segunda-feira, 6 de maio de 2013

AUTORIDADES

Basta você questionar de leve algum item do Credo ginasiano, e as reações indignadas mostram o escândalo, o horror que você despertou nas almas virgens, jamais tocadas antes pelas dúvidas que, em outros países, pululam por toda parte e alimentam discussões sem fim.


Quanto mais tempo fico nos EUA, mais nítida se torna, aos meus olhos, uma diferença crucial entre o Brasil de hoje e as nações civilizadas: é a completa ausência, no nosso país, de qualquer debate científico ou filosófico, pelo menos audível em público, ou mesmo de qualquer consciência, entre as classes alfabetizadas, de que esses debates existem em algum lugar do planeta. Só esse fenômeno, por si, já basta para mostrar que algo aí deu muito errado, que a vida dos brasileiros está indo numa direção francamente regressiva, incompatível com o estado da nossa economia e com a pretensão nacional de representar algum papel significativo no cenário do mundo.

Nos EUA e na Europa, não há idéia, não há doutrina, não há crença estabelecida, por mais oficial e majoritária que seja, que não sofra contestações e desafios o tempo todo, que não se veja obrigada a buscar argumentos cada vez mais elaborados para defender um prestígio que assim não arrisca jamais congelar-se em ídolo tribal, em tabu sacrossanto.

Qualquer professor universitário ou intelectual público que, desafiado, se feche em copas e fuja à discussão sob o pretexto de que suas crenças são lindas demais para rebaixar-se a um confronto com a idéia adversária, cai imediatamente para o segundo escalão, quando não se torna objeto de chacota. Os próprios correligionários do prof. Richard Dawkins arrancaram-lhe o couro quando ele, afetando inatingível superioridade olímpica, se esquivou a um debate com o filósofo William Lane Craig.

Nem mesmo a classe jornalística, tão burra e presunçosa em Nova York como em toda parte, confunde o consenso escolar – aquele corpo de teorias e crenças que o apoio majoritário consagrou como aptas para ser transmitidas às crianças – com a vida nas altas esferas intelectuais onde tudo, mesmo o aparentemente óbvio, pode e deve ser desafiado, contestado, forçado a buscar novos e cada vez mais sólidos fundamentos.

No Brasil só existe o consenso escolar. Ele impera sobre as cabeças dos intelectuais com a mesmaautoridade indiscutível com que se impõe, nas salas de aula, aos trêmulos e indefesos corações infantis.

Basta você questionar de leve algum item do Credo ginasiano, e as reações indignadas mostram o escândalo, o horror que você despertou nas almas virgens, jamais tocadas antes pelas dúvidas que, em outros países, pululam por toda parte e alimentam discussões sem fim.

Especialmente os ídolos da ciência popular, Newton, Galileu, Darwin ou Einstein, adquiriram no Brasil o estatuto de divindades intocáveis, e não só entre meninos de ginásio, mas entre professores universitários, cientistas e formadores de opinião. Critique um desses habitantes do Olimpo, e o tom das respostas lhe mostrará, por a + b, que neste país até mesmo banalidades arqui-sabidas dos historiadores por toda parte são novidades escandalosas e provas incontestáveis de que você é um louco.

Quando mencionei, por exemplo, as conseqüências nefastas que o mecanicismo newtoniano espalhou na cultura européia – fato que já é de domínio público pelo menos desde o século XIX –, só não me xingaram a mãe porque não acreditavam que alguém capaz de atentar contra a memória do autor dos Princípios Matemáticos da Filosofia Natural pudesse jamais ter tido mãe.

Quando escrevi que o próprio Charles Darwin fôra o inventor do design inteligente hoje tão abominado pelos evolucionistas – coisa que não pode ser ignorada por ninguém que tenha lido algo mais que as orelhas de A Origem das Espécies --, fui imediatamente rotulado como fanático religioso indigno de ocupar um espaço na mídia.

Quando expliquei que sem o conhecimento do simbolismo astrológico é impossível compreender direito as concepções cosmológicas de Sto. Tomás de Aquino ou a estética das catedrais góticas – o que é a obviedade das obviedades para quem haja estudado o assunto --, passei a ser chamado pejorativamente de “astrólogo” pelos srs. Rodrigo Constantino e Janer Cristaldo, que, como ninguém ignora, são autoridades insignes em História medieval. 

A distância, em suma, entre o que se discute desses assuntos na Europa e nos EUA e o que se sabe a respeito no Brasil já se ampliou de tal modo, que ter algum conhecimento nessas áreas se tornou realmente perigoso: a ignorância completa e radical é hoje a única fonte de credibilidade, o único depósito de premissas onde o opinador pode buscar argumentos com a certeza de que soarão razoáveis ante uma platéia ainda mais ignorante que ele.

Tendo violado essa regra, tornei-me o único comentarista brasileiro de mídia ao qual incumbe, sempre e sistematicamente, o ônus da prova -- com o detalhe de que, quando termino de provar tudo direitinho, os fulanos mudam de assunto e encontram outro motivo qualquer para continuar achando ruim. Às vezes chegam, nisso, a requintes de imbecilidade jamais alcançados antes no universo. Indignados de que, num artigo aliás excelente sobre Otto Maria Carpeaux, o prof. Maurício Tuffani citasse de passagem o meu nome, alguns leitores ofereceram a singela sugestão de que eu fosse excluído para sempre de toda mídia. O autor do artigo, então, com a maior paciência, explicou que no caso isso não era possível, por ter sido eu mesmo o editor de um dos livros de Carpeaux ali mencionados. Com toda a evidência, os remetentes prescindiam de ter lido o livro para decidir quem podia ou não podia ser citado num comentário a respeito. Era o argumentum ad ignorantiam elevado às alturas de um mandamento divino: quanto menos você sabe, maior a sua autoridade na matéria.
Por: Olavo de Carvalho  Publicado no Diário do Comércio.

sábado, 4 de maio de 2013

TACHADO DE LOUCO, AGRICULTOR DE SC 'REVOLUCIONOU' PLANTIO NO BRASIL


Nasci em Rio do Sul (SC), em 1937. Sou filho de alemães. Minha mãe era enfermeira, enviada ao país pela Cruz Vermelha. Meu pai, um imigrante que fugiu da crise de 1929.

Quando tinha um ano, fomos morar na Alemanha para minha mãe tratar uma doença no coração. A ideia era logo voltar ao Brasil. Mas, quando acabou o tratamento, a Segunda Guerra Mundial havia começado. Fomos impedidos de deixar o país.


Em 1945, meu pai foi convocado pelo exército alemão e enviado à Rússia. Foi capturado e feito prisioneiro. Com minha mãe e quatro irmãos, fomos morar em Dresden, com meus avós maternos.

Na noite de 13 de fevereiro houve um grande bombardeio aéreo dos aliados a Dresden. A cidade inteira foi incendiada. Ficamos no porão de uma casa. Éramos 15. O calor chegava a 80ºC por causa do fogo na parte externa. Sobrevivemos porque senhoras jogavam água sobre a gente.

Quando saí, vi esqueletos queimados sobre o asfalto.

Meu pai foi libertado da Rússia em 1948, pesando 44 quilos. Minha mãe morreu em 1958 e meu pai decidiu que era o momento de buscar prosperidade no Brasil. Abandonei a faculdade de engenharia hidráulica no primeiro ano e chegamos em 1960.

Em Rolândia (PR), comprou um sítio, que chamou de Rhenânia, região da Alemanha onde vivíamos.
Sergio Ranalli/Folhapress 
O agricultor Herbert Bartz em solo com palha, característica do sistema de plantio direto


O café era o produto principal do norte paranaense. O sítio tinha 5.000 pés. Colhemos e erradicamos os cafezais. Percebemos que não nos adaptaríamos ao trabalho braçal que o café exigia.

Passamos a criar porcos e a plantar milho, arroz e trigo. Em 1964, comprei o primeiro saco de semente de soja.

Mas a prosperidade não chegava. Havia geadas e doenças como a febre aftosa.

Meu pai desanimou. Insisti em viver da terra. Em 1966 ele arrendou o sítio para mim. Investi em máquinas, arrendei terras dos vizinhos e passei a trabalhar mais ainda.

Porém as grandes perdas com a erosão me aborreciam muito. A prática era preparar o solo, deixando-o nu para fazer o plantio, e a cada chuva a terra era levada para os rios.

Numa noite de outubro de 1971, constatei que ou essa situação mudava ou não daria mais. Uma grande chuva estava se formando. Sempre que isso acontecia eu não conseguia dormir. Levantei e fui olhar a lavoura.

Foi uma tromba-d'água. Vi a água levando a terra e sementes recém-plantadas.

No Brasil, não havia solução para a erosão. Tinha que ver fora do país.

Na Alemanha não encontrei nada. Na Inglaterra vi agricultores que colhiam trigo e deixavam a palha no chão, mas a queimavam para plantar a safra seguinte, por causa dos maquinários que tinham. Não gostei.

Nos EUA, visitei o produtor Harry Young, que já plantava no sistema de plantio direto havia dez anos.

Vizinhos dele plantavam no chão coberto com palha. Fiquei eufórico, convencido de que ali estava a solução para o meu problema.

Encomendei uma semeadora própria para plantio direto. A máquina chegou ao Brasil em outubro de 1972.

LOUCO

Quando me viram plantando soja sobre a palha do trigo, os vizinhos me chamaram de louco. Até agrônomos e institutos de pesquisa se posicionaram contra mim. Chegaram a atear fogo à palha que deixei sobre o solo.

Surpreendentemente fui bem, com quase 30 sacas por hectare. Parte da safra chegou a ser embargada pela PF, pois um agrônomo denunciou que a soja era ilegal.

Em 1973, o preço do diesel disparou com a crise do petróleo. Passaram a se interessar pelo que fazia, porque o plantio direto economiza combustível, pois não é preciso fazer o preparo do solo.

Foram aparecendo herbicidas que matavam só as invasoras e máquinas mais eficientes para cortar a palha e fazer o plantio. Em 1977, já colhia 50 sacas por hectare. E o solo ficava mais fértil.

Aos poucos, colegas foram aderindo ao sistema.

