segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

EXPLICANDO A RECESSÃO EUROPEIA


O economista americano Steve Hanke, professor de economiaaplicada da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, EUA, considerado uma sumidade em assuntos monetários (foi ele quem acabou com todas as hiperinflações das ex-repúblicas soviéticas no Leste Europeu, da Bósnia e da Argentina), cunhou uma frase da qual todo cidadão comum jamais deveria se esquecer. Hanke a rotulou de 'regra dos 95%': "noventa e cinco por cento de tudo que é escrito sobre economia ou está errado ou é irrelevante."

Tal regra é perfeitamente aplicável para as análises feitas sobre o atual estado das economias europeias. Segundo os especialistas, o problema está na tal 'austeridade', a qual estaria sendo imposta a todo o continente pelos malvados alemães por motivos puramente sádicos, e estaria sacrificando os pobres gregos, espanhóis e portugueses. Culpar a austeridade é uma postura que gera aplauso fácil porque significa condenar cortes nos sagrados programas assistencialistas europeus, os quais todos os economistas convencionais sonham ver serem adotados universalmente em todos os países do Ocidente — adoção essa que requereria a supervisão destes economistas, é claro.

Muito embora a "austeridade" europeia esteja sendo feita não por meio exclusivo da redução de gastos, mas sim por uma combinação entre redução de gastos e elevação de impostos — e, como mostrou Philipp Bagus, os déficits orçamentários continuaram intocados —, ela não é a causa precípua da prolongada recessão do continente.

Qual é então o problema? 

Como tudo começou

Durante a década de 2000, os países europeus, e mais acentuadamente Espanha, Portugal, Grécia e Irlanda, vivenciaram tão explicitamente todas as etapas de um ciclo econômico descrito pela Escola Austríaca, que tal exemplo deveria doravante figurar em todos os escritos sobre o tema ciclos econômicos. O ciclo econômico vivenciado por estes quatro países está sendo tão completo, que é difícil imaginar algum outro exemplo prático que melhor ilustre aquilo que é descrito pela teoria austríaca.

A crise econômica e financeira europeia começou da mesma maneira que se iniciam todos os ciclos econômicos: por um processo de enorme expansão do crédito orquestrado pelo Banco Central Europeu em conjunto com o sistema bancário de reservas fracionárias dos quatro países citados. Tal processo de expansão do crédito consiste meramente em um processo de criação de dinheiro do nada. E é assim em todo o mundo atual. 

Sempre que uma empresa ou um indivíduo qualquer vão a um banco e pedem um empréstimo, o banco cria do nada dinheiro eletrônico na conta-corrente deste tomador de empréstimo. O dinheiro não foi retirado de nenhuma outra conta. Ele simplesmente foi criado. O bancário apertou algumas teclas no computador e dígitos eletrônicos surgiram na conta-corrente do mutuário. É assim que o dinheiro entra na economia no sistema monetário atual e é assim que a quantidade de dinheiro em uma economia aumenta. O sistema bancário destes países europeus, atuando sob a proteção e estímulo do Banco Central Europeu, literalmente criou bilhões de euros para serem emprestados para empreendedores e consumidores.

Veja a evolução do crédito na Espanha, de janeiro de 2002 (ano da introdução do euro) até janeiro de 2009, ano do início da crise.

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Observe que o crédito concedido mais do que triplicou em apenas 7 anos, indo de 600 bilhões de euros para mais de 1,8 trilhão de euros.

Todo este processo de concessão de crédito gerou quase que o mesmo efeito na oferta monetária do país, que neste mesmo período saiu de 400 bilhões para 1 trilhão.
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O mesmo fenômeno ocorreu na Irlanda. O crédito triplicou...
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... e a oferta monetária duplicou.
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E, finalmente, na Grécia. O crédito mais que dobrou...
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... assim como a oferta monetária.
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Qual foi a consequência de toda esta expansão creditícia e monetária?

Empreendedores, ao tomarem como empréstimo este dinheiro criado do nada pelo sistema bancário, passaram a investir naqueles projetos que mais estavam sob demanda. Nos casos específicos da Espanha e da Irlanda, no setor imobiliário. Os consumidores destes países, por sua vez, estavam recorrendo aos bancos justamente para obter financiamento para comprar imóveis. Esta súbita demanda por imóveis foi possibilitada pelo fato de que a expansão creditícia feita pelo sistema bancário de reservas fracionárias e orquestrada pelo Banco Central Europeu gerou uma forte queda nos juros.

Uma expansão creditícia e monetária é sempre um fenômeno extremamente perigoso porque funciona como uma droga. Quando o dinheiro recém-criado é injetado na economia pelos bancos, todo o sistema econômico passa a reagir de maneira expansionista. As pessoas ficam animadas. Empreendedores recebem financiamento barato para praticamente qualquer investimento que queiram fazer, não importa o quão irracional tal investimento seria em outras circunstâncias. Ao mesmo tempo, trabalhadores e sindicatos percebem que a demanda por seus serviços aumentou, pois há mais dinheiro na economia. Bens de consumo também passam a ser demandados com mais intensidade. A renda das pessoas cresce anualmente. Todo mundo fica feliz, principalmente porque tal arranjo faz parecer ser possível aumentar a riqueza sem qualquer sacrifício na forma de poupança e trabalho duro. Forma-se uma bolha. 

Este aparente ciclo virtuoso da nova economia ludibria todos os agentes econômicos: investidores estão muito contentes ao verem que suas ações crescem diariamente; as indústrias de bens de consumo conseguem vender tudo que põem no mercado e a preços crescentes; restaurantes estão sempre cheios e com longas listas de espera apenas para arrumarem uma mesa; trabalhadores e seus sindicatos veem o quão desesperadoramente empresários estão demandando seus serviços em um ambiente de pleno emprego, aumentos salariais e (nos países mais ricos) imigração; líderes políticos se beneficiam daquilo que parece ser uma economia excepcionalmente boa, a qual eles venderão ao eleitorado como resultado direto de sua liderança e de suas boas políticas econômicas; burocratas responsáveis pelo orçamento do governo ficam impressionados ao descobrir que, a cada ano, a receita está aumentando em cifras de dois dígitos.

Porém, tal arranjo não pode durar. Há um enorme descoordenação entre o comportamento dos consumidores e dos investidores. Os consumidores seguem consumindo sem a necessidade de poupar, pois a quantidade de dinheiro na economia aumenta continuamente, o que torna desnecessário qualquer abstenção do consumo. E os investidores seguem aumentando seus investimentos, os quais são totalmente financiados pela criação artificial de dinheiro virtual feita pelos bancos e não pela poupança genuína dos cidadãos. Tal arranjo é completamente instável. Trata-se apenas de uma ilusão de que todos podem obter o que quiserem sem qualquer sacrifício prévio.

Com o tempo, tamanha demanda gerada pela criação de dinheiro leva a um inevitável aumento dos preços. Ato contínuo, o Banco Central eleva a taxa básica de juros da economia e os bancos, além de reduzirem o volume de empréstimos concedidos, também começam a cobrar juros maiores. Afinal, se os bancos não aumentassem os juros cobrados, eles simplesmente receberiam — no momento da quitação do empréstimo — um dinheiro com um poder de compra menor do que o que esperavam receber quando concederam o empréstimo.

Essa nova postura dos bancos leva a uma redução da taxa de crescimento da quantidade de dinheiro na economia. E tal redução na taxa de crescimento da oferta monetária é exatamente o que põe um fim na euforia e gera o início da recessão.

A recessão

Durante a fase da expansão econômica artificial, os indivíduos intensificaram seu endividamento para poder consumir, na crença de que a expansão do crédito continuaria farta e que sua renda futura continuaria aumentando, o que facilitaria a quitação destas dívidas. Já as empresas embarcaram em investimentos de longo prazo levadas tanto pela redução artificial dos juros criada pela expansão do crédito (o que faz com que os investimentos se tornassem mais financeiramente viáveis) quanto pela expectativa de que o aumento futuro da renda possibilitaria o consumo dos produtos criados pelos seus investimentos.

No entanto, a redução da expansão monetária — que não pode se perpetuar para sempre — traz a realidade à tona. O aumento esperado da renda não se concretiza, o que faz com que as dívidas se tornem mais difíceis de serem quitadas. Isso faz com que todos aqueles investimentos que foram estimulados pela expansão artificial do crédito entrem em colapso, pois nunca houve uma demanda genuína por eles. Como os consumidores estão mais endividados e o nível geral de preços da economia aumentou — mas a oferta monetária se estabilizou —, a demanda cai (não cairia caso os investimentos houvessem sido financiados por poupança genuína, isto é, pela real abstenção do consumo dos indivíduos). 

Todos aqueles empreendimentos que até então pareciam lucrativos — como o setor imobiliário — se revelam um grande desperdício. A realidade é que simplesmente não havia demanda para tais projetos, pois tudo era baseado numa ilusão de prosperidade, aditivada pela expansão monetária e do crédito.

Até aqui, a narração acima em nada se distingue do atual momento brasileiro. A mecânica inicial de um ciclo econômico, seja no Brasil, seja na Europa ou nos EUA, é a mesma, variando apenas qual será o setor que receberá a maior parte dos investimentos estimulados pelo crédito fácil. O que tornou a recessão europeia especialmente dolorosa foi o que aconteceu com seu sistema bancário.

O que ocorreu na Europa — especialmente na Espanha e na Irlanda — é que o processo de expansão creditícia foi direcionado majoritariamente para o setor imobiliário. E em gigantesca escala. A bolha imobiliária espanhola foi muito maior que a americana — ao ponto de existirem hoje na Espanha, segundo Jesús Huerta de Soto, mais de um milhão de casas vazias, o que representa um incalculável desperdício de recursos escassos.

Sendo assim, quando a expansão creditícia foi interrompida e os juros foram elevados, não apenas a demanda por imóveis foi estancada, como também, e principalmente, as pessoas que estavam pagando hipotecas simplesmente começaram a dar o calote nos bancos. Como as construtoras que haviam tomado empréstimos também não mais estavam conseguindo vender seus imóveis, elas também começar a dar calote nos bancos. Acrescente a isso o aumento no desemprego em decorrência do mecanismo explicado acima, e você terá um ideia de quão volumosos foram os calotes nos bancos.

Ato contínuo, os bancos perceberam que seus empréstimos imobiliários — tanto para construtoras quanto para pessoas físicas — não mais seriam quitados aos valores originalmente esperados. Como os empréstimos fazem parte do ativo dos bancos, a consequência é que os ativos bancários passaram a valer muito menos do que imaginavam. 

