sexta-feira, 31 de maio de 2013

UM PEQUENO HISTÓRICO DAS POLÍTICAS MONETÁRIAS DO REAL - E POR QUE ESTAMOS EM UMA SINUCA DE BICO


O real entrou em circulação em julho de 1994. Embora seja louvado como a moeda que trouxe estabilidade econômica para o Brasil, a realidade é menos auspiciosa. De julho de 1994 a março de 2013, a inflação de preços acumulada pelo IPCA está em 330%. Pelo IGP-M, a situação fica ainda mais tenebrosa: 458%.

Neste mesmo período, a inflação de preços da Austrália — país de dimensões e economia semelhantes ao Brasil — foi de 65%. Na Nova Zelândia, 53%. No Chile, 126%. No final, nosso histórico é semelhante ao da Colômbia (459%), país que até 2003 vivenciou algo muito semelhante a uma guerra civil.

Por que esse histórico tão desanimador? O que pretendo mostrar neste artigo é que, dentre todas as opções de política monetária que se mostraram possíveis a cada momento, sempre escolhemos a pior. E, no atual arranjo, isso tem gerado distorções com um potencial trágico.


Sim, é fácil e confortável fazer acusações olhando em retrospecto, mas tal comodidade não deve ser um impeditivo para absolver as autoridades monetárias de suas culpas.

Mesmo em nosso melhor momento, que foi durante a primeira etapa do Plano Real (1994-1998), as coisas não foram feitas como deveriam ser.

Para acabar com uma hiperinflação

Um país que está vivenciando uma hiperinflação e que quer estabilizar sua economia — como o Brasil no início da década de 1990 — não tem muita opção: ele não apenas tem de trocar sua moeda, como tem também de mostrar para todo o mundo que está genuinamente disposto a, dali em diante, "levar as coisas mais a sério". Caso não transmita essa confiança aos investidores internacionais, sua nova moeda simplesmente não terá nenhuma aceitação no mercado internacional — e, consequentemente, sua população não terá nenhum poder de compra fora do país.

Adicionalmente, dado que a causa de todas as hiperinflações da história sempre estiveram no hiperativismo de seus Bancos Centrais — que, até a década de 1990, podiam imprimir dinheiro para financiar diretamente o governo federal —, a primeira medida a ser tomada pelo país é mostrar que esta instituição operará de agora em diante de maneira bastante contida.

Sendo assim, não basta apenas trocar a moeda — afinal, nada garante que o Banco Central não continuará desvairado. É preciso deixar claro que a nova moeda terá "qualidade", isto é, que ela será lastreada por uma moeda mundialmente reconhecida como forte. Apenas isso pode gerar confiança no novo regime que está sendo adotado. E uma maneira bastante eficaz de se fazer isso é adotando um regime de câmbio fixo.

Existem três tipos de política cambial: há o câmbio fixo, há o câmbio atrelado e há o câmbio flutuante.

Câmbio fixo e câmbio atrelado

O câmbio fixo — e aqui me refiro ao câmbio estritamente fixo, cujo valor nunca se modifica — só ocorre quando uma economia opera sob um Currency Board. O Currency Board nada mais é do que uma agência de conversão de moeda que, por definição, tem de manter reservas internacionais em um volume que seja igual ou maior que a base monetária da moeda nacional. A função do Currency Board é trocar moeda nacional pela moeda estrangeira escolhida para servir de "âncora cambial" a uma taxa de câmbio fixa. Normalmente, essa moeda é o dólar. Mas, ao longo da história, a libra, o marco alemão e, atualmente, o euro já desempenharam e seguem desempenhando essa função.

Sob este arranjo, quando um empreendedor exporta produtos, ele recebe como pagamento uma moeda estrangeira — no caso, o dólar. Ato contínuo, o Currency Board emite moeda nacional a uma taxa de câmbio fixa em relação ao dólar e deposita o valor na conta deste exportador. Os dólares ficam com o Currency Board. Inversamente, quando um empreendedor importa produtos, a moeda nacional é trocada por dólares a uma taxa fixa no Currency Board, que então fica com a moeda nacional e envia os dólares para fora. 

Note que, sob um Currency Board, a variação da base monetária é completamente passiva. Ela aumenta e diminui estritamente de acordo com a entrada e saída de moeda estrangeira. O Currency Board não faz política monetária. Ele não pode criar moeda nacional e injetá-la na economia em troca de um ativo qualquer. Ele só pode emitir moeda nacional se receber um valor equivalente em moeda estrangeira. 

Sob este regime de câmbio estritamente fixo e de política monetária totalmente passiva, quando há um superávit no balanço de pagamentos, a base monetária se expande. Isso gera uma redução nos juros e, consequentemente, uma expansão no crédito e uma elevação nos preços. Ato contínuo, as importações aumentam, o que gera uma saída de reservas do país. Tal saída de reservas reduz a base monetária. Os juros sobem, a economia se desacelera e o balanço de pagamentos volta ao equilíbrio. Tal arranjo funciona exatamente como funcionaria um padrão-ouro, com uma moeda estrangeira fazendo o papel do ouro. (Com o tempo, o balanço de pagamentos tende ao equilíbrio, de forma que tais flutuações econômicas sejam mínimas.)

O Currency Board gera confiança na moeda doméstica justamente porque ele mantém reservas internacionais em um volume igual ou maior que a base monetária da moeda nacional. Em teoria, quando a operação do Currency Board é obedecida ortodoxamente, ataques especulativos não geram resultados — afinal, seria impossível exaurir as reservas internacionais (a base monetária teria de ser toda mandada pra fora, algo por definição impossível). Essa é a principal atratividade do sistema: ele dá segurança aos investidores estrangeiros, que deixam de temer uma súbita desvalorização da moeda nacional, o que causaria enorme prejuízo para eles quando fossem repatriar seus lucros.

Uma explicação mais detalhada sobre o funcionamento de um Currency Board já foi feita neste artigo. A intenção aqui é apenas ressaltar que tal arranjo não apenas é o mais eficiente para se aniquilar rapidamente uma hiperinflação, como também é o arranjo que realiza tal feito com o mínimo de efeitos colaterais: ele aniquila uma hiperinflação sem deixar de herança juros estratosféricos, como ocorreu no Brasil. Um país que adota um Currency Board passa a operar com juros semelhantes aos juros vigentes no país emissor da moeda utilizada como âncora.

O melhor exemplo histórico deste fenômeno é fornecido pela Bulgária. Em 1996, sucessivas trapalhadas econômicas fizeram com que o país decretasse moratória em sua dívida externa. Em 1997, o país entrou em hiperinflação e vários protestos nas ruas quase levaram o país a uma revolução social.

Em março de 1997, o país apresentava uma inflação anual de 2.019%. A legislação para a implantação de um Currency Board foi então apresentada e o Currency Board, que teria marcos alemães como reserva, foi criado no dia 1º de julho. Em um ano e meio, a inflação de preços caiu de 1.500% para 1,4%. 

Gráfico 1: taxa de inflação de preços na Bulgária, janeiro de 1997 a dezembro de 1998

Ainda mais espantosa foi a queda dos juros do mercado interbancário (equivalente à nossa SELIC): de 555% no auge da hiperinflação para apenas 3,56% no mesmo mês em que o Currency Board passou a operar.

Gráfico 2: taxa de juros do mercado interbancário na Bulgária, janeiro de 1997 a janeiro de 1998.

A Bulgária foi apenas o mais extremo dos exemplos. Mas todos os outros países que também adotaram um Currency Board — Hong Kong, Estônia, Lituânia e Argentina — vivenciaram este mesmo fenômeno: queda abrupta na inflação de preços e, principalmente, drástica redução nas taxas de juros, que caíram para apenas um dígito.

E isso vale ser ressaltado: com a exceção de Hong Kong, todos os países acima citados estavam na mais completa baderna. Não obstante, a criação de um Currency Board logrou fazer com que suas economias — até então completamente avacalhadas — se tornassem repentinamente civilizadas, com inflação de preços e taxas de juros iguais às de países desenvolvidos. 

Agora comparemos esse histórico ao que fez o Brasil. 

Ao contrário do que é dito até hoje com muita frequência, o Plano Real nunca se baseou um uma "âncora cambial" ou em um "câmbio fixo". Desde que o real foi introduzido em primeiro de julho de 1994, o câmbio nunca foi fixo, sequer por um dia. O Brasil adotou o regime de "câmbio atrelado ao dólar". Neste sistema, o Banco Central faz intervenções diárias no mercado de câmbio (comprando ou vendendo dólares) com o intuito de manter a cotação do dólar próxima a um valor por ele estipulado.

