quarta-feira, 20 de março de 2013

A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA CATÓLICA E O CAPITALISMO

Um dos traços mais característicos do pensamento católico ao longo dos séculos sempre foi a ênfase na razão. A mente do homem, de acordo com esta tradição, é capaz de apreender e compreender toda a ordem que existe no mundo, ordem essa que está fora de sua mente. O homem é capaz de abstrair "pressupostos universais" de uma miríade de objetos e dar um sentido aos vários fenômenos que lhe rodeiam. Com isso, ele é capaz de encontrar ordem no caos dos dados dispersos ao seu redor. Neste aspecto, o ser humano se difere dos animais, que não têm essa capacidade racional.

Para um católico, Deus e a Bíblia são teleológicos, o que significa dizer que, segundo ambos, as coisas têm propósitos. Por exemplo, não cabe ao homem definir, de acordo com suas vontades arbitrárias, os propósitos do casamento e da sexualidade. Deus pune aqueles homens que ignoram, em nome de seus próprios caprichos, a ordem e o propósito que Ele construiu em Sua criação. Católicos, em geral, nunca foram nominalistas: eles não consideravam a vontade de Deus como sendo algo absolutamente impenetrável, e nem Suas leis morais como sendo essencialmente arbitrárias. Determinadas ações não se tornavam boas só porque Deus havia dito que eram boas; Deus havia dito que eram boas porque elas eram boas. Assim, desde o mundo físico até o mundo dos preceitos morais, Deus se mostrava perfeitamente racional e metódico.

O mercado e a mão de Deus

Ao longo da história da Igreja, vários pensadores escolásticos viam as mãos da divina providência na bela ordem e harmonia criada pelo livre mercado e pela divisão do trabalho — um acréscimo, devo dizer, àquela ordem existente no âmbito físico que São Paulo e a teologia católica como um todo sempre apontaram como evidência da existência de Deus e de sua bondade. 

O cardeal jesuíta Juan de Lugo, perguntando-se qual seria o preço de equilíbrio, já no ano 1643 chegou à conclusão de que o equilíbrio dependia de um número tão grande de circunstâncias específicas que apenas Deus seria capaz de sabê-lo ("Pretium iustum mathematicum licet soli Deo notum"). Outro jesuíta, Juan de Salas, referindo-se às possibilidades de saber informações específicas do mercado, chegou à conclusão de que todo o mercado era tão complexo que "quas exacte comprehendere et ponderare Dei est non hominum" (somente Deus, e não o homem, pode entendê-lo exatamente).

Os pensadores iluministas viam a regularidade dos fenômenos naturais como sendo uma emanação dos decretos da Providência, e quando esses mesmos pensadores descobriram uma regularidade semelhante na ação humana e na esfera econômica, eles interpretaram essa realidade como sendo mais uma evidência do zelo paternal do Criador do universo. Os liberais diziam que o funcionamento do mercado livre, no qual o consumidor — isto é, qualquer cidadão — é o soberano, produz melhores resultados do que os decretos de governantes sagrados. Observem o funcionamento do sistema de mercado, diziam eles, e lá descobrirão a mão de Deus.

O grande economista liberal clássico (e católico) do século XIX Frédéric Bastiat descreveu as consequências desta constatação em sua obra publicada postumamente Economic Harmonies:

Se existem leis gerais que agem de maneira independente das leis escritas, e se o único poder das leis escritas é decretar se elas são legais ou não, então é imperativo estudarmos estas leis gerais. Se elas podem ser objeto de investigação científica, então existe algo que pode ser chamado de ciência econômica. 

Por outro lado, se a sociedade é uma invenção humana, se os homens são meras matérias inertes, e se um grande gênio — como disse Rousseau — tem de transmitir sentimento e vontade, movimento e vida a estes homens, então não pode haver algo chamado ciência econômica: existe apenas um indefinido número de arranjos possíveis e casuais, e o destino das nações dependerá exclusivamente do pai fundador a quem a população, por puro acaso, incumbir seu destino.

O problema com a Doutrina Social da Igreja

A principal dificuldade com boa parte daquilo que passou a ser chamado de 'Doutrina Social da Igreja' desde a publicação da encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII, é que tal conjunto de ensinamentos pressupõe que a vontade humana é o suficiente para resolver questões econômicas, e que os ensinamentos e as conclusões das leis econômicas podem ser tranquilamente ignorados. 

Com efeito, assim como a Escola Historicista Alemã à qual Ludwig von Mises se opôs, os proponentes da doutrina social efetivamente negam a própria existência de leis econômicas. Por conseguinte, as pessoas que seguem tal corpo de pensamento rejeitam por completo o papel da razão em avaliar as consequências de políticas econômicas "progressistas" e em compreender a ordem e a harmonia que podem existir em fenômenos complexos (neste caso, nos fenômenos de mercado).

Esta atitude é contraditória porque vai diretamente contra toda a tradição intelectual católica, segundo a qual o homem deve adequar suas ações à realidade, e não embarcar na impossível e tola tarefa de forçar o mundo a se adequar aos seus desejos. Os seguidores deste corpo de pensamento desejam obrigar a realidade a apresentar resultados que não podem ser efetivados apenas pela vontade.

Consequentemente, um seguidor da doutrina social da Igreja irá fornecer declarações do tipo: "É bom que as famílias prosperem. Consequentemente, a adoção de tal política [aumento da tributação sobre os mais ricos, aumento do salário mínimo, legislação antitruste, mais regulamentações etc.] é moralmente obrigatória." Em outras palavras, queremos X, portanto devemos fazer Y. (A conexão entre X e Y muitas vezes é apenas implícita, mas está lá). Mas e se 1) Y afastar você de X; 2) houver melhores maneiras de se chegar a X sem usar Y; ou ambos? 

O corpo da doutrina social católica é repleto de tais declarações, de tal forma que não é fácil fazer uma distinção entre princípios básicos e recomendações. O problema, naturalmente, é que todas estas recomendações são contestáveis, muito embora um grande número de proponentes da doutrina social passe a lamentável impressão de que todas elas já foram decididas, e que apenas alguns teimosos, por algum motivo egoísta, obstinadamente se recusam a assentir.

Assim, por exemplo, a ideia de que todo homem deve ganhar um salário alto o bastante que lhe permita sustentar sua família e dar a ela um razoável conforto representa um objetivo social desejável. Já a sugestão de que tal resultado pode ser criado por decreto — isto é, a sugestão de que a vontade do homem pode estabelecer tal situação simplesmente porque ele quer que isso aconteça, e que as leis econômicas não são válidas para ajudar a prever o provável resultado de tais medidas — é totalmente ilógica. Tal postura é tão intelectualmente defensável quanto a sugestão de que o desejo humano de voar torna supérflua qualquer necessidade de levar em consideração a lei da gravidade.

Defender a estipulação de um valor salarial mínimo que permita o consumo de vários bens tido como essenciais para uma família é uma das bandeiras da doutrina social da Igreja. A alegação é que isso irá ajudar as famílias mais pobres e que, de quebra, o aumento do consumo delas irá "estimular o crescimento econômico" — como se simplesmente sair consumindo coisas pudesse tornar a sociedade mais próspera, ou como se mais gastos em consumo fosse exatamente o que o estado devesse estimular.

É claro que tal política salarial é recomendada com a genuína intenção de melhorar a vida das pessoas. Porém, se sabemos que tal política sugerida tenderá a piorar a situação geral, pois ela irá (entre outras coisas) aumentar o desemprego, então não apenas é lícito, como também é moralmente obrigatório do ponto de vista da obediência católica, se opor a ela. 

Adicionalmente, se sabemos que o funcionamento normal de uma economia de livre mercado baseada na propriedade privada já possui uma inerente tendência natural a gerar contínuos aumentos salariais (ver aqui, aqui e aqui), então certamente este é mais um argumento em favor de se rejeitar a ideia de imposição de um determinado valor salarial mínimo e de se defender um arranjo de livre mercado baseado na propriedade privada (arranjo este em que ninguém tem a permissão de roubar ou de agredir inocentes).

E há ainda outras situações paradoxais. Sempre que você defende a economia de livre mercado dizendo que tal arranjo é o mais condizente a gerar prosperidade, os adeptos da doutrina social são rápidos em dizer criticamente que a prosperidade material não é tudo. No entanto, quando alguns bispos progressistas divulgam aqueles seus pavorosos manifestos contendo "sugestões" de políticas econômicas, eles deixam perfeitamente claro que estão advogando políticas que visam a melhorar a situação material das pessoas. Eles acreditam que a intervenção estatal irá deixar as pessoas em uma situação materialmente melhor. Sendo assim, se somos "materialistas", então todo defensor da doutrina social também o é. Nada contra. O debate, portanto, deve se concentrar na abordagem econômica dos bispos. Se ela irá ou não gerar a prosperidade prometida.

A encíclica Populorum Progressio (1967) do Papa Paulo VI, por exemplo, foi além das observações morais que se pode fazer sobre o desenvolvimento do Terceiro Mundo e passou a de fato sugerir recomendações políticas, colocando dessa forma os católicos na injusta posição de aparentar "dissidência" em relação ao Papa ao proporem alternativas. Peter Bauer, o profético economista que alertou durante décadas sobre os efeitos perniciosos que os programas de ajuda internacional teriam sobre as nações do Terceiro Mundo, observou que não havia nada de particularmente católico, ou mesmo cristão, na encíclica, e que ela estava meramente repetindo, com algumas nuanças religiosas, o pensamento convencional.

Hoje sabemos o quão desastrosas foram as recomendações da Populorum: as ajudas internacionais fortificaram os piores regimes políticos , atrasaram indefinidamente as reformas necessárias e destroçaram dezenas de países, com vários grupos étnicos e raciais recorrendo à violência para tentar se apropriar de parte do dinheiro das ajudas internacionais. A própria ideia da ajuda internacional introduziu incentivos perversos a essas sociedades; tornou-se insensato criar coisas que satisfizessem os desejos de seus conterrâneos, pois era mais racional dedicar esforços improdutivos para fazer campanhas que lhe garantissem mais dinheiro externo. Por outro lado, Hong Kong, Chile e Coréia do Sul só se tornaram prósperos depois que a ajuda internacional foi interrompida e eles foram forçados a adotar políticas econômicas racionais e sensatas.