Essa queda no valor dos ativos gerou um enorme problema nos balancetes dos bancos: o valor dos ativos despencou, mas o valor dos passivos (todos os depósitos de seus clientes) permaneceu o mesmo. Em termos contábeis, se há uma forte redução nos ativos e os passivos permanecem os mesmo, então há uma redução no patrimônio líquido (capital). Os bancos se tornaram insolventes. 

Quando um banco se torna contabilmente insolvente, ele pode fazer duas coisas: ou ele aumenta seus ativos (sem que tenha de aumentar seus passivos), ou ele reduz seus passivos. 

Aumentar ativos em um cenário de recessão é praticamente impossível. Ele teria de vender papeis em troca de dinheiro para aumentar suas reservas. Porém, além de as pessoas não estarem em condições de comprar papeis dos bancos, o próprio ato desesperado de venda de papeis já forçaria para baixo os preços dos mesmos, pois tal medida deixaria explícita a péssima situação do banco. O valor de seus ativos poderia cair ainda mais. 

Logo, a única solução plausível foi reduzir os passivos. E como os bancos reduzem passivos? Deixando de conceder empréstimos. Cobrando empréstimos pendentes (cuja quitação aumenta seus ativos), e não concedendo novos empréstimos. Essa era a única maneira de sanear seus balancetes.

E a consequência desta postura está perfeitamente ilustrada nos gráficos abaixo. 

Na Espanha, o volume de crédito concedido está em queda.
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Assim como a oferta monetária, que está apresentando deflação.
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O mesmo é válido para a Irlanda.
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E é ainda mais intenso para a Grécia, cujo volume de crédito e oferta monetária recuaram para níveis de sete anos atrás.
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A encrenca

Olhando o gráfico, fica fácil entender por que a situação grega é tão calamitosa. Além da inevitável contração do crédito, que por si só reduz a quantidade de dinheiro na economia, também está havendo uma fuga de euros daquele país para os bancos alemães, mais seguros. Espanha e Irlanda também vivenciam o mesmo problema, embora com intensidade um pouco menor.

Enquanto o mundo vivia seu período glorioso de expansão monetária (2003-2008), o governo grego aproveitou essa bonança para aumentar os gastos, inchar o funcionalismo e a folha de pagamento. E fez tudo isso sem precisar aumentar impostos. Como foi possível? Como o crédito vinha de fora, e era abundante e barato, o governo percebeu que era mais vantajoso se endividar (em vez de tributar) para aumentar os gastos — e, depois, apenas rolar a dívida, pagando juros bastante camaradas. 

É lógico que tal arranjo grego seria insustentável no longo prazo, mesmo que os juros continuassem baixos. É como se você fosse a um restaurante e, em vez de pagar a conta inteira, pagasse só a metade, e prometesse pagar o resto e mais juros no dia seguinte. Porém, quando chegasse o dia seguinte, você faria um acordo com o dono do restaurante e, novamente, pagaria apenas a metade da conta daquele dia e empurraria todo o resto acumulado para o dia seguinte. E assim você iria fazendo todos os dias. Quando chegasse o fim do mês, o dono, desconfiado de que você iria dar o calote, simplesmente lhe apresentaria a conta total, com principal e juros acumulados, e exigiria o pagamento, não dando chances para mais rolamentos de dívida. É aí que você teria o infarto.

No caso da Grécia, a crise financeira internacional, com a contração do crédito, acelerou esse processo de cobrança da dívida — logo, os juros exigidos para a rolagem da dívida subiram. A farra grega acabou e, temerosos de um calote, as pessoas começaram retirar seu dinheiro do país, o que deixou os bancos em situação extremamente delicada.

Em um cenário de deflação monetária como esse que está acometendo estes países, a última coisa que os governos deveriam pensar em fazer seria aumentar impostos. Mas foi exatamente isso que os governos desses três países fizeram e prometem continuar fazendo. Não é à toa que a cada trimestre a imprensa noticia com fanfarra que o PIB destes países segue encolhendo. Óbvio. Deflação com aumento de impostos é um coquetel mortífero. Dado que há uma grande rigidez nos preços e nos salários nestes países (se os sindicatos não aceitam reduções salariais, os empresários não irão reduzir preços, pois seus balancetes iriam para o vermelho total), o resultado inevitável é uma disparada no desemprego.

Veja a evolução do desemprego em cada país clicando em seus respectivos nomes: Espanha, Irlanda, Grécia.

Para complicar ainda mais a situação, há a imposição de Basileia III, que exige o aumento do capital dos bancos. Como explicado, na atual situação, a única maneira de os bancos aumentarem seu capital é restringindo empréstimos e contraindo ainda mais a oferta monetária. Para Espanha e Grécia, que possuem economias amarradas, sindicatos fortes, altos impostos, e uma alta quantidade de regulamentações, esta nova rodada de deflação, a qual dificilmente será acompanhada de uma redução de preços e salários, poderá ser fatal para o desemprego. A Irlanda, por ter uma economia mais dinâmica, tem mais chances de sofrer menos. 

Conclusão

Todo processo de expansão creditícia, cedo ou tarde, se transforma em um processo de restrição ou contração do crédito. A intensidade da recessão tende a ser proporcional à intensidade da exuberância econômica que o país vivenciou.

Durante uma recessão, os consumidores estão mais pobres do que antes justamente por causa de todos os investimentos errôneos e insustentáveis que foram empreendidos em decorrência da expansão artificial do crédito, investimentos estes que imobilizaram capital e recursos escassos para seus projetos, recursos estes que agora não mais estão disponíveis para serem utilizados em outros setores da economia. No geral, a economia está agora com menos capital e menos recursos escassos disponíveis. Na Espanha, como dito, há hoje um milhão de casas vazias, sem compradores. Capitais e recursos escassos foram desperdiçados na construção destes imóveis, capitais e recursos que poderiam estar hoje sendo aplicados em outros setores da economia espanhola.

Adicionalmente, é fácil entender por que o atual problema destas economias não é de 'demanda'. Crises e recessões não são um problema de demanda. Crises e recessões são causadas por investimentos errôneos e insustentáveis — em decorrência da expansão do crédito bancário e pela distorção das taxas de juros —, para os quais nunca houve demanda legítima. Não se trata de um problema de demanda agregada, mas sim de um problema de capital que foi desviado para aplicações que não eram genuinamente demandadas pelo público.

Sendo assim, de nada adianta os governos — e principalmente os malvados alemães — incorrerem em déficits, aumentar os gastos e o Banco Central Europeu imprimir mais dinheiro, imaginando que tudo magicamente seria resolvido. O fato é que recursos escassos foram aplicados em investimentos para os quais não havia demanda. Este capital se encontra agora destruído (ou com um valor extremamente reduzido). A recessão nada mais é do que o período de reajuste desta estrutura de produção que foi distorcida pela expansão do crédito bancário e pela distorção das taxas de juros.

Portanto, para acabar com uma recessão, é preciso fazer com que este capital mal investido seja liquidado e que os investimentos sejam voltados para áreas em que haja genuína demanda dos consumidores. O governo fazer políticas que estimulem a demanda agregada, de modo a não permitir que haja essa reestruturação do capital, irá apenas prolongar a recessão. O governo elevar impostos e incorrer em déficits irá apenas retirar poupança do setor privado, justamente em um momento em que ele mais necessita dela. 

É exatamente isso que os governos europeus estão fazendo, e é exatamente isso que está prolongando a recessão. A culpa não é dos alemães, que foram bastante frugais nos últimos treze anos.
O motivo de toda a criação de crédito não se traduzir em idêntica expansão da oferta monetária se deve a dois fatos:


1) Importações. Na zona do euro, parte desse dinheiro é exportada para outros países em troca de bens importados.

2) Recapitalização dos bancos. Quando um banco quer aumentar seu capital, ele vende um papel. A pessoa ou empresa que comprar este papel irá transferir dinheiro da sua conta-corrente para este banco. O banco pegará este dinheiro (totalmente eletrônico) e irá contabilizá-lo como 'reservas bancárias', que é um ativo em seu balancete. Ao final do processo, houve uma redução da quantidade de dinheiro na economia e um aumento das reservas bancárias, que é um dinheiro que não está na economia. Exatamente o mesmo procedimento ocorre quando um banco vende dólares em sua carteira para algum cliente. Ou seja, embora bancos criem dinheiro concedendo crédito, eles também destroem dinheiro quando vendem algum papel para se recapitalizar.

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

QUAL É A OFERTA MONETÁRIA "ADEQUADA"PARA UMA ECONOMIA?

Este artigo foi extraído do livro "O que o governo fez com o nosso dinheiro", futuro lançamento do IMB.


Agora podemos perguntar: qual é a oferta monetária em uma sociedade e como tal oferta é utilizada? Em específico, podemos suscitar aquela eterna pergunta: de quanto dinheiro "precisamos"? Qual a quantidade de dinheiro realmente necessária? Deve a oferta de moeda ser regulada por algum tipo de "critério", ou ela pode ser deixada totalmente para o livre mercado?

Em primeiro lugar, o estoque total — ou oferta —de moeda em uma sociedade, em qualquer momento, seria a massa total da moeda-mercadoria existente. Suponhamos, para o momento, que apenas uma mercadoria tenha sido escolhida pelo livre mercado para ser o dinheiro. Suponhamos ainda que essa mercadoria seja o ouro(embora pudéssemos ter adotado a prata ou mesmo o ferro; caberá ao mercado, e não a nós, decidir qual é a melhor mercadoria a ser utilizada como dinheiro). Visto que o ouro é o dinheiro, a oferta total de dinheiro será a quantidade total de ouro que existe na sociedade. O formato desse ouro não interessa — a menos que o custo de se alterar o ouro para determinados formatos seja maior do que alterá-lo para outros formatos (por exemplo, cunhar moedas custar mais que fundi-las). Nesse caso, um dos formatos será escolhido pelo mercado para ser a unidade de conta, e os demais formatos terão um ágio ou um desconto de acordo com seus os custos relativos no mercado.

