Representando o País numa das maiores feiras de livro do mundo, escritor critica dolosamente o “capitalismo selvagem” e propõe em seu lugar uma espécie de “humanismo selvagem”.
Luiz Ruffato ainda fez propaganda escancarada do petismo na Feira do Livro de Frankfurt.
A presença do Brasil na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, remete, ainda que de forma diametralmente oposta, a um rejeitado clássico do ensaísmo brasileiro, o livro “Porque Me Ufano do Meu País”. Lançado em 1900 pela prestigiosa Garnier, que publicava