Paulo VI também adotou a badalada tese de Raul Prebisch e Hans Singer, que dizia que uma deterioração secular dos termos de troca entre o mundo desenvolvido e o mundo em desenvolvimento — sempre em detrimento deste último — era uma inevitabilidade, pois havia a suposta tendência de os preços dos bens manufaturados (especialidade dos países desenvolvidos) subirem e, ao mesmo tempo, os preços das commodities (especialidade dos países em desenvolvimento) caírem. Entretanto, essa suposta deterioração dos termos de troca nunca ocorreu, como o economista Gottfried Haberler já vinha argumentando dez anos antes da Populorum Progressio, se alguém se deu ao trabalho de escutar. Mas foi baseando-se nessa tese errônea que Paulo VI condenou o livre comércio, negando que este fosse um caminho para a prosperidade do mundo em desenvolvimento. (Curiosamente, hoje são os países desenvolvidos que condenam o livre comércio, argumentando que ele é prejudicial para os países ricos e benéfico para os países pobres). Os países que seguiram a tese Prebisch/Singer ficaram muito atrás daqueles que se integraram à divisão internacional do trabalho. Não há como negar isso.

Teria sido uma "dissidência" dizer que o erro factual do Papa acerca dos termos de troca era realmente um erro factual? Seria "dissidência" ter apontado que essas recomendações não lograriam o efeito a que se propunham? Deveríamos acreditar que a autoridade papal sobre assuntos de fé e moral se estende também a análises de causa e efeito aplicadas a programas de ajuda internacional? Essas perguntas se respondem a si próprias.

É um dever moral apontar os erros e corrigi-los

A infalibilidade papal é válida para questões de moral e fé, e não para questões econômicas. Um católico não deve negar a autoridade moral do Papa, mas ele também não tem de levar a ferro e fogo toda e qualquer recomendação econômica da Santa Sé. Por um bom tempo, vários católicos sofreram com a ideia de que não concordar com algumas sugestões de política econômica emitidas pela Santa Sé ou por prelados ao redor do mundo seria uma espécie de desobediência aos ensinamentos da Igreja. 

Nenhum católico deve apoiar uma política que seja intrinsecamente má. A ideia é simplesmente que, quando existem várias alternativas moralmente lícitas, escolher uma delas é uma questão de inteligência, de bom juízo e de exercício adequado da razão. Se eu posso recomendar um método de se alcançar um determinado fim, e se este método não for inerentemente imoral e for muito mais efetivo do que qualquer alternativa sugerida por alguns líderes católicos (sendo que cada uma delas iria piorar a situação), então não há nada de especialmente subversivo em se oferecer esta sugestão. 

O próprio Papa Leão XIII reconheceu isto quando disse que,

Se eu tivesse de me pronunciar sobre qualquer aspecto de um problema econômico vigente, estaria interferindo na liberdade de os homens lidarem com seus próprios afazeres. Determinados casos devem ser resolvidos no campo dos fatos, caso por caso, na medida em que vão ocorrendo.... [O]s homens precisam realizar tais afazeres por meio de suas próprias obras, e este princípio está além de qualquer questionamento.... [E]ssas coisas devem ser solucionadas ao longo do tempo e da experiência. 

Deixe-me ser bem claro: aqueles católicos que são seguidores das teorias da Escola Austríaca de economia, como eu, não estão exigindo que os papas façam pregações sobre economia austríaca desde a Cátedra de Pedro. Ninguém que conheça a evolução do pensamento econômico dos membros da igreja ao longo dos séculos ousaria afirmar que há apenas uma visão que constitui a "visão católica da economia". Contra aqueles que sugerem que um católico deve abordar assuntos econômicos de apenas uma maneira, o professor Daniel Villey nos lembra que "a teologia católica não exclui o pluralismo de opiniões a respeito de assuntos profanos". Católicos austríacos não dizem que "a nossa ciência econômica é a única católica"; apenas dizemos que aquilo que defendemos e ensinamos não apenas não vai contra o catolicismo tradicional, como na verdade é profundamente compatível com ele.

Existe uma profunda semelhança filosófica entre o catolicismo e o brilhante edifício de verdades encontrado na Escola Austríaca de economia. O método austríaco da praxeologia deveria ser especialmente atraente para o católico. Carl Menger e principalmente Mises e seus seguidores procuraram fundamentar princípios econômicos baseando-se em verdades absolutas, verdades perceptíveis por meio de uma reflexão sobre a natureza da realidade. O que, dentre tudo o que existe nas ciências sociais, poderia ser mais compatível à mente católica do que isto?

Igualmente, a economia austríaca nos revela um universo de ordem, cuja estrutura podemos compreender por meio de nossa razão. Como explicou o professor Jeffrey Herbener, "Uma abordagem causal-realista da economia surgiu no meio cristão porque era somente naquele meio que os estudiosos concebiam a natureza como uma ordem interconectada, uma ordem criada no fluxo do tempo por Deus, uma ordem criada do nada e governada por leis naturais determinadas pelo próprio Deus, leis estas que o intelecto humano seria capaz de descobrir e utilizar para entender a natureza com o objetivo de dominá-la para a glória de Deus." A alternativa seria aquele mundo de John Stuart Mill, que postulou ser perfeitamente possível encontrar algum lugar no universo onde dois mais dois não fossem quatro — uma visão que, nas palavras de Herbener, "está fundamentada na ideia metafísica de que o universo não é uma criação sistemática e ordeira." Qual destas duas visões é a mais compatível com o catolicismo não é difícil de ser discernido.

Conclusão

Grande parte dos conselhos econômicos apresentados como sendo parte integrante da doutrina social da Igreja ao longo do último século sofre de sérios defeitos de lógica e possui assertivas factualmente errôneas. Tal posição, independente de seus proponentes perceberem ou não, representa o triunfo da vontade sobre o intelecto, a substituição da análise racional das leis da interação social pela vontade arbitrária, além de ignorar as inevitáveis consequências da violenta interferência sobre esta interação social. Tal postura, além dos danos que ela causa à riqueza vigente na economia, é completamente estranha à Igreja Católica, uma instituição que sempre enfatizou a capacidade da mente de perceber a (e se deleitar com a) regularidade e a sistematicidade do mundo criado por Deus e de saber se adequar a esta criação divina.

A verdade, dizem os catecismos católicos, consiste na adequação da mente à realidade. A "doutrina social" católica, por outro lado, demanda com grande frequência que o homem permita que seus meros desejos e sentimentos formem seu juízo a respeito de questões econômicas. Avaliar as consequências de medidas econômicas com o auxílio das leis econômicas, e olhar para o âmbito econômico reconhecendo nele a ordem e a regularidade que a própria Igreja diz serem reflexos da perfeição do próprio Deus — esta é a postura católica.

Santo Agostinho certa vez disse: "In fide, unitas; in dubiis, libertas; in omnibus, caritas" (na fé, unidade; em questões incertas, liberdade; em todas as coisas, caridade). A demanda por caridade e o desejo de ajudar ao próximo tornam imperativo que não defendamos políticas econômicas insensatas que só irão prejudicar justamente aqueles a quem queremos ajudar.

Por: Thomas Woods  membro sênior do Mises Institute, especialista em história americana. É o autor de nove livros, incluindo os bestsellers da lista do New York Times The Politically Incorrect Guide to American History e, mais recentemente, Meltdown: A Free-Market Look at Why the Stock Market Collapsed, the Economy Tanked, and Government Bailouts Will Make Things Worse. Dentre seus outros livros de sucesso, destacam-se Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (leia um capítulo aqui), 33 Questions About American History You're Not Supposed to Ask e The Church and the Market: A Catholic Defense of the Free Economy (primeiro lugar no 2006 Templeton Enterprise Awards).

terça-feira, 19 de março de 2013

"HABEMUS CURSUM"! "HABEMUS PALESTRAUM"!


Sim, já temos o primeiro curso e a primeira palestra! Como responsável pela área acadêmica do IMB compartilho com vocês, em meu nome, no do Presidente Helio Beltrão e no de toda a valorosa equipe do Instituto, a grande satisfação, motivação e esperança de anunciar — sem fumaça branca, mas com a pompa e a circunstância que somente o latim possui — o início de nosso programa de cursos e palestras on line, nos moldes do Mises norte-americano.

Se dissermos apenas que essa auspiciosa notícia vem "preencher uma lacuna" em termos do ensino de economia e ciências sociais, estaremos caindo em um lugar comum, por isso preferimos afirmar que nosso programa, além de encher esse vazio, pretende revolucionar o estudo da ciência econômica e de todos os que se interessam pelas ciências sociais em nosso país, em uma perspectiva de longo prazo, entendido como uma geração.

Como se sabe, as faculdades brasileiras, particularmente as de economia, estão tomadas por keynesianos,neokeynesianos, schumpeterianos, marxistas, desenvolvimentistas e — embora em número menor —monetaristas; muitas instituições de ensino exigem que as dissertações de mestrado e doutorado de seus alunos empreguem métodos econométricos e algumas chegam a impor essa exigência até na graduação, em seus TCCs (trabalhos de conclusão de curso).

Assim sendo, os jovens saem desses anos de estudos acreditando piamente que o estado deve ser o indutor do crescimento, ou que os gastos públicos e a política monetária devem ser usados como instrumentos contra os ciclos econômicos, ou que a tributação deve ser um instrumento de "redistribuição" de renda, ou que "João é pobre porque Pedro é rico", ou que a crise mundial que já perdura há seis anos pode ser atribuída a ausências de regulamentações dos governos, ou que "um pouquinho de inflação é bom para estimular o crescimento", ou que incentivos à demanda também são bons para o crescimento, ou que os lucros se constituem em um grande mal, ou que os empresários são todos malvados, ou que os bancos centrais são essenciais e devem ter atuações ativas sobre a economia, ou que o monopólio da moeda é muito bom e indispensável, ou — o que não é incomum — crendo sinceramente em todas essas falácias (e muitas outras) ao mesmo tempo.

É muito triste constatar que gerações sucessivas de economistas vêm tendo esses logros inoculados em suas mentes e depois passam o resto de suas vidas — na academia ou fora dela — os repetindo como papagaios bem treinados. Recebo incontáveis mensagens de estudantes de praticamente todos os recantos do Brasil queixando-se do ensino de viés marxista e estatista que recebem.

Pois bem, chegou a hora de acabarmos com essa hegemonia! A proposta do Instituto Mises Brasil é quebrar sem pressa — mas sempre com o olhar voltado para o futuro e, consequentemente, para as novas gerações — essa corrente perversa e mostrar ao maior número possível de pessoas a importância das liberdades individuais, da economia de mercado e da propriedade privada, conceitos que o IMB considera essenciais, multiplicando-os tal como as estrelas do mar o fazem.