Veja a evolução da taxa de câmbio de julho de 1994 até dezembro de 1998, último mês antes da alteração do regime cambial.

Gráfico 3: evolução da taxa de câmbio durante a primeira fase do real, julho de 1994 a dezembro de 1998

O principal problema em se utilizar um câmbio atrelado é que há uma contradição entre a política monetária e a política cambial. Com uma taxa de câmbio fixa — no caso, um Currency Board —, não há política monetária; as variações no balanço de pagamento determinam as variações da base monetária da economia. Com uma taxa de câmbio flutuante — a ser analisada mais abaixo —, não há política cambial; o Banco Central se preocupa apenas em fazer política monetária. Já com um câmbio atrelado, o Banco Central tenta fazer as duas coisas ao mesmo tempo: determinar uma política monetária e uma política cambial, sendo que ambas são mutuamente excludentes, impossíveis de serem efetuadas simultaneamente. Inevitavelmente, a política cambial acaba entrando em choque com a política monetária, e os ataques especulativos são a consequência inevitável. 

Quando se trabalha com um câmbio atrelado, o Banco Central tem de, diariamente, fazer intervenções no mercado de câmbio de para fazer com que o dólar fique próximo à cotação determinada pelo Banco Central. Sendo assim, quando ocorre uma entrada "excessiva" de dólares no país, há uma tendência de apreciação do câmbio. Para evitar isso, o Banco Central compra estes dólares criando reais, o que gera um aumento da base monetária. Ato contínuo, para evitar este súbito aumento da base monetária, o Banco Central vende títulos públicos para retirar da economia os reais que ele próprio acabou de criar quando fez a conversão de dólares para real (esse processo é tecnicamente chamado de "esterilização").

Já quando ocorre uma saída de dólares, o fenômeno inverso é observado: há uma tendência de depreciação do câmbio devido à maior procura por dólares. Para evitar isso, o Banco Central vende dólares para satisfazer esse aumento da demanda por dólares. Essa venda de dólares pelo Banco Central gera uma redução da base monetária. Para evitar essa redução, algo que tende a gerar uma recessão, o Banco Central cria reais e compra títulos públicos em posse dos bancos.

Adicionalmente, vale enfatizar que, durante toda essa primeira fase do Plano Real, houve déficits na balança comercial (mais importações do que exportações). Para compensar esses déficits, o Banco Central tinha de manter juros bastante altos para atrair dólares e fazer com que o balanço de pagamentos pudesse se equilibrar. 

Observe que este comportamento ativo do Banco Central é totalmente distinto do comportamento de um Currency Board, que permite que a base monetária varie automaticamente de acordo com o saldo do balanço de pagamentos.

E é exatamente por isso que a opção por um regime de câmbio atrelado custa caro: como o regime não inspira confiança nos investidores internacionais — pois uma desvalorização pode ocorrer a qualquer momento — e dada a contínua necessidade de estar sempre atraindo dólares para se fechar o balanço de pagamentos e para manter o câmbio dentro do intervalo especificado pelo Banco Central, as taxas de juros têm de ser bastante elevadas. O gráfico abaixo mostra a evolução da SELIC de agosto de 1994 até o final de dezembro de 1998. Compare com os juros da Bulgária, no gráfico 2.

Gráfico 4: evolução dos juros do mercado interbancário brasileiro (taxa SELIC), de agosto de 1994 a dezembro de 1998.

E esta foi justamente a "mácula" da primeira fase do Plano Real: a necessidade de manter juros altos para atrair dólares e, com isso, manter a confiança da comunidade internacional no Plano. Não bastasse isso, o governo ainda apresentava um déficit orçamentário de aproximadamente 7% do PIB (não havia sequer superávit primário). Tamanha necessidade de financiamento contribuía ainda mais para a elevação dos juros.

No final, o que vale ser ressaltado é que esta postura do Banco Central — de ficar vendendo e comprando dólares para manter o câmbio dentro de um intervalo especificado e de ficar arbitrando juros para atrair dólares para fechar o balanço de pagamentos — gera um descasamento entre a quantidade de dólares nas reservas internacionais e a base monetária do país: haverá um momento em que a quantidade de dólares nas reservas internacionais será bem menor do que a base monetária. Quando isto ocorre, é apenas uma questão de tempo para que os especuladores descubram esta contradição entre política cambial e política monetária e forcem uma desvalorização da moeda — ou a imposição de controle de capitais.

Este tipo de ataque especulativo varreu a América Latina e o sudeste asiático ao longo da década de 1990. A crise do México em 1994, a crise asiática em 1997 e 1998, a crise do real em janeiro de 1999 e a crise da Argentina em dezembro de 2001 (cujo Currency Board havia sido praticamente abolido em junho daquele ano) — todas ocorreram de acordo com este mecanismo. Com efeito, até mesmo o ataque perpetrado por George Soros à libra esterlina em 1992 se deu por causa deste arranjo, uma vez que o Banco Central da Inglaterra vinha mantendo a libra atrelada ao marco alemão.

Veja a evolução das reservas internacionais do Brasil, e observe a queda súbita ocorrida no segundo semestre de 1998 em decorrência do ataque especulativo que culminou com a abolição do regime de câmbio atrelado:

Gráfico 5: evolução das reservas internacionais durante a primeira fase do real, julho de 1994 a dezembro de 1998

Sendo assim, surge a pergunta inevitável: se um Currency Board é estável e se um regime de câmbio atrelado sempre se esfacela, por que então a opção pelo último é quase que universal? Há várias respostas, mas duas se sobressaem: o regime do câmbio atrelado não abole a moeda nacional e, principalmente, o governo mantém sua autonomia para fazer política monetária, algo de extrema importância para financiar seus déficits via inflação. O preço desse nacionalismo e dessa autonomia governamental são juros altos, instabilidade e crise no balanço de pagamentos.

Por outro lado, para não dizer que só há críticas ao arranjo brasileiro, houve um fator positivo: o comportamento da inflação de preços. Como o Banco Central tinha de manter a expansão monetária contida para evitar uma súbita desvalorização do real perante o dólar, a inflação de preços apresentou um continuado declínio. Não tão súbito quanto o da Bulgária e da Argentina, mas ainda assim substancial.

Gráfico 6: evolução da inflação de preços durante a primeira fase do real, junho de 1995 a dezembro de 1998



A adoção do câmbio flutuante e o problema com o sistema de metas de inflação

Após a inevitável série de ataques especulativos (detalhados aqui) ocorrida no final de 1998, que reduziu abruptamente a quantidade de reservas internacionais do Banco Central, o regime de câmbio atrelado foi abolido logo no início de 1999.

A partir daquele ano, adotou-se aquilo que é conhecido hoje como 'tripé macroeconômico': câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação.

Em tese, adotar um câmbio flutuante significa que o Banco Central irá se preocupar exclusivamente com a política monetária — isto é, irá se preocupar apenas em controlar a evolução da base monetária e dos agregados monetários (M1, M2, M3 e M4) visando a atingir uma determinada meta de inflação de preços, sem olhar para o câmbio. O comportamento da taxa de câmbio ficará exclusivamente por conta das forças de mercado. Justamente por não se preocupar com a taxa de câmbio, um regime de câmbio flutuante não sofre crises no balanço de pagamentos, como ocorre com o regime de câmbio atrelado.

O problema é que, na prática, tal teoria nunca foi de fato implantada. Em primeiro lugar, o Banco Central brasileiro nunca se preocupou exclusivamente com a política monetária, deixando a taxa de câmbio flutuar ao sabor do mercado. Ele sempre tentou controlar as duas variáveis, que são incompatíveis. Consequentemente, ao tentar fazer duas coisas mutuamente excludentes — política monetária e política cambial —, o resultado final foi uma inflação de preços continuamente acima da meta (a qual, diga-se de passagem, sempre foi muito alta).

O gráfico abaixo detalha este descasamento. A linha azul mostra como seria a inflação de preços acumulada de 1999 caso o Banco Central de fato conseguisse manter a inflação de preços dentro da meta por ele próprio estipulada. Já a linha vermelha mostra a verdadeira inflação de preços acumulada. (Veja os valores anuais aqui).

Gráfico 7: inflação de preços acumulada de acordo com a meta estipulada pelo Banco Central (linha azul); inflação de preços observada (linha vermelha)

Mas o principal problema desse atual tripé macroeconômico nem chega a ser o conflito entre política monetária e política cambial: o problema está justamente no formato escolhido para a política monetária.