As alterações no estoque total de ouro serão regidas pelas mesmas causas que regem as alterações na oferta dos outros bens. Aumentos na oferta serão consequência de uma maior produção das minas; reduções na oferta serão decorrência de desgaste natural, de uso no setor industrial etc. Dado que o mercado escolherá uma mercadoria durável como dinheiro, e dado que o dinheiro é exaurido na mesma taxa que outras mercadorias — mas empregado como meio de troca —, a produção anual de ouro em relação ao estoque total existente tenderá a ser bem pequena. Logo, alterações no estoque total de ouro geralmente ocorrerão a um ritmo muito lento.

Qual "deve" ser a oferta monetária? Vários tipos de critério já foram apresentados: que a quantidade de dinheiro deve aumentar de acordo com o aumento populacional, de acordo com o "volume de transações", de acordo com a "quantidade de bens produzidos", de modo a manter o "nível de preço" constante etc. Poucos, no entanto, sugeriram deixar a decisão para o mercado. Mas o dinheiro difere das demais mercadorias em um ponto essencial, e perceber tal diferença é o segredo para se compreender as questões monetárias. 

Quando a oferta de um bem qualquer aumenta, esse aumento gera um benefício social; é algo para regozijo geral. Uma maior quantidade de bens de consumo significa um maior padrão de vida para o povo; uma maior quantidade de bens de capital significa um maior padrão de vida maior no futuro. A descoberta de novas terras férteis ou de novos recursos naturais também promete aumentar os padrões de vida presente e futuro. Mas, o que pode ser dito a respeito do dinheiro? Será que um aumento da oferta monetária também beneficia o público em geral?

Os bens de consumo são, por definição, consumidos e exauridos pelos consumidores; bens de capital e recursos naturais são exauridos no processo de produção dos bens de consumo. Mas o dinheiro não é consumido e nem exaurido; sua função é apenas atuar como meio de troca — permitir que bens e serviços sejam transferidos rapidamente de uma pessoa para outra. Tais trocas são realizadas em termos de preços monetários.

Assim, se um aparelho de televisão é trocado por três onças de ouro, dizemos que o "preço" da televisão é de três onças. Em qualquer momento, todos os bens na economia serão cambiáveis por determinada quantidade de ouro. Como dito, o dinheiro, ou o ouro, é o denominador comum de todos os preços. Mas e quanto ao dinheiro em si? Será que ele tem um "preço"? Dado que o preço é simplesmente uma relação de troca, então o dinheiro certamente tem um preço. Contudo, nesse caso, o "preço do dinheiro" é um conjunto do infinito número de relações de troca que existem todos os diversos bens do mercado.

Assim, suponhamos que um aparelho de televisão custe três onças de ouro, que um automóvel custe sessenta onças de ouro, que uma bisnaga de pão custe 1/100 de onça de ouro e que uma hora dos serviços jurídicos do doutor Joaquim custe uma onça de ouro. O "preço do dinheiro", então, será um conjunto de trocas alternativas. Uma onça de ouro "valerá" 1/3 da televisão, 1/60 de um automóvel, 100 bisnagas de pão ou uma hora dos serviços do doutor Joaquim. E assim por diante. O preço do dinheiro, portanto, é o "poder de compra" da unidade monetária — nesse caso, da onça de ouro. O preço do dinheiro, ou o seu poder de compra, informa o que aquela unidade pode adquirir ao ser trocada, assim como o preço monetário de um aparelho de televisão informa quanto de dinheiro um aparelho de televisão pode conseguir ao ser trocado.

O que determina o preço do dinheiro? As mesmas forças que determinam todos os preços no mercado — a venerável, mas eternamente verdadeira, lei da "oferta e demanda". Todos nós sabemos que se a oferta de ovos aumenta, o preço de cada ovo tende a cair; se a demanda dos consumidores por ovos aumentar, o preço tenderá a subir. O mesmo fenômeno ocorre para o dinheiro. Um aumento na oferta de dinheiro tenderá a reduzir seu "preço"; um aumento na demanda por dinheiro irá aumentar seu preço. 

Mas o que é a demanda por dinheiro? No caso dos ovos, sabemos o que significa "demanda". A demanda por ovos é a quantidade de dinheiro que os consumidores estão dispostos a gastar em ovos, mais os ovos que estão guardados pelos fornecedores e que não estão à venda. Essa é a demanda total por ovos. Similarmente, no caso do dinheiro, "demanda" por dinheiro significa os vários bens que são oferecidos em troca do dinheiro, mais a quantidade de dinheiro entesourada e não gasta pelos indivíduos durante um determinado período de tempo. Em ambos os casos, a "oferta" pode se referir ao estoque total de um determinado bem no mercado.

O que ocorre, então, se a oferta de ouro aumentar e a demanda por dinheiro continuar a mesma? O "preço da moeda" cai, ou seja, o poder de compra da unidade monetária cairá em todos os setores da economia. Uma onça de ouro valerá agora menos que 100 bisnagas de pão, menos que 1/3 de um aparelho de televisão etc. De modo inverso, se a oferta de ouro diminuir, o poder de compra da onça de ouro aumentará.

Qual é o efeito de uma alteração na oferta monetária? Seguindo o exemplo de David Hume, um dos primeiros economistas a abordar o assunto, podemos nos perguntar o que ocorreria se, da noite para o dia, uma Fada Madrinha entrasse às escondidos em nossos bolsos, carteiras e nos cofres dos bancos e duplicasse a nossa oferta monetária. Neste exemplo, ela magicamente dobrou nossa quantidade de ouro. Será que nós agora estamos duas vezes mais ricos? É obvio que não. O que nos torna ricos é uma abundância de bens, e o que limita tal abundância é a escassez de recursos para produzi-los: a saber, terra, trabalho e capital. Multiplicar a quantidade de dinheiro não faz com que tais recursos deixem de ser escassos e se materializem milagrosamente. É verdade que podemos nos sentir duas vezes mais ricos por um momento, mas claramente o que ocorreu foi apenas umadiluição da oferta monetária. À medida que as pessoas saírem correndo para gastar essa riqueza recém-encontrada, os preços irão aproximadamente dobrar — ou ao menos aumentar até a demanda ser satisfeita e o dinheiro não mais estiver competindo consigo próprio pelos bens existentes.

Logo, vemos que, embora um aumento na quantidade de dinheiro, assim como um aumento na quantidade de qualquer outro bem, reduz o seu preço, tal alteração não produz — ao contrário do que ocorre com os outros bens — nenhum benefício social. O público em geral não se torna mais rico. Ao passo que novos bens de consumo ou de capital aumentam os padrões de vida da população, um aumento da quantidade de dinheiro na economia gera apenas aumento de preços — isto é, dilui seu próprio poder de compra. A explicação para este aparente enigma é que o dinheiro só é útil pelo seu valor de troca. Outros bens possuem diversas utilidades "reais", de modo que um aumento em sua oferta satisfaz os desejos de mais consumidores. Já o dinheiro, por sua vez, possui utilidade apenas enquanto possibilitador de trocas; sua utilidade está justamente em seu valor de troca ou em seu "poder de compra". Esta lei — de que um aumento na oferta monetária não confere um benefício social — deriva do uso exclusivo, específico e único do dinheiro como meio de troca.

Um aumento na oferta monetária, portanto, irá apenas diluir a efetividade de cada unidade monetária — ou, no nosso caso, de cada onça de ouro. Por outro lado, uma redução da oferta monetária irá aumentar a capacidade de cada unidade monetária de cumprir sua função. Chegamos assim à surpreendente verdade de que não importa qual seja a oferta monetária. Uma determinada quantidade de dinheiro será tão boa quanto qualquer outra quantidade. O livre mercado simplesmente se ajustará alterando o poder de compra, ou a efetividade, da unidade de ouro. Não há nenhuma necessidade de se interferir no mercado com o intuito de alterar a oferta monetária determinada pelo livre mercado.

Nesta altura, o adepto do gerenciamento estatal do dinheiro irá contestar: "Muito bem, admitindo que é inútil aumentar a oferta monetária, então a mineração de ouro não seria um desperdício de recursos? O governo não deveria manter a oferta monetária constante e proibir novas minerações?" Esse argumento pode ser plausível para aqueles que não possuem objeções às intervenções governamentais, mas não convencerá um resoluto defensor da liberdade. Porém, tal objeção ignora um ponto importante: o fato de que o ouro não é somente dinheiro; ele também é, inevitavelmente, uma mercadoria. Um aumento na oferta de ouro pode não conferir nenhum benefício monetário, mas confere sim benefícios não-monetários — ou seja, aumenta a quantidade de ouro utilizada no consumo (ornamentos, usos odontológicos e coisas do tipo) e na produção (insumos industriais). A mineração de ouro, portanto, não é de forma alguma um desperdício social.

Consequentemente, podemos concluir que a melhor maneira de determinar a quantidade de dinheiro na economia, assim como a quantidade de todos os demais bens, é deixando tal serviço a cargo do livre mercado. Além das indiscutíveis vantagens morais e econômicas da liberdade sobre a coerção, uma quantia de dinheiro estipulada por burocratas não será mais efetiva do que a quantidade de dinheiro estabelecida pelo livre mercado, o qual determinará a produção de ouro de acordo com sua relativa capacidade de satisfazer a necessidade dos consumidores — assim como já faz com todas as outras áreas da economia.[1]

A mineração de ouro, obviamente, não é uma atividade especialmente mais lucrativa do que qualquer outra. No longo prazo, a taxa de lucro desta atividade será igual à taxa de lucro líquida de qualquer outra indústria.

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

COMO GANHAR O DEBATE ECONÔMICO

"Nós vencemos!"

Foi assim que o escritor e economistaAndy Duncan iniciou a palestra inauguraldo encontro anual da Property & Freedom Society (PFS), realizado no mês de setembro de 2012 em Bodrum, Turquia. Em 1912, Ludwig von Mises lançava seu livro A Theory of Money and Credit e, nos cem anos que se seguiram, uma batalha ideológica foi travada e vencida por Mises e seus seguidores. Refutando todas as críticas feitas contra sua metodologia ao mesmo tempo em que fazia críticas fulminantes e definitivas contra outras escolas de pensamento econômico, e demonstrando o caráter irrefutável de sua epistemologia, a Escola Austríaca se estabeleceu como a única verdadeira ciência econômica. No entanto, após a constatação dessa vitória, Duncan mencionou um pequeno problema: com exceção de algumas ilhas de sanidade, como os Institutos Mises espalhados pelo mundo, o resto da população mundial (99,99%) sofre de uma maciça síndrome de Estocolmo, apoiando vultosas e pavorosas intervenções do estado na economia e na vida privada, acreditando piamente naquilo que é propagado por teorias econômicas falaciosas.