Tenho certeza de que é possível, com o plantio direto, recuperar áreas degradadas. Não destruímos mais a terra, conseguimos construi-la.

Vão me homenagear com título de doutor. Eu que nem tenho diploma universitário. Sinto-me honrado e feliz. Por: WILHAN SANTIN


COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM LONDRINA Folha de SP

MARXISMO: A MÁQUINA ASSASSINA

Com a queda da União Soviética e dos governos comunistas do Leste Europeu, muitas pessoas passaram a crer que o marxismo, a religião do comunismo, está morto. Ledo engano. O marxismo está vivo e vigoroso ainda em muitos países, como Coréia do Norte, Cuba, Vietnã, Laos, em vários países africanos e, principalmente, na mente de muitos líderes políticos da América do Sul. 

No entanto, de extrema importância para o futuro da humanidade é o fato de que o comunismo ainda segue poluindo o pensamento e as ideias de uma vasta multidão de acadêmicos e intelectuais do Ocidente.

De todas as religiões, seculares ou não, o marxismo é de longe a mais sangrenta — muito mais sangrenta do que a Inquisição Católica, do que as várias cruzadas e do que a Guerra dos Trinta Anos entre católicos e protestantes. Na prática, o marxismo foi sinônimo de terrorismo sanguinário, de expurgos seguidos de morte, de campos de prisioneiros e de trabalhos forçados, de deportações, de inanição dantesca, de execuções extrajudiciais, de julgamentos "teatrais", e de genocídio e assassinatos em massa.

No total, os regimes marxistas assassinaram aproximadamente 110 milhões de pessoas de 1917 a 1987. Para se ter uma perspectiva deste número de vidas humanas exterminadas, vale observar que todas as guerras domésticas e estrangeiras durante o século XX mataram aproximadamente 35 milhões de pessoas. Ou seja, quando marxistas controlam estados, o marxismo é mais letal do que todas as guerras do século XX combinadas, inclusive a Primeira e a Segunda Guerra Mundial e as Guerras da Coréia e do Vietnã.

E o que o marxismo, o maior de todos os experimentos sociais humanos, realizou para seus cidadãos pobres à custa deste sangrento número de vidas humanas? Nada de positivo. Ele deixou em seu rastro apenas desastres econômicos, ambientais, sociais e culturais.

O Khmer Vermelho — comunistas cambojanos que governaram o Camboja por quatro anos — fornece algumas constatações quanto ao motivo de os marxistas acreditarem ser necessário e moralmente correto massacrar vários de seus semelhantes. O marxismo deles estava em conjunção com o poder absoluto. Eles acreditavam, sem nenhuma hesitação, que eles e apenas eles sabiam a verdade; que eles de fato construiriam a plena felicidade humana e o mais completo bem-estar social; e que, para alcançar essa utopia, eles tinham impiedosamente de demolir a velha ordem feudal ou capitalista, bem como a cultura budista, para então reconstruir uma sociedade totalmente comunista. 

Nada deveria se interpor a esta realização humanitária. O governo — o Partido Comunista — estava acima das leis. Todas as outras instituições, normas culturais, tradições e sentimentos eram descartáveis.

Os marxistas viam a construção dessa utopia como uma guerra contra a pobreza, contra a exploração, contra o imperialismo e contra a desigualdade — e, como em uma guerra real, não-combatentes também sofreriam baixas. Haveria um necessariamente alto número de perdas humanas entre os inimigos: o clero, a burguesia, os capitalistas, os "sabotadores", os intelectuais, os contra-revolucionários, os direitistas, os tiranos, os ricos e os proprietários de terras. Assim como em uma guerra, milhões poderiam morrer, mas essas mortes seriam justificadas pelos fins, como na derrota de Hitler na Segunda Guerra Mundial. Para os marxistas no governo, o objetivo de uma utopia comunista era suficiente para justificar todas as mortes.

A ironia é que, na prática, mesmo após décadas de controle total, o marxismo não apenas não melhorou a situação do cidadão comum, como tornou as condições de vida piores do que antes da revolução. Não é por acaso que as maiores fomes do mundo aconteceram dentro da União Soviética (aproximadamente 5 milhões de mortos entre 1921-23 e 7 milhões de 1932-33, inclusive 2 milhões fora da Ucrânia) e da China (aproximadamente 30 milhões de mortos em 1959-61). No total, no século XX, quase 55 milhões de pessoas morreram em vários surtos de inanição e epidemias provocadas por marxistas — dentre estas, mais de 10 milhões foram intencionalmente esfaimadas até a morte, e o resto morreu como consequência não-premeditada da coletivização e das políticas agrícolas marxistas.

O que é espantoso é que esse histórico fúnebre do marxismo não envolve milhares ou mesmo centenas de milhares, mas milhões de mortes. Tal cifra é praticamente incompreensível — é como se a população inteira do Leste Europeu fosse aniquilada. O fato de que mais 35 milhões de pessoas fugiram de países marxistas como refugiados representa um inquestionável voto contra as pretensões da utopia marxista. [Tal número equivale a todo mundo fugindo do estado de São Paulo, esvaziando-o de todos os seres humanos.]

Há uma lição supremamente importante para a vida humana e para o bem-estar da humanidade que deve ser aprendida com este horrendo sacrifício oferecido no altar de uma ideologia: ninguém jamais deve usufruir de poderes ilimitados.

Quanto mais poder um governo usufrui para impor as convicções de uma elite ideológica ou religiosa, ou para decretar os caprichos de um ditador, maior a probabilidade de que vidas humanas sejam sacrificadas e que o bem-estar de toda a humanidade seja destruído. À medida que o poder do governo vai se tornando cada vez mais irrestrito e alcança todos os cantos da sociedade e de sua cultura, maior a probabilidade de que esse poder exterminará seus próprios cidadãos.

À medida que uma elite governante adquire o poder de fazer tudo o que quiser, seja para satisfazer suas próprias vontades pessoais ou, como é o caso dos marxistas de hoje, para implantar aquilo que acredita ser certo e verdadeiro, ela poderá impor seus desejos sem se importar com os custos em vidas humanas. O poder é a condição necessária para os assassinatos em massa. Quando uma elite obtém autoridade plena, várias causas e condições poderão se combinar para produzir o genocídio, o terrorismo, os massacres ou quaisquer assassinatos que os membros dessa elite sintam serem necessários. No entanto, o que tem de estar claro é que é o poder — irrestrito, ilimitado e desenfreado — o verdadeiro assassino.

Nossos acadêmicos e intelectuais marxistas da atualidade usufruem um passe livre. Eles não devem explicações a ninguém e não são questionados por sua defesa de uma ideologia homicida. Eles gozam de um certo respeito porque estão continuamente falando sobre melhorar as condições de vida dos pobres e dos trabalhadores, suas pretensões utópicas. Porém, sempre que adquiriu poder, o marxismo fracassou miserável e horrendamente, assim como o fascismo. Portanto, em vez de serem tratados com respeito e tolerância, marxistas deveriam ser tratados como indivíduos que desejam criar uma pestilência mortal sobre todos nós.

Da próxima vez que você se deparar com marxistas ou com seus quase equivalentes, os fanáticos esquerdistas, pergunte como eles conseguem justificar o assassinato dos mais de cento e dez milhões de seres humanos que sua fé absolutista provocou, bem como o sofrimento que o marxismo criou para as outras centenas de milhões de pessoas que conseguiram escapar e sobreviver.

Por: R.J. Rummel , professor emérito de ciência política e finalista de Prêmio Nobel da Paz, é o mais aclamado especialista mundial em democídio, termo que ele cunhou para se referir a assassinatos cometidos por governos. Escreveu o livro Death by Government, leitura obrigatória para qualquer pessoa que queira se inteirar das atrocidades cometidas por governos. Ao todo, Rummel já publicou 29 livros e recebeu numerosas condecorações por sua pesquisa.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

PROFECIAS DO DIABO

O socialismo é substantivamente a unificação do poder político com o poder econômico, dissolvendo uma das principais garantias da liberdade na sociedade capitalista e anunciando a formação de uma superclasse governante onipotente e praticamente indestrutível.


Uma vida repleta de ocupações não tem permitido dar às minhas idéias a exposição escrita toda arrumadinha que algumas delas merecem. Espalho-as, de maneira fragmentária e anárquica, em artigos, aulas e conferências, na vaga esperança de que, após a minha morte, alguma alma caridosa junte as peças e as monte em equipamentos mais utilizáveis pelo grande público.

Uma delas é a do poder imanente dos significados embutidos nos símbolos históricos. Ela diz, resumidamente, o seguinte: A história é feita das livres escolhas e decisões humanas, mas, quando os homens se deixam guiar por idéias e símbolos cujo integral significado lhes escapa no momento, esse significado invisível acaba por se manifestar à plena luz do dia sob a forma de fatalidades históricas incontroláveis. Mesmo depois do fato consumado ainda existe alguma dificuldade em perceber que já estavam enunciadas na formulação originária. Essa dificuldade emana do hábito moderno do pensamento metonímico, que concebe as propostas de ação tão somente por uma parte das suas qualidades autoproclamadas, sem sondar o sentido substantivo da ação planejada, e portanto, sem atinar com suas conseqüências inevitáveis.

Na história sacra e profética, esses desenvolvimentos anunciam-se previamente de maneira nítida. O Antigo Testamento prevê com clareza o destino tormentoso dos judeus, e o Novo anuncia a autodecomposição da Igreja, que hoje, diante dos nossos olhos, enche de temor as almas dos crentes atônitos. Na história profana, os símbolos vêm encobertos por densas camadas de confusão metonímica. A progressiva manifestação do seu significado simula, no quadro histórico maior, a evolução de uma neurose desde um trauma de infância longamente esquecido. Assim como Hegel falava de uma “astúcia da Razão”, que conduzia os homens sem que eles o percebessem, pode-se perfeitamente falar de uma “astúcia do inconsciente”, em que os símbolos carregados de esperança guiam a humanidade em direção a catástrofes e sofrimentos.