O modelo de política monetária utilizado pelo Banco Central brasileiro se resume a estipular uma meta para a taxa de juros do mercado interbancário (a SELIC) e, em seguida, fazer injeções de dinheiro no mercado interbancário para tentar manter essa taxa de juros estipulada. Por meio de cálculos econométricos sofisticadíssimos (e sempre errados), o Banco Central estipula qual é o valor da SELIC que, na crença dos burocratas, fará com que a inflação de preços fique próxima do valor tido pelo Banco Central como 'desejável'.

Tal prática — a qual, segundo a imprensa, foi unanimemente testada e aprovada ao redor do mundo — não apenas gerou um legado desastroso para o Brasil, como também, ao contrário do que se imagina, é utilizada por apenas um outro grande Banco Central em todo o mundo: o Fed.

Um pequeno histórico do sistema de metas para a taxa de juros

Essa política de metas para a taxa de juros foi adotada pela primeira vez nos EUA no final dos anos 1970. O então presidente do Fed e criador desta política foi um cavalheiro chamado G. William Miller, que, de tão desastrado, durou no cargo apenas de janeiro de 1978 a agosto de 1979. O resultado de sua criação foi tão pavoroso, que Jimmy Carter teve de tirar o sujeito do comando do Fed e colocar o durão Paul Volcker em seu lugar. 

O problema desta política criada por Miller — e hoje adotada pelo Brasil — é que, quando você estipula uma determinada taxa de juros como alvo, você perde totalmente o controle do crescimento da base monetária e dos agregados monetários, os quais passam a se comportar de forma totalmente errática. O M2 americano, sob o comando de Miller, passou a crescer a uma taxa de dois dígitos (12%), algo até então inédito na história do país. Foi isso que aniquilou Miller e provocou a inflação galopante americana daquela época. Para se ter uma ideia, em novembro de 1978, apenas 11 meses após implantar sua nova política, Miller fez com que o dólar se desvalorizasse 34% em relação ao marco alemão e 42% em relação ao iene japonês. Já no início de 1980, o "IPCA" americano estava em 15%.

Gráfico 8: evolução da inflação de preços nos EUA, janeiro de 1977 a março de 1980


Quando Miller foi retirado, Paul Volcker assumiu o comando e disse que essa prática de determinar uma meta para a taxa de juros não mais seria a política do Fed, e passou a controlar diretamente o crescimento da base monetária e dos agregados monetários, desconsiderando totalmente as taxas de juros resultantes, as quais passaram a flutuar alucinadamente. De início, isso aniquilou a inflação de preços, que caiu de 15% em 1980 para 2,5% em 1983. 

Gráfico 9: evolução da inflação de preços nos EUA, março de 1980 a julho de 1983

Abaixo, a variação da taxa básica de juros americana neste período.

Gráfico 10: variação da taxa básica de juros americana. De meados de 1979 ao final de 1983, o Fed se preocupou exclusivamente em controlar os agregados monetários, gerando aquelas desenfreadas variações nos juros.

Porém, como havia vários distintos e complexos agregados monetários, ninguém se entendia a respeito de "o que era dinheiro" e qual agregado monetário deveria ser seguido: o M1, o M1-A, o M2, o M3 ou o M4?

Consequentemente, mais tarde, no final de 1983, o Fed retornou à política de determinar uma meta para os juros, sendo até então o único Banco Central do mundo a fazer isso. Dez anos depois, o Banco Central da Austrália passaria a imitá-lo. Quinze anos depois, mais especificamente a partir de 1999, o Banco Central brasileiro também viria a imitá-lo. Hoje, estes são os únicos grandes bancos centrais do mundo a fazer este tipo de política monetária.

Como tal afirmação parece estranha, vale a pena enfatizá-la: dentre os grandes, apenas o Fed e o Banco Central brasileiro utilizam este mecanismo de continuamente injetar dinheiro no mercado interbancário — chamado de operações de mercado aberto — para manter a taxa básica de juros em um determinado nível. O Banco Central Europeu, o Banco Central suíço, o Banco Central da Inglaterra, o Banco Central japonês, o Banco Central canadense, o Banco Central australiano e o Banco Central neozelandês estipulam os juros por meio da janela de redesconto, um mecanismo muito mais punitivo para os bancos. 

Já o Banco Central de Cingapura não estipula juros nenhum. Ele apenas controla a taxa de câmbio do dólar cingapuriano em relação a uma cesta formada pelas moedas dos principais parceiros comerciais do país.

Não é o objetivo deste artigo especificar como funcionam os mecanismos utilizados por estes outros bancos centrais; basta dizer que mercado aberto (Brasil e EUA) é dar dinheiro para os bancos em troca de títulos públicos, ao passo que janela de redesconto é empréstimo.

Como aqui os economistas só leem literatura americana, eles adotaram o Fed e suas operações de mercado aberto como modelo a ser seguido.

Consequências

As duas principais consequências deste modelo de política monetária adotada pelo Banco Central brasileiro são o estímulo maior à inflação monetária e ao endividamento das pessoas.

Se o Banco Central está continuamente injetando dinheiro no mercado interbancário para tentar manter os juros próximos a um valor específico, ele irá estimular os bancos a concederem mais empréstimos. Consequentemente, a expansão do crédito — isto é, a expansão da quantidade de dinheiro na economia — será mais intensa e mais errática. 

O gráfico abaixo mostra a evolução da quantidade de títulos públicos em posse do Banco Central. Ele mostra a quantidade de dinheiro que o Banco Central brasileiro já criou e entregou ao sistema bancário com o intuito de manter a taxa básica de juros, a SELIC, próximo do valor por ele estipulado.



Gráfico 11: títulos públicos comprados do sistema bancário pelo Banco Central brasileiro

A consequência desta maciça injeção de dinheiro no mercado interbancário foi a volumosa expansão do volume de crédito na economia. Quando bancos concedem crédito, eles criam dinheiro eletrônico para emprestar a pessoas e empresas. O gráfico abaixo mostra a evolução do crédito concedido pelos bancos ao setor privado da economia (pessoas físicas, indústrias, setor rural, comércio e serviços).



Gráfico 12: total do crédito concedido pelo sistema bancário brasileiro ao setor privado

E a consequência desta expansão do crédito foi a desordenada, errática e colossal expansão da quantidade de dinheiro na economia. O gráfico abaixo mostra a expansão do M2 brasileiro (cédulas e moedas metálicas, depósitos em conta-corrente, depósitos em poupança e depósitos a prazo).



Gráfico 13: evolução do M2 brasileiro

No final, essa política monetária adotada pelo Banco Central que se resume a injetar dinheiro no mercado interbancário para controlar a taxa de juros gerou uma inflação de preços sistematicamente maior do que a vivenciada durante a era do câmbio atrelado. Observe no gráfico abaixo que, ao passo que a inflação de preços apresentava uma tendência claramente declinante até 1998 (sendo que o IPCA daquele ano foi de saudosos 1,65%), houve uma súbita e pronunciada inversão desta tendência a partir de 1999. A tendência de alta apresentada desde 2007 é preocupante.



Gráfico 14: evolução do IPCA acumulado em 12 meses

Porém, ainda pior do que a inflação de preços é o grau de endividamento da população brasileira. E isso era inevitável. Se você cria um sistema monetário que se baseia completamente no controle artificial dos juros e no estímulo ao crédito, o incentivo ao endividamento se torna irresistível. E as consequências podem ser trágicas.

O gráfico abaixo mostra o nível de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul) e os gastos das famílias com o serviço de suas dívidas — ou seja, juros e amortização — em relação à sua renda mensal (linha vermelha). De acordo com as últimas estatísticas, o endividamento das famílias é de quase 43,75% da sua renda acumulada em doze meses, e os gastos das famílias para cumprirem o serviço de suas dívidas é de 21,70% de sua renda mensal.



Gráfico 15: nível de endividamento das famílias em relação à sua renda acumulada nos últimos doze meses (linha azul); gastos das famílias com o serviço de suas dívidas — juros e amortização — em relação à sua renda mensal (linha vermelha).

A título de comparação, como é possível ver no gráfico deste artigo, esta mesma variável (linha vermelha) para os americanos é de apenas 11%.

Tal nível de endividamento levou a uma inadimplência total de R$85 bilhões, um recorde.