Duncan propôs uma estratégia de como os ensinamentos da Escola Austríaca e as ideias de liberdade poderiam atingir um público maior do que este 0,01% atual: o uso da literatura. Seu amigo Jack England escreveu o que ele chamou de primeiro romance rothbardiano, o Sword of Marathon, com potencial para se transformar em um filme de Hollywood. A estratégia é inserir as ideias de Mises, Rothbard, Hoppe etc. em histórias de ficção, atingindo assim um público que jamais leria os livros acadêmicos destes autores. Este seria apenas um meio. E para atingirmos uma porcentagem relevante, uma porcentagem que faça com que mudanças efetivas sejam concretizadas — e eu diria que de 20 a 30% seria o suficiente —, temos de usar todos os meios possíveis e imagináveis.

A reunião anual da PFS é um evento exclusivo para convidados — e os convites, dizem, são mais disputados que o ingresso dourado da Fantástica Fábrica de Chocolate de Willy Wonka —, e reúne as maiores mentes do movimento pela liberdade no mundo. Além de palestrantes como Guido Hulsmann, Jeffrey Tucker, Anthony Daniels e Thorsten Polleit, a plateia, formada por não mais de 90 pessoas, ainda contou com gente do calibre de Michael McKay, Detlev Schlichter, Mark Crovelli e Helio Beltrão. A interação com os outros convidados acaba tendo um valor tão grande quanto as palestras. Além disso, ao final de cada dia foi realizado um painel no qual todos os palestrantes do dia respondiam às perguntas do público. O anfitrião Hans-Hermann Hoppe — o maior nome da Escola Austríaca de nossos tempos e fundador e presidente da FPS — nos brindou com sua presença em dois desses painéis. Cada vez que ele tomava a palavra, fazia comentários precisos e pontuais, confirmando que a genialidade humana se reflete na simplicidade. E, ao responder a uma pergunta do público, juntamente com o professor Salerno, ele nos presenteou com outro tipo de estratégia: a de como devemos responder às insanidades que dominam todos os meios acadêmicos e de comunicação.

A pergunta foi originalmente feita a Salerno, e mencionava o economista Paul Krugman e os truques a que ele recorre para explorar habilidosamente a ignorância do homem comum em relação à teoria econômica. A dúvida era sobre como seria possível ganhar o debate econômico dado que Krugman e outros economistas convencionais espalham com muita facilidade ideias econômicas sem sentido porém de fácil apelo popular. É muito difícil corrigir esta falta de sentido perante o público comum utilizando argumentos econômicos racionais. Afinal, a mentira, a embromação e a simplicidade possuem fácil apelo; já refutar a mentira utilizando a razão e a inteligência é uma postura mais trabalhosa e muito difícil de cativar o público geral (minuto 34:10).

Salerno remeteu à estratégia de Henry Hazlitt, que utilizava uma linguagem extremamente clara e direta, e ilustrava as ideias sem sentido dos economistas convencionais pró-governo com exemplos do dia a dia, e assim conseguia expô-los como a fraude que eram. E concluiu dizendo que é isso que se tenta fazer no Instituto Mises, na PFS e em outras organizações pró- livre mercado. Ou seja, traduzir e apresentar as ideias destes charlatães de forma simples, pois desta forma é fácil ver o quão tolas elas são — como, por exemplo, a ideia de que pedaços de papel podem estimular a economia. Para Salerno, o que está faltando são mais pessoas percebendo e fazendo isso. É imprescindível difundir a educação econômica. E, no ponto em que estamos, trata-se de uma questão de quantidade e não de qualidade. 

O professor Hoppe tomou a palavra neste momento e complementou, com a genialidade de sempre, da seguinte forma:


É muito importante que, nestas respostas a pessoas como Krugman, não nos envolvamos em detalhes técnicos e, em vez disso, façamos perguntas como se praticamente fossemos crianças:


"Explique para mim como aumentar o número de pedaços de papel pode fazer uma sociedade enriquecer."

"Se isso é capaz de gerar mais riqueza, explique para mim como ainda existe pobreza no mundo."

"Todos os bancos centrais do mundo não são capazes de imprimir a quantidade de papel que quiserem?"

"Se eles fizerem isso, você acha que a sociedade e o mundo ficariam mais ricos?"

Tenho certeza de que o sujeito não pode responder a esse tipo de pergunta. Ninguém pode responder a esse tipo de pergunta.

Mas, novamente, as pessoas costumam ficar empacadas, respondendo aos detalhes técnicos destes argumentos em vez de ficarem constantemente repetindo este tipo de pergunta simples e direta: "Por favor, explique para mim como é que um pedaço de papel pode fazer uma sociedade enriquecer."

De fato, como relatei no artigo Ressuscitem o Orson Welles!, a insanidade desta gente já chegou ao ponto de seu mais respeitado e renomado representante, Paul Krugman — ganhador do prêmio Nobel de economia e colunista do The New York Times — afirmar em rede nacional, e com a cara lavada mais lavada do mundo, que se os governos alocassem todos os recursos sociedade para combater uma inexistente invasão alienígena, a crise econômica estaria solucionada. Isso é um patente absurdo. Qualquer pessoa que tenha lido um único ensaio deBastiat sabe mais economia do que o maior expoente do mainstream. Ou melhor, qualquer pessoa com bom senso já é capaz de perceber a insanidade desta gente. O que faltou após uma declaração destas — e elas são feitas às centenas, todos os dias, em todos os jornais, revistas, programas de rádio e TV — foram pessoas respondendo a estas declarações absurdas com perguntas do tipo mencionado acima: "Explique para mim como é que direcionar todos os esforços e recursos escassos existentes para construir uma gigantesca arma contra alienígenas que não existem pode enriquecer a sociedade".

Vivemos realmente numa Era de Trevas no que se refere à ciência econômica. A insanidade domina os meios acadêmicos e de comunicação, e as consequências maléficas disso são sentidas por todos, com o governo intervindo cada vez mais e gerando cada vez mais pobreza — ou impedindo cada vez mais a criação de novas riquezas. Todos os dias, toneladas de ideias sem sentido são despejadas não apenas sobre a audiência de programas de rádio e de televisão, como também, e principalmente, sobre os leitores e espectadores de jornais. Todos os dias, alunos de economia são bombardeados por insanidades econômicas, jogadas sobre eles por professores que também tiveram essas mesmas ideias jogadas sobre eles quando eram alunos, e as aceitaram sem questionar. Acredito que a maioria dos professores e comentaristas de economia está apenas repetindo as insanidades que ouviram no passado, mas é inegável que existem aqueles que o fazem porque ideias que dão poder ao estado servem aos seus interesses particulares. Mas independentemente dos motivos, estas ideias não podem mais ser aceitas passivamente. O tipo de reação lógico-questionadora acima deve se seguir toda vez que alguém com bom senso ouvir coisas sem o menor sentido. Se não puder responder pessoalmente, envie e-mails para o meio de comunicação onde a insanidade foi exposta, telefone, mande carta.

Durante um jantar na semana passada, um jovem amigo libertário, estudante de Escola Austríaca, ouviu a seguinte frase: "Sem o BNDES, o Brasil não cresceria". Obviamente, ele quase engasgou com esta ideia estapafúrdia, mas sua reação não parou por aí; ele teve também a "reação hoppeana" descrita acima. Primeiro ele comunicou à pessoa que disse isso que ela sequer possuía conhecimentos básicos de economia, pois o que ela havia dito não fazia sentido. Mas a pessoa respondeu dizendo que era professor de economia, com mestrado na FGV. Meu amigo então pediu mais explicações: "Quer dizer que de 1500 até o BNDES surgir no segundo mandato Vargas, o Brasil era um matagal gigante com algumas caravelas e alguns engenhos... e então, a partir dali, evoluímos de pau-brasil e escambo para a prosperidade atual em um espaço de poucas décadas graças ao BNDES. É isso?"

A resposta do professor foi exatamente a de inserir detalhes técnicos dentro de um economês incompreensível, falando sobre indicativos macroeconômicos e geração sustentável de empregos etc. Meu amigo insistiu nas perguntas básicas: "Conte-me mais sobre como você matematizou as ações de milhões de mentes humanas pra concluir que crédito obtido por meio do roubo e da fraude e concedido centralizadamente é mais eficaz do que crédito oriundo de poupança própria concedido de acordo com as forças do mercado". 

O professor apelou para um argumento de autoridade e disse que quando ele tivesse um mestrado ele entenderia. Como previsto por Hoppe, ele não conseguiu responder a estas perguntas. Ninguém pode responder esse tipo de pergunta.

E como o professor Salerno enfatizou, precisamos de mais pessoas fazendo exatamente isso.

Fernando Chiocca é um intelectual anti-intelectual, praxeologista e conselheiro do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

NAUFRÁGIO TRIBUTÁRIO

Considerar que a função das empresas é gerar receita tributária emperra o país. Dilma deve impor concepção desenvolvimentista à Receita


Talvez um dos principais fatores do fracasso econômico do governo Dilma Rousseff em seus dois primeiros anos -com alta inflação, baixo PIB, um dos últimos lugares em crescimento na América Latina, pouco investimento, perda de competitividade internacional e crescimento da esclerosada máquina burocrática- seja o confuso, arcaico e oneroso sistema tributário.

Mediante ciclópicos autos de infração, a produção de complexas normas auxilia a fragilizar as empresas.

Militando há 55 anos na área fiscal e tendo convivido com os pais do Direito Tributário brasileiro, à época em que as leis eram feitas por juristas e não por “regulamenteiros”, tenho acompanhado a deterioração do sistema.

O cidadão, jamais consultado, vê-se de mais em mais envolvido num emaranhado de leis, portarias, instruções normativas, soluções de consulta. A única certeza que se apresenta é a insegurança jurídica.

Pretende a presidente Dilma atrair investimentos, mas a Receita Federal auxilia a afastá-los, considerando operações suspeitas fusões, incorporações e outras formas de agregação de sociedades. Isso tisna a agilidade competitiva das empresas brasileiras perante aquelas de outros países.

A famosa norma antielisão (LC 104/01), que ainda não foi regulamentada, é, sob disfarces diferentes, amplamente utilizada para inviabilizar tais operações, sob a alegação de que, ao escolher entre duas soluções rigorosamente legais, deve o contribuinte sempre adotar a que se apresentar tributariamente mais onerosa.