Os cursos serão entremeados com palestras e serão todos ministrados dentro da perspectiva da Escola Austríaca de Economia, que acreditamos seja o caminho correto para quebrar esse paradigma intervencionista e prestador de cultos, odes e adorações ao estado, que contamina há bastante tempo não apenas a formação de economistas, mas também a de todos os que se dedicam às ciências sociais e que também, como se sabe, se propaga por todos os meios midiáticos.

"Habemus palestram"!

A primeira de uma grande série de palestras já está marcada para o dia 4 de abril: "Como paradigmas são quebrados: o exemplo da Escola Austríaca", com o Professor e empresário Erick Skrabe, criador e editor do Instituto Mises Chile e Instituto Mises Itália, que possui uma trajetória acadêmica e profissional extremamente rica e interessante: aos 17 anos ingressou no ITA, onde cursou os três anos do curso de matemática; colaborou na criação do Museu da Matemática Aguinaldo Ricieri; graduou-se em Administração de Empresas; fez seu MBA no Chile, na Universidade Adolfo Ibañez; estudou em seguida na escola de negócios francesa INSEAD e na escola de economia da Universidade Bocconi, na Itália.

Em 1995, Erick abriu sua empresa na área de automação industrial e abriu escritórios no Brasil, Chile e Estados Unidos. Além disso, é também professor de Inovação, Consultoria e Logística na Universidade Anhembi Morumbi (São Paulo).

"Habemus cursum"!

O primeiro curso, no próximo mês de abril — "Patologias macroeconômicas: como governos e bancos centrais provocam inflação, desemprego e crises econômicas" — será ministrado em quatro aulas pelo Prof. Antony P. Mueller, um dos mais respeitados economistas da Escola Austríaca no Brasil e no exterior, Doutor em Economia pela Universidade de Erlangen-Nuremberg, Professor da Universidade de Sergipe, fundador e presidente do Continental Economics Institute, acadêmico adjunto do Ludwig von Mises Institute nos EUA e membro ativo do corpo acadêmico de nosso Instituto.

Convidamos você a participar desses eventos, únicos em nosso país, e a divulgá-los para o maior número de pessoas que vocês puderem. Para conhecer nossa programação basta acessar aqui, onde você poderá também encontrar pormenores e programas dos eventos e fazer a sua inscrição.

Podemos garantir que isto é apenas o começo. Acompanhe nossa página na Internet e você verá que nos próximos dias já poderemos proclamar no plural: "habemus cursos" e "habemus palestras"!

Os ventos da liberdade vão soprar com força, porque está surgindo a "Vniversitatis Mises Brazilis"!

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

segunda-feira, 18 de março de 2013

DESIGUALDADE POLÍTICA E ECONÔMICA

É cada vez mais preocupante a mística ética da desigualdade supostamente causada pelo capitalismo. Essa mística constitui-se no fator por antonomásia da demagogia que leva o socialismo ao poder. Afastar-se dela aparece como o pecado capital do egoísmo frente à virtude do altruísmo. Essa parece a disjuntiva presente no denominado mundo Ocidental que virtualmente se considera como democracia capitalista. Tanto assim que mesmo a crise européia, indubitavelmente o resultado do estado de bem-estar, baseado em um gasto público insustentável que desse lugar a uma dívida impagável, se considera como a crise do capitalismo.


Em um artigo recente de Foreign Affairs (Revista do Council on Foreign Relations), “Desigualdade e Capitalismo”, Jerry Muller estabelece que “O debate político nos Estados Unidos e outras democracias capitalistas esteve dominado por duas determinações: o crescimento da desigualdade e a escalada da intervenção do governo para enfrentá-la”. Já começamos mal, pois não sei quais são as democracias capitalistas às quais se refere o autor. Penso que já caiu no erro de considerar a União Européia capitalista, e me pergunto o que pensaria a Srª Merkel desta definição do seu governo. Porém, seguindo com o estabelecido inicial, Mr. Muller começa por reconhecer que o capitalismo cria riqueza, mas que ao mesmo tempo gera desigualdade.

Devo começar por dizer que a desigualdade foi criada pela natureza, e só foi a partir do que considero mal chamado capitalismo, que começou a criação de riqueza no mundo. Como bem disse Ayn Rand, “o capitalismo não criou a pobreza senão que a herdou”. Muller assinala, a meu ver corretamente, que “a desigualdade que existe hoje não depende da falta de oportunidades, senão das distintas habilidades para explorar a oportunidade”. Não obstante que reconhecesse a verdadeira causa da desigualdade, insiste na possibilidade de corrigí-la. Continua o ataque ao capitalismo e sustenta que a desigualdade e a insegurança são o caráter perene do capitalismo. Portanto, promove a necessidade da repartição, que ele considera que já se faz nos Estados Unidos através do Medicare e outros meios, e na União Européia via o estado de bem-estar. Nesse projeto ele ignora a verdadeira causa da crise econômica atual. Crise que nos Estados Unidos foi causada pela violação de princípios fundamentais do sistema, enquanto que na Europa é causada pelo sistema.

Dado que Habemus Papam, creio procedente lembrar as palavras de Leão XIII em sua Encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891, e mais tarde aparentemente esquecida ou mesmo negada: “Na sociedade civil não podem ser todos iguais, os altos e os baixos. Afanam-se em verdade por ela os socialistas, porém esse afã é vão e contra toda a natureza mesma das coisas, porque a natureza mesma pôs nos homens grandíssimas e muitíssimas desigualdades. Os talentos não são todos iguais, nem igual o engenho, nem a saúde nem as forças, e à necessária desigualdade destas coisas segue espontaneamente a desigualdade na fortuna. A qual é por certo conveniente à utilidade dos particulares como da comunidade”.

Perdão pelo alongado da citação mas a mesma me parece transcendental ao momento em que vivemos. Leão XIII não só aceita o realismo da origem da desigualdade, senão que ao mesmo tempo aceitou o rol da mão invisível tal como a descrevera Adam Smith: “O indivíduo perseguindo seu próprio interesse freqüentemente promove o da sociedade mais efetivamente do que quando ele realmente tenta promovê-lo”. Já deveríamos ter aprendido que atualmente a desigualdade econômica converteu-se na maior desculpa moral para conseguir a desigualdade política. Quer dizer, o poder político absoluto para violar o direito do homem à busca de sua própria felicidade. Esse princípio fundamental da liberdade tal como a expôs John Locke. Conseqüentemente, viola o direito de propriedade e cria a riqueza da nova classe - Chávez, os Castro etc. - e maior pobreza na sociedade.

Alberdi já havia se dado conta desta realidade e escreveu a respeito: “O egoísmo bem entendido dos cidadãos, é só um vício para o egoísmo dos governos que formam os estados”. Atrevo-me a dizer que foi em função desse critério que o princípio do direito do homem à busca de sua felicidade fosse reconhecido subliminarmente no artigo 19 da Constituição nacional que diz:

Art. 19. As ações privadas dos homens que de nenhum modo ofendam a ordem e a moral pública, nem prejudiquem a terceiro, estão só reservadas a Deus, e isentas da autoridade dos magistrados. Nenhum habitante da Nação está obrigado a fazer o que não manda a lei, nem privado do que ela não proíbe”. Assim surge a importância do poder judiciário para determinar o que é a lei, e não se violem os direitos que a Constituição garante. A respeito, Alberdi diz igualmente: “A constituição deve dar garantias de que suas leis orgânicas não serão exceções derrogatórias dos grandes princípios consagrados por ela”. Nos tempos em que não se violava a Constituição, a Argentina competia pelos primeiros lugares do mundo. Me atreveria a considerar que se o referendum das Malvinas tivesse sido feito durante a presidência de Roca Pellegrini et al, os kelpers teriam preferido ser argentinos. Porém, chegou Perón na busca da igualdade, desconhecendo o direito à busca da felicidade e me remeto aos fatos.

Me pergunto então, até quando vamos continuar acreditando que o capitalismo é um sistema econômico, produto do mercado, e ignorar que a economia é o resultado de um sistema político baseado em uma concepção antropológica e ética, e implementada via um sistema jurídico baseado na constituição. Quer dizer, o Rule of Law. Os pressupostos são a imutabilidade da natureza humana, o direito à busca da felicidade, a mão invisível e a necessidade de limitar o poder político através da separação dos poderes. E em última instância, o rol fundamental do poder judiciário para determinar o que é a lei e que não se violem os direitos individuais que a Constituição garante. Por: Armando Ribas
Tradução: Graça Salgueiro

'PASSADO IMAGINÁRIO'


PUBLICADO NA EDIÇÃO IMPRESSA DE VEJA

Uma das últimas modas no PT, no governo e na procissão de devotos que acompanha o ex-presidente Lula é lembrar a figura de outro ex-presidente, Getúlio Vargas, para defender-se do desabamento moral em que todos estão metidos hoje. A intenção desse novo plano mestre, mencionado em documentos do partido e tema dos discursos a serem feitos nas “caravanas” que o ex-presidente planejou para este ano, é vender ao público a seguinte história: Lula e seu “projeto para o Brasil” estão sendo agredidos, em 2013, pelo mesmo tipo de ofensiva que causou a liquidação do governo de Getúlio em 1954. A primeira reação é fazer uma sequência de perguntas: “O quê? Quem? Do que é mesmo que estão falando?”. A segunda reação é constatar que, sim, o estado-maior do PT está dizendo isso mesmo: um personagem de outro mundo, de uma época morta e de um Brasil que não existe mais está de volta entre nós. Ele foi tirado do túmulo numa tentativa de convencer o público de que episódios de corrupção, sejam lá quais forem os fatos que comprovam a sua existência, são apenas uma invenção das forças antipovo para armar “golpes de estado” contra governos democráticos e dedicados à causa popular, como teria sido o de Getúlio ─ e como seriam hoje os de Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff.