Gráfico 16: inadimplência dos brasileiros junto ao sistema financeiro

Conclusão

Eis aí a nossa sinuca de bico. O endividamento e a inadimplência estão em alta, o que reduz a propensão ao consumo futuro e, consequentemente, restringe novos investimentos. A atual contração do setor industrial, que se expandiu acentuadamente durante os anos de 2010 e 2011, época da farra do crédito, é uma consequência inevitável desta nova realidade.

Enquanto estas duas variáveis (endividamento e inadimplência) não forem equacionadas, não há grandes perspectivas para o crescimento econômico. E caso a SELIC mantenha sua trajetória de alta — o que pode se traduzir em um aumento dos juros do crediário —, o endividamento e a inadimplência podem piorar, afetando ainda mais a economia e a situação financeira dos bancos, das empresas e das indústrias.

Adicionalmente, a quantidade de dinheiro na economia (gráfico 13) tem apresentado um acentuado arrefecimento no seu ritmo de crescimento, muito provavelmente porque os bancos estão mais contidos em seu ritmo de concessão de empréstimos — certamente estão mais cautelosos com o nível de endividamento e com a inadimplência. Esse fenômeno foi analisado em detalhes neste artigo.

Essa combinação entre desaceleração do ritmo de crescimento da quantidade de dinheiro na economia e inflação de preços ainda em alta está afetando sensivelmente a renda real das pessoas. Em outras ocasiões em que inflação de preços também estava alta, como em meados de 2011, não havia esta sensação de renda afetada porque a quantidade de dinheiro na economia também estava crescendo acentuadamente, o que gerava um certo alívio. Agora, no entanto, o arranjo é outro: a inflação de preços está em alta, mas a quantidade de dinheiro na economia está crescendo bem mais contidamente, o que gera esta sensação — real — de aperto financeiro. Este atual arranjo dificulta ainda mais a capacidade das pessoas de honrarem suas dívidas. 

E caso os juros aumentem (ou caso desemprego suba), tanto os gastos com o serviço da dívida quanto a inadimplência podem piorar, afetando ainda mais a receita das empresas e o balancete dos bancos.

Tudo isso é uma consequência natural do nosso atual sistema monetário e financeiro, no qual tecnocratas a serviço de políticos populistas — que só pensam em popularidade e em alguns décimos de PIB — estimulam os bancos a expandirem o crédito e a patrocinar o consumismo e o endividamento. Isso pode acabar mal.

Por: Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

AS DEFINIÇÕES CORRETAS DE MONOPÓLIO E CONCORRÊNCIA - E POR QUE A CONCORRÊNCIAS PERFEITA É ILÓGICA

Muito se fala, principalmente nos meios acadêmicos, sobre concorrência e monopólio. O problema é que as definições utilizadas para estes termos estão quase sempre erradas. E se o conceito utilizado é errado, então as políticas sugeridas para lidar com ambos também serão erradas. Pior ainda: gerarão resultados distintos dos esperados.

Concorrência

Comecemos pela concorrência. Seria a concorrência uma 'situação' ou um 'processo'? 

A função empreendedorial é, por sua natureza intrínseca, sempre competitiva. O termo 'competitivo' vem do latim cumpetitio, que significa uma concorrência múltipla de reivindicações sobre um determinado bem ao qual um proprietário deve ser atribuído.

A concorrência é um processo dinâmico que envolve rivalidade. Trata-se de um processo dinâmico em que empreendedores rivalizam entre si para descobrir oportunidades de lucro e se aproveitar delas antes que outros empreendedores o façam. O objetivo de um empreendedor é descobrir, antes dos demais, oportunidades latentes de lucro que existem no processo empresarial. Uma vez descoberta uma oportunidade de lucro, ele terá de atuar em harmonia com outros empreendedores — pois o mercado é uma rede de trocas altamente complexa e interativa — para se aproveitar dela.

Por isso, diz-se que a concorrência é um processo de emulação, um processo em que se busca superar seus rivais, em todos os âmbitos, criando e se aproveitando de oportunidades de lucros antes deles. 

E isso deve ser contrastado ao chamado "modelo de concorrência perfeita". Este é o modelo que a esmagadora maioria dos manuais de economia aponta como sendo o ideal máximo de concorrência. Este modelo enxerga a concorrência como sendo uma situação. É como se a concorrência fosse analisada como uma fotografia instantânea. Os defensores deste modelo são os economistas matemáticos que acreditam na tese de que uma economia sempre pode estar em 'equilíbrio'.

Nos modelos matemáticos de concorrência perfeita, a concorrência é definida como perfeita quando, ao se fazer esta fotografia instantânea de um determinado processo de mercado, observa-se nesta foto — que nada mais é do que uma situação estática, sem nenhum movimento — a existência de múltiplos ofertantes, todos eles vendendo o mesmo produto, com exatamente as mesas características e ao mesmo preço.

Esta situação estática — sem nenhum movimento, sem nenhum processo empreendedorial, em que há uma multiplicidade de ofertantes que fazem exatamente a mesma coisa, que ofertam exatamente o mesmo produto e que vendem a exatamente o mesmo preço — ser classificada de concorrência perfeita representa o ápice do escárnio.

Logo, é fácil observar que estes dois conceitos de concorrência são praticamente opostos: de um lado temos a concorrência como um processo dinâmico de rivalidade, que é o conceito correto de concorrência; de outro temos a burla, que supõe uma concorrência jocosamente chamada de perfeita, que é caracterizada por uma situação em que todos os empreendedores fazem absolutamente o mesmo — e portanto ninguém compete com ninguém.

Disso, surge a inevitável pergunta: como é possível que legiões de economistas catedráticos, de enorme distinção e com impecáveis credenciais acadêmicas, tenham feito do modelo de concorrência perfeita — isto é, desta concepção estática de concorrência — a base de todas as suas teorias? 

É aqui que podemos constatar, novamente, um dos exemplos mais claros do nefasto efeito gerado pelo uso da matemática na ciência econômica. Dado que a ciência econômica nada mais é do que a ciência da ação humana, os fenômenos estudados dependem totalmente da interação voluntária entre bilhões de indivíduos, algo que por definição não pode ser matematizado.

E, justamente para se tornar possível a matematização de algo que é impossível de ser matematizado, a concorrência, que é um processo dinâmico passa a ser analisada como uma situação, um estado de equilíbrio, que é o único matematizável. E o empenho em se aplicar uma metodologia errônea oriunda do mundo das ciências naturais — onda há constantes, não existe tempo e nem criatividade — ao âmbito das ciências sociais protagonizada por seres humanos pode apenas gerar múltiplos erros, dentre eles o mais importante é o fato de se endeusar um conceito tão absurdo quanto o conceito estático de concorrência perfeita.

Monopólio

Assim como ocorre com a concorrência, há também dois conceitos distintos e opostos para monopólio. E cada um destes conceitos de monopólio está de acordo com os respectivos conceitos de concorrência. Ou, falando mais claramente, ao conceito correto de concorrência está relacionado um conceito correto de monopólio, e ao conceito errôneo de concorrência está relacionado um conceito também errôneo de monopólio.

Comecemos por este último. 

O conceito errôneo de concorrência é aquele que vê a concorrência como uma situação, um estado de equilíbrio em que há uma multiplicidade de ofertantes que produzem exatamente o mesmo produto e vendem exatamente ao mesmo preço — ou seja, não há competição nenhuma entre eles. 

E qual o conceito errôneo de monopólio? Se a característica essencial para se classificar uma situação como sendo de concorrência perfeita é que haja um grande número de ofertantes naquela fotografia instantânea, a característica essencial para se caracterizar uma situação como sendo de monopólio é que nesta fotografia instantânea — ou seja, neste estado de equilíbrio — exista apenas um único vendedor.

Do mesmo conceito errôneo de concorrência perfeita surge o conceito errôneo de monopólio, que é visto como uma situação estática em que há apenas um vendedor de um produto. Estes "monopolistas", segundo os economistas matemáticos, podem impor os preços que desejarem, preços artificialmente altos, em prejuízo dos consumidores.

Uma situação intermediária seria a de oligopólio, na qual há apenas alguns poucos vendedores (oligo vem do grego e significa poucos).

Porém, tendo por base a perspectiva da teoria dinâmica dos processos de cooperação social protagonizada por empreendedores, este conceito de monopólio e de oligopólio é completamente sem sentido. Se a definição correta de concorrência é a de um processo dinâmico de rivalidade na qual os empreendedores competem entre si para descobrir, antes dos demais, oportunidades de lucro para se aproveitar delas antes que outros empreendedores o façam, então o conceito correto de monopólio tem de levar em conta se é possível ou não que outros empreendedores possam ter legal acesso a este processo dinâmico de rivalidade.