Participei da comissão de especialistas nomeada pelo Senado para propor uma reformulação do pacto federativo e do sistema tributário. Éramos 13 e, após seis meses de intensos trabalhos, apresentamos 12 propostas de emendas constitucionais, leis complementares, resoluções do Senado e leis ordinárias. Entregues em 30/10/2012 ao presidente do Senado, elas continham soluções para o equacionamento da guerra fiscal, novos critérios para os fundos de participação dos Estados e municípios, para os royalties do petróleo e para a reformulação da partilha tributária.Não discuto a idoneidade dos agentes fiscais, mas, sim, a errônea filosofia de que a função da empresa é gerar receita tributária e não provocar o desenvolvimento econômico e social do país. Essa filosofia está emperrando, definitivamente, o governo da presidente Dilma, não só com medíocre performance econômica, mas também com a desestabilização do terceiro setor -que faz o que o governo deveria fazer com nossos tributos-, sendo perseguido pelo poder público como se fosse fonte de receita tributária e não de assistência social e educação.

Apenas no que concerne à guerra fiscal, o governo federal aproveitou as sugestões.

Como o mandato não foi renovado, não pudemos continuar o trabalho para uma reforma tributária completa. Enquanto isso, o país naufraga num sistema que o próprio governo reconhece de há muito ultrapassado.

Na década de 60, no Canadá, a “Royal Comission of Taxation” se voltou a promover justiça social e desenvolvimento por meio de uma política tributária correta, que privilegia esses objetivos em lugar da mera arrecadação. Seu incremento decorre, necessariamente, do atingimento de ambos.

Creio que, se a presidente Dilma não impuser uma filosofia desenvolvimentista à Receita Federal, baseada no modelo canadense, dificilmente sairemos dos últimos lugares de desenvolvimento e seu governo continuará a ostentar um dos piores índices da América Latina, com baixo crescimento e alta inflação. Por: Ives Gandra Martins Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/01/2013

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O BUNDESBANK QUER SEU OURO DE VOLTA - MAS SEM PRESSA

Há quase duas semanas, o Bundesbank (o Banco Central da Alemanha) surpreendeu os mercados de todo o mundo ao anunciar que irá repatriar uma considerável porção de suas reservas de ouro que estão na França e nos EUA. Para muitos, tal anúncio, vindo do segundo maior detentor de ouro de todo o mundo, foi um sinal de que está havendo uma crescente, embora ainda clandestina, desconfiança entre os próprios bancos centrais, possivelmente estimulada por suas divergentes políticas monetárias. 



Os alemães fizeram de tudo para arrefecer o alarmismo gerado por seu anúncio, enfatizando uma miríade de razões logísticas, práticas e históricas que deveriam servir para mostrar que seu anúncio, na verdade, era rotineiro. No entanto, o tamanho, o escopo e o momento desta medida fazem com que seja difícil não crer que haja outros motivos de cunho mais estratégico.

Sendo anunciada durante uma época de suposta cooperação entre os bancos centrais de todo o mundo, a decisão alemã de repatriar bilhões de dólares em barras de ouro estava fadada a gerar algum susto. No momento, o Banco Central alemão possui oficialmente 3.396 toneladas de ouro em seu balancete. Deste valor, 1.500 toneladas estão no Federal Reserve de Nova York e 374 toneladas estão em Paris. A Alemanha anunciou que irá repatriar 674 toneladas de ouro — 300 do Fed de Nova York (avaliadas em US$17,9 bilhões) e todas as 374 toneladas de Paris (avaliadas em US$22,3 bilhões). 

Em tese, repatriar tal volume de ouro deveria ser uma operação relativamente simples. De Paris, o ouro poderia ser transportado de trem ou de caminhões para Frankfurt. Dos EUA, utilizando alguns aviões militares ou navios. No entanto, tão logo o anúncio foi feito, o Bundesbank afirmou que plano é fazer essa repatriação aos poucos, ao longo dos próximos sete anos. Ou seja, as 674 toneladas de ouro só serão totalmente reavidas em 2020. Trata-se de um adiamento inexplicável. Em específico, as 300 toneladas que estão no Fed de Nova York reflete apenas 5% das mais de 6.700 toneladas mantidas em seus cofres. É bastante esquisito que o Fed necessite de tanto tempo para entregar algo que deveria ser uma retirada corriqueira e manejável. Isso só confirmou as suspeitas de que o ouro, na prática, não existe mais. 

Paralelamente, junto com a declaração do Bundesbank há um pdf cujo slide número 14, sob o título "Armazenamento no Federal Reserve Bank de Nova York", parece muito mais uma fotomontagem do que ouro genuíno. A óbvia intenção da foto é fazer acreditar que aquele ouro é o estoque pertencente ao Bundesbank. Isso entrega todo o jogo: é tudo uma pura manobra de relações públicas.

Embora alguns medalhões financeiros, como o presidente do Fed Ben Bernanke, tenham dito que ouro "não é dinheiro", e investidores respeitados como Warren Buffet tenham descrito o ouro como uma "relíquia bárbara", qualquer anúncio envolvendo grandes movimentações de ouro geram forte impacto emocional. Tal reação é justificada?

Após a Segunda Guerra Mundial, a ameaça de uma repentina invasão soviética convenceu várias nações europeias ocidentais a diversificar a localização de seu portfólio de ouro, enviando o metal particularmente para os EUA e o Reino Unido. Hoje, a Alemanha mantém apenas 31% de seu estoque de ouro nos cofres do Bundesbank. Do restante, 45% está no Federal Reserve Bank de Nova York, 11% está no Banco Central da França (Banque de France) em Paris, e 13% está no Banco Central da Inglaterra (Bank of England) em Londres. Mas agora que a ameaça militar russa já se dissipou, os alemães corretamente reavaliaram a conveniência dessa distribuição.

Durante décadas, os bancos centrais mantiveram grande sigilo sobre seus estoques de ouro. Apesar disso, ainda hoje, são poucas as pessoas que duvidam dos valores dos estoques publicados nos balancetes dos bancos centrais. No entanto, quando o assunto é a quem exatamente pertence o ouro mantido nos cofres dos bancos centrais e de alguns bancos comerciais, as perguntas tornam-se bem mais sérias. Para o espanto de vários cidadãos alemães e observadores internacionais, o Bundesbank admitiu alguns anos atrás que havia décadas que ele não efetuava uma auditoria do seu estoque de ouro. 


Os países desenvolvidos adotaram uma forma de economia keynesiana que criou um mundo inundado de dinheiro fiduciário desvalorizado, o qual está lastreado em uma aparentemente insuportável montanha de dívida pública. Em tal mundo, é compreensível que os cidadãos alemães sintam que o ouro de seu país deveria estar em casa. Tal sentimento tem potencial para se espalhar. O partido CDA (Christen-Democratisch Appèl; Apelo Cristão-Democrático) da Holanda já pediu que as 612 toneladas de ouro do país sejam repatriadas dos EUA, do Reino Unido e do Canadá.


É legítimo imaginar se tais sentimentos irão se espalhar e revelar que há uma escassez de ouro físico naqueles cofres até então tidos como confiáveis. Adicionalmente, em um mundo em que a confiança nos bancos centrais está desaparecendo rapidamente, os próprios bancos centrais estão se tornando cada vez mais desconfiados uns dos outros.

Ao mesmo tempo, os bancos centrais dos países em desenvolvimento, particularmente os da China e do Sudeste Asiático, estão comprando e acumulando ouro velozmente, assim como também o estão fazendo países como Rússia, Turquia e Ucrânia. A China já é hoje o maior produtor mundial de ouro, mas ela não apenas retém toda a sua produção, como também compra ouro continuamente no mercado aberto. Isso já ocorreu até mesmo em momentos em que nenhum outro grande banco central estava vendendo quantias significativas de ouro. A desastrosa investida feita pelo Banco Central da Inglaterra no início da década de 2000, quando ele vendeu centenas de toneladas de ouro a um preço menor que $300 por onça, sem dúvida é um fator controlador.

A relutância dos bancos centrais em abrir mão do ouro alheio que está sob sua custódia, fato esse que foi apenas ressaltado pela repatriação exigida pela Alemanha, está em profundo contraste com as políticas destes mesmos bancos centrais durante as décadas de 1970 e 1980, quando todos eles fizeram esforços de maneira concertada para desmonetizar o ouro, algo que só podia ser feito por meio da venda efetiva de grandes quantidades de ouro. Será que esta mudança de postura reflete uma crescente e mútua desconfiança na moeda fiduciária por parte de investidores sofisticados, que agora estão acumulando ouro?

Mesmo a repatriação de uma pequena fatia do ouro alemão, especialmente se tal medida for copiada por outras nações como a Holanda, deve ser vista com grande preocupação. Hoje, nenhum banco central ousaria, sem nenhum motivo, perturbar o equilíbrio de todo o sistema dos bancos centrais. Se o Bundesbank ousou fazer isso, então é porque ele sabe de algo. À medida que as economias keynesianas vão desandando rumo ao desastre financeiro, qualquer aumento na repatriação do ouro dos bancos centrais é um indicativo de que há um genuíno temor acometendo aqueles que detêm as verdadeiras informações privilegiadas — os próprios bancos centrais.

John Browne é consultor econômico sênior da Euro Pacific Capital, Inc., corretora de Peter Schiff. Formado na Harvard Business School, John tem experiência de 37 anos no mundo financeiro e empresarial, tendo trabalhado no Morgan Stanley & Co, no Barclays e no Citigroup, além de ter participado do conselho diretor de vários bancos e corporações internacionais.

QUAL O CAMINHO?

O Brasil já passou por várias situações aqui em Davos, no Fórum Econômico Mundial. Já foi o destaque da semana, nos tempos do Plano Real e em alguns anos do governo Lula. O próprio ex-presidente já foi a grande estrela de Davos, mas em anos de baixo crescimento já houve até quem sugerisse que se retirasse a letra B do acrônimo BRICS, deixando para a Rússia, Índia, China e agora a África do Sul as glórias de liderarem os mercados emergentes. Mas este ano está diferente, não há uma compreensão exata da situação do Brasil. 


O fato é que não somos o foco de nenhum painel, ninguém está muito preocupado com o país. Mas também ninguém tem a coragem de dizer que o Brasil não tem importância. Houve até uma ou outra voz em painéis sobre a América Latina que garantiu que o Brasil sempre será o país do futuro, incapaz de realizar a promessa. Mas esse pensamento não reflete uma tendência. 