A última causa popular que empolgou o PT foi a campanha em favor da eleição do deputado Henrique Alves para a presidência da Câmara e do senador Renan Calheiros para a presidência do Senado. Naturalmente, como acontece em quase tudo o que o partido faz hoje em dia, é uma clara opção para enterrar-se mais ainda na vala comum da baixa política brasileira; Alves e Renan, sozinhos, valem por um samba-enredo completo sobre praticamente todos os vícios que fazem a vida pública nacional ser a miséria que ela é. Mas, para o PT de 2013, ambos são aliados preciosos das massas trabalhadoras, junto com Fernando Collor, Paulo Maluf, empreiteiros de obras, fugitivos do Código Penal, bilionários experientes em lidar com os guichês de pagamento do Tesouro Nacional, e por aí afora. Para o governo é tudo gente finíssima, empenhada em ajudar Lula no seu projeto de salvar o Brasil. O erro, na visão petista, é apontar o que está errado ─ aí já se trata de uma campanha que a direita reacionária, golpista e totalitária estaria fazendo contra Lula, como fez no passado contra Getúlio, com o apoio da “grande imprensa” e de “setores do Judiciário”. Sua arma de hoje, igual à de ontem, é o “moralismo” ─ delito atribuído automaticamente a quem aponta qualquer ato de imoralidade na vida pública. Getúlio, de acordo com esse sermão, foi um “mártir do moralismo”. Lula, os condenados do mensalão e toda a companheirada que frequenta o noticiário policial são as vítimas da direita moralista no momento.

Vítimas da direita? É curioso, porque aquilo que se vê parece ser justamente o contrário. Para ficarmos apenas no caso mais recente da série: que tipo de vítima poderia ser, por exemplo, a senhora Rosemary Noronha, a ex-chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo e amiga pessoal de Lula, denunciada há três meses pelo Ministério Público por crimes de corrupção passiva, formação de quadrilha, falsidade ideológica e tráfico de influência, junto com 23 outros suspeitos? Da trinca de irmãos Paulo, Rubens e Marcelo Vieira, os sócios mais visíveis de “Rose”, o primeiro era tratado pelo interessante apelido de “Paulo Grana”, conforme se constatou com a gravação de mais de 25 000 telefonemas trocados entre os membros da quadrilha. Fizeram de tudo. Conseguiram até mesmo ressuscitar o ex-senador Gilberto Miranda, dono de um espetacular prontuário aberto ainda nos tempos do governo José Sarney; imaginava-se que estivesse aposentado, mas constatou-se agora que continua na vida de sempre, metido com a privatização de ilhas e áreas públicas em volta do Porto de Santos. Ao longo desses três meses, Lula não foi capaz de dizer uma única palavra sobre o caso; não se sabe, na verdade, o que poderia ter dito. Mas toda a conversa ao seu redor apresenta as Roses, os Paulos e os Gilbertos como réplicas atuais dos alvos utilizados há sessenta anos pela campanha contra Getúlio. Moral da história: sem nenhuma explicação que possa justificar o que fazem no presente, Lula e seus aliados tentam pescar desculpas em histórias do passado. Como praticamente ninguém sabe nada sobre elas, podem contá-las do jeito que quiserem.

O normal é imaginar o futuro. O PT de hoje imagina o passado. Tudo bem, mas há dificuldades claras com esse conto ─ os fatos, teimosamente, não combinam com a lição que Lula e o PT querem tirar dele. A primeira dessas dificuldades está na simples passagem do tempo. Getúlio Vargas morreu quase sessenta anos atrás, em agosto de 1954. Só os brasileiros que hoje têm mais de 59 anos estavam vivos quando isso aconteceu; e quem, a esta altura, pode estar interessado no assunto? A imensa maioria da população não tem a menor ideia de quem foi Getúlio, e boa parte dos que sabem alguma coisa a respeito é indiferente ao personagem e à sua obra; despertam tanto interesse, hoje em dia, quanto a batalha de Tuiuti ou as realizações do regente Feijó. Mais difícil ainda, nessa tentativa de redecorar Getúlio Vargas como um santo para as massas brasileiras de 2013, é vender o homem como um político “democrático” ou “de esquerda”. É o contrário, justamente, do que mostram a razão e os fatos.

Getúlio chegou ao poder em 1930 por meio de um golpe apoiado pelos militares; derrubou o presidente Washington Luís e impediu a posse de seu sucessor legal, Júlio Prestes, de quem havia acabado de perder as eleições presidenciais. Dos dezenove anos que passou no governo, quinze foram como ditador. Seu Estado Novo criou uma censura oficial, legislava por decreto e permitia prisões sem processo. Perseguiu o movimento comunista brasileiro, que tentara derrubá-lo num levante armado em 1935, com uma selvageria que nada fica a dever aos piores momentos da repressão no Brasil. Aprovou a utilização maciça e sistemática da tortura contra presos políticos; permanece célebre, até hoje, o pedido do advogado Sobral Pinto para que fosse aplicado o artigo 14 da Lei de Proteção aos Animais em favor de seu cliente Harry Berger, militante comunista que, na condição de ser humano, foi torturado até entrar em colapso mental. A filosofia de Getúlio sobre esse tipo de problema, obedecida pela Justiça que o seu governo controlava, era bem curta. “O Estado Novo não reconhece direitos de indivíduos contra a coletividade”, resumiu ele em 1938. “Os indivíduos não têm direitos. Têm deveres.” Foi, enquanto pôde, um aliado virtual da Itália de Mussolini, de quem copiou as leis trabalhistas, e da Alemanha de Hitler, a quem apoiava negando vistos a judeus que tentavam refugiar-se no Brasil. Seu chefe de polícia e homem de confiança Filinto Müller era um aberto simpatizante do nazismo. Em 1936, ambos entregaram à Gestapo, que a mandou para a morte no campo de extermínio de Bernburg, a alemã Olga Benario, esposa do dirigente comunista Luís Carlos Prestes e presa como ele no Brasil; Olga estava grávida no momento em que foi deportada. Nenhum presidente na história do Brasil esteve tão diretamente ligado a um crime de morte, de forma tão comprovada, como Getúlio Vargas no caso de Olga Benario. E este é o homem que Lula apresenta hoje como seu herói.

Outro problema sério, que sempre aparece quando se tenta demonstrar que Getúlio Vargas foi vítima de um golpe aplicado pela direita brasileira, é encontrar o golpe. Getúlio não perdeu a Presidência da República por ter sido deposto num golpe da oposição extremista e conservadora, e sim porque se suicidou. Políticos veteranos, acostumados a enfrentar conflitos durante a vida toda, não se matam por causa de discursos da oposição, manchetes agressivas na imprensa e atos de indisciplina militar; vão à luta contra quem os ameaça. Não há dúvida de que Getúlio, em agosto de 1954 e já a caminho do fim de seu mandato, dessa vez obtido pelo voto, estava numa situação extremamente complicada. Agentes de seu governo eram acusados de crimes graves, incluindo o homicídio. Os adversários exigiam sua renúncia; cartazes com a letra “R” eram colados na fachada das residências. O principal porta-voz da oposição radical, o deputado e jornalista Carlos Lacerda, comandava no Congresso, na imprensa e na rua uma campanha incendiária por sua deposição. Havia aberta insubordinação militar; oficiais da Aeronáutica interrogavam na base aérea do Galeão, de forma francamente ilegal, funcionários de seu governo, e generais assinavam manifestos contra ele. Getúlio tinha a seu favor a lei, a popularidade e a opção de usar a força do estado para enfrentar a desordem criada por seus inimigos. Preferiu se suicidar com um tiro no peito no Palácio do Catete — aos 71 anos de idade, foi vencido por uma combinação fatal de amargura, desilusões, cansaço e depressão em estágio avançado.

O desfecho da história é bem conhecido. Getúlio foi substituído por seu vice-presidente, Café Filho, exatamente como previsto na Constituição. Um ano depois, na data marcada pelo calendário eleitoral, houve eleições livres e Juscelino Kubitschek, que não tivera a mínima participação na ofensiva contra Getúlio, foi eleito presidente da República, posto que ocupou até o fim do seu mandato. Nenhum dos inimigos políticos do presidente morto, a começar por Lacerda, jamais veio a ocupar cargo algum nos governos que se seguiram. Que raio de golpe teria sido esse, em que o presidente não é derrubado e os golpistas não põem o pé dentro do palácio? Mais difícil ainda é achar semelhanças entre agosto de 1954 e março de 2013. Não existe hoje o mínimo sinal de indisciplina militar. O governo tem maioria disparada no Congresso Nacional, onde acaba de eleger os presidentes das duas casas. Ninguém pede, nem de brincadeira, a renúncia de Dilma. A principal figura da oposição, caso se consiga encontrar uma oposição no Brasil, não é um barril de pólvora como Carlos Lacerda ─ ao contrário, é um político que poderia concorrer ao título de oposicionista mais camarada do mundo. Uma parte da imprensa, com certeza, não dá sossego ao governo. Mas não há um único jornalista ou dono de empresa de comunicação brigando para ser presidente da República.

Os lulistas condenados no mensalão tiveram sete anos inteiros para preparar suas defesas, e todos os seus direitos foram respeitados no processo. Ruídos falando em virar a mesa, até agora, só saíram do próprio PT e de gente como o malfadado Paulo Vieira, da trinca de “Rose”; foi pego numa gravação dizendo que os juízes do mensalão “não vão sair de lá ilesos”, que era preciso “parar o Brasil” e que “o negócio agora é tumultuar o processo”. Manifestações de rua, só em favor do próprio governo, com ônibus fretados, lanches grátis e camisetas que o cofre público, de um jeito ou de outro, acaba pagando. As forças conservadoras, enfim, parecem perfeitamente felizes com o governo, entretidas em comprar helicópteros, touros de raça e peruas Cayenne blindadas. Estão dentro do ministério e da base aliada. Segundo o próprio Lula, nunca ganharam tanto dinheiro como em seus dois mandatos de presidente. Golpe de direita? Getúlio? Lacerda? Não dá para ver nada disso.

Lula, com o PT atrás, fala em salvar a sua biografia, seu projeto nacional e a reputação do partido. Teriam mesmo de fazer essas coisas todas, pois áreas inteiras do governo federal viraram, nos últimos dez anos, uma espécie de cracolândia para viciados no consumo ilegal de verbas, favores e empregos públicos. Para isso, porém, precisam se defender com base nos fatos do presente. Getúlio Vargas não pode ajudá-los. Por: J. R. Guzzo Revista Veja

domingo, 17 de março de 2013

RENOVAÇÃO SOCIALISTA

A derrubada do Muro de Berlim, em 1989, acelerou um debate interno de décadas entre os partidos socialistas europeus, com diferentes níveis de abrangência e profundidade em diversos países, visando reavaliar seu posicionamento e as consequências da falência do regime de controle estatal da economia no bloco soviético.