E a conclusão lógica é que só existe um monopólio genuíno quando o estado sistematicamente impede, por meio da força ou da ameaça de violência, a liberdade de acesso a um determinado mercado ou o livre exercício do empreendedorismo em algum setor da economia.

Logo, o relevante não é se há apenas um ou alguns poucos ofertantes; o relevante é se é legalmente possível ter acesso — se há liberdade de entrada ou não — a um determinado setor da economia. O relevante é analisar se, em decorrência de alguma coerção sistemática do governo — seja por meio de agências reguladoras, de burocracias volumosas ou de decretos —, há algum impedimento ao exercício da livre iniciativa em qualquer setor da economia.

Notem que este conceito de monopólio e oligopólio é radicalmente distinto daquele que é tido pela academia como a definição correta.

Monopólio X Concorrência

Ainda utilizando a metáfora da fotografia, imagine uma sucessão de fotogramas que constituem o celulóide de um filme. Imagine que este filme represente o processo dinâmico da concorrência. Sendo assim, se escolhermos arbitrariamente um fotograma e constatarmos que há apenas um vendedor neste fotograma escolhido, um economista matemático imediatamente gritará "Monopólio! Exploração dos consumidores! O governo tem de intervir e perseguir!" Já um economista da Escola Austríaca, que entende a perspectiva dinâmica do mercado como sendo um processo marcado pelo empreendedorismo, dirá que é irrelevante que em um ou em vários fotogramas apareçam apenas um único vendedor. Pois o que tem de ser levado em consideração não é um fotograma avulso, mas sim todo o processo dinâmico contido neste filme, bem como se, ao longo deste filme, há liberdade de entrada nos mercados, isto é, se há um livre exercício do empreendedorismo.

Se ao longo do processo dinâmico houver liberdade de entrada nos mercados, então existe concorrência no sentido dinâmico. É irrelevante se, em determinados momentos, existe no mercado apenas um ofertante de bens e serviços. 

Mais ainda: se em um determinado momento existe apenas um ofertante, mas há liberdade de entrada neste mercado, então, o fato de existir apenas um ofertante, longe de ser uma comprovação de que há monopólio e exploração dos consumidores, indica apenas que tal ofertante está satisfazendo os desejos e necessidades de seus consumidores de forma bastante eficaz.

Falando de outra maneira: se o processo dinâmico é livre e os empreendedores participam dele emulando-se e concorrendo entre si, então, se em um determinado momento existir somente um empreendedor, isso significa que ele preponderou justamente por ter se mostrado mais apto que seus concorrentes a atender as necessidades dos consumidores.

Logo, a existência de uma única empresa em um determinado setor econômico cuja entrada seja livre para os concorrentes não é prejudicial para os consumidores; significa apenas que esta empresa está ofertando um bom serviço para os consumidores. Havendo uma ausência de barreiras legais para se entrar no mercado, há concorrência. Se o mercado é servido por uma única empresa, isso não configura monopólio. A concorrência existe a partir do momento em que o estado não proíbe legalmente outras empresas de entrar no mercado. 

Em um âmbito de plena liberdade empreendedorial, existir apenas um ofertante significa que este soube como atender aos desejos dos consumidores de forma mais eficaz e satisfatória do que todos os outros. No livre mercado, não há direitos adquiridos. 

E exatamente por não haver direitos adquiridos, um empreendedor jamais pode se acomodar no livre mercado. O fato de ele haver triunfado hoje não significa que ele continuará triunfando amanhã. Se ele deixa de estar alerta e se torna menos perspicaz que seus concorrentes, ou se ele deixa de satisfazer as necessidades de seus consumidores de maneira satisfatória e a preços baixos, surgirá em pouco tempo um exército de concorrentes — reais e potenciais — que colocará em perigo sua situação de predomínio. Estes concorrentes tentarão lucrar em cima deste seu desleixo.

A IBM, por exemplo, chegou a deter 70% do mercado de computadores. Converteu-se em uma empresa mastodôntica e arrogante. Quando lhe apresentaram um projeto sobre computadores portáteis, de uso pessoal, ela desprezou, dizendo que era besteira. Como resultado desta desconsideração para com as genuínas demandas dos consumidores, esta empresa outrora tão rica e poderosa quase foi à bancarrota.

Portanto, é irrelevante — de uma perspectiva dinâmica — que em uma fotografia apareça apenas um único ofertante. O próprio processo dinâmico faz com que, ao amanhecer de cada dia, este ofertante tenha de se reinventar diariamente. Caso não o faça, surgirão concorrentes que se apropriarão de uma fatia de seu mercado.

Por: Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor da monumental obra Money, Bank Credit, and Economic Cycles.

A POLÍTICA, SEGUNDO AFIF

"Ela não criou esse ministério para o PSD. O convite aconteceu e foi aceito por afinidade temática. Esse tema é a minha vida e é prioridade do governo." Guilherme Afif Domingos é um brincalhão, mas tenho a leve impressão de que, enquanto ele goza da cara dos eleitores, a presidente e o presidente emérito gozam da cara dele. No dia em que o ministro número 39 oferecia essa cândida explicação, o ministro número um, Gilberto Carvalho, imagem holográfica de Lula da Silva, preferia falar a verdade - ou, ao menos, parte dela: "O partido que ele representa, vindo apoiar nosso governo, ampliando nossa base, é importante". Todos sabem que a "causa da microempresa" é só um pretexto para a transação que conduziu Afif à Esplanada dos Ministérios. Contudo nem mesmo o sincero Carvalho disse que a motivação principal do convite não se encontra nos minutos de televisão do "partido que ele representa". Afif está lá, antes de tudo, para provar uma tese sobre a política e a representação.


"O senhor já fez muitas críticas ao PT. Chegou a dizer que Dilma não tinha biografia para o cargo...". Um conceito de política emergiu na resposta do novo ministro: "As críticas foram feitas na conjuntura de campanha política. Não teve nada de crítica pessoal, foi tudo na retórica de campanha". Desde o século 16, os governantes europeus aprenderam que, em nome de seus interesses vitais, a direção das esferas das finanças, do Direito e da guerra deve ser entregue a servidores especializados. O 39.º ministério de Dilma, que não se inscreve em nenhuma dessas três esferas estratégicas, é uma ferramenta a serviço de interesses menores. A missão de Afif, concluída antes de seu primeiro dia no gabinete, era produzir uma definição de política. Política, segundo Afif, é a arte de iludir os eleitores. O governo de Dilma queria dizer isso, mas por uma voz terceirizada.

À primeira vista, Afif não inova quando declara que, na "política", as palavras carecem de sentido. Afinal, Lula da Silva, seu mestre adventício, não qualificou como "bravatas de oposição" o discurso petista anterior à Carta ao Povo Brasileiro? O paralelo, embora sedutor, não é pertinente. Max Weber esclareceu a distinção entre a "ética da convicção" e a "ética da responsabilidade". A primeira se subordina ao imperativo categórico da lei moral e se regula por valores que o político almeja pôr em prática. A segunda parte de uma análise sobre o bem comum e se regula pelo cálculo realista sobre as consequências comparativas de diversas alternativas de ação. Os petistas têm o direito de justificar a Carta ao Povo Brasileiro à luz da "ética da responsabilidade", mas é impossível associar a aventura ministerial afifiana a qualquer tipo de ética. Sua "responsabilidade" não tem por referência os interesses públicos, mas as conveniências partidárias, e sua única "convicção" é que convicções políticas não passam de estorvos descartáveis.

Afif não é, nem de longe, um pioneiro do adesismo ou da abjuração. Roberto Mangabeira Unger, um predecessor recente, classificou o governo Lula como "o mais corrupto" da História do Brasil menos de dois anos antes de aceitar o convite do presidente para ocupar uma cadeira ministerial também inventada "por afinidade temática". Unger beijou a mão de Lula da Silva em sentido figurado; Afif beijou literalmente a mão de Dilma. A diferença, porém, está no lugar ocupado por cada um deles no palco da democracia representativa.

"Você quer que eu renuncie a um cargo para o qual fui eleito? Estão querendo me cassar? Eu não fui nomeado, fui eleito." A indignada resposta afifiana escancara a diferença. O intelectual de Harvard que sonhou converter-se em Rasputin de um salvador da Pátria só representava a si mesmo; o vice-governador paulista que corre para ocupar um puxadinho na Esplanada dos Ministérios representa milhões de eleitores. No momento em que abjura, ele não trai apenas suas duvidosas convicções, mas o princípio da representação democrática. De fato, é o seu gesto que cassa os direitos de seus eleitores.

