 anos de equívocos e barbaridades não bastaram para apagar essa sandice da nossa “elite pensante”.




A ideia aparentemente inabalável de que o índio é uma criatura toda pura, naturalmente cheia de boas intenções, inocente, meio bobinha, muito mansa e dotada de uma sabedoria excelsa que provém de seu íntimo contato com a “Mãe Terra” tornou-se um verdadeiro arquétipo jungiano nos tempos hodiernos. Se antes, no contexto brasileiro, essa imagem servia muito mais à literatura do que à política – vide a Trilogia Indianista do escritor José de Alencar, composta pelas obras “O Guarani” (1857), “Iracema” (1865) e “Ubirajara” (1874) –, hoje ela serve para justificar todo tipo de infâmia.


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Reunião dos ministérios da Justiça e Direitos Humanos com representantes dos guarani-kaiowás.



Uma das falácias mais evidentes que compõem esse arquétipo está presente num texto recente de Luiz Martins da Silva, jornalista e professor da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, publicado no portal da universidade. Em “O céu dos índios”, o prof. Luiz Martins escreve:

Contam cronistas que ao tempo dos primeiros exploradores os nativos até colaboravam na sobrecarga das naus, com madeiras e tudo o que queriam em grande quantidade, mas indagavam candidamente sobre os motivos de tanto acúmulo, se a madeira não ia acabar, se a floresta não ia desaparecer. Por que razão precisavam tanto de tudo e de uma só vez?

É possível que, “candidamente” encantado pelas historietas dos ditos cronistas, o autor do texto tenha se esquecido da altíssima carga de fantasia que embebiam a esmagadora maioria dos relatos de exploradores europeus em terras americanas. A tão alardeada consciência ecológica dos povos indígenas é, no mais das vezes, um delírio urdido por intelectuais que, incapazes de penetrar no mais essencial das culturas indígenas – ou, pior, ignorando-o de caso pensado, solenemente –, limitam suas análises ao assombro inicial causado pelo contato com o desconhecido. 

A ausência das noções de propriedade e de escassez torna desenfreada a utilização de determinado recurso limitado. E, ao contrário do que a nossa elite acadêmica pisa e repisa, a tragédia dos comuns não é algo cuja observância é limitada por diferenças culturais: ela faz parte da própria natureza humana. Aquilo que facilmente se obtém, que pode ser desfrutado sem limites e que não pertence a um indivíduo concreto, mas a uma abstrata coletividade, é explorado até a exaustão sem que haja ponderação acerca da durabilidade do bem e de seu melhor uso.

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Camiseta da Holanda e câmera digital: manufaturas tradicionais?

Notem que não é necessário nem mesmo conhecer a história dos povos indígenas para intuir a falsidade dessa sacrossanta consciência ecológica nativa. Em “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”, Leandro Narloch coloca as coisas de maneira bastante clara quanto a esse assunto:


As tribos que habitavam a região da mata atlântica botavam o mato abaixo com facilidade, usando uma ferramenta muito eficaz: o fogo. No fim da estação seca, praticavam a coivara, o ato de queimar o mato seco para abrir espaço para a plantação, empregado até hoje. No início, a coivara é eficiente, já que toda a biomassa da floresta vira cinzas que fertilizam o solo. Depois de alguns anos, o solo se empobrece. Pragas e ervas daninhas tomam conta. Como não havia enxadas e pesticidas e ninguém sabia adubar o solo, procuravam-se outras matas virgens para queimar e transformar em roças. O historiador americano Warren Dean estimou que a alimentação de cada habitante exigia a devastação de 2 mil metros quadrados de mata por ano. [...]