A declaração da diretora-geral do FMI Christine Lagarde de que tem dúvidas sobre a capacidade de crescimento do Brasil reflete a sensação generalizada. Todos querem entender para onde está indo o país. Ontem, num painel coordenado pela BBC, o presidente do Banco Central Alexandre Tombini foi questionado sobre o intervencionismo do governo Dilma Rousseff, culpado pela falta de investimentos dos últimos anos. 

Tombini garantiu que o país está preparando um ambiente favorável aos investidores, tanto estrangeiros quanto nacionais. Confrontado com o crescimento pobre do PIB brasileiro nos últimos dois anos, o presidente do Banco Central garantiu que as medidas que estão sendo tomadas nos últimos meses, como redução das tarifas de energia elétrica, redução de encargos em folhas salariais, redução de impostos para estimular o consumo, tudo prepara um ambiente favorável aos investimentos, para garantir um crescimento mais robusto a partir deste ano. 

No entanto, persistem entre os empresários sensações de insegurança com relação ao futuro do país num governo que dá sinais de ser mais intervencionista do que incentivador dos investimentos privados. A mesma redução de tarifa de energia elétrica dada como medida favorável aos investimentos pode ser usada como exemplo de intervenção governamental que deu prejuízos às companhias de energia que aderiram ao plano imposto. 

A ponto de a estatal Eletrobrás estar prestes a ser extinta justamente pelos prejuízos que teve que assumir com a medida imposta pelo governo. A proximidade do governo brasileiro com a Venezuela de Chávez é outro ponto que chama a atenção dos empresários internacionais, que querem entender até onde vai a simpatia do governo brasileiro pelos métodos bolivarianos espalhados pela região. 

Esse paradoxo de uma região onde a democracia predomina ser dominada politicamente por governos de características autoritárias, quando não puras ditaduras, se reflete na comissão que reúne países da América Latina e do Caribe, que passará a ser presidida por ninguém menos que o ditador cubano Raul Castro. Será ele o porta-voz da região nas negociações com a União Europeia que serão realizadas este fim de semana no Chile. 

A América Latina era até há bem pouco tempo dividida em dois grupos, os países capitalistas onde estão Peru, Chile, Colômbia, e os da órbita chavista, entre os quais Equador, Bolívia e até mesmo a Argentina. O Brasil, sempre colocado entre os de economia aberta, desta vez ficou no meio termo em um painel sobre a América Latina, como se com um capitalismo de Estado cada vez mais presente, e a sistemática intervenção do governo nas questões econômicas, já não fosse mais possível identificar-se imediatamente o país com o capitalismo liberal, com o capital privado tendo papel preponderante no processo econômico. 

O presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, garantiu que o governo vê um papel importante do capital privado nas obras de infraestrutura que precisam ser feitas no país. Pelo ambiente arredio revelado aqui em Davos, vão ser necessários atos concretos, mais que declarações oficiais, para convencer o empresariado de que não estamos nos transformando em uma Argentina. Por: Merval Pereira

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

UM ABISMO DIANTE DE NÓS

A ação da procuradora-geral da República em exercício contra o Código Florestal atenta contra a democracia


A Procuradora-Geral da República em exercício aproveitou sua interinidade para propor ao Supremo Tribunal Federal três Adins (Ações Diretas de Inconstitucionalidade) contra 23 dispositivos do novo Código Florestal, pedindo, aliás, suspensão de sua vigência enquanto estiver pendente o julgamento.

Talvez seja a primeira vez que um diploma legal sofre uma arguição de constitucionalidade em tal extensão. Se reconhecida a condição alegada, cairá por terra todo um código debatido e votado livremente nas duas Casas do Congresso, após dez anos de discussão no lugar institucional próprio e, enfim, sancionado com alguns vetos pelo Poder Executivo. E com ele cairá também, de forma irremediável, o modo democrático de funcionamento do Estado brasileiro. É disso que se trata.

A votação do Código Florestal foi um episódio especial e raro na vida do Parlamento brasileiro e no modo como se fazem as leis. O processo lento permitiu que todas as visões da matéria fossem amplamente defendidas, com total transparência. Ao final, os legisladores sabiam exatamente o que estavam votando. Entre todas as visões em disputa, algumas prevaleceram e outras foram rejeitadas.

Tudo foi feito sob a luz da imprensa livre. Venceu o ambientalismo republicano, que produziu a legislação ambiental mais restritiva e protetora da natureza de que se tem notícia em todo o mundo. Instituições de preservação, como a reserva legal e a proteção das margens dos cursos d'água, que só existem no Brasil, foram sacramentadas. Tudo às expensas do proprietário: benefícios sociais e custos privados!

A sociedade democrática pressupõe pluralidade de visões de mundo e de valores. Os conflitos resultantes dessa pluralidade não se resolvem pela imposição autocrática nem pelos meios da burocracia do Estado. Têm de ser resolvidos exclusivamente no espaço da política ou estaremos vivendo em regime autoritário.

Apenas os agentes eleitos pelo povo soberano podem dar a última palavra nessa matéria. Só a eles o povo delegou, por meio de eleições livres, esse poder.

No Brasil, estamos vivendo uma situação perigosa. Como já advertiu publicamente o desembargador Rogério Medeiros Garcia de Lima, "personagens não eleitas intentam governar os destinos da comunidade". E disse ainda: "O Poder Judiciário não pode servir de trampolim para o exercício arbitrário e ilegítimo do poder político por quem não foi eleito". Concordo com todas as letras. Estamos sob o risco de uma judicialização totalitária.

Em relação a todos os dispositivos arguidos, havia claramente duas posições opostas no Congresso. Uma visão foi amplamente vencedora, em virtude dos votos de quem tinha autoridade legítima e exclusiva para fazê-lo.

A arguição da procuradora adota, sem nenhum disfarce, todos os pontos de vista vencidos, querendo mudar, por meio de instituições não eleitas, o resultado do jogo democrático. Torna vencido o vencedor e vencedor o vencido.

A prevalecer essa distorção, estará abolido o modo de funcionamento democrático do Estado brasileiro. O Congresso não será mais necessário. Nem o controle do Executivo, por meio do poder de veto. Tudo será resolvido por instituições que não estão sob os limites do controle social e democrático.

Não se trata aqui, portanto, de uma mera discussão de tecnicidades jurídicas sobre a lei ambiental. Trata-se de definir onde se decidem, no Brasil, as visões de mundo e de valores: se no campo político e democrático do Parlamento, com a participação da sociedade, ou nos palácios da burocracia judicial.

Ao assumir integralmente pontos de vista políticos manifestados e derrotados numa votação parlamentar, sob a desculpa de contrariar vaguezas da Constituição, a procuradora da República nos arremessou a um questionamento: a vida social, de agora em diante, não deverá mais ser regulada nos espaços democráticos?

A sociedade brasileira precisa despertar para esse grande abismo que se abre diante de nós.
Por: Kátia Abreu Folha de SP

FALTOU LIDERANÇA NA BOATE

Numa entrada e saída de 4 metros de largura, 7 pessoas conseguem sair por vez, ao ritmo de 21 pessoas por segundo, lentamente. 

Em sessenta segundos são 21x60, 1260 pessoas por minuto. 

Portanto, não foram as 260 pessoas a mais a causa do desastre. Mesmo diminuindo pela metade, em dois minutos sairia todo mundo. 

Faça o teste você mesmo. Cronometre quanto tempo você leva para andar 80 metros. 

Tanto é que os 5 membros da Banda, os que estavam mais longe da porta, saíram tranquilos, na base do "com licença, com licença", que é muito, mais muito mais demorado. 

O que faltou foi liderança e responsabilidade social. E o líder natural naquele momento era o chefe da banda, único com o microfone e de posse de um meio de comunicação. 

Ele tinha o poder de avisar a todos para ficarem calmos e saírem lentamente. 

"Atenção pessoal, todos levantem as mãos para cima assim, e virem de costas para mim. Repito. 

Agora vão saindo lentamente porque temos um probleminha, e precisamos de espaço para resolvê-lo. 

Todos de costas para mim com mãos levantadas, os da frente saindo primeiro. Temos bastante tempo para sair deste local." 

Levantar as mãos reduz a possibilidade do empurra-empurra e o uso de força. 

Mas nenhum jornal sequer comentou a falta de capacidade de liderança, por não saberem o básico da matéria. 

Líder é o que tem em seu poder os meios de comunicação, mesmo que não o seja. 

O chefe da Banda e os demais integrantes agiram como capitães que abandonam os seus barcos em primeiro lugar. 

E muitos morreram porque não sabiam do problema, quem sabia ficou mudo e saiu de mansinho. 

"Eu só percebi o que estava ocorrendo 5 minutos depois que a música parou, e falei ué, algo está acontecendo?" 

5 minutos muito preciosos, e todos os jovens ficaram parados, por falta dos líderes do momento. 

Pior, o guitarista voltou na contramão para buscar a guitarra, atrapalhando uns 200 que queriam sair. 

Mas a manchete do Estadão foi Donos da Boate foram presos, omitindo que dois integrantes da banda, também o foram, que seria o óbvio. 

Novamente, a imprensa solta seu vitriol sobre a ganância, o fato de os seguranças tentarem exigir pagamento dos primeiros que saíram voando, que o extintor não funcionava, (nem poderia pois o fogo era no teto, e quem o usou, o vocalista, não sabia como usar), que não havia alvará, (foi pedido mas a burocracia demora). 

São os "Donos" sempre os culpados, e nunca quem realmente causou o problema, e como goleiros, os donos deveriam ter evitado o erro dos outros. 

Honestamente, eu nem teria pensado em colocar no Contrato de Locação, "proibido soltar fogos de artifício no salão, jogar ácido nos olhos dos presentes, dar tiros na plateia" , e assim por diante. 

Soltar "fogos" de artifício dentro de um salão faz parte do bom senso. 

O Ministério da Saúde recomenda "não estourar foguetes próximos às residências e sempre usar um equipamento de proteção, como cabos com mais de cinco metros de comprimento". 

Nem passa pela cabeça do próprio governo que alguém soltaria fogos ao lado de 1200 pessoas, em ambiente fechado. 