O ministro do puxadinho, que sempre se exibiu como um liberal, serve-nos agora uma oportuna tese política - e o faz assimilando a palavrinha "elite", cara à linguagem de Lula da Silva. "Esse negócio de ideologia está na imprensa e em setores da elite. Hoje a sociedade é pragmática. Essa questão de direita e esquerda é de um momento do século passado." A descoberta filosófica afifiana, um fruto dos efeitos iluminadores do convite presidencial, tem oportunas implicações práticas: "Hoje o proletário sonha em ser burguês. Isso é algo que me une ao Lula". O "sonho do proletário" - eis o impulso que empurra o PSD rumo ao Planalto!

A abjuração afifiana tem escassa importância. Ela serve, porém, como pista para desvendar a paisagem degradada do sistema político brasileiro. Aécio Neves criticou a presidente por praticar um "governismo de cooptação". A expressão diz algo correto, mas periférico, sobre a iniciativa presidencial. De fato, a cooptação do PSD almeja mais que arruinar as oposições: com a finalidade de se perpetuar no poder, o lulopetismo semeia a descrença nas virtudes da pluralidade política e da divergência democrática. Seu êxito nesse campo não se deve, contudo, aos poderes encantatórios de Lula da Silva ou Dilma Rousseff, mas à falência política do PSDB.

O candidato Aécio Neves não estendeu suas críticas ao próprio Afif, a Gilberto Kassab e ao PSD, o primeiro partido brasileiro criado com o propósito explícito de se oferecer à cooptação. O governador Geraldo Alckmin preferiu o curioso caminho de parabenizar a presidente pela escolha de seu vice como novo ministro. No horizonte dos dois tucanos nada existe além das fronteiras dos palácios governamentais, Casas legislativas e aparelhos da administração pública. Eles perderam o contato com as pessoas comuns.
Por: Demétrio Magnoli   O Globo

terça-feira, 28 de maio de 2013

FALÁCIAS SOBRE A LUTA ARMADA NA DITADURA

Militantes de grupos de luta armada criaram um discurso eficaz. Quem questiona “vira” adepto da ditadura. Assim, evitam o debate


A LUTA armada, de tempos em tempos, reaparece no noticiário. Nos últimos anos, foi se consolidando uma versão da história de que os guerrilheiros combateram a ditadura em defesa da liberdade. Os militares teriam voltado para os quartéis graças às suas heróicas ações. Em um país sem memória, é muito fácil reescrever a história. É urgente enfrentarmos essa falácia. A luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, seqüestros, ataques a instalações militares e só. Apoio popular? Nenhum. O regime militar acabou por outras razões.

Argumentam que não havia outro meio de resistir à ditadura, a não ser pela força. Mais um grave equívoco: muitos dos grupos existiam antes de 1964 e outros foram criados logo depois, quando ainda havia espaço democrático (basta ver a ampla atividade cultural de 1964-1968). Ou seja, a opção pela luta armada, o desprezo pela luta política e pela participação no sistema político e a simpatia pelo foquismo guevarista antecedem o AI-5 (dezembro de 1968), quando, de fato, houve o fechamento do regime. O terrorismo desses pequenos grupos deu munição (sem trocadilho) para o terrorismo de Estado e acabou usado pela extrema-direita como pretexto para justificar o injustificável: a barbárie repressiva.

Todos os grupos de luta armada defendiam a ditadura do proletariado. As eventuais menções à democracia estavam ligadas à “fase burguesa da revolução”. Uma espécie de caminho penoso, uma concessão momentânea rumo à ditadura de partido único. Conceder-lhes o estatuto histórico de principais responsáveis pela derrocada do regime militar é um absurdo. A luta pela democracia foi travada nos bairros pelos movimentos populares, na defesa da anistia, no movimento estudantil e nos sindicatos. Teve na Igreja Católica um importante aliado, assim como entre os intelectuais, que protestaram contra a censura. E o MDB, nada fez? E seus militantes e parlamentares que foram perseguidos? E os cassados?

Quem contribuiu mais para a restauração da democracia: o articulador de um ato terrorista ou o deputado federal emedebista Lisâneas Maciel, defensor dos direitos humanos, que acabou sendo cassado pelo regime militar em 1976? A ação do MDB, especialmente dos parlamentares da “ala autêntica”, precisa ser relembrada. Não foi nada fácil ser oposição nas eleições na década de 1970.

Os militantes dos grupos de luta armada construíram um discurso eficaz. Quem questiona é tachado de adepto da ditadura. Assim, ficam protegidos de qualquer crítica e evitam o que tanto temem: o debate, a divergência, a pluralidade, enfim, a democracia. Mais: transformam a discussão política em questão pessoal, como se a discordância fosse uma espécie de desconsideração dos sofrimentos da prisão. Não há relação entre uma coisa e outra: criticar a luta armada não legitima o terrorismo de Estado.

Precisamos romper o círculo de ferro construído, ainda em 1964, pelos inimigos da democracia, tanto à esquerda como à direita. Não podemos ser reféns, historicamente falando, daqueles que transformaram o adversário, em inimigo; o espaço da política, em espaço de guerra.

Um bom caminho para o país seria a abertura dos arquivos do regime militar. Dessa forma, tanto a ação contrária ao regime como a dos “defensores da ordem” poderiam ser estudadas, debatidas e analisadas. Parece, porém, que o governo não quer. Optou por uma espécie de “cala-boca” financeiro. Rentável, é verdade.

Injusto, também é verdade. Tanto pelo pagamento de indenizações milionárias a privilegiados como pelo abandono de centenas de perseguidos que até hoje não receberam nenhuma compensação. É fundamental não só rever as indenizações já aprovadas como estabelecer critérios rigorosos para os próximos processos. Enfim, precisamos romper os tabus construídos nas últimas quatro décadas: criticar a luta armada não é apoiar a tortura, assim como atacar a selvagem repressão do regime militar não é defender o terrorismo.

O pagamento das indenizações não pode servir como cortina de fumaça para encobrir a história do Brasil. Por que o governo teme a abertura dos arquivos? Abrir os arquivos não significa revanchismo ou coisa que o valha.

O desinteresse do governo pelo tema é tão grande que nem sequer sabe onde estão os arquivos das Forças Armadas e dos órgãos civis de repressão.
Mantê-los fechados só aumenta os boatos e as versões fantasiosas. Por: Marco Antonio Villa

DEMOCRACIA É EDUCAÇÃO

Todo mundo fala em democracia e educação, sem perceber que as palavras têm conotações especiais. No Brasil, a palavra educação não significa somente instrução, mas polidez, calma e delicadeza. O "mal-educado" ou o "ignorante" não é quem não tem saber, mas é o "grosseirão" inclinado ao gesto brusco ou à violência. O "bem-educado" é aquele que - calado consciente e superior - espera a sua vez.


Fazemos uma clara distinção entre o "bem" e o "mal-educado": o fino, o grosso, o sensível e o boçal. Essa representação enlaça o par "educação e democracia". Pois a voz do povo mostra uma dualidade hierárquica. No plano superior, ficam os "bem-educados" (gente instruída e fina). No inferior, estão não apenas os não instruídos, mas os mal-educados. Embaraçamos a ignorância definidora do não saber com a grosseria - esse avatar atribuído aos afoitos e, por extensão preconceituosa, aos subalternos. Seria isso um resíduo explosivo de um passado que combinou numa equação rara, aristocracia branca e escravidão negra?

Imagine o seguinte. Numa festa, chega a cascata de camarões. Os "mal-educados" avançam sobre os deliciosos crustáceos e dão conta do prato. Atropelando a fila, locupletam-se e - porque são "mal-educados" - "pegam" o que podem para seus maridos e filhinhos. Os "bem-educados" olham a cena com o horror dos semissuperiores, confirmando como a sua boa "educação" - que segue princípios igualitários gerais, como o de esperar pelo seu turno, impede tal conduta. Eles confirmam sua "polidez", mas verificam que não comendo os deliciosos camarões são bobocas ou babacas porque simplesmente deixam passar uma oportunidade que era de todos, mas que foi aproveitada pelos mais espertos: os "mal-educados!".