Um exemplo é o projeto socialista, que se apresenta como “socialização dos meios de produção” em nome de uma “sociedade sem classes”. Por trás desses slogans, o socialismo é substantivamente a unificação do poder político com o poder econômico, dissolvendo uma das principais garantias da liberdade na sociedade capitalista e anunciando a formação de uma superclasse governante onipotente e praticamente indestrutível.

A profecia embutida não é discernível somente na formulação das teorias e propostas, mas também nos símbolos que as condensam para a imaginação popular. De algum modo, a letra do hino da Internacional comunista, composta em 1871 por Eugène Pottier e posta em música em 1888 por Pierre De Geyter, a qual, até hoje, fascina a mente das multidões militantes com a imagem da bela sociedade igualitária, já contém, na sua primeira estrofe, o anúncio da debacle apocalíptica que veio a constituir a história do comunismo. Mesmo depois da queda da URSS, no entanto, essa profecia continua tão mal compreendida que muitos tentam ainda realizá-la por meios novos, mais inventivos e mais desnorteantes, enganando-se a si mesmos com uma feroz devoção ainda mais intensa e louca do que aquela que guiou os pioneiros da ditadura soviética.

Ao conclamar ao grande empreendimento da revolução socialista os “danados da terra” e os “condenados da fome” (“les damnés de la terre, les forçats de la faim”), o poema já insinua que quem os convoca à ação é, hegelianamente, “a Razão”, a deusa inspiradora de 1789. No entanto, de onde vem a voz dessa divindade? “La raison tonne en son cratère”: a Razão faz-se ouvir como o ronco temível de um trovão que, paradoxalmente, não vem dos céus, mas das profundezas de uma cratera. Ela é aí concebida, com toda a evidência, não como um ideal superior que acena aos homens desde uma altura divina, mas como uma força ctonica, subterrânea, infernal. Há uma lógica dentro dela, mas é a lógica da astúcia demoníaca, aquela mesma com que Satanás surpreende o poeta no Inferno de Dante: “Tu non pensavi che’io loico fossi”: “Não imaginavas que eu também fosse lógico”. A inevitabilidade interna do processo que inspira e dirige a ação das massas acaba indo, de fato, numa direção imprevista e catastrófica, mas nem por isso menos encadeada, com rigor implacável, a uma premissa obscura e mal compreendida. Nem mesmo a geração de comunistas que foi levada ao desespero e até ao suicídio pela revelação dos crimes soviéticos em 1956 chegou a atinar, retroativamente, com a lógica trágica imanente ao ideal socialista. Todos explicaram o desastre como fruto acidental de traições e desvios, sem notar que com isso desmentiam no ato a sua própria teoria da necessidade histórica, na qual o acaso e os caprichos individuais contam para muito pouco, ou quase nada.

O verso seguinte é ainda mais eloqüente: “C’est l’éruption de la fin”. O fim emerge do ventre de um vulcão. Fim do quê? O verso não diz. A recepção metonímica aceita, sem exame, que é o fim das injustiças. Mas, com toda evidência, a expressão “o fim”, desacompanhada de um genitivo explícito, anuncia somente morte e destruição. E as palavras que vêm em seguida ressoam com um tom ainda mais sinistro: “Du passé faisons table rase”: apagar o passado, falsificar a história em nome de um apelo estimulante, tal tem sido, de fato, uma das principais ocupações da historiografia oficial esquerdista, induzindo as massas a entregar-se entusiasticamente à busca de um propósito cuja raiz desconhecem e cujos frutos, por isso, sempre hão de surpreendê-las com o sabor amargo de um enigma diabólico.
Por: Olavo de Carvalho  Publicado no Diário do Comércio.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

O QUE O CAPITALISMO NÃO É


Foi Karl Marx quem cunhou o depreciativo termo "capitalista" para identificar um sistema econômico que havia recebido de Adam Smith uma expressão mais descritiva e bonita: "sistema de liberdade natural". A origem negativa do termo é um dos motivos pelos quais a discussão sobre o capitalismo necessita de um esclarecimento. Seja para atacá-lo ou defendê-lo, é importante entendermos primeiro o que o capitalismo não significa.

O capitalismo não é exclusivamente "capitalista". 

A acumulação de capital é um fato existente em qualquer sociedade, independentemente de sua estrutura política e econômica. Max Weber já dizia em A ética protestante e o espírito do capitalismo que "a ganância pelo ouro é tão antiga quanto a história do homem". E que onde o capitalismo era mais atrasado encontrava-se "o reino universal da absoluta falta de escrúpulos na busca dos próprios interesses por meio do enriquecimento".

No entanto, as pessoas ainda encaram o capitalismo como um ordenamento moral, um modo de vida em que a acumulação de riqueza é o bem superior. Mas a defesa do capitalismo não significa a defesa de um homo economicus cuja única preocupação na vida é ganhar dinheiro. Há muitas coisas mais importantes do que a acumulação de capital, como a família, a religião, a arte e a cultura. E isso realça a importância da economia de mercado.

É verdade que no livre mercado há mais oportunidade para aquele que pretende enriquecer, mas nele o filósofo também tem mais oportunidade de aprender e o artista tem mais oportunidade de se expressar. E é por meio do livre mercado que o filantropo, a pessoa que deseja ajudar o próximo, dispõe de mais recursos para fazer assistência social, e, através do sistema de preços livres, pode utilizar seus recursos de forma mais eficiente.

O capitalismo não é a burocracia internacional. 

As pessoas de esquerda costumam identificar pelo termo "neoliberal" tanto as reformas modernizadoras que diminuem a participação do estado na economia quanto as organizações inter-governamentais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Como neoliberalismo e capitalismo são termos intercambiáveis no discurso vulgar, o FMI e o Banco Mundial aparecem como braços operadores do capitalismo internacional. Essa confusão também costuma ser feita por pessoas de direita que, definindo-se por sua oposição sem reservas à esquerda, acabam defendendo instituições burocráticas como se fossem partes integrantes do sistema capitalista.

Nesse caso, a esquerda tem razão em denunciar a arrogância de agências internacionais, que nada mais são do que uma forma de planejamento central de larga escala. Enquanto o liberal entende que a prosperidade depende da utilização do conhecimento e dos incentivos dispersos na sociedade, os burocratas internacionais acreditam que podem comandar o desenvolvimento econômico na Zâmbia ou em Guiné-Bissau de seus escritórios em Washington e Nova York. O resultado não tem sido animador.

O jornalista Andrew Mwenda, de Uganda, continua sem resposta para sua pergunta sobre exemplos históricos de países que tenham realmente prosperado graças à ajuda externa. De 1975 a 2000, o continente africano recebeu em auxílio externo uma média de 24 dólares per capita por ano. Entretanto, o PIB africano per capita diminuiu a uma taxa média anual de 0,59%. Durante o mesmo período, o PIB per capita do sul asiático cresceu a uma média de 2,94%, apesar de ter recebido em auxílio externo uma média de apenas 5 dólares per capita a cada ano. Políticas de abertura de mercado têm um efeito mais positivo do que o planejamento internacional financiado por impostos.

Na verdade, em vez de criar economias de mercado ativas e autônomas, as políticas do Banco Mundial diminuem a dependência dos governos por sua própria população, já que a receita não vem dos tributos extraídos do desenvolvimento econômico doméstico, mas das negociações com outros burocratas. O poder da população é transferido para essas organizações, criando uma cultura de dependência em que a miséria local apenas aumenta o poder de barganha dos governos que recebem auxílio externo. O resultado é a perpetuação da miséria.

O capitalismo não é a política norte-americana. 

Apesar de os Estados Unidos historicamente terem tido um de seus pilares no livre mercado, grandes contribuições para a compreensão do capitalismo foram feitas em outros países. Sem contar que, ultimamente, o governo americano tem feito um ótimo trabalho de difamação do nome do livre mercado. O crescimento nos gastos da atual administração supera o de qualquer outro presidente desde o democrata Lyndon Johnson, criador do programa assistencialista da Great Society.

George W. Bush foi o primeiro presidente americano a assinar um orçamento de mais de 2 trilhões de dólares. E também foi o primeiro presidente americano a assinar um orçamento de mais de 3 trilhões de dólares. Um aumento que inclui gastos significativos na previdência social e saúde pública, além dos gastos bélicos. As recentes aventuras no Oriente Médio também não podem ser consideradas políticas pró-capitalistas. A própria guerra e a permanência no Iraque são um experimento socialista de escala internacional, que já custou mais de 1 trilhão de dólares e cerca de 30 mil vidas.

Liberais defensores do capitalismo não acreditam que nações são violentamente construídas por meio da política, mas que se desenvolvem espontânea e pacificamente. É o socialismo que defende a prosperidade planejada. E o que o governo americano tem feito no Iraque é um planejamento de longo alcance.

O capitalismo não é a defesa irrestrita das grandes corporações. 

Os defensores do livre mercado entendem que os negócios podem tanto servir quanto prejudicar a população em geral. Em um sistema intervencionista, toda empresa que quer aumentar o seu lucro tem duas opções: investir em produtividade, para competir pelos consumidores, ou investir em lobby, para competir pelos favores políticos. A competição para servir à sociedade é capitalismo, a competição para servir ao governo é mercantilismo. São os mercantilistas que defendem legislações protecionistas de corporações contra a competição estrangeira e doméstica. Os liberais defendem um mercado aberto, em que a manutenção de um negócio depende do oferecimento de serviços e produtos que satisfaçam ao consumidor.

O capitalismo não é a perpetuação das elites. 

São os oponentes do capitalismo que, ao defender maior concentração de poder nas mãos de políticos e burocratas, constroem um sistema corrupto e estático, no qual há pouco espaço para a mobilidade social e pouca oportunidade para o desenvolvimento da criatividade humana. Há doses de capitalismo em diferentes sociedades do mundo, mas não há uma sociedade onde a economia seja puramente livre, e nem o Brasil está entre as economias mais livres do mundo.

Na verdade, de acordo com o ranking de liberdade econômica publicado anualmente pelo Fraser Institute, do Canadá, o Brasil encontra-se no 101º lugar entre 168 países examinados, empatado com Paquistão, Etiópia, Bangladesh e Haiti.