Depois do intenso debate, a conclusão majoritária, porém não consensual, foi a de que o modelo mais eficiente, racional e capaz de gerar empregos, crescimento e riqueza aos cidadãos é o de livre competição, circulação de mercadorias e capital, no qual o correto funcionamento do sistema de preços é fundamental para direcionar a aplicação de recursos e o consumo, sem sujeitá-los a decisões arbitrárias e enviesadas.

Dentro dessa visão, os recursos obtidos com a arrecadação maior de tributos resultante do progresso e do crescimento econômico podem, além de atender às necessidades de investimentos e custeio do Estado, ser usados para finalidades sociais, como aumentos de benefícios à população e distribuição de renda, com a questão distributiva sendo completada pela tributação progressiva.

Já a visão liberal entende que uma menor tributação deixa mais recursos disponíveis para investimentos do setor privado, gerando maior retorno social pela criação de mais empregos e mais arrecadação de impostos resultante do maior crescimento.

A evolução do debate socioeconômico nas últimas décadas trouxe grande avanço na capacidade de geração de riqueza em diversas regiões do mundo, inclusive em governos socialistas, com distribuição de renda e aumento de benefícios em diversos níveis de intensidade, dependendo da inclinação política de cada governo e país.

Na América Latina, essa transformação tem tido evolução menos progressista e homogênea. Em muitas partes da nossa região, ainda não está consolidado o entendimento de que o sistema de economia de mercado é o melhor para gerar riqueza e empregos. E muitos ainda creem que os regimes socialistas são aqueles que aumentam a participação estatal na economia, promovendo estatização de empresas em alguns casos.

Nesse quadro, a América Latina, hoje, destoa da maior parte do mundo. Em vários países da nossa região ainda prevalece a visão de que o Estado é mais eficiente quando intervém na economia, especialmente nos mecanismos de fixação de preços e de alocação de recursos.

Essa é uma visão superada, mais um episódio de retrovisor quebrado na América Latina. Por: Henrique Meirelles Folha de SP

TRISTE PAÍS

Tem horas que nem sei o que dizer. Será que esse país não vai ter jeito nunca?

Lembro bem; era um domingo de sol em outubro ou novembro de 1955, e acordei com o rádio noticiando que o hotel Vogue estava pegando fogo.

O Vogue era na Princesa Isabel, no Rio, e no andar térreo funcionava a boate mais famosa da cidade.

Era lá que se encontravam os políticos (a capital da República ainda era aqui), as beldades e o high society em geral. Não havia jantar, coquetel, festa, que não terminasse no Vogue, onde as crooners eram Linda Batista e Araci de Almeida, olha que luxo; às vezes aparecia Dolores Duran para dar uma canja.

Só saiamos de lá com o sol raiando, e vivíamos intensamente os anos dourados, onde se nem todos eram felizes, todos pareciam ser. Foi a melhor boate que o Rio já teve.

No dia do incêndio a cidade inteira foi para a porta do hotel. Ou pelo menos todos os amigos dos que lá moravam. A agonia foi lenta, durou horas. As escadas do hotel eram forradas de madeira, o que ajudou o fogo a rapidamente chegar ao último andar (eram 12).

Como num incêndio não se pode usar o elevador, e pelas escadas em chamas ninguém podia descer, ficaram todos em seus quartos esperando por um milagre, o que não aconteceu. Chegaram os bombeiros, mas suas escadas iam só até o 4º andar; um boêmio muito conhecido na época, o Dantinhas, teve sangue frio para conseguir se salvar.

Ele pegou os lençóis, amarrou um no outro, molhou, para que os nós não se desfizessem, se vestiu inteiro -conta a lenda que não se esqueceu nem de botar a pérola na gravata- e desceu pelos lençóis até encontrar, mais abaixo, a escada dos bombeiros.

Foi o único que se salvou (e quando chegou na rua não falou com ninguém; foi para um bar ali perto, onde tomou uma garrafa de uísque inteira).

Os recém casados Glorinha e Waldemar Schiller foram encontrados abraçados, mortos, dentro da banheira, e duas pessoas se jogaram da janela, entre elas um cantor americano que fazia o show do Vogue naquele momento. Foi uma tragédia que abalou o Rio de Janeiro; quem viu nunca esqueceu.

Promessas foram feitas pelo chefe do Corpo de Bombeiros, pelas autoridades; aquilo havia sido uma lição, nunca mais nada de parecido aconteceria. Pois esta semana, 57 anos depois, a história se repetiu.

Um prédio no Leblon pegou fogo -e a tragédia só não foi maior porque o prédio tinha apenas quatro andares. Mas um casal não resistiu às chamas, se atirou e morreu- ela com 33 anos, ele com 57; eles pareciam muito felizes.

A assessoria do Corpo de Bombeiros declarou que no Rio existem apenas três unidades que têm plataformas e escadas; escadas tão curtas que nem chegam ao quarto andar. E o hidrante não tinha água, claro.

Dizer o quê? Que o Brasil continua o mesmo de 57 anos atrás, que ninguém faz nada para melhorar os serviço mais elementares, que os bueiros explodem, as escadas dos bombeiros são pequenas, mas que, segundo nossos dirigentes, o Brasil -o Rio, sobretudo- está bombando?

O governador declarou que o socorro foi de padrão internacional, que tal? Claro, ele deve estar comparando com Paris, onde passa a maior parte do tempo; já o nosso prefeito só pensa em carnaval, em samba, em alegria. Eu preferia ter um prefeito e um governador mais sérios, que cuidassem mais da nossa cidade e de seus habitantes.

Aliás, não me consta que o prefeito esteja estudando uma solução para os blocos, que este ano passaram de todos os limites; ele acha que é legal uma cidade animada.

Tem horas que nem sei o que dizer. Será que esse país não vai ter jeito nunca? As escadas dos bombeiros eram e continuam sendo pequenas? Então, feche-se o Corpo de Bombeiros, por sua inutilidade.

E aproveitando o embalo, fecha-se Brasília. Por: Danuza Leão Folha de SP


sábado, 16 de março de 2013

A MORTE DE HUGO CHAVES

Podemos ver o resultado da política de Chávez na própria Venezuela. O país é uma sombra de si mesmo. A economia foi arruinada pelo socialismo, a liberdade de expressão foi atenuada e a corrupção avançou por todos os lados.

O presidente venezuelano Hugo Chávez morreu na última quinta-feira após perder uma batalha contra o câncer. Ele era um famoso e amado crítico do capitalismo. Mas ele não era um crítico qualquer. Nas palavras do próprio: “Eu sempre disse [...] que não seria estranho se tivesse havido uma civilização em Marte, e que talvez o capitalismo tenha chegado lá [...] e posto fim ao planeta”. Segundo esse alerta feito durante um discurso em março de 2011, devemos ser cuidadosos. “Aqui no planeta Terra, onde algumas centenas de anos atrás havia grandes florestas, agora só temos desertos”. Em outras palavras, a Terra está ficando como Marte e a culpa é do capitalismo de novo.

Evidentemente seria estranho se soubéssemos que Marte teve uma civilização. E tem de ser um tipo bem peculiar de pessoa para sugerir, sem qualquer tipo de evidência, que Marte foi convertido em um deserto inabitável por culpa do capitalismo. Mas aí está um fenômeno do nosso tempo. Eis a confissão de um homem que era irracionalmente obsesso pelo anti-capitalismo. Falar de Marte e marcianos nesse contexto é uma daquelas digressões pelas quais podemos vislumbrar a intensidade do ódio de um homem por algo que ele provavelmente nunca entendeu.

Em 2009, durante um discurso na Conferência de Copenhague sobre as mudanças climáticas, Chávez explicou seu posicionamento: “Há um grupo de países que se consideram superior a nós do sul, do terceiro mundo, nós dos países subdesenvolvidos [...] os países devastados, como se um trem tivesse passado por cima de nós na história”. Segundo Chávez, “poderia dizer [...] parafraseando Karl Marx, o grande Karl Marx, que um fantasma está assombrando as ruas de Copenhague, e penso que esse fantasma que rodeia silenciosamente esta sala e as demais [...] é o capitalismo”.

A filosofia de Chávez é compartilhada por milhões ao redor do mundo. “Os ricos estão destruindo o planeta”, ele disse. “Será que eles pensam que podem ir para outro quando destruírem este?”. Mas os capitalistas não imaginam tal coisa. Não há ameaça imediata ao planeta. Há, porém, uma ameaça ao próprio capitalismo. Como o próprio Chávez afirmou, “O socialismo, o outro fantasma de que Karl Marx falou, que também está rodeando aqui, é na verdade um tipo de contra-fantasma. O socialismo [...] é o caminho para salvar o planeta [...] o capitalismo é a estrada para o inferno, para a destruição do mundo”. Alguns parágrafos depois Chávez ofereceu uma declaração de guerra ao capitalismo quando disse: “A História nos chama para nos unirmos e lutarmos. Se o capitalismo resiste, somos obrigados a nos dedicar a uma batalha contra o capitalismo para abrirmos o caminho para a salvação da espécie humana”.

É deveras lamentável que um homem adorado como se fosse um salvador, cuja morte foi sentida por milhões de pessoas, tenha sido tão desinformado. Décadas atrás, foi Friedrich Hayek que escreveu acerca da ignorância econômica dos intelectuais e políticos. Eles não poderiam entender como o capitalismo floresceu “as multidões existentes de seres humanos...” Segundo Hayek, os sentimentos de alguém como Chávez servem apenas para “frustrar o desenvolvimento da mais efetiva organização de produção e desencorajar as falsas esperanças do socialismo”. E, de fato, podemos ver o resultado da política de Chávez na própria Venezuela. O país é uma sombra de si mesmo. A economia foi arruinada pelo socialismo, a liberdade de expressão foi atenuada e a corrupção avançou por todos os lados. Sim, uma corrupção muito mais insidiosa do que qualquer coisa produzida pelo capitalismo.

“A ignorância da função do comércio”, disse Hayek, “que levou inicialmente ao medo, e na Idade Média ao controle governamental sem qualquer informação, e que só numa época relativamente recente cedeu graça a uma melhor compreensão, revive agora sob urna nova forma pseudocientífica”. Pode ser dito, de bom grado, que Chávez foi um representante dessa “forma”. Ele foi, portanto, um oponente da liberdade, um construtor de uma ditadura e um ignorante econômico. Mesmo porque, quando o Estado intervém no mercado a crise econômica resultante não é a culpa do capitalismo.