Moral: o conceito de "educação" tem que ser entendido dentro de um sistema sócio-histórico para poder ser aplicado com eficiência. Um dos problemas das escolas públicas numa sociedade com uma concepção hierárquica de educação é que o ensino pode ser bom, mas o ambiente seria marcado pela "má-educação" (significando ausência de "boas maneiras") dos alunos. Sem perceber que, entre nós, a "educação" vai além da instrução, nada fizemos para introduzir uma "educação para a igualdade" e para uma cidadania sem favores e sem os usuais "você sabe com quem está falando?".

No Brasil, uma definição igualitária de educação como um instrumento universal de saberes, é filtrada. Há um toque de superioridade no "ser educado" que aristocratiza paradoxalmente o processo, tornando-o exclusivo. Neste sistema, a instrução seria distinta da "boa educação". Um engenheiro pode ser competente, mas mal-educado. E isso pode fazer com que prédios e pontes sejam construídos por linhas tortas.

Não pode haver projeto real de democracia igualitária, fundada no liberalismo meritocrático e competitivo, sem um sistema educacional universal que busque a todo custo atingir a todos.

Mas como realizar isso sem abrir o embrulho das ideias preconcebidas sobre "educação"? Como, então, reformar esse sistema, tornando-o uma força de internalização de igualdade e de democracia? Convenhamos que para o antropólogo de Marte que escreve essa coluna, isso não deve ser fácil em escolas nas quais as crianças tratam seus mestres por "tias". Ora, o primeiro espaço público que todos experimentamos de modo profundo é justamente o da escola. O drama que testemunhei no rito de passagem do "primeiro dia de aula" dos meus filhos e netos, fala eloquentemente dessa transição dos papéis desempenhados na casa, na qual se é "filho", "sobrinho" e "netinho"; para o papel de "alunos" sem nenhum privilégio, exceto - é claro - quando a "boa educação" interfere, fazendo com que seus mestres os tratem como "sobrinhos", interrompendo uma mudança crítica.

"Ele é filho do ministro" -, disse a professora. Não vai entrar na fila da merenda junto com os outros. Ademais, ele traz a merenda de casa!"

Esse diálogo mostra como uma educação para a igualdade é muito diversa de uma educação para as boas maneiras. Do mesmo modo, e pela mesma lógica, quando se observa os poderes da república tentando uma hierarquia na qual o Executivo seria o mais importante e o Judiciário estaria submetido ao Legislativo, vê-se uma recusa da educação. Da educação como um sistema destinado a estabelecer para cada poder limites e papéis autoimpostos. Essa capacidade de conter-se voluntariamente dizendo não a si mesmo. Esse apanágio do liberalismo que começamos a descobrir lentamente, como insiste o meu lado otimista. Por isso, democracia não depende apenas de educação, como se diz a todo momento. Ela é, sobretudo, um processo penoso de aceitar discordâncias. Democracia é educação.
Por: Roberto DaMatta O Estado de SP

sábado, 25 de maio de 2013

SER CONSERVADOR




Michael Oakeshott

Ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o fato ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica.

Assim sendo, as mudanças pequenas e lentas serão, para ele, mais toleráveis que as grandes e repentinas, e valorizará consideravelmente toda a aparência de continuidade.

A única forma que temos de defender a nossa identidade (ou seja, de nos defendermos a nós mesmos) contra as forças adversas da mudança encontra-se no conhecimento da nossa experiência; apoiando-nos naquilo que mostre maior firmeza, aderindo àqueles costumes que não estejam imediatamente ameaçados e assimilando assim o novo sem nos tornarmos irreconhecíveis para nós mesmos

É por algum subterfúgio do conservadorismo que todas as pessoas ou povos forçados a sofrer uma mudança notável evitam a desonra da extinção.

Para além disso, ele está consciente de que nem toda a inovação constitui verdadeiramente um avanço.

Ainda mais, mesmo quando a inovação representar um progresso convincente, ele analisará duas vezes os argumentos que a justificarem antes de a aceitar.

Existe a possibilidade de que os benefícios que se obtiverem sejam maiores que os previstos, mas existe também o risco de estes serem contrabalançados por mudanças para pior.

A inovação implica uma perda certa e um ganho possível. Por conseguinte, cabe ao hipotético reformador provar ou demonstrar que pode esperar-se que a mudança seja, em última instância, benéfica.

Consequentemente, ele prefere as inovações pequenas e limitadas às grandes e indefinidas. Em quarto lugar, ele prefere o passo lento ao rápido, e pára para observar as consequências atuais e fazer os ajustamentos necessários.

O indivíduo de temperamento conservador pensa que não deve abandonar um bem conhecido por outro desconhecido. Não gosta do perigoso e difícil; não é aventureiro; não o atrai navegar por mares desconhecidos; para ele não há qualquer prazer em encontrar-se perdido, aturdido ou naufragado.

O que os outros vêem como timidez, ele qualifica como prudência racional; o que os outros interpretam como sendo inatividade, para ele constitui uma inclinação para desfrutar em vez de explorar. É uma pessoa cautelosa e tende a indicar a sua aprovação ou desaprovação não de forma categórica, mas prudente.

Sempre que uma identidade firme é alcançada, ou sempre que a situação dessa identidade é precária, é a disposição conservadora que triunfa. Por outro lado, a atitude adolescente é, amiúde, predominantemente temerária e experimental; quando somos jovens, não há nada que nos pareça mais atrativo que correr riscos.

A relação entre amigos é sentimental, não utilitária; o vínculo é de familiaridade, não de utilidade; a atitude implícita é conservadora, não “progressista”. E o que é fundamentalmente verdade na amizade não é menos verdade em outras experiências – o patriotismo, por exemplo, ou a simples conversa -, cada uma das quais exige uma atitude conservadora como uma precondição para o seu gozo.

Consequentemente, todas as atividades em que o que se procura é o agrado resultado não do sucesso do intento, mas da familiaridade desta, constituem símbolos da postura conservadora.

Quem vê na pessoa de disposição conservadora (inclusivamente naquilo a que se chama vulgarmente de “sociedade progressista”) um indivíduo solitário que nada contra a esmagadora corrente das circunstâncias só pode ter ajustado os seus binóculos de modo a ignorar um largo campo da ação humana.

De fato, não me parece que o conservadorismo esteja necessariamente relacionado com alguma crença particular acerca do universo, do mundo ou da conduta humana em geral. Prende-se, isso sim, com crenças sobre a atividade de governar e os instrumentos do governo, e é em crenças nestes tópicos, e não em outros, que pode ser compreendido.

Naturalmente, nem todos esses sonhos são exatamente iguais; mas têm em comum o fato de que cada um deles representa uma visão das circunstâncias humanas em que as ocasiões de conflito foram eliminadas, uma visão em que a atividade humana aparece, assim, coordenada e caminhando numa só direção em que todos os recursos são utilizados na sua totalidade. Entendem estas pessoas que a função do governo é impor, aos seus súbditos, as circunstâncias humanas dos seus sonhos. Governar é transformar um sonho privado numa forma de vida pública e obrigatória. Deste modo, a política passa a ser um encontro de sonhos e, na atividade política, o governo agarra-se a esta interpretação da sua função, recebendo, por isso, os instrumentos que para ela são apropriados.

A imagem do governante deve ser a de um árbitro cuja função consiste em aplicar as regras do jogo, ou a de um moderador que dirige um debate sem participar nele.

Em resumo, a função que se atribui ao governo é a da resolução de alguns dos conflitos que são gerados por essa variedade de crenças e atividades; preservar a paz sem impor uma proibição à escolha ou à diversidade implícita do seu exercício; e sem impor uma uniformidade substantiva, a não ser mediante a aplicação de regras gerais de procedimento a todos os súditos de igual modo.

Em síntese, os segredos do bom governo provêm do protocolo, não da religião ou da filosofia; no gozo de um comportamento ordeiro e pacífico, não na busca da verdade ou da perfeição.

O guardião deste ritual será o governo, e as regras que o impõem serão “a Lei”.

Governar não tem a ver com o bem ou com o mal moral, e o seu objetivo não é fazer homens bons ou melhores; não vai buscar justificação à “perversão natural da humanidade”, é algo necessário apenas devido à tendência que há para se ser extravagante; a sua função [do governo] consiste em manter os seus  súbditos em paz uns com os outros nas atividades em que escolheram procurar a felicidade.