No Brasil, há excesso de burocracia para a entrada e a permanência no mercado, uma legislação trabalhista rígida, que empurra os trabalhadores para a informalidade e uma legislação tributária que já foi considerada pelo Fórum Econômico Mundial como a mais complexa de todo o mundo. Os oponentes do livre mercado insistem no controle governamental da economia para resolver os problemas que foram criados pelo próprio governo. Defender o livre mercado é defender a estrutura de um sistema econômico dinâmico em que se estimula a produção de riquezas e se permite a mobilidade social.

O capitalismo não é a defesa do tratamento desigual das pessoas. 

Há diversas formas de tornar as pessoas mais iguais. Os igualitários normalmente não pretendem torná-las mais iguais em conhecimento ou em beleza, mas em recursos, pelo menos em alguns recursos que consideram fundamentais. É bem verdade que o livre mercado não se baseia na igualdade de recursos. Mas isso não significa um tratamento desigual das pessoas. A igualdade liberal, da qual floresce o capitalismo, é a igualdade de direitos, a igualdade perante a lei. Isso significa que as questões de justiça e o uso da sua liberdade no mercado não dependem de quem você é, mas do que você faz.

O capitalismo é um sistema econômico de cooperação mútua, apoiado em uma estrutura de direitos na qual prevalece a igualdade jurídica entre as pessoas. As pessoas no livre mercado não são iguais em "distribuição de renda", mas são iguais em liberdade.

Por fim, capitalismo não é socialismo.

O capitalismo não é uma imposição do governo, nem o mercado é uma ideologia em que a teoria necessariamente precede a prática. O capitalismo é simplesmente o que ocorre quando as pessoas têm liberdade para fazer trocas, apoiadas em direitos de propriedade bem definidos. É o socialismo que necessita da mobilização social para alcançar um objetivo comum entre todas as pessoas. O socialismo precisa da pregação e da concentração de poder na autoridade manipuladora. O socialismo é a politização da vida econômica, é um discurso interminável do Fidel Castro, é a transformação de tudo o que é belo e espontâneo no dirigismo rígido da política.

O livre mercado é apenas o conjunto de ações de agentes humanos livres sobre a alocação de recursos escassos. Se os propósitos desses agentes são morais, a ordem gerada será igualmente moral. E é quando nós conseguimos sinceramente compreender e avaliar o capitalismo que passamos a ter o discernimento para defendê-lo ou atacá-lo.

Diogo Costa é presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York. Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com


terça-feira, 30 de abril de 2013

A JUSTIFICATIVA ÉTICA DO CAPITALISMO E POR QUE O SOCIALISMO É MORALMENTE INDEFENSÁVEL


Da mesma forma que existem pessoas que acreditam que a riqueza econômica e os padrões de vida são os critérios mais importantes na hora de avaliar uma sociedade — e não pode haver dúvidas de que, para muitos, o padrão de vida é uma questão da mais alta importância —, há também pessoas que não dão muita importância à riqueza econômica e que qualificam outros valores como mais elevados.

Tal postura é perfeita para o socialismo, pois desta forma ele pode silenciosamente esquecer a sua reivindicação original de ser capaz de trazer mais prosperidade à humanidade e, em vez disso, recorrer à afirmação completamente diferente, mas ainda assim mais inspiradora, de que embora o socialismo possa não ser a chave para a prosperidade, ele significaria justiça, equidade e moralidade (todos termos usados aqui como sinônimos). E ainda pode argumentar que uma compensação entre eficiência e justiça, uma troca de "menos riqueza" por "mais justiça", é justificada, uma vez que justiça e equidade são fundamentalmente mais valiosas do que riqueza econômica.

Essa alegação será estudada detalhadamente neste artigo. E ao fazê-lo, serão analisadas duas afirmações separadas, mas correlacionadas: (1) a afirmação feita particularmente por socialistas marxistas e social-democratas, e, em menor grau, pelos conservadores socialistas, de que é possível formular um argumento a favor do socialismo baseado em princípios por causa do valor moral de seus princípios e, mutatis mutandis, que o capitalismo não pode ser moralmente defendido; e (2) a afirmação do socialismo empírico de que as afirmações normativas ("deveria" ou "tem que") — uma vez que não se relacionam unicamente aos fatos, nem simplesmente declaram uma definição verbal, e, portanto, não são afirmações analíticas nem empíricas — não são realmente afirmações, pelo menos não afirmações que possam ser chamadas de "cognitivas" num sentido mais amplo, mas meras "expressões verbais" usadas para expressar ou despertar sentimentos (tais como "Opa!" ou "Rrrrrr").

A segunda afirmação, a empírica, ou pretensão "emotivista", como é chamada a sua posição aplicada ao campo da moral, será tratada em primeiro lugar, dada a sua maior abrangência. A posição emotivista é derivada da aceitação da afirmação central empírica-positivista de que a distinção dicotômica entre as afirmações empírica e analítica é de natureza totalmente inclusiva; isto é, qualquer afirmação, seja ela qual for, deve ser empírica ou analítica, nunca podendo ser ambas ao mesmo tempo. Essa posição, como veremos, acaba por ser auto-destrutiva se fizermos uma análise mais minuciosa, assim como o empirismo em geral acaba por ser auto-destrutivo.

Se o emotivismo é uma posição válida, então, a sua proposição básica sobre as afirmações normativas deve, por si só, ser analítica ou empírica, ou então deve ser uma expressão das emoções. Se for tida como analítica, será, então, um mero subterfúgio verbal, sem nada a dizer sobre qualquer coisa real, apenas definindo um som por outro, e o emotivismo seria, dessa forma, uma doutrina vazia. Se, em vez disso, for tida como empírica, a doutrina não teria qualquer peso à medida que sua proposição central poderia muito bem estar errada. Em todo o caso, certa ou errada, seria apenas uma proposição demonstrando um fato histórico, ou seja, como certas expressões foram usadas no passado, o que por si só não fornece qualquer razão pela qual seria este também o caso no futuro e, portanto, por que se deveria ou não procurar afirmações normativas que são mais do que expressões de emoções que se pretendem justificáveis.

E a doutrina emotivista também perderia todo o seu peso se a terceira alternativa fosse adotada e se uma afirmação do tipo "uau!" fosse declarada como seu princípio central. Pois, se este fosse o caso, não haveria então qualquer razão pela qual se deveria relacionar e interpretar de certa forma determinadas afirmações e, portanto, se os próprios instintos e sentimentos de uma pessoa não coincidissem com o "oba!" de outra, não haveria nada que pudesse impedi-la de seguir os seus próprios sentimentos. Assim como uma afirmação normativa não seria mais do que o ladrar de um cão, a posição emotivista não seria mais do que comentar latindo sobre o ato de ladrar.

Por outro lado, se a afirmação central do empirismo-emotivismo, ou seja, a de que as afirmações normativas não têm significado cognitivo, mas são simples expressões de sentimentos, for por si só considerada uma afirmação significativa para transmitir que se deveria pensar em todas as afirmações que não são analíticas ou empíricas como meros símbolos de expressão, a posição emotivista então se torna completamente contraditória. Assim, essa posição deve considerar, pelo menos implicitamente, que determinadas ideias, ou seja, as relativas às afirmações normativas, não podem ser simplesmente compreendidas e dotadas de significados, mas podem ser justificativas dadas enquanto afirmações com significados específicos.

Consequentemente, deve-se concluir que o emotivismo titubeia, porque se fosse verdade, não se poderia, então, nem mesmo dizer e atribuir significado ao que se diz — simplesmente não existiria como uma posição que pudesse ser discutida e avaliada no que tange à sua validade. Mas se for uma posição significativa que possa ser discutida, este fato então desmente a sua própria premissa básica. Além disso, deve-se observar que o fato de que esta é realmente uma posição significativa não pode nem mesmo ser refutado, como não se pode comunicar e argumentar que não se pode comunicar e argumentar.

No entanto, isto deve ser pressuposto de qualquer posição intelectual, que é dotada de significado e que pode ser debatida em relação ao seu valor cognitivo, simplesmente porque é apresentada numa linguagem e comunicada. Argumentar o contrário significaria admitir implicitamente a sua validade. Somos obrigados, então, a aceitar a abordagem racionalista em relação à ética pela mesma razão que se obrigou a adotar uma epistemologia racionalista em vez de uma epistemologia empírica.

No entanto, com o emotivismo sendo assim rejeitado, ainda estou muito longe, ou assim parece, do meu objetivo definido, que eu divido com os socialistas marxistas e conservadores, de demonstrar que pode ser formulado um argumento baseado em princípios a favor ou contra o socialismo ou o capitalismo. O que consegui até agora foi chegar à conclusão de que se as afirmações normativas são ou não cognitivas isto é, por si só, um problema cognitivo. No entanto, isto ainda parece ser muito diferente de provar que as propostas de normas efetivas podem ser realmente expostas como sendo válidas ou inválidas.

Felizmente, essa impressão está errada e já se conseguiu muito mais aqui do que se poderia imaginar. O argumento anterior nos mostra que qualquer afirmação da verdade — afirmação ligada a qualquer proposição que seja verdadeira, objetiva ou válida (todos termos usados aqui como sinônimos) — é e deve ser feita e resolvida no curso de uma argumentação. E uma vez que não se pode refutar que isto é assim (não se pode comunicar e argumentar que não se pode comunicar e argumentar) e se deve considerar que todo mundo sabe o que significa alegar que algo é verdadeiro (não se pode negar esta afirmação sem afirmar sua negação como sendo verdadeira), tal estrutura foi sagazmente chamada de o "a priori da comunicação e da argumentação".

Agora, argumentar nunca se baseia apenas em proposições flutuando livremente que alegam ser verdadeiras. Antes, também a argumentação é sempre uma atividade. Mas considerando que as alegações de verdade são levantadas e decididas numa argumentação e que a argumentação, além de tudo o que é dito durante o seu desenvolvimento, é um assunto prático, deduz-se que as normas intersubjetivamente significativas que devem existir — especificamente aquelas que realizam alguma ação numa argumentação — tem um status cognitivo especial em que elas são pré-condições práticas de objetividade e verdade.