O capitalismo real é um desenvolvimento orgânico. É algo que o estado invariavelmente atrapalha. Aqueles que administram privadamente o dinheiro não são uma ameaça à sociedade. Segundo Hayek, “A história da administração governamental do dinheiro foi, com algumas pequenas exceções que duraram curtos períodos, uma história de fraudes incessantes e enganações. A esse respeito, os governos se provaram muito mais imorais do que qualquer agência privada...” E isso é verdade mesmo se considerarmos a sorte dos pobres ou a gestão do ambiente. Chávez se via como um salvador. Na verdade, ele foi um destruidor de oportunidades.

E assim observamos a morte de Hugo Chávez. Ele foi um homem que trouxe desgraça para o seu país. Se tivesse vivido mais, ele teria visto o erro das suas escolhas. “O desdém do lucro”, disse Hayek, “deve-se à ignorância...” É uma coisa triste alguém morrer antes da sua hora, e mais triste ainda é morrer na ignorância.

Por: POR JEFFREY NYQUIST

Publicado no Financial Sense.

O FRACASSO DO DESARMAMENTO

Mapa da Violência 2013 - O Fracasso do Desarmamento


Os números, mais uma vez, comprovam que não existe relação direta entre a quantidade de armas em circulação entre a população civil e as taxas de mortes por seu uso.

Um dos parâmetros mais utilizados para a compreensão da violência homicida no Brasil, o “Mapa da Violência” apresenta, em sua mais recente edição (2013), dados que, mesmo com indisfarçável contaminação da ideologia desarmamentista, conduzem à conclusão que mais se alcança entre os estudiosos em segurança pública: as políticas de desarmamento não reduziram homicídios no país.

De acordo com o Mapa, publicado pelo Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, foram mortas no Brasil, no ano de 2010, 38.892 (trinta e oito mil, oitocentos e noventa e duas) pessoas com uso de arma de fogo, quantidade que supera a registrada no ano 2000 em 3.907 (três mil, novecentos e sete) ocorrências - foram registradas 34.958 mortes naquele ano. Percentualmente, na década pesquisada, houve um aumento nas mortes por arma de fogo da ordem de 11,25%, computando-se acidentes, suicídios, homicídios e outras causas indeterminadas.

No mesmo período, de acordo com os dados disponíveis junto ao IBGE, a população brasileira sofreu um incremento de 12,33%, passando de 169.799.170 para 190.732.694 de habitantes. Portanto, para fins estatísticos e considerada a margem de variação inerente a qualquer pesquisa com parâmetros populacionais, os números se equivalem, não se podendo atribuir qualquer significação relevante à irrisória diferença de 1,08% entre o crescimento populacional e o de mortes por armas de fogo. O quadro pesquisado, assim, apresentou estagnação estatística.

A situação muda um pouco quando são isolados apenas os casos de homicídio. De acordo com o estudo, foram assassinadas com arma de fogo no país, no ano 2000, 30.865 pessoas, número que, dez anos depois, aumentou para 36.792, numa variação de 19,2%, ou seja, já expressivamente acima do crescimento demográfico.

Já numa primeira análise, portanto, os números comprovam que, entre os anos de 2000 e 2010, os índices gerais de morte por arma de fogo no Brasil praticamente variaram na mesma proporção de seu crescimento demográfico, com relevante aumento na taxa de homicídios com esse meio. Com isso, claramente já se pode observar que as amplamente difundidas políticas de desarmamento, implementadas no país no mesmo período, foram inteiramente ineficazes para a contenção de tal modalidade de crime.

A conclusão se reforça sobejamente quando são analisados os efeitos da política desarmamentista na circulação de armas de fogo no Brasil. No exato mesmo período de 2000 a 2010, o comércio de armas de fogo no país, em decorrência das legislações restritivas coroadas pelo atual estatuto do desarmamento, sofreu uma drástica redução, da ordem de espantosos 90% (noventa por cento).

Havia no país, no ano 2000, 2,4 mil estabelecimentos registrados na Polícia Federal autorizados ao comércio de armas e munições. Já em 2008, restavam apenas 280 (duzentos e oitenta). Em 2010, de acordo com diversas pesquisas promovidas por órgãos do próprio governo, organizações não governamentais e centros de pesquisa acadêmica, o comércio especializado de armas e munições se resumia a 10% (dez por cento) do que se verificava uma década antes[4].

Paralelamente a isso, campanhas de desarmamento, especialmente a fortemente realizada entre os anos de 2004 e 2005, precedendo o referendo deste último ano, retiraram de circulação cerca de meio milhão de armas entre a população civil brasileira[5], número que hoje já alcança, de acordo com dados oficiais do Ministério da Justiça, 618.673 (seiscentas e dezoito mil, seiscentas e setenta e três)[6].

Considerando que, de acordo com os dados do Sistema Nacional de Armas – SINARM, há hoje no Brasil pouco mais de 1,6 milhões[7] de armas com registro ativo, o total de armas recolhidas representa mais de 27,5% do universo somatório daquelas registradas e das já recolhidas. Em outros termos, comparando-se o total das armas hoje registradas e o daquelas que já foram entregues em campanhas de desarmamento, o arsenal legalizado brasileiro já foi reduzido em mais de 1/4 (um quarto) de seu total.

Numa realidade em que 90% do comércio de armas foi extinto no país e mais de seiscentas mil delas já foram retiradas de circulação, não resta qualquer dúvida de que, caso as armas legalmente possuídas pela sociedade brasileira tivessem vinculação com o número de mortes, os respectivos índices teriam sofrido igualmente significativa variação para menor.

Entretanto, consoante aqui demonstrado, mesmo com tamanha perseguição às armas de fogo, as mortes gerais por seu uso no país cresceram na exata mesma proporção do crescimento populacional, enquanto os homicídios aumentaram numa taxa acima deste. Em 2010, com 90% de redução no comércio de armas e mais de meio milhão delas já recolhidas, a taxa de mortes com seu uso no país o foi a mesma de uma década antes, com uma variação estatisticamente desprezível de apenas 1% (20,6/100mil em 2000 contra 20,4/100mil em 2010), ao passo em que a taxa de homicídios aumentou mais de 6% (18,2/100mil contra 19,3/100mil)[8].

Os números, mais uma vez, comprovam que não existe relação direta entre a quantidade de armas em circulação entre a população civil e as taxas de mortes por seu uso. A drástica redução no acesso do cidadão brasileiro às armas de fogo não representou nenhuma contenção nas mortes em que elas são empregadas e não impediu o considerável crescimento dos homicídios no país.

A explicação é simples: leis restritivas à posse e ao porte de armas apenas desarmam aqueles que cumprem as leis. Porém, no Brasil ou em qualquer outro lugar, como já reconhece a própria ONU, na quase totalidade das vezes em que um homicídio é cometido com uma arma de fogo, quem puxa o gatilho é um criminoso habitual[9].

Notas:

[1] WAISELFISZ, Julio Jacobo - Mapa da Violência 2013 - Mortes Matadas por Armas de Fogo : CEBELA, 2013, p. 11.
[2] Censo 2010 – IBGE. Disponível em http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766
[3] Ob. Cit., p. 11
[4] Vide: Venda legal de armas já caiu 90% em dez anos -http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI5077633-EI6594,00-Venda+legal+de+armas+ja+caiu+em+dez+anos.html
[5] http://www.brasil.gov.br/noticias/arquivos/2011/12/12/armas-de-fogo-mataram-mais-de-36-mil-em-2010-segundo-o-ministerio-da-justica
[6] Vide : http://blog.justica.gov.br/inicio/primeiro-mes-do-ano-registra-aumento-de-51-de-armas-entregues/
[7] 1.624.832 de registros ativos em 2012, segundo o SINARM.
[8] WAISELFISZ, Julio Jacobo - Mapa da Violência 2013 - Mortes Matadas por Armas de Fogo : CEBELA, 2013, p. 13.
[9] 2011 GLOBAL STUDY ON HOMICIDE – United Nations Office on Drug and Crime, p.10.

Fabricio Rebelo, bacharel em direito é pesquisador em segurança pública e coordenador regional (NE) da ONG Movimento Viva Brasil.

sexta-feira, 15 de março de 2013

MAS AFINAL, O QUE DIZ A TAL YOANI SÁNCHEZ?

Yoani Sánchez chegou ao Brasil sob protestos de emissários de partidos políticos nacionais ligados à ditadura cubana (PT, PCdoB, e PCB). Também por isso recebeu boas vindas de defensores da liberdade, que queriam, ao menos no Brasil, garantir a liberdade de expressão que apenas ditadores temem dar a Yoani.


Suas críticas à dinastia dos Castro foram acusadas de serem "financiadas pela CIA", sem que se explicasse por que críticas de entidades financiadas por fundos partidários de entidades moribundas deveriam ser levadas a sério. Afirmou-se que "Yoani mente", sem demonstrar uma mentira que fosse.

Mas, afinal, o que diz a tal Yoani?

Se seus "críticos" tivessem lido o blog mais influente da raça humana, ou o livro de artigos compilados De Cuba com carinho, lançado no Brasil, saberiam de uma coisa surpreendente: Yoani não fala de política.

O ideário socialista (e suas versões sem genocídio, como a social-democracia) sobrevive apenas como força simbólica contra "os poderosos" (que, no teste de realidade, são quem sustenta o enriquecimento da população). Não há grandes socialistas na Economia, não há como defender uma ditadura no Direito, não há "luta de classes" na Ciência Política. Os grandes socialistas se refugiam nas áreas dos símbolos sem aferição de resultado na realidade: as Letras, a Psicanálise, as macaqueações abstratas que fazem na Sociologia, na Filosofia, na História.

O que lemos em Yoani, ao contrário do que pregam seus "críticos" (aspas por não saberem o que criticam), não é uma defesa dos interesses americanos e do livre-mercado (que "os poderosos" de Washington não sonham em defender) financiada pela CIA. É, justamente, um passeio pela dura realidade cubana, que deixa o ideário simbólico do socialismo no seu devido lugar: um sonho adolescente totalitário, disfarçado de aversão à autoridade — quando raros jovens deixam de ser autoritários.

Seus "críticos" não devem sequer saber o nome do blog de Yoani (Generación Y, a geração dos que, não podendo ter contato com o mundo exterior, "burlaram" a burocracia dando nomes com letras estrangeiras aos filhos, como Yoani — uma geração que "viu o futuro esgotar-se antes de chegar").