Por conseguinte, o conservador nada terá a ver com as inovações que se destinem, meramente, a satisfazer situações hipotéticas; optará por empregar a regra que tem a inventar uma nova; achará conveniente atrasar a modificação de regras até que seja claro que a alteração de circunstâncias que a justifica veio para ficar. Suspeitará de propostas de mudança que vão além do que a situação exige; dos governantes que peçam poderes extraordinários para a consecução de grandes modificações e cujas palavras estejam relacionadas com banalidades como “o bem público” ou a “justiça social”; e dos Salvadores da Sociedade que abracem a armadura e procurem dragões para matar.

O conservador entende que a função do governo não consiste em alimentar paixões e dar-lhe novos objetivos com que possam alimentar-se, mas sim em introduzir um ingrediente de moderação nas atividades de pessoas demasiado apaixonadas; limitar, desencorajar, pacificar e reconciliar; não atiçar o fogo do desejo, mas sufocá-lo. E tudo isto não porque a paixão seja um vício e a moderação uma virtude, mas porque a moderação é indispensável se se quiser evitar que homens apaixonados sejam aprisionados por conflitos que os frustrem mutuamente.

Um árbitro que é ao mesmo tempo um dos jogadores não é um árbitro; as regras acerca das quais não somos conservadores não são regras, mas incitamentos à desordem; a união entre sonhos e governo gera tirania.

A política é uma atividade inadequada para os jovens, não devido aos seus vícios mas sim devido ao que eu considero serem as suas virtudes.

Os tempos de juventude de toda a gente são um sonho, uma loucura deliciosa, um doce solipsismo. Nesse tempo, nada tem uma forma fixa, um preço fixo; tudo é possível e vive-se numa felicidade a crédito. Não há obrigações a respeitar, não há contas a fazer. Nada há que se especifique de antemão; cada coisa é o que se pode fazer dela. O mundo é um espelho em que procuramos o reflexo dos nossos próprios desejos. A tentação das emoções violentas é irresistível. Quando somos jovens, não estamos dispostos a fazer concessões ao mundo; nunca sentimos o contrapeso de algo nas nossas mãos - a menos que seja um bastão de críquete.

* Os trechos acima pertencem ao ensaio "Ser Conservador", de Michael Oakeshott, que pode ser lido na íntegra aqui. Meu trabalho foi apenas pinçar o que considerei as melhores passagens para quem tem menos tempo disponível. Aos demais, recomendo a leitura completa.

Marilena Chauí te odeia!


Rodrigo Constantino, para o Instituto Liberal

sexta-feira, 24 de maio de 2013

FSP SE DOBRA À HIPOCRISIA DA IMPRENSA EUROPÉIA

Leio na Folha de São Paulo de hoje:

Jovens da periferia queimam carros na capital da Suécia

Centenas de jovens da periferia de Estocolmo, capital da Suécia, incendiaram carros, destruíram vitrines de lojas e incendiaram uma escola, uma enfermaria e um centro cultural no quarto e mais violento dia de protestos contra a ação da polícia.

Agentes de segurança prenderam sete suspeitos na capital. Na cidade de Malmö, no sul do país, pelo menos dois carros foram incendiados, de acordo com policiais.

A onda de vandalismo começou no domingo, seis dias depois de operação policial que resultou na morte de um homem de 69 anos no bairro de Husby, em Estocolmo.

Segundo a imprensa sueca, o idoso era um imigrante com problemas psíquicos e estava num apartamento com sua mulher quando foi baleado e morto pelos policiais - a polícia disse que ele era "europeu", mas não especificou sua nacionalidade.

Desde há muito venho denunciando – e suspeito que sou o único a denunciar – a mania politicamente correta de boa parte da imprensa européia de omitir nome, origem e etnia de criminosos quando estes são árabes ou negros. Na França, por exemplo, para identificar os árabes e negros que queimam milhares de carros nos réveillons, os jornais usam um eufemismo divino, les jeunes. Os jovens. Se for cidadão nacional, de longa estirpe e boa cepa, o nome vai para a primeira página dos jornais. Imigrante, jamais. Leio usualmente jornais da Suécia, França, Espanha e Itália. Nunca li alguma determinação escrita sobre este silêncio. A censura é tácita, sem diploma legal algum que a determine. Está no bestunto dos jornalistas.

A própria polícia sueca participou desta hipocrisia, ao afirmar que o homem morto era europeu. Até pode ser que tivesse passaporte sueco. Mas europeu não era. A morte de um europeu pela polícia não provoca tais comoções. Claro que se tratava de um imigrante árabe. Os jovens da periferia - dos quais fala pundonorosamente aFolha - são obviamente filhos de árabes ou negros muçulmanos de segunda ou terceira geração.

Na Suécia, a imprensa está proibida de noticiar a cor da pele ou etnia dos agressores. Em 2010, uma sueca de dezoito anos foi violada e torturada por quatro negros muçulmanos, que foram identificados como “dois suecos, um finlandês e um somali”. Ora, eram todos imigrantes originários da Somália.

Alguém ainda lembra dos distúrbios de 2011 no Reino Unido? Certamente não. A memória das gentes já não mais alcança dois anos. Pois em agosto daquele ano, oTime Magazine dizia que nunca tantos incêndios devastaram Londres tão intensamente ao mesmo tempo desde a Segunda Guerra Mundial. Tudo começou com um tumulto no bairro multirracial (atenção à palavrinha) de Tottenham, ao norte da cidade, no sábado passado. O estopim teria sido a morte de Mark Duggan, 29 anos, que tinha quatro filhos e trabalhava como motorista de um serviço alternativo de táxis. Segundo a polícia, ele foi morto após atirar num policial. Segundo a família de Duggan, esta versão é ridícula. Mas as investigações provaram que Duggan estava armado. 

Estivesse ou não armado, sua morte não poderia ser pretexto para vandalismo, incêndios e saques. Que se espalharam pelos demais bairros de Londres, como Croydon, Peckham e Lewisham, no sul da cidade. Vários grupos de saqueadores agiam nas ruas de Hackney (leste), Clapham (sul), Camden (norte) e Ealing (oeste). Os distúrbios se esparramaram por outras cidades, como Birmingham, Liverpool e Bristol. Segundo as companhias de seguro, os prejuízos apenas nas três primeiras noites de distúrbios atingiram os cem milhões de libras. 

O Serviço de Polícia Metropolitana de Londres descreveu a violência daquela noite como a pior da qual se tem lembrança. Dezesseis mil policiais foram às ruas e fizeram mais de 200 detenções durante a noite, elevando o total para quase 700 desde o início do tumulto. Quarenta e quatro policiais sofreram ferimentos naquela segunda-feira e um policial quebrou vários ossos após um carro ter avançado contra ele. 

Na ocasião, li vários jornais da imprensa nossa e internacional, tentando informar-me sobre a bagunça. Em todos, a única informação que encontrei sobre os responsáveis é que eram jovens. Ora, isto é muito vago. Que tipo de jovens? A que países ou etnias pertencem? Não acredito que britânicos de souche saiam a incendiar suas cidades.

No caso das depredações de Estocolmo, a ministra da Justiça da Suécia, Beatrice Ask, tentou acalmar os ânimos: "Nós entendemos por que os moradores de Husby e dos outros subúrbios estão preocupados e furiosos. Exclusão social é a causa de muitos problemas sérios", declarou. 

São os moradores de Husby, segundo a ministra. O problema é a exclusão social e não o ódio dos cabeças de toalha aos europeus. A polícia atribuiu os ataques a "gangues" e disse que as operações continuarão. Proibido falar em origem ou etnia dos vândalos.

Lê-se no Dagens Nyheter:

O tumulto começou quando os jovens atearam fogo em carros na Husby, um subúrbio no extremo norte de Estocolmo. Testemunhas afirmam que pelo menos 100 veículos na área estavam em chamas. Outro incêndio ocorreu em uma garagem próxima, resultando na evacuação do prédio. Cerca de 50 moradores foram atendidos e abrigados em ônibus que estavam por perto.

O centro comercial local também foi vandalizado e três policiais ficaram feridos no tumulto. A polícia estima que os distúrbios envolvidos em algum lugar entre 50 e 60 jovens.

Estas queimas de carro se tornarão corriqueiras nas capitais européias. Para a imprensa do continente, dominada pelo politicamente correto, muçulmano agora é sinônimo de jovem. Que os jornais europeus se dobrem ante o Islã até que se entende, há muito o continente vem se rendendo à invasão dos cabeças-de-toalha. Se se entende, não se justifica. 

Mas a Folha é um jornal de São Paulo e essa guerra não é nossa. Não precisava fazer papel tão servil. Por: Janer Cristaldo