Portanto, chegamos à conclusão de que as normas devem realmente ser consideradas justificáveis enquanto válidas. É simplesmente impossível argumentar o contrário porque a capacidade para argumentar, de fato, pressupõe a validade daquelas normas que constituem a base de qualquer argumentação.

Portanto, a resposta à questão de quais fins podem ou não ser justificados é deduzida do conceito de argumentação. E, com isso, o papel peculiar da razão em determinar o conteúdo da ética também recebe uma descrição precisa. Em contraste com o papel da razão em estabelecer leis empíricas da natureza, a razão pode alegar produzir resultados na determinação de leis morais, que podem ser mostradas como sendo válidas a priori. Isto só torna explícito o que já está implícito no conceito de argumentação; e ao analisar qualquer proposta de norma efetiva, sua tarefa está confinada a analisar se é ou não logicamente consistente com a própria ética que o proponente deve pressupor como válida na medida em que ele é capaz de fazer, sob qualquer condição, a sua proposta.

Mas o que é a ética implícita na argumentação cuja validade não pode ser refutada, pois refutá-la exigiria implicitamente pressupô-la?

De forma muito frequente tem sido observado que a argumentação significa uma proposição que reivindica uma aceitabilidade universal, ou, se uma norma for proposta, que seja "universalizável". Aplicada à propositura de normas, esta é a ideia, como formulada na Regra de Ouro da ética ou no Imperativo Categórico Kantiano, de que somente aquelas normas que podem ser justificadas é que podem ser formuladas como princípios gerais que são válidos para todos sem exceção.

De fato, como a argumentação implica que todos que possam entender um argumento devem, em princípio, ser capazes de ser convencidos por ele devido à sua força argumentativa, o princípio de universalização da ética pode agora ser entendido e explicado como fundamentado na mais ampla "comunicação e argumentação a priori". Porém, o princípio da universalização fornece apenas um critério puramente formal para a moralidade. Na verdade, comparadas com esse critério, pode se mostrar que todas as propostas de normas válidas que especificariam regras diferentes para diferentes classes de pessoas não podem legitimamente reivindicar serem universalmente aceitáveis como normas justas, a menos que a distinção entre as diferentes classes de pessoas fosse de tal forma que não implicasse em discriminação, mas que pudesse ser aceita novamente por todos como fundada na natureza das coisas.

Mas enquanto algumas normas podem não passar pelo teste da universalização, se for dada atenção suficiente à sua formulação, as normas mais ridículas, e o que é logicamente ainda mais relevante, até mesmo as normas abertamente incompatíveis poderiam facilmente e igualmente passar no teste. Por exemplo, "todo mundo tem que ficar bêbado aos domingos ou serão multados" ou "qualquer um que beba álcool será punido" são ambas regras que não permitem discriminação entre grupos de pessoas e, portanto, poderiam ambas alegar que satisfazem a condição de universalização.

Claramente, portanto, o princípio da universalização por si só não forneceria qualquer conjunto positivo de normas que pudesse ser demonstrada como justificada. No entanto, há outras normas positivas contidas na argumentação, além do princípio da universalização. A fim de reconhecê-las, é necessário apenas chamar a atenção para três fatos relacionados. Primeiro que a argumentação não é somente uma questão cognitiva, mas também prática. Segundo, que a argumentação, como uma forma de ação, inclui o uso do recurso escasso do corpo de alguém. E terceiro, que a argumentação é uma forma de interação livre de conflito. Não no sentido de que há sempre concordância sobre o que foi dito, mas no sentido de que uma vez que a argumentação está em desenvolvimento é sempre possível concordar pelo menos com o fato de que há uma discordância sobre a validade do que foi dito. E dizer isto não é nada mais do que um reconhecimento mútuo de que o controle exclusivo de cada pessoa sobre o seu próprio corpo deve estar pressuposto enquanto houver argumentação (observe novamente que é impossível negar este fato e afirmar que sua negação seja verdadeira sem ter que implicitamente admitir a sua verdade).

Consequentemente, teríamos que concluir que a norma contida na argumentação é que todo mundo tem o direito de controle exclusivo sobre o seu próprio corpo como seu instrumento de ação e cognição. Somente se houver pelo menos um reconhecimento implícito do direito de cada indivíduo sobre a propriedade de seu próprio corpo é que pode haver argumentação. Apenas enquanto esse direito for reconhecido é possível para alguém concordar com aquilo que foi dito num argumento e, consequentemente, aquilo que foi dito pode ser validado, ou é possível dizer "não" e concordar apenas com o fato de que há discordância.

Realmente, qualquer um que tentasse justificar qualquer norma já teria que pressupor o direito de propriedade de seu corpo como uma norma válida, simplesmente para dizer "isto é o que eu afirmei como sendo verdadeiro e objetivo". Qualquer pessoa que tentasse contestar o direito de propriedade sobre o seu próprio corpo ficaria preso numa contradição, à medida que argumentar dessa forma e reivindicar seu próprio argumento como sendo verdadeiro já seria implicitamente aceitar essa norma como sendo válida.

Portanto, pode-se afirmar que toda vez que uma pessoa alega que alguma afirmação pode ser justificada ela considera, pelo menos implicitamente, a norma seguinte para ser justificada: "Ninguém tem o direito de agredir o corpo de outra pessoa sem permissão e dessa forma delimitar ou restringir o controle de outrem sobre o seu próprio corpo". Esta regra está contida no conceito de justificação enquanto justificação argumentativa. Justificar significa justificar sem ter que depender de coerção. De fato, se é possível formular o contrário dessa regra, ou seja, que "todo mundo tem o direito de agredir outra pessoa sem permissão" (uma regra que, a propósito, passaria no teste formal do princípio da universalização!), então é fácil ver que essa regra não é, e nunca poderia ser, defendida numa argumentação. Fazê-lo exigiria pressupor exatamente a validade do oposto disso, ou seja, o supracitado princípio da não-agressão.

Com essa justificação da norma de propriedade em relação ao corpo de uma pessoa, pode parecer que não se obteve muita coisa, enquanto os conflitos sobre os corpos, para os quais o princípio da não-agressão formula uma solução universalmente justificável de forma a tentar impedi-los, representam apenas uma pequena parte de todos os conflitos possíveis. Porém, essa impressão não é correta. Certamente, as pessoas não vivem apenas de ar e de amor. Elas também precisam de um número maior ou menor de outras coisas, simplesmente para sobreviver — e, obviamente, só aquele que sobrevive pode manter uma argumentação, quiçá levar uma vida confortável. Com relação a todas as outras coisas, as normas também são necessárias, uma vez que poderiam surgir avaliações conflituosas acerca do seu uso.

Mas, de fato, qualquer outra norma deve ser logicamente compatível com o princípio da não-agressão para ser ela própria justificada e, mutatis mutandis, toda norma que se mostrasse incompatível com esse princípio teria que ser considerada inválida. Além do mais, enquanto as coisas com relação às quais as normas têm que ser formuladas são bens escassos — assim como o corpo de alguém é um bem escasso, e assim como só é necessário formular normas porque os bens são escassos e não porque eles sejam tipos específicos de bens escassos —, as especificações do princípio da não-agressão, concebido como norma especial da propriedade que se refere a um tipo específico de bens, já devem conter aquelas de uma teoria geral da propriedade.

Considerarei primeiro essa teoria geral da propriedade como um conjunto de regras aplicáveis a todos os bens com o propósito de ajudar a evitar todos os conflitos possíveis por meio de princípios uniformes, e irei em seguida demonstrar como essa teoria geral está contida no princípio da não-agressão. Uma vez que segundo o princípio da não-agressão uma pessoa pode fazer com o seu corpo tudo aquilo que quiser na medida em que, desse modo, ela não agrida o corpo de outra pessoa, essa pessoa poderia usar outros meios escassos, assim como usar o seu próprio corpo, desde que essas outras coisas já não tenham sido apropriadas por alguém e continuem num estado natural sem dono.

Enquanto os recursos escassos são visivelmente apropriados — tão logo alguém "mistura o seu trabalho", para usar a frase de John Locke, com esses recursos e há traços objetivos dessa ação — , a propriedade, ou seja, o direito de controle exclusivo, só pode ser adquirida por uma transferência contratual de títulos de propriedade de um proprietário anterior para o atual, e qualquer tentativa de delimitar unilateralmente esse controle exclusivo de proprietários anteriores ou qualquer transformação não solicitada das características físicas dos meios escassos em questão é, numa analogia estrita com as agressões contra os corpos de terceiros, uma ação injustificável.

A compatibilidade desse princípio com o da não-agressão pode ser demonstrada por meio de um argumentum a contrario. Em primeiro lugar, deveria ser observado que se ninguém tiver o direito de adquirir e controlar nada, exceto o seu próprio corpo (uma regra que passaria no teste formal do princípio da universalização), nós deixaríamos então de existir e o problema da justificação das afirmações normativas (ou, para essa questão, qualquer outro problema de interesse desta obra) simplesmente não existiria. A existência desse problema só é possível porque estamos vivos e a nossa existência deve-se ao fato de que não aceitamos, e realmente não podemos aceitar, uma norma que proíba a propriedade de outros bens escassos depois e além do corpo físico de alguém.

Consequentemente, deve ser considerado como existente o direito de adquirir esses bens. Agora, se for assim, e se não se tem o direito de adquirir esses direitos de controle exclusivo sobre as coisas não usadas dadas pela natureza através de seu próprio trabalho, ou seja, ao fazer algo com as coisas com as quais ninguém jamais tinha feito nada antes, e se outras pessoas tivessem o direito de desconsiderar a reivindicação de propriedade de alguém no que se refere a essas coisas com as quais não tinha trabalhado ou que não as havia colocado anteriormente em algum uso específico, isso só seria possível, então, se fosse possível adquirir títulos de propriedade não mediante o trabalho, ou seja, pela definição de uma ligação objetiva intersubjetivamente controlada entre uma determinada pessoa e um recurso escasso específico, mas simplesmente por declaração verbal; por decreto.