Novamente culpam os "donos", e não quem por imprudência colocou fogos para aparecer, em vez de cantar bem para aparecer, que deveria ser sempre o objetivo principal. 
Por: Stephen Kanitz

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

SANTA MARIA E A GUERRA DO VIETNÃ

Em 1967 a Guerra do Vietnam envolvia um contingente cada vez maior de soldados americanos. A necessidade de atendimento aos feridos graves, entre eles as vítimas de queimadura e intoxicação, demandavam recursos materiais e humanos cada vez mais complexos. Os EUA construíram, na cidade litorânea de Da Nang, um hospital militar com o objetivo de atender suas tropas. Nesta época não existia propriamente a especialidade hoje conhecida como Terapia Intensiva. Foi com espanto que os médicos militares começaram a atender um número cada vez maior de pacientes vítimas de intoxicação em função do chamado “agente laranja” e outras substâncias químicas utilizadas para desfolhamento de florestas e localização dos esconderijos inimigos. As pessoas apresentavam como quadro clínico uma síndrome que envolvia, entre outros sinais e sintomas, acúmulo de líquidos nos pulmões e diminuição da capacidade de oxigenação do sangue.

Essa nova doença ficou conhecida como “Pulmão de Da Nang” e hoje, nós intensivistas, a chamamos de SARA – Síndrome de Angústia Respiratória do Adulto.

Fiz esta breve introdução para dizer que é isto que pode acontecer com os sobreviventes do incêndio de Santa Maria. Mais; gostaria que ficasse muito claro a todos que este tipo de “coisa” não pode ser atendido (numa situação que envolve um número de pacientes tão grandes) com segurança em nenhuma capital brasileira. Isto ocorre porque simplesmente não há unidades de terapia intensiva em número suficiente nem respiradores artificiais para atender tanta gente.

Em meio a tanto desespero não há um só político ou autoridade da saúde com honestidade suficiente para dizer aquilo que escrevi acima. Há pelo menos quatro décadas assistimos gerações e mais gerações de secretários e ministros da saúde insistindo na ideia de medicina comunitária e prevenção. Pois bem, pergunto agora: o que nós, médicos intensivistas, devemos fazer com as pessoas que sobreviveram ao incêndio de Santa Maria? Encaminhá-las para postos de saúde? Não se constrói um hospital público em Porto Alegre desde 1970! Pelo contrário; vários foram à falência e fecharam!

Que o Brasil inteiro saiba que é MENTIRA a afirmação das autoridades de que Porto Alegre tem leitos de UTI suficientes para atender toda essa gente! A secretaria estadual da saúde pode, se necessário, comprar leitos na rede privada mas mesmo assim é muita sorte haver algum disponível. Com relação aos responsáveis por esta tragédia, deixo aqui a minha opinião – foi o poder público corrupto, negligente e incompetente, quem MATOU todos estes jovens!

É esse tipo de gente que quer entupir o o Brasil com médicos de Cuba e do Paraguai, que manda médicos para o Haiti e que insiste em saúde “comunitária”, que agora aparece na televisão chorando e abraçando os pais das pessoas que morreram.

Termino aqui; como em toda situação de guerra, a primeira vítima de Santa Maria, assim como em Da Nang, foi a verdade – jamais esqueçam isto !

Milton Pires
Médico Intensivista
Porto Alegre – RS.

COMO O ESTADO DEFORMA A ÉTICA E INTRODUZ DOIS PARÂMETROS DE MORALIDADE

A velha lei cristã que nos ensina a tratar com respeito, cortesia e amabilidade as pessoas é uma regra irredutível de conduta individual, uma regra que não possui flexibilidade ou brechas que permitam interpretações deturpadas. Trata-se de um axioma básico para que toda a cooperação social e coexistência humana seja pacífica e produtiva. Com efeito, trata-se de um alicerce indispensável para toda e qualquer civilização que queira prosperar. 

No entanto, é inegável que estejamos, de maneira inconsciente e gradativa, solapando a rigidez deste alicerce. E tal procedimento já vem ocorrendo há várias décadas, de modo que hoje aquele outrora robusto alicerce se tornou apenas um pequeno toco não mais capaz de sustentar com vigor as relações inter-humanas e a toda a vida social. 

É verdade que a lei do amor ao próximo ainda fundamenta grande parte de nossas relações individuais diretas. Dentro de nossas famílias, praticamos — ou ao menos nos esforçamos para praticar — este mandamento. Em nossas relações diretas com nossos parentes próximos e até mesmo com nossos vizinhos, nos esforçamos para não infligir nenhum dano sobre eles e suas famílias. Uma relação amistosa e cordial ainda é algo mais frequente do que uma relação maliciosa e destrutiva. Em todas as nossas interações sociais, sejam elas associações econômicas ou quaisquer outras relações casuais, basicamente respeitamos os direitos e a liberdade de nosso semelhante.

Mas tudo isso se altera quando entra em cena o estado. Ou, colocando de outra forma, tudo isso se altera quando vemos no estado uma ferramenta legítima para a imposição e a consecução de nossas demandas. Com o estado, somos indivíduos transfigurados. Somos outros. Com este organismo político, não há espaço para a lei do amor ao próximo; não há espaço para a cortesia, para o respeito e para a amabilidade. Quando agimos utilizando o estado para atender às nossas demandas políticas, agimos de uma maneira que um indivíduo minimamente escrupuloso jamais sonharia em agir em suas relações inter-humanas diretas. Não há espaço para a cortesia e para o respeito ao próximo quando fazemos do estado o sistema canalizador de nossas demandas políticas.

Considere os seguintes exemplos. 

Como indivíduos, não pensamos em extrair, por meio da violência ou da ameaça de violência, nenhuma fatia da riqueza ou da renda do nosso vizinho. Porém, em nossa vida política, estranhamente passamos a nos sentir livres e moralmente desimpedidos para 1) extrair boa parte de sua renda por meio de altas alíquotas de impostos e 2) controlar sua riqueza — e a maneira como ele a investe — por meio de uma multiplicidade de regulamentações econômicas.

Como pais, não pensamos em coagir nosso vizinho para que ele contribua para a educação de nossos filhos. Porém, como membros de um organismo político, recorremos à tributação com o intuito de coagi-lo a financiar a educação de nossos filhos, de modo que eles tenham "educação pública, gratuita e de qualidade". De quebra, isso faz com que nos sintamos "liberados" das nossas obrigações morais e pessoais para com nossos próprios filhos. Alguém que quisesse propositalmente criar uma sociedade de pais indolentes e negligentes dificilmente teria uma ideia melhor.

Como seres humanos, não pensamos em surrupiar nosso vizinho de toda a sua poupança e aposentadoria. Porém, como seres políticos, defendemos que o valor delas seja brutalmente reduzido por políticas governamentais de inflação monetária, de crédito fácil e de empréstimos subsidiados para pessoas e empresas de que gostamos. Como indivíduos, não pensamos em encarecer artificialmente aqueles produtos que nosso vizinho mais pobre consegue comprar. Como membros do corpo político, consideramos pefeitamente normal obrigá-lo a pagar mais caro por meio políticas governamentais de desvalorização cambial e de imposição de tarifas de importação, as quais visam a proteger aquelas empresas ineficientes pelas quais temos alguma preferência.

Como pessoas caridosas, jamais pensaríamos em atacar a herança de uma viúva e de seus órfãos, e jamais pensaríamos em coagi-los para que eles nos colocassem como co-herdeiros. Como membros do corpo político, podemos obrigá-los a repassar metade de sua herança para nós.

Como indivíduos empreendedores, não cogitamos obrigar nossos concidadãos que vivem em outras partes do país a nos auxiliar em nossos empreendimentos locais; como participantes do sistema político, obrigamo-los a nos ajudar a alcançar nossos objetivos econômicos por meio de subsídios, repasses obrigatórios e outras contribuições governamentais.

Dois parâmetros distintos de moralidade

Se homens malvados e violentos passassem a assediar nosso vizinho com o intuito de extorquir uma parte de (ou toda a) sua renda, ou simplesmente se pusessem a oprimi-lo de alguma forma, nós corajosamente sairíamos em sua defesa. Se ele porventura ferisse ou até mesmo matasse um de seus agressores, iríamos absolvê-lo de qualquer acusação criminosa por ter agido em legítima defesa.

No entanto, se este mesmo vizinho, por ter se recusado a ter seus bens confiscados pelo estado por não ter pagado devidamente seus impostos, viesse a ferir ou até mesmo a assassinar em legítima defesa um "representante do estado" que foi à sua propriedade para confiscá-la, iríamos condená-lo por ter se recusado a abrir mão de parte de sua riqueza e por consequentemente ter privado o governo de utilizá-la para financiar aqueles programas de que gostamos. E com toda a nossa fúria e desejo de vingança, defenderíamos que ele fosse jogado em uma penitenciária e por lá ficasse "por um bom tempo".

Utilizamos dois padrões distintos de moralidade para mensurar nossos feitos e atitudes. Somos rápidos e severos para condenar os delitos que nosso vizinho comete. Mas somos incapazes de julgar com a mesma severidade nossas próprias ações quando estas são efetuadas por meio do sistema político.

Condenamos um vizinho quando este comete fraude, roubo, esbulho, usurpação, sequestro ou assassinato contra nossos semelhantes. No entanto, somos incapazes de fazermos um auto-julgamento quando defendemos que o governo confisque a riqueza alheia por meio de impostos, sequestre aqueles indivíduos que não "pagaram devidamente" esses impostos, assassine aqueles indivíduos que oferecerem resistência a este sequestro, reduza a poupança e o poder de compra população por meio da impressão de dinheiro (falsificação), estatize ou assuma forçosamente o controle majoritário empresas privadas, e usurpe por meio de regulamentações e burocracias o direito de indivíduos exercerem atividades econômicas que concorram com as empresas favoritas do governo.

Duas almas em nosso peito

Condenamos um indivíduo por desconsiderar suas promessas, seus acordos e seus contratos, e nos esforçamos para fazê-lo cumprir suas obrigações contratuais por meio de ações judiciais e de outros meios legais ao nosso dispor. Mas prontamente condescendemos com práticas governamentais que desprezam promessas e até mesmo os mais básicos mandamentos éticos. Podemos até mesmo chegar ao cúmulo de nos simpatizarmos com políticas explicitamente ilegais e condenar aqueles que são prejudicados por elas e que agiram em legítima defesa para se proteger.

A realidade é que temos duas almas em nosso peito: uma que procura fazer o que é moral e eticamente certo, e outra que renega a própria existência de padrões morais e éticos. A humanidade já pagou, está pagando e ainda irá pagar um enorme preço por ter rejeitado os mais básicos princípios cristãos do respeito, da cortesia e do amor ao próximo na esfera da ação política, a qual só faz crescer. O preço foi, é e será pago na forma de escravidão, guerras e crescentes tensões sociais.