A grande vantagem ao fogo era facilitar a caça. Criando fogueiras coordenadas, um pequeno grupo de pessoas consegue controlar uma área enorme da mata sem precisar de machados, serrotes ou alguma outra ferramenta de ferro. As chamas desentocam animais escondidos na terra, no meio de arbustos e nos galhos. Aves, macacos, veados, capivaras, onças, lagartos e muitos outros animais corriam em direção ao mesmo ponto, onde os índios os esperavam para capturá-los. Não e à toa que, assim como em todo o resto do mundo, nas florestas brasileiras só havia animais de grande porte, rápidos e agressivos os mais lentos foram logo extintos pelas populações nativas. Para caçar alguns poucos animais, eles destruíam uma área enorme da floresta.



A ideia de que os índios também são criaturas ingênuas, inocentes, crédulas, bondosas por natureza, possuidoras de uma dignidade quase beatífica reservada somente aos animistas e panteístas – de alguma forma, esses credos equivalem a um inquestionável atestado de superioridade moral, lavrado com toda pompa e circunstância nos cartórios ideológicos (vulgo universidades) do Brasil –, é igualmente absurda. 
Dois casos são bastante ilustrativos. O primeiro ocorreu em 2004 nas imediações de Espigão d’Oeste, município do estado de Rondônia. A reserva Roosevelt, que abriga uma das maiores jazidas de diamantes do mundo, é habitada por índios cintas-largas. No dia 7 de abril daquele ano, cerca de 60 índios capturaram um grupo de 29 garimpeiros. Os garimpeiros – que, apesar de exercerem atividade ilegalmente, não estavam armados – foram amarrados com cipós e mortos a tiros e golpes de borduna, tendo os corpos carbonizados em seguida (algumas fotos das vítimas podem ser encontradas na rede). Poder-se-ia argumentar que os índios estavam apenas protegendo sua propriedade de invasores que estavam depredando sua terra sagrada e, a partir daí, forçar alguma ideia de legitimidade para essa barbaridade. Mas quando se sabe que muitos dos próprios índios da reserva traficam pedras preciosas, isso tudo soa mais como eliminação de concorrência.

O segundo caso ocorreu em maio de 2008 na cidade de Altamira/PA. Por iniciativa da Arquidiocese de Altamira e diversas ONGS, foi realizada uma grande reunião pública para discutir o afamado projeto da usina de Belo Monte. Paulo Fernando Rezende, engenheiro da Eletrobrás, participou do evento para falar a respeito do projeto de construção da usina e defender a necessidade do empreendimento. A reação dos índios foi esta:


Comparemos, por um instante, o vídeo acima com as palavras finais do texto do prof. Luiz Martins:


Em meados dos anos 70, levantei um dado estatístico, na Funai: havia entre os índios brasileiros missões de 50 diferentes linhagens religiosas, todas, evidentemente, tentando salvar as almas dos índios e encaminhá-los para um Céu de beatitudes. Eu fico me perguntando se não teria de ser o inverso, os brancos indo aprender com os índios, como se pode viver no Paraíso, já, aqui e agora.


A depender dos caiapós que deram esse show de horrores na reunião, é de se esperar que esse Paraíso terrestre seja construído com gritos de guerra, golpes de facão e bordoadas. Pensando bem, não é muito diferente do que os jacobinos, ébrios do ópio rousseauniano, fizeram na França quando o século XVIII estava em seus estertores. Bom, no fim das contas, talvez Rousseau estivesse certo, não é?

Em tempo: 
Índios são pessoas. Índios são seres humanos exatamente como nós, os “homens brancos”. Eles possuem fraquezas, qualidades, virtudes, defeitos, interesses, enfim, eles compartilham a mesma natureza humana que nós, “homens civilizados”, possuímos. E, assim como nós, eles também são capazes de atrocidades vergonhosas, como, por exemplo, a prática do infanticídio que algumas tribos mantêm. No entanto, eles também são capazes de atos verdadeiramente heróicos e virtuosos: é só serem tratados como pessoas, nem mais, nem menos. Se quisermos de fato que situações como essas não ocorram mais, está na hora de pararmos de agir como se fossem criaturas angélicas de outra dimensão ou como seres subumanos que necessitam da tutela estatal para absolutamente tudo. Por: Felipe Melo

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