No entanto, adquirir títulos de propriedade através de declaração é incompatível com o já justificado princípio da não-agressão em relação aos corpos. Por uma razão, se fosse realmente possível adquirir a propriedade por decreto, isso significaria que também seria possível para alguém simplesmente declarar o corpo de outra pessoa como sendo de sua propriedade. Contudo, isso claramente entraria em conflito com a regra do princípio da não-agressão que estabelece uma nítida distinção entre o corpo de alguém e o corpo de outrem. E essa distinção só pode ser feita de forma clara e sem ambiguidades porque para os corpos, como para nenhum outro, a separação entre "meu" e "seu" não é baseada em declarações verbais, mas na ação. (A propósito, uma decisão entre reivindicações declaratórias rivais não pode ser tomada, a menos que haja algum outro critério objetivo que não uma declaração).

A separação é baseada na observação de que alguns recursos escassos específicos foram, de fato, feitos como uma expressão ou materialização da vontade de alguém ou, como pode ser o caso, da vontade de outrem. Além disso, e ainda mais importante, dizer que a propriedade é adquirida não através da ação, mas mediante uma declaração, envolve uma contradição prática, pois, desse modo, ninguém poderia dizer e declarar, a menos que apesar do que foi realmente dito, seu direito de controle exclusivo sobre o seu próprio corpo enquanto seu próprio instrumento de dizer qualquer coisa já tivesse, de fato, sido pressuposto.

Demonstramos agora que o direito de apropriação original por meio de ações é compatível com, e está incluído no, princípio da não-agressão como pressuposto logicamente necessário da argumentação. Indiretamente, é claro, foi também demonstrado que qualquer regra que especifique direitos diferentes, tal como uma teoria socialista da propriedade, não pode ser justificada. Porém, antes de iniciar uma análise mais detalhada de por que toda ética socialista ser indefensável — uma discussão que deveria lançar algumas luzes adicionais sobre a importância de algumas das condições da teoria capitalista da propriedade "natural" —, devem ser feitas algumas observações sobre o que está ou não implícito na classificação dessas últimas normas como justificáveis.

Ao fazer essa afirmação, não é necessário alegar ter deduzido um "dever" a partir de um "é". De fato, pode-se prontamente apoiar a visão geralmente aceita de que o abismo entre "dever" e "é" é logicamente intransponível. No entanto, classificar dessa forma as regras da teoria natural da propriedade é uma questão puramente cognitiva. Não mais resulta da classificação do princípio fundamental do capitalismo como sendo "justo" ou "correto", de acordo com o qual se deve agir e deduz-se o conceito de validade ou verdade pelo qual se deve sempre lutar. Dizer que esse princípio é correto também não exclui a possibilidade das pessoas proporem ou até mesmo de imporem regras que são incompatíveis com ele. Na verdade, no que tange às normas, a situação é muito semelhante ao de outras disciplinas de investigação científica.

O fato de que, por exemplo, determinadas afirmações empíricas são justificadas ou justificáveis e de que outras não são, não significa que todo mundo só defende afirmações válidas objetivas. Em vez disso, as pessoas podem estar erradas, até mesmo intencionalmente. Mas a distinção entre objetivo e subjetivo, entre verdadeiro e falso, não perde nada de seu significado por causa disso. Mais propriamente, as pessoas que estão erradas teriam que ser classificadas como desinformadas ou intencionalmente mentirosas. O argumento é semelhante no que se refere às normas. Obviamente, há muitas pessoas que não propagam ou impõem normas que podem ser classificadas como válidas de acordo com o significado de justificação que eu apresentei anteriormente. Mas a distinção entre normas justificáveis e não-justificáveis não se desfaz por causa disso, assim como aquela entre afirmações objetivas e subjetivas não se desintegram por causa da existência de pessoas desinformadas ou mentirosas.

Em vez disso, e consequentemente, aquelas pessoas que iriam propagar e impor essas diferentes normas inválidas teriam de novo que ser classificadas como desinformadas ou desonestas na medida em que havia sido explicado a elas e realmente deixado claro que suas propostas de normas alternativas ou sanções não poderiam e nunca seriam justificáveis numa argumentação. E haveria mais justificativa por fazê-lo dessa forma no argumento moral do que no argumento empírico, uma vez que a validade do princípio de não-agressão e o do princípio da apropriação original mediante ação, como seu corolário logicamente necessário, deve ser considerada por ser ainda mais básico do que quaisquer tipos de afirmações válidas ou verdadeiras. Pois o que é válido e verdadeiro tem que ser definido como aquilo em que todos agindo de acordo com esse princípio talvez possam concordar. Na realidade, como já foi mostrado, pelo menos a aceitação implícita dessas regras é o pré-requisito necessário para, de qualquer modo, ser capaz de viver e argumentar.

Por qual razão, então, as teorias socialistas da propriedade de quaisquer tipos falham em serem justificáveis como válidas? Em primeiro lugar, deve-se observar que todas as versões realmente praticadas do socialismo e a maioria de seus modelos propostos teoricamente também não passariam pelo primeiro teste formal do princípio da universalização e, por este fato, fracassariam por si mesmas! Todas essas versões contêm normas dentro de seu enquadramento de regras legais que seguem a fórmula "algumas pessoas podem e algumas pessoas não podem".

Porém, essas regras que especificam direitos ou obrigações diferentes para classes diferentes de pessoas não têm chance, por razões puramente formais, de serem aceitas como justas por cada participante potencial de uma argumentação. A não ser que a distinção feita entre classes diferentes de pessoas passe a ser aquela que é aceitável por ambos os lados como fundamentada na natureza das coisas, essas regras não seriam aceitáveis porque significariam que um grupo seria recompensado por privilégios legais às custas de discriminações complementares contra outro grupo.

Por esse motivo, algumas pessoas, tanto aquelas que são autorizadas a fazer algo quanto aquelas que não são, poderiam não concordar que essas regras fossem justas. Uma vez que a maioria dos tipos de socialismo, a exemplo dos praticados e defendidos, dependem da imposição de regras tais como "algumas pessoas têm a obrigação de pagar impostos e outras têm o direito de consumi-los", ou "algumas pessoas sabem o que é bom para você e estão autorizadas a ajudá-lo a conseguir essas supostas bênçãos, mesmo que você não as queira, mas você não está autorizado a saber o que é bom para elas e, consequentemente, ajudá-las", ou "algumas pessoas têm o direito de determinar quem tem muito de algo e quem tem pouco, e outros têm a obrigação de obedecer", ou, de forma ainda mais clara, "a indústria de computadores deve pagar para subsidiar os fazendeiros", "aqueles que têm filhos devem subsidiar os que não têm" etc., ou vice-versa, todas essas regras podem ser facilmente descartadas quanto a serem sérias candidatas à alegação de integrarem uma teoria de normas válidas na qualidade de normas de propriedade, porque todas elas indicam, pela sua própria formulação, que não são universalizáveis.

Mas o que está errado com as teorias socialistas da propriedade quando se trata de, e realmente existe, uma teoria formulada que contenha normas exclusivamente universalizáveis do tipo "ninguém está autorizado a" ou "todo mundo pode"? O que foi demonstrado indiretamente nos parágrafos anteriores e que deve ser argumentado diretamente é que o socialismo nunca poderia provar a sua validade, não mais por razões formais, mas por causa de suas especificações materiais. De fato, enquanto as formas de socialismo, que podem ser facilmente refutadas em relação à sua pretensão de validade moral sobre fundamentos formais simples, poderiam, pelo menos, ser praticadas, a aplicação daquelas versões mais sofisticadas que passassem no teste de universalização, por razões materiais, provariam ser fatais: mesmo se tentássemos, elas nunca poderiam ser colocadas em prática.

Das duas especificações relacionadas às normas da teoria natural da propriedade, há pelos menos uma que entraria em conflito com a teoria socialista da propriedade. A primeira especificação é a que, segundo a ética capitalista, define agressão como uma invasão da integridade física da propriedade de outra pessoa. O socialismo, por sua vez, definiria agressão como uma invasão do valor ou da integridade física da propriedade de outrem. O socialismo conservador, devemos relembrar, visava preservar uma dada distribuição de riqueza e de valores, e tentou conduzir aquelas forças que poderiam modificar o status quo sob controle por meio do controle de preços, regulações e controles de comportamento.

Claramente, a fim de fazê-lo desse modo, os direitos de propriedade em relação ao valor das coisas deve ser considerado como justificável e uma invasão de valores, mutatis mutandis, deve ser classificada como uma agressão injustificável. Mas não só o conservadorismo utiliza essa ideia da propriedade e da agressão. O socialismo social-democrata também o faz. Os direitos de propriedade em relação aos valores devem ser considerados como legítimos quando o socialismo social-democrata me permite, por exemplo, exigir uma compensação das pessoas cujas chances ou oportunidades afetam negativamente as minhas. E o mesmo é verdadeiro quando uma compensação por se cometer "violência estrutural" ou psicológica — um termo particularmente caro à literatura da ciência política esquerdista — é permitida.

Para estar habilitado a solicitar essas compensações, aquilo que foi feito — e que afetou as minhas oportunidades, minha integridade física, meus sentimentos em relação ao que possuo — teria que ser classificado como um ato agressivo.

Por que é injustificável essa ideia de proteger o valor da propriedade? Em primeiro lugar, enquanto cada pessoa pode, pelo menos em princípio, ter o controle total sobre as mudanças que suas ações provocam ou não nas características físicas de algo e, consequentemente, também pode ter o controle total sobre se aquelas ações são ou não justificáveis, o controle sobre se as ações de terceiros afetam o valor da propriedade de outrem não fica com a pessoa que age, mas com as outras pessoas e suas avaliações subjetivas. Assim, ninguém poderia determinar ex ante se as suas ações seriam classificadas como justificáveis ou injustificáveis. Teria que, primeiro, interrogar toda a população para ter certeza de que as ações planejadas por alguém não modificariam as avaliações de outrem em relação à sua própria propriedade. E mesmo assim ninguém poderia agir até que fosse obtida uma concordância universal sobre quem supostamente faria o que e com o que, e quando. Claramente, diante de todos os problemas práticos envolvidos, já se estaria morto há muito tempo e ninguém argumentaria mais nada antes que isso tudo estivesse resolvido.