Lá está a rotina de uma mulher viver cercada por homens encarregados de classificar binariamente as pessoas entre "revolucionário" e "contrarrevolucionário", vigiando os últimos em seus apartamentos. Lá se vê que "pronunciar-se é o caminho mais curto para atrair problemas".

O que se vê não é propaganda capitalista. É apenas uma rotina em que as pessoas não se chamam mais de "companheiro", muito menos aquele "companheiro" que te fez esperar 4 horas numa fila e te atende de má vontade para enfrentar a burocracia (e é bom evitar a expressão "não aguento mais" em público ou lugares possivelmente monitorados), em que o Congresso do Partido é adiado porque nem o governo tem como alimentar e hospedar tanta gente ao mesmo tempo — e, afinal, para ditar ordens de cima e todos concordarem com a vontade de um único homem, sob palavras de ordem como "é preciso trabalhar a terra", não é preciso Congresso.

Vemos o saudosismo das revoltas por comida contra o governo enquanto se assiste novelas brasileiras — como aquela em que uma mulher que vende comida na praia constrói um grande consórcio — sonhando poder ter essa mesma liberdade. Descobrimos que o governo gasta rios de dinheiro com 138 bandeiras (corroídas pelo vento e maresia toda semana) apenas para tapar da população o painel da Seção de Interesses dos EUA do outro lado, enquanto seu povo descobre com seus filhos que pode descobrir com uma conta simples quantos frangos comeu na vida: "Ai, papai, você quer que eu acredite que antes, nos açougues, vendiam todo o frango que a gente queria…"

A internet, "tão escassa quanto a tolerância", mostra que a ditadura trata melhor os turistas que financiam a ditadura com seus dólares (pois o socialismo só produz miséria) do que os nativos, tratados como inimigos do povo e agentes da CIA, enquanto as pessoas na rua mal sabem o que é um blog. O MSN é proibido para o povo, enquanto os líderes têm acesso ao "imperialismo". Apenas 2% dos cubanos tem acesso à internet, enquanto a cifra chega a 11% no Haiti. Por que o medo de os cubanos dizerem ao mundo como é a verdade em Cuba? Ela não é uma vitória dos oprimidos?
Isso rende anedotas quase engraçadas, como jornalistas se calando sobre Barack Obama flexibilizar as limitações para cubano-americanos viajarem a ilha, preferindo se focar no "beisebol, na revolução bolivariana e — claro — os festejos pelo dia da imprensa cubana". Enquanto vende-se ao mundo a idéia de que as aspirações do povo cubano são a liberdade de cinco espiões cubanos presos nos EUA e a extradição de Posada Carriles, acusado de fazer explodir um avião em pleno voo em 1976, o povo ainda luta para ganhar salário na mesma moeda em que se vende a maioria dos produtos — mas essa caderneta de aspirações o PT e o PCdoB não querem folhear.

Vemos as cooperativas de trabalho rural e estudo no campo para pré-universitários gerando piolhos, alimentação de arroz e couve, completa falta de intimidade até nos banhos públicos sem cortinas, hepatite, falta de água, roubo de comida e moças fazendo sexo para conseguir notas ou "mostrar" o excedente da produção agrícola. Até a própria nudez vira "bem público" ou "objeto de uso social", onde "compartilhar" é a palavra obrigatória.

A "igualdade" do "governo para os miseráveis", que justifica, no Brasil, que os Castro (e seu braço ditatorial brasileiro) calem Yoani, garante aos cubanos uma comida pior do que de uma prisão, também impedindo que seu povo se expresse e caminhe livremente. Todo cubano é visto como um prisioneiro em uma cela maiorzinha. Junto aos altíssimos índices de suicídios, abortos e divórcios, a cifra de desempregados é muito maior nas tardes das praças do que na propaganda do governo, já que os jovens graduados reclamam das vagas de faxineiro ou "inspetor de mosquitos" que lhes são atribuídas. É o destino que o socialismo dá a tantas mentes que poderiam estar mudando o mundo e ainda enriquecendo com seu trabalho.

Enquanto o povo se sacrifica em "planos econômicos", os verdadeiros poderosos têm ar condicionado e torram combustível indo aplaudir por unanimidade atos ditatoriais, enquanto os trabalhadores não podem ter eletricidade o dia inteiro nem um refresco gelado. Deve ser contra o "Império" e a CIA que se sobe 14 andares de escada por cinco meses, e contra as "perversões da rede" que se proíbe a internet e o Facebook. Ao menos as crianças, os trouxas e os intelectuais de esquerda parecem acreditar nisso.

Não é o governo do "ariano superior", mas nesse mesmíssimo regime em que tudo está no Estado, tudo para o Estado e nada fora do Estado, os autoproclamados "revolucionários" proíbem o povo sequer de tentar ter os direitos que eles outorgam apenas a si próprios. Enquanto isso, "o povo reduziu as suas ações a um verbo moroso: esperar".

Nas lojas há escassez de produtos marinhos. Tudo bem se fosse no Tocantins ou Mato Grosso, mas em uma ilha? Claro, Cuba é a única ilha do mundo sem comunidade pesqueira — ou todos iriam para Miami. Também é proibido ter uma prancha de surf — objeto que alguns usariam para enfrentar tubarões para fugir do Éden de igualdade. Apesar da logorréia sobre o "embargo", os frangos da loja são "made in USA".

A infância com ajuda da União Soviética e o seu "não deixe nada no prato, Yoani" se torna um passado saudosista, transformado num presente de "coma devagar, Yoani" — enquanto os líderes têm geladeiras cheias. Até a abundante banana arrisca-se ser perdida pelos planos do Agricultor em Chefe — tão desejados por nossa intelligentsia esquerdista — impedindo o "picadinho de casca de banana", iguaria da casa. Por conseguir comprar essa caríssima e rara substância com os prêmios internacionais que recebeu por criar o blog mais influente da crosta terrestre, Yoani foi acusada de "agente da CIA". Melhor nem falar na saudade das pizzas, ou do que o povo ganha na comemoração pelos 50 anos da revolução: direito a meia libra de carne moída. Pela caderneta de racionamento.

A saúde cubana é exposta: a imprensa do governo não fala da epidemia de dengue ou gripe suína em Havana, apenas explicam como tomar cuidado com o mosquito. Para que prejudicar o povo assim? Apenas para maquiar o símbolo vazio de conteúdo da imagem da medicina do país. E o que fazer depois de quatro meses sem absorventes femininos? A natureza não entende de cartelas de racionamento, e os jornais que exaltam a recuperação econômica infelizmente servem como papel higiênico, mas não como absorventes.

O hospital para câncer não tem água na privada, deixando doentes terminais esperando que os próprios parentes os livrem do "aroma" (dica para terminais: tenha parentes), além de não contar com seringas descartáveis, só as bem grossas de vidro. Gaze a algodão, só via mercado negro — ambulância, só para casos absolutamente críticos.

A famosa "educação sem analfabetismo"também: os jovens desistem da universidade por não terem como custear roupas, alimentação e transporte. Podendo ter apenas um emprego (em nome da "igualdade"), é só através de empregos duplos proibidos que podem vir a ser alguém — ou seja, apenas sabotando o socialismo, que os prende na miséria.

A ortografia não vale nota, e Yoani se surpreende quando um aluno escreve "seveu" no lugar de "civil" — mas logo se acalma, lembrando que o conceito é tão alheio a essa sociedade onde os cidadãos são soldados, e não seres com direitos.

Os piores alunos vão para a área pedagógica "porque o curso é na cidade e não [se quer] uma bolsa de estudos no campo". Seus alunos mal os superam em idade, e ouve-se que "Madagascar é uma ilha na América do Sul". Dá até um alento por morar em um país em que os piores vão para a presidência, e não para a sala de aula.

Claro que, quando estrangeiros visitam a escola cheios de doações, o ambiente muda. Até a auxiliar pedagógica não exigiu que os alunos lhe dessem um pouco da merenda que trazem de casa. Só acontece um acidente quando um dos turistas, fora do script, precisou ir ao banheiro.

A meritocracia se revela na disputa quase física por dez televisores para um prédio de trezentas pessoas: ganha quem mais defende o Partido. Com prestações custando mais de um terço do salário cubano, uma velhinha comprou o seu com a certeza de que morreria antes de terminar de pagá-lo. Troca-se o "quanto você produz?" por "de qual órgão você é?" — assim se aprende as atividades contraditórias: "o ato de sobreviver e o de acatar o código penal".

"'Esta é a revolução socialista dos humildes, pelos humildes e para os humildes…', anunciou Fidel Castro perto das premonitórias portas do cemitério de Colón". Enquanto "supunham que o propósito revolucionário seria que não houvesse mais gente humilde", não souberam quando a prosperidade deixaria de ser vista como contrarrevolucionária — e fala-se apenas de um teto que não seja arrancado com o vento, esse luxo burguês. A "humildade" todavia não é escolha voluntária assumida pelos que governam — eles apenas sabem que "a pobreza leva à obediência".

Enquanto se jura que a "educação e a saúde são de graça", não se percebe o quanto se trabalha para ter apenas migalhas — às vezes menos do que um senhor de escravos dá às suas posses para que continuem trabalhando. Quem pode ter algo é quem consegue, burlando o socialismo, moeda conversível, o bem que o Estado cubano mais deseja. Quem é o inimigo do povo cubano e quem só pensa em conseguir algo dos EUA, mesmo?

Com a ideologia marxista, invertem o que é roubo e o que é produção, sem perceber que um trabalhador que produz aço, níquel ou rum recebe uma minúscula porção da venda de sua produção. "O resto é diretamente para subsidiar um Estado insaciável" (segundo a Forbes, Fidel Castro já é mais rico do que Elizabeth II, sendo o oitavo governante mais rico do mundo). O preço "simbólico" de uma libra de arroz mostra que o povo é emissor, e não receptor de subsídios. Mas é este roubo que é apregoado como "salvação da desigualdade" por partidos que também nos governam.

Um boneco para carros que balança a cabeça a cada solavanco como um "sim" eterno vira piada sobre a aceitação da vontade Daquele Homem — igualzinho PT, PCdoB e PCB acataram Sua vontade no Brasil, sem ler o que diz a tal Yoani. O Homem que em 2007 declara: "quem nos dera houvesse um copo de leite ao alcance de todos" impede que os cubanos leiam livros de Economia que explicam por que a Suíça, com seus 4% de terras cultiváveis, consegue colocar o leite na boca de cada um de seus rebentos.

Este Homem também não explica por que recusou uma proposta de Obama para que empresas de telecomunicações americanas disponibilizassem a internet para os cubanos (um mercado no qual elas devem estar de olho há tempos). Os emissários comprados dos partidos vermelhos no Brasil também não explicaram isso ao reclamarem tanto do "embargo", nem por que Cuba não entrou na OEA e tampouco aplicou o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ou por que o povo não é informado da proposta de Obama, "um novo começo com Cuba".

Rouba-se material de construção do vizinho, turistas, armazéns. Rouba-se, mais aceitavelmente, o Estado: o garçom aumenta preços, o comerciante altera a lista de consumidores do mercado racionado para ficar com o que sobra. Assim se forma a calada e sobrevivente sociedade cubana, nas belíssimas palavras de Yoani: "reforçam as paredes da bolha que os protege dos discursos, mas que também os dissuade de protestar publicamente". Claro que só se conhece casos dedesencanto com o socialismo com o tempo — ninguém "que tenha passado da descrença para a lealdade, que começasse a confiar nos discursos depois de anos de críticas".

Quem dera se os discursos alimentassem a população, enquanto os Castro alimentam melhor seus tubarões do que seu povo. Todo "revolucionário" já sabe o que dirão seus líderes antes que eles emitam uma única palavra, e a "vitória" contra o "imperialismo" se reduziu a se manter tempo no poder o suficiente pra definir o destino dos avós de Yoani e também de seu filho, numa política que não é jogo de xadrez, mas cabra-cega — em que todos são chamados a resistir, mas "ninguém sabe mais muito bem a quem ou a quê".

Pessoas vão trabalhar para a polícia política, denunciando seus vizinhos, em troca de mais um lanche, que podem vender e duplicar seus proventos.

Enquanto a divergência política é criminalizada, avós não podem ver netos nascidos de filhos dissidentes. Famílias são separadas para nunca mais terem notícias um do outro. A palavra "liberdade" é ouvida com cuidado — pode ser uma "provocação contrarrevolucionária". A retórica serve para disfarçar o desastre socialista — uma vida pouco melhor do que uma favela com puxadinhos — e para, sendo proibida a literatura, alimentar bichos-papões, como a ameaça eterna de uma invasão americana — fábula bobalhóide em que apenas crianças, idiotas e militantes de partidos esquerdistas brasileiros acreditam.

Quem fica angustiado com isso não é o povo, mais preocupado em ter carne para comer. São apenas os que "têm lançado mão do confronto para se manter no poder". Ou para conseguir fundo partidário no Brasil.

Yoani até sugere uma tour por Cuba "no estilo cubano", para turistas que queiram viver de caderneta de racionamento (experiência impressionante relatada por Patrick Symmes), programa que nenhum financiado que grita "Yoani mente" em um centro comercial de São Paulo parece disposto sequer a ler, que dirá viver.

Como se vê, Yoani não fala de política. Não é uma emissária que busca trazer capitalismo para Cuba — e se ganha da CIA para escrever o que escreve, a CIA anda desperdiçando dinheiro.

Yoani apenas relata a vida real, ao invés da utopia dos livros que falam em "desigualdade" sem saber explicar a vantagem para um ser vivo de ser "igual" a outro miserável.

Yoani apenas é contra uma ditadura — e por isso odiada pela esquerda, só ganhando proteção daqueles que, ao contrário dela (que sequer pôde aprender sobre isso), defendem a liberdade de trabalhar e ter para si (e não para o Estado) os frutos do seu trabalho.

É mais revelador do que parece.

Artigo originalmente publicado em O Implicante

Flavio Morgenstern é colunista do site O Implicante. Também escreve para o Ordem Livre, para o Papo de Homem e em seu blog pessoal. Nas horas vagas, passa o cafezinho do Reinaldo Azevedo. No Twitter, @flaviomorgen

quinta-feira, 14 de março de 2013

VENEZUELA APÓS A MORTE DE HUGO CHAVEZ

Os que de verdade querem ver uma Venezuela regida pela razão e pela lei, pela liberdade e pela justiça, devem unir suas forças, dentro e fora do país, para garantir que os caminhos da democracia não fiquem ressecados. E a Espanha deveria se constituir em foco de esperança para os que assim pensam, sentem e fazem. Há vida depois da ditadura.

Hugo Chávez encarnou a mais recente, e muitos desejaríamos que fosse a última, versão do caudilhismo totalitário caribenho que durante decênios, na vida e na literatura dos povos ibero-americanos, foi a imagem negativa de marca da região. Governou a Venezuela a seu bel prazer, com um manifesto desprezo dos princípios democráticos, e da constituição e das leis que ele mesmo havia promulgado. E não fez adotando parte da imaginação e dos métodos das democracias representativas. Ninguém lhe poderá negar que seus três qüinqüênios de governo absoluto tenham vindo respaldados pela matemática eleitoral. Porém, ninguém que não tenha os olhos tapados pelas viseiras da correção política ou da inclinação totalitária poderá endossar a irregularidade dos procedimentos e a opressão realizada para encarrilhá-los segundo a vontade do que não era outra coisa que um militar golpista.

As emoções populares que seu desaparecimento suscita, que seguramente terão muito de espontâneo nos setores menos favorecidos da sociedade venezuelana aos quais ele disse dedicar o melhor de seus esforços, emoções que serão também exploradas e desorbitadas pelos que queriam continuar detendo o santo e a esmola no chavismo sem Chávez, não podem esconder a ruína econômica, política e moral em que a Venezuela fica após o óbito. Navegando na crista da onda dos altos preços do petróleo e sem o mais mínimo respeito pelas normas elementares de funcionamento da economia nacional e internacional, subvencionou uma elevação fictícia das rendas inferiores com técnicas que garantam o pão de hoje e a fome de amanhã, enquanto a estrutura produtiva, inclusive a petroleira mesmo, conhecia seus piores rendimentos em décadas. A brutal desvalorização à qual se viu no país recentemente exposto, de tão premente necessidade que se fez sem poder esperar que o comandante se recuperasse do que já era sua última viagem, é uma mostra dramática de onde ficam as finanças do país após 15 anos de reinado absoluto.

Chávez explorou à perfeição o paradoxo de Davi e Golias, construindo um universo paralelo no qual se encontrou na buscada companhia dos cubanos, norte-coreanos, iranianos e bielo-russos, sem que na ocasião faltassem russos e chineses, auto-denominados açoites do imperialismo, ousados buscadores dos limites da estabilidade do sistema que os suporta para evitar males maiores, ou que os saúda com circunspecção porque não resta mais remédio, enquanto princípios elementares da vida de relação nacional e internacional são sistematicamente pisoteados.

No final, nada descreve melhor a trajetória de um personagem público que as vicissitudes da enfermidade e da morte, e estas, no caso de Chávez, alcançaram graus de irrealidade que, inclusive no trágico de suas conseqüências, caíam em cheio no terreno do espantalho. Durante meses a população venezuelana não conheceu com exatidão os perfis da enfermidade que acometia o presidente do país, submetido a um contínuo transtorno entre Caracas e Havana para ser tratado de doenças misteriosas. E o último capítulo de seu trânsito, desaparecido durante três meses da luz pública, com o país submetido a um apagão informativo e constitucional, só cabia inscrever-se na impossibilidade do realismo mágico. A modernidade foi sempre definida como o tempo em que fenece a arbitrariedade do chefe. Hugo Chávez, paradigma da viseira populista, soube cunhar a antiga figura do mandão para cujos caprichos não existem fronteiras. Don Ramón María del Valle Incián o teria incluído com gosto em seu catálogo dos tubarões de antanho.

É curta a capacidade que a comunidade internacional assiste nestes momentos, e muito em particular a ibero-americana, para sentar as costuras dos aprendizes de bruxo que, como Chávez e por seu amparo, pretendem eternizar sistemas de governo que sob a formalidade eleitoral introduzem de contrabando comportamentos totalitários no campo político, estatistas no econômico e intervencionistas no internacional. É certo que o desaparecido caudilho venezuelano levou o sistema à estranha perfeição que as rendas dos hidrocarbueretos lhe permitiam, criando uma simbiose que tinha seu centro em Havana e suas ramificações em Quito, La Paz, Manágua e Buenos Aires. Digna de estudo é a contra-prestação estabelecida entre a fonte energética do Orinoco, a direção política de Havana e a invasão cubana da Venezuela com um exército que inclui médicos, professores, soldados e espiões. Porém, não deveria haver engano na análise: o que está em jogo é a vida em liberdade e em prosperidade de milhões de cidadãos, que não deveriam ser enganados com as falsas promessas de um sistema novidadeiro que na realidade não existe. Basta olhar para Cuba, e agora a Venezuela, para comprová-lo. Este deveria ser um momento de reflexão para todos aqueles que guiados pelas melhores intenções e em aplicação das práticas estabelecidas no direito internacional, querem manter as formas na relação com sistemas que contradizem seus mais essenciais princípios. Porém, essa bem educada disposição não deve se confundir com a indiferença, a inação e sobretudo o aplauso. Uma certa circunspecção é hoje mais do que conveniente para que ninguém em Caracas ou em Havana tome o número trocado. Algo que o Rei da Espanha fez à perfeição, com aquele sonoro e memorável “por que não te calas?” dirigido ao que ninguém havia ousado fazer calar.

Não é um trago fácil o que espera aos venezuelanos. Desfazer o emaranhado complicado de interesses tortos tecido pelo comandante, será uma operação fartamente delicada e seguramente longa. E seus resultados não estão garantidos porque outros, e em particular os cubanos, não têm nenhum desejo de que assim seja. E ao fim e ao cabo é preciso lembrar que o abscesso Hugo Chávez foi a conseqüência direta do fracasso dos partidos políticos tradicionais em suas direções, corrupções e incapacidades. Nesse derradeiro momento da verdade é quando os que em verdade querem ver uma Venezuela regida pela razão e pela lei, pela liberdade e pela justiça, devem unir suas forças, dentro e fora do país, para garantir que os caminhos da democracia não fiquem definitivamente ressecados. E a Espanha deveria se constituir em foco de esperança para os que assim pensam, sentem e fazem. Há vida depois da ditadura. Sabemos melhor que outros. E não podemos defraudar aos que querem se inspirar em nosso exemplo para seguir o mesmo caminho. Por: Javier Rupérez - Embaixador da Espanha

Tradução: Graça Salgueiro