Hans F. Sennholz  (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos.  Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou.  Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997.  Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.

Tradução de Leandro Roque

APRIORISMO

Explicando o verdadeiro significado do apriorismo


O ponto mais polêmico e controverso de toda a teoria econômica e filosófica desenvolvida por Ludwig von Mises é, sem dúvida, a sua afirmação de que existe uma teoria apriorística para a ação humana, isto é, que a ação humana pode ser explicada por um escopo de proposições desenvolvidas a priori, proposições que fornecem uma compreensão verdadeira sobre a realidade, e cuja veracidade pode ser confirmada independente de experimentos.

Sendo assim, vale a pena esclarecer uma questão central desta teoria: o significado de "experiência" e a questão de até que ponto proposições que explicam a ação humana (proposições praxeológicas) são derivadas da experiência humana.

Mises utilizou as expressões "experiência", "empírico", "empirismo" etc. de acordo com a maneira como a filosofia convencional do início do século XX entendia essas expressões. As raízes dessa compreensão remetem aos filósofos do século XVIII, como David Hume na Escócia e Etienne de Condillac na França, que haviam radicalizado as noções escolásticas do empirismo. A filosofia ocidental, de Aristóteles a John Locke, havia enfatizado a existência de duas fontes de conhecimento humano: a razão e a informação coletada por meio dos sentidos humanos. Hume e Condillac eliminaram a razão do menu, alegando que todo o conhecimento científico de todas as coisas era baseado na "experiência"; ou seja, era mediado por meio dos sentidos.

Como de praxe, havia algumas ambiguidades envolvidas (especialmente no caso de Hume), mas, de qualquer forma, foi essa radical interpretação sensualista dos escritos de Hume e de Condillac que provocou uma reação racionalista. O objetivo dos novos racionalistas era defender a tese de que a razão era uma fonte de conhecimento, desta forma corrigindo a unilateralidade dos empiristas. Um dos mais famosos grupos destes novos racionalistas era a chamada escola do Idealismo Alemão, a qual era formada especificamente por Immanuel Kant, J.G. Fichte, G.F.W. Hegel e Arthur Schopenhauer.

Estes filósofos se distinguiam entre si não apenas por meio de suas ideias, mas também por meio de inovações terminológicas. Kant, em específico, criou um arsenal de novas expressões. Por exemplo, proposições não-tautológicas sobre o mundo material derivadas da razão pura — tais como "nenhum objeto tangível pode ser todo verde e todo vermelho ao mesmo tempo" — eram, na linguagem de Kant, "juízos sintéticos a priori".

Quando Mises alegou que a ciência econômica era uma ciência apriorística, sua intenção não foi afirmar que não havia absolutamente nenhuma evidência empírica para as leis expressadas por esta ciência. Mises de modo algum acreditava que a ciência econômica se baseava nas hipóteses fictícias criadas por uma comunidade de intelectuais acadêmicos e nem que o "apriorismo" significa a lealdade destes acadêmicos à sua fé comum. Tampouco quis Mises dizer que a análise econômica dependia de algum arranjo arbitrário de hipóteses que não estava sujeito à verificação ou à falseabilidade, de modo que a ciência econômica seria "apriorística" no sentido de um mero trocadilho tautológico.

Para Mises, a ciência econômica definitivamente é sobre fatos averiguáveis. A questão, no entanto, é que tais fatos não podem ser conhecidos por meio da visão, da audição, do olfato ou do toque. E proposições sobre estes fatos não podem, portanto, ser verificadas ou refutadas pela evidência dos sentidos.

Os fatos da ciência econômica e da ciência da ação humana (praxeologia) não podem de modo algum ser entendidos por meio dos sentidos. Eles podem ser conhecidos e entendidos somente por meio de um ato de auto-reflexão a respeito das imperceptíveis características estruturais da ação humana.

Por exemplo, Mises repetidas vezes mencionou duas características bastante básicas da ação humana: seres humanos fazem escolhas e seres humanos utilizam meios para alcançar determinados fins. Parece difícil negar que estas características da ação humana de fato existam. Nós, de alguma forma, "sabemos que" todas as ações humanas, em qualquer momento e em qualquer lugar, envolvem escolhas; envolvem o uso de meios escolhidos pelo indivíduo para alcançar fins escolhidos pelo indivíduo.

Mas como sabemos disso? Podemos ver, ouvir, cheirar ou tocar escolhas? Imagine que estejamos observando um homem saindo da porta de sua casa e indo até um carro. Será que realmente estamos vendo esse homem fazer escolhas? É claro que não. O que realmente estamos vendo é um corpo se movendo de A para B.[1] Não estamos vendo a sucessão de escolhas que levaram esse homem a fazer movimentos que o levassem de A para B. É apenas porque sabemos que a escolha humana existe, e sabemos disso por meio de um ato de auto-reflexão sobre as características invisíveis da ação humana, que podemos (corretamente) interpretar o fato observado como sendo resultante de uma sequência de escolhas. 

Em suma, características visíveis do comportamento humano, tais como a posição relativa de um corpo humano no espaço e no tempo, não são autoexplicativas. Elas só podem ser corretamente entendidas em conjunto com aquilo que sabemos a respeito de determinadas características "apriorísticas" e invisíveis da ação humana.

Este problema também está ligado à correta compreensão dos meios da ação. Não é possível identificar se algo é um alimento, um remédio ou uma arma apenas ao se olhar para o objeto físico. Um coco, por exemplo, pode ser um alimento em um contexto e uma arma em outro contexto. Pílulas para dormir podem ser utilizadas tanto como remédio quanto como veneno, dependendo da quantidade ingerida. Pense também no exemplo de palavras e frases. As características físicas da nossa linguagem — os ruídos que fazemos quando falamos — não são de modo algum representativas da linguagem. Linguagem não tem nada a ver com ruídos aleatórios. Palavras e frases não são meros ruídos, mas sim ruídos bem definidos e com significados também bem definidos. Um mesmo ruído pode ser totalmente destituído de sentido em um contexto (por exemplo, palavras em inglês direcionadas para um macaco), mas totalmente significativas em outro (palavras em inglês direcionadas para um escocês).

Vamos agora, de um outro ponto de vista, enfatizar a impropriedade de uma abordagem puramente empírica para o estudo da ação humana. Considere o aspecto psicológico de se aprender mais a respeito de algumas amplas categorias de meios de ação — tais como alimentos, remédios, armas, linguagem. É possível argumentar que, na primeira vez que aprendemos algo sobre eles, o aprendizado sempre se dá em conjunção com um objeto físico concreto. Sendo assim, podemos aprender sobre a natureza de um remédio utilizando uma pílula concreta que ingerimos para aliviar uma dor concreta; ou podemos aprender sobre a natureza da linguagem por meio de uma conversação concreta feita em um idioma concreto. Porém, mesmo quando aprendemos pela primeira vez o que é um remédio ou o que é uma linguagem, não vivenciamos isso por meio de nossos sentidos, mas sim por meio de uma reflexão sobre as intenções por trás do uso daquela pílula ou daquele idioma. Mesmo nesses primeiros encontros, é somente ao interpretarmos o uso do objeto físico (a pílula ingerida, as palavras pronunciadas) como um meio para se alcançar uma categoria de fins (saúde, comunicação), que compreendemos do que se trata a categoria de meios "remédio" e "idioma". Assim, ainda que possamos ter aprendido sobre a natureza de determinados meios de ação em conjunção com um objeto físico concreto, não é pelo estudo das características físicas do objeto que aprendemos sobre a natureza daquele meio.

Para resumir: sempre que tentarmos explicar o comportamento humano — seja como causa de outras coisas, seja como um efeito de outras coisas —, temos de recorrer a constatações sobre determinados fatos que não podem ser analisados por meio de nossos sentidos. Foi por isso que Mises afirmou que "todas as investigações históricas e todas as descrições das condições sociais pressupõem conceitos teóricos e proposições teóricas". Estas proposições teóricas envolvem (1) as características invariantes da ação humana (sua "natureza") e (2) a natureza dos meios de ação. As concretas manifestações físicas da ação e os meios utilizados nesta ação entram em jogo somente na medida em que afetam a conveniência da ação concreta e dos outros meios concretos que poderiam ser utilizados para a consumação de um propósito. Por exemplo, a o dinheiro é um objeto físico utilizado com a intenção de se efetuar trocas indiretas; porém, de um ponto de vista praxeológico, qualquer objeto utilizado como dinheiro só é interessante na medida em que ele é mais conveniente do que outro objeto para se efetuar trocas indiretas.

Em suma, a análise praxeológica está voltada tanto para os objetos visíveis quanto para as escolhas e intenções invisíveis. Mas ela está primordialmente preocupada com escolhas e intenções, e lida apenas incidentalmente com os objetos visíveis. E o conhecimento que possuímos sobre escolhas e intenções é derivado de outras fontes que não os sentidos humanos. A análise praxeológica, portanto, não é de forma alguma conhecimento empírico; não é empírico no mesmo sentido no qual o conhecimento que ganhamos por meio da observação, da audição, do olfato e do tato é empírico. 

Este é o sentido da afirmação de Mises de que a praxeologia (ciência da ação humana) e a ciência econômica são ciências apriorísticas. Estas disciplinas não lidam com nenhum aspecto visivelmente aleatório do comportamento humano, mas sim com as características invariantes no tempo (as naturezas) da ação humana e dos meios da ação. Tais naturezas podem ser analisadas, e até mesmo devem ser analisadas, independentemente da informação que recebemos por meio de nossos sentidos. A validade das proposições praxeológicas (sua veracidade ou falsidade) pode portanto ser avaliada do modo totalmente independente do "histórico empírico".

 Não é possível "ver" uma pessoa fazendo escolhas porque, antes de qualquer coisa, é impossível ver a alternativa da qual a pessoa abriu mão para fazer a ação que a estamos vendo fazer. Sendo assim, materialistas consistentes, como Marx e a maioria de seus seguidores, simplesmente negaram a própria existência da escolha.


Jörg Guido Hülsmann é membro sênior do Mises Institute e autor de Mises: The Last Knight of Liberalism e e The Ethics of Money Production.  Ele leciona na França, na Université d'Angers.

Tradução de Leandro Roque