Mas ainda mais decisivo do que isso, a posição socialista sobre a propriedade e a agressão não poderia nem mesmo ser efetivamente argumentada, pois argumentar a favor de qualquer norma, socialista ou não, significa que há um conflito sobre o uso de alguns meios escassos, caso contrário, simplesmente não haveria necessidade de discussão. Porém, a fim de argumentar que existe uma saída para esses conflitos, deve-se pressupor que as ações, para serem realizadas, devem ser autorizadas antes de qualquer acordo ou desacordo efetivo, pois se elas não forem permitidas, não se pode nem mesmo argumentar a respeito disso. 

Contudo, se alguém pode fazê-lo — e o socialismo também deve considerar que se pode fazer, na medida em que existe como uma posição intelectual debatida —, isto só é então possível por causa da existência de fronteiras objetivas da propriedade, ou seja, fronteiras que cada pessoa pode reconhecer por conta própria enquanto tais, sem ter que concordar antes com qualquer um no que se refere ao sistema de valores e de avaliações de terceiros. Portanto, o socialismo também, apesar daquilo que afirma, deve, de fato, pressupor a existência de fronteiras objetivas da propriedade em vez de fronteiras determinadas por avaliações subjetivas, nem que seja para ter um socialista sobrevivente que possa formular suas propostas morais.

A ideia socialista de proteger o valor em vez da integridade física também falha por uma segunda razão relacionada. Evidentemente, o valor de uma pessoa, por exemplo, no mercado de trabalho ou de casamento pode ser, e realmente é, afetado pela integridade física de outra pessoa ou pelo grau de integridade física. Dessa forma, se quisermos que os valores da propriedade sejam protegidos, teríamos que permitir agressão física contra pessoas. Contudo, se for somente por causa do próprio fato de que as fronteiras de uma pessoa — ou seja, as fronteiras da propriedade de alguém no seu próprio corpo enquanto seu domínio de controle exclusivo no qual outra pessoa não é autorizada a intervir, a não ser que deseje se tornar um agressor — são fronteiras físicas (intersubjetivamente determinadas e não apenas fronteiras subjetivamente imaginadas) nas quais todo mundo pode concordar sobre qualquer coisa de forma independente (e, obviamente, acordo significa um acordo com as unidades independentes de tomada de decisão!).

Portanto, somente porque as fronteiras protegidas da propriedade são objetivas, ou seja, estabelecidas e reconhecidas como previamente fixadas por qualquer acordo convencional, pode haver argumentação e, possivelmente, acordo entre as unidades independentes de tomada de decisão. Simplesmente ninguém poderia argumentar qualquer coisa, a não ser que antes sua existência como unidade física independente fosse reconhecida. Ninguém poderia argumentar a favor de um sistema de propriedade que define fronteiras de propriedade segundo uma avaliação subjetiva — como faz o socialismo — porque, simplesmente, ser capaz de formular esse argumento pressupõe que, ao contrário do que diz a teoria, deve-se, de fato, ser uma unidade fisicamente independente a fazê-lo.

A situação não é menos terrível para o socialismo quando nos voltamos para a segunda especificação essencial das regras da teoria natural da propriedade. As normas fundamentais do capitalismo foram caracterizadas não apenas pelo fato de que a propriedade e a agressão fossem definidas em termos físicos; não era menos importante que, além disso, a propriedade fosse definida como propriedade privada individualizada e que o significado da apropriação original — o que evidentemente significa fazer uma distinção entre o antes e o depois —, fosse especificada. É com essa especificação adicional que o socialismo também entra em conflito.

Em vez de reconhecer a importância vital da distinção do antes-depois para decidir entre as reivindicações de propriedade conflitantes, o socialismo propõe normas que, na verdade, consideram que a prioridade é irrelevante para se tomar uma decisão e que os retardatários têm tanto direito à propriedade quanto os que chegam primeiro. Claramente, essa ideia está presente quando o socialismo social-democrata, por exemplo, faz com que os proprietários naturais da riqueza e/ou seus herdeiros paguem um imposto que os desafortunados retardatários devem ser capazes de consumir. Essa ideia também está presente, por exemplo, quando o proprietário de um recurso natural é obrigado a reduzir (ou aumentar) a sua exploração atual em benefício da posteridade. Em ambos os casos, só faz sentido fazê-lo quando se considera que a pessoa que acumula primeiro a riqueza ou que usa primeiro os recursos naturais, comete, desse modo, uma agressão contra alguns retardatários. Se não fizeram nada de errado, os retardatários não poderiam fazer essa reivindicação contra os proprietários naturais e os seus herdeiros.

O que está errado com essa ideia de suprimir a distinção antes-depois como sendo moralmente irrelevante? Em primeiro lugar, se os retardatários, ou seja, aqueles que, de fato, nada fizeram com os bens escassos, tivessem realmente tanto direito aos bens quanto os que chegaram primeiro, ou seja, aqueles que fizeram algo com os bens escassos, então, literalmente, ninguém seria autorizado a fazer coisa alguma com o que quer que seja, como se fosse preciso ter todo o consentimento prévio dos retardatários para fazer seja lá o que se quisesse fazer. Realmente, como a posteridade incluiria o filho do filho de alguém — isto é, pessoas que chegaram tão tardiamente que, provavelmente, nunca se poderia perguntá-las — defendendo um sistema legal que não utiliza a distinção antes-depois como parte de sua teoria básica da propriedade é simplesmente absurdo pois implica em defender a morte, mas pressupor a vida para defender qualquer coisa.

Nem nós, nem nossos antepassados, nem nossos descendentes poderiam sobreviver ou sobreviveriam, e dizer ou argumentar qualquer coisa se tivessem que seguir essa regra. Para que qualquer pessoa — do presente, do passado ou do futuro — pudesse argumentar qualquer coisa deveria ser possível sobreviver agora. Ninguém pode esperar e interromper a ação até que cada um de uma classe indeterminada de retardatários começassem a aparecer e concordar com aquilo que se quer fazer. Em vez disso, na medida em que uma pessoa encontra-se sozinha, ela deve ser capaz de agir, usar, produzir, consumir imediatamente os bens antes de qualquer acordo com pessoas que simplesmente ainda não estão ao redor (e talvez nunca estejam).

E na medida em que uma pessoa encontra-se na companhia de outras e há um conflito sobre como usar um dado recurso escasso, ela deve ser capaz de resolver o problema em algum momento definido com um número específico de pessoas em vez de ter que esperar por períodos indeterminado de tempo e um número indeterminado de pessoas. Portanto, para sobreviver, que é pré-requisito para argumentar a favor ou contra qualquer coisa, os direitos de propriedade não podem ser concebidos como sendo atemporais e não-específicos considerando o número de pessoas envolvidas. Em vez disso, devem ser necessariamente pensados como sendo criados através da ação em pontos definidos no tempo por indivíduos específicos agindo.

Além disso, a ideia de abandonar a distinção antes-depois, que o socialismo acha tão sedutora, seria simplesmente incompatível com o princípio da não-agressão como o fundamento prático da argumentação. Argumentar e possivelmente concordar com alguém (nem que seja sobre o fato de que há discordância) significa reconhecer um direito prévio mútuo do controle exclusivo sobre o seu próprio corpo. Caso contrário, seria impossível para qualquer um falar primeiro em algum momento definido no tempo e para outra pessoa ser capaz de responder, ou vice-versa, assim como nem o primeiro nem o segundo orador seriam mais, em qualquer momento unidades físicas independentes de tomada de decisão.

Portanto, eliminar a distinção antes-depois, como o socialismo tenta fazer, é equivalente a eliminar a possibilidade de argumentar e obter um entendimento. Porém, como não se pode argumentar que não há possibilidade de discussão sem o controle prévio de cada pessoa sobre o seu próprio corpo como sendo reconhecido e aceitado como justo, uma ética do retardatário que não deseja fazer essa diferença nunca poderia ser acordada por ninguém. Bastaria dizer que isso poderia significar uma contradição, como se ser capaz de dizer isto pressuporia sua existência como uma unidade independente de tomada de decisão num momento definido no tempo.


Consequentemente, somos obrigados a concluir que a ética socialista é um fracasso completo. Em todas as suas versões práticas, não é melhor do que uma regra que defenda coisas como "eu posso bater em você, mas você não pode bater em mim", que, inclusive, não passa no teste da universalização. E se adotar regras universais — o que basicamente significaria dizer que "todo mundo pode bater em todo mundo" —, essas regras não poderiam ser afirmadas, de forma concebível, como universalmente aceitáveis por conta de suas próprias especificações materiais.

Simplesmente afirmar e argumentar dessa forma deve pressupor os direitos de propriedade de alguém sobre o seu próprio corpo. Portanto, só a ética do capitalismo do primeiro-que-chega é o primeiro-que-possui pode ser efetivamente defendida como estando implícita na argumentação. E nenhuma outra ética poderia ser justificada dessa forma, enquanto que justificar algo no curso da argumentação significa pressupor a validade dessa ética da teoria natural da propriedade.

Este artigo é o capítulo 7 do livro Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo

Observe a semelhança estrutural do "a priori da argumentação" para o "a priori da ação", ou seja, o fato de que não há maneira de refutar a afirmação de que todo mundo sabe o que significa agir, uma vez que tentar refutar essa afirmação pressuporia o conhecimento de como realizar determinadas atividades. De fato, o caráter incontestável do conhecimento sobre o significado da validade das alegações e da ação estão intimamente ligadas. Por um lado, as ações são mais fundamentais do que a argumentação de cuja existência surge a ideia da validade, assim como a argumentação é claramente apenas uma subcategoria da ação. Por outro lado, dizer o que foi dito sobre a ação e argumentação, e sobre a sua relação mútua, já exige uma argumentação e, portanto, nesse sentido (isto é, epistemológico), a argumentação deve ser considerada mais fundamental do que a ação não-argumentativa. Mas como também é a epistemologia que revela a ideia de que, apesar disto não poder ser conhecido previamente por qualquer argumentação, de fato, o desenvolvimento da argumentação pressupõe ação na qual as alegações de validade só podem ser explicitamente discutidas num argumento se as pessoas que o fazem já souberem o que significa ter conhecimento implícito nas ações; ambos, o significado da ação em geral e o da argumentação em particular, devem ser pensados como fios entrelaçados logicamente necessários de um conhecimento a priori.

Metodologicamente, nossa abordagem exibe uma semelhança muito próxima daquilo que A. Gewirth descreveu como o "método dialeticamente necessário" (Reason and Morality, Chicago, 1978, p.42-47) — um método de raciocínio a priori moldado na ideia kantiana de deduções transcendentais. Mas, infelizmente, em seu importante estudo, Gewirth escolhe o ponto de partida equivocado para desenvolver a sua análise. Ele tenta deduzir um sistema ético não do conceito de argumentação, mas de um conceito de ação. Contudo, isto certamente não pode funcionar porque do fato corretamente demonstrado de que ao agir um agente deve, por necessidade, pressupor a existência de determinados valores ou bens, disso não deduz-se que tais bens são, portanto, universalizáveis e devem, por isso, ser respeitados por terceiros como sendo bens do agente por direito (sobre a exigência das afirmações normativas serem universalizáveis, conferir a discussão posterior). 

Em vez disso, a ideia da verdade, ou no que se refere à moral, dos direitos ou bens universalizáveis só surge com a argumentação enquanto uma subcategoria especial de ações, mas não da ação enquanto tal, como é claramente revelado pelo fato de que Gewirth também não está simplesmente envolvido na ação, mas mais especificamente na argumentação quando ele tenta nos convencer da verdade necessária do seu sistema ético. No entanto, reconhecida a argumentação como o único ponto de partida adequado para o método dialeticamente necessário, resulta daí, como veremos, uma ética capitalista (ou seja, não-Gewirthiana). Sobre as imperfeições da tentativa de Gewirth de tentar deduzir direitos universalizáveis da ideia de ação, cf. também as observações perspicazes de M. MacIntyre, Depois da Virtude: Um Estudo em Teoria Moral, Bauru: EDUSC, 2001; J. Habermas, Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln, Frankfurt/M., 1983, p.110-111; e H. Veatch,Human Rights, Baton Rouge, 1985, p.159-160.

A relação entre a nossa abordagem e a abordagem dos "direitos naturais" pode ser agora descrita detalhadamente. A lei natural ou a tradição dos direitos naturais do pensamento filosófico sustenta que as normas universalmente válidas podem ser percebidas por meio da razão enquanto fundamentadas na própria natureza do homem. Tem havido uma disputa notória em relação a essa posição, mesmo por parte dos leitores simpatizantes, de que o conceito de natureza humana é "muito difuso e variado para fornecer um determinado conjunto de conteúdos da lei natural" (A. Gewirth, "Law, Action, and Morality" in: Georgetown Symposium on Ethics. Essays in Honor of H. Veatch (ed. R. Porreco), New York, 1984, p.73). Além disso, sua descrição de racionalidade é igualmente ambígua na medida em que não parece distinguir entre o papel da razão para estabelecer, por um lado, leis empíricas da natureza, e, por outro lado, leis normativas de conduta humana (Cf., por exemplo, a discussão em H. Veatch, Human Rights, Baton Rouge, 1985, p.62-67.).

Ao reconhecer o conceito mais estrito de argumentação (em vez do mais amplo da natureza humana) como o ponto de partida necessário para se derivar uma ética e ao atribuir ao raciocínio moral o status de um raciocínioa priori, para ser claramente diferenciado do papel desempenhado pela razão na investigação empírica, nossa abordagem não só pretende evitar essas dificuldades desde o início, mas pretende, desse modo, ser mais uma vez honesta e rigorosa. E ainda para me dissociar da tradição dos direitos naturais, o que não quer dizer que eu não pudesse concordar com a avaliação crítica da maioria da teoria ética contemporânea; de fato, eu concordo com a refutação complementar de toda a ética do desejo (teológica, utilitária) formulada por H. Veatch tanto quanto toda a ética (consulte Human Rights, Baton Rouge, 1985, capítulo 1) do dever (deontológica). E nem eu afirmo que seja impossível interpretar a minha abordagem como dentro de uma tradição dos direitos naturais "corretamente concebida". Porém, o que eu afirmo é que a abordagem resultante está claramente em desacordo com o que veio a se transformar a abordagem dos direitos naturais e que esta nada possui dessa tradição tal como ela se posiciona.

O princípio da universalização figura, de fato, com destaque entre todas as abordagens cognitivas sobre a moral. Para a exposição clássica desse princípio, cf. I. Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Coimbra: Almedina, 2011, e Crítica da Razão Prática, São Paulo: Martins Fontes, 2003.

Deve ser observado aqui que só porque existe a escassez há mesmo um problema de formulação de leis morais; à medida que os bens são superabundantes (bens "livres") nenhum conflito sobre o uso dos bens é possível e nenhuma ação-coordenação é necessária. Consequentemente, deduz-se que qualquer ética corretamente concebida deve ser formulada como uma teoria da propriedade, ou seja, uma teoria de atribuição dos direitos de controle exclusivo dos meios escassos. Porque só assim se torna possível evitar o conflito que, de outra forma, seria inescapável e insolúvel. Infelizmente, os filósofos morais, em sua ignorância generalizada sobre economia, dificilmente veriam isso com clareza suficiente. Em vez disso, como, por exemplo, H. Veatch (Human Rights, Baton Rouge, 1985, p. 170), eles parecem achar que podem fazê-lo sem uma definição precisa de propriedade e dos direitos de propriedade só para depois necessariamente acabarem num mar de imprecisão e adhocismos (N.T.: derivação de ad hoc, que significa "para isso" ou "para esta finalidade"). Sobre os direitos humanos como direitos de propriedade, cf. também M. N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 15.

Esta é, por exemplo, a posição adotada por J.J. Rousseau quando ele nos pede para resistirmos à tentativa de aquisição privada dos recursos dados pela natureza construindo uma cerca em volta deles. Em sua famosa máxima, ele diz: "evitai ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém" (Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.259). Porém, só é possível argumentar dessa forma se for possível considerar que a reivindicação da propriedade pode ser justificada por decreto. Porque, como poderia "todos" (ou seja, até aqueles que nunca fizeram nada com os recursos em questão) ou "ninguém" (ou seja, nem mesmo aqueles que realmente os utilizaram) possuírem alguma coisa, a menos que as reivindicações de propriedade fossem feitas por decreto?!

M. N. Rothbard escreveu o seguinte em A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, p.89: "Pois bem, qualquer pessoa que participa de qualquer tipo de discussão, incluindo uma sobre valores, está, em virtude desta participação, viva e afirmando a vida. Pois, se ela realmente fosse contrária à vida, ela não teria nenhum interesse em continuar vivo. Consequentemente, o suposto opositor da vida está realmente afirmando-a no próprio curso de sua argumentação e, por isso, a preservação e a proteção da vida de alguém assumem a categoria de um axioma incontestável". Cf. também D. Osterfeld, "The Natural Rights Debate", in: Journal of Libertarian Studies, VII, I, 1983, p.106 et seq.

Sobre a ideia de violência estrutural como sendo diferente da violência física cf. D. Senghaas (ed.),Imperialismus und strukturelle Gewalt, Frankfurt/M., 1972.

A ideia de definir agressão como uma invasão dos valores da propriedade também fundamenta as teorias de justiça tanto de Rawls quanto de Nozick, no entanto, podem ter aparecido muitos comentadores diferentes desses dois autores. Pois como poderia pensar sobre o seu chamado princípio da diferença — "as desigualdades econômicas e sociais devem ser distribuídas de forma a (…) que sejam razoavelmente esperadas como sendo uma vantagem ou benefício para todo mundo, incluindo os menos favorecidos" (J. Rawls, Uma Teoria da Justiça, Lisboa: Editorial Presença, 2001, p. 68-71 e 78-84) — como sendo justificado, a não ser que Rawls acreditasse que bastava aumentar a riqueza relativa que uma pessoa afortunada cometesse uma agressão e que uma menos afortunada, portanto, teria uma reivindicação válida contra a pessoa mais afortunada só porque a sua posição relativa em termos de valor se deteriorou? 

E como Nozick poderia alegar como sendo justificável uma "agência de proteção dominante" banir seus concorrentes, independentemente de quais teriam sido as suas ações (R. Nozick, Anarquia, Estado e Utopia, Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p.27 et seq.)? Ou como ele poderia acreditar que seria moralmente correto proibir as trocas improdutivas, ou seja, trocas onde uma parte estivesse numa melhor situação se a outra não existisse, ou pelo menos não tivessem nada a ver com isso (como, por exemplo, no caso de um chantageado e de um chantageador), independentemente se uma troca envolvesse ou não a invasão física de qualquer espécie (Ibid., p. 79 et seq.), a menos que ele pensasse no direito existente de se preservar a integridade dos valores (em vez da integridade física) da propriedade de alguém?! Para uma crítica devastadora da teoria de Nozick cf. M. N. Rothbard, A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010, capítulo 29; sobre o uso falacioso da análise das curvas de indiferença feito tanto por Rawls quanto por Nozick, cf. "Toward a Reconstruction of Utility and Welfare Economics", Center for Libertarian Studies, Occasional Paper No. 3, New York, 1977.

Note-se também aqui que somente se os direitos de propriedade forem conceituados como direitos de propriedade privada que se originam no tempo torna-se possível estabelecer contratos. Claramente, os contratos são acordos entre inúmeras unidades fisicamente independentes baseados no reconhecimento mútuo das reivindicações de cada contratante da propriedade privada em relação às coisas adquiridas antes do acordo e que, portanto, dizem respeito à transferência dos títulos de propriedade das coisas definidas de um proprietário anterior para um proprietário posterior. Não há tal coisa como 'contratos que podem existir de forma concebível no âmbito de uma ética do retardatário'!

Hans-Hermann Hoppe é um membro sênior do Ludwig von Mises Institute, fundador e presidente da Property and Freedom Society e co-editor do periódico Review of Austrian Economics. Ele recebeu seu Ph.D e fez seu pós-doutorado na Goethe University em Frankfurt, Alemanha. Ele é o autor, entre outros trabalhos, de Uma Teoria sobre Socialismo e Capitalismo eThe Economics and Ethics of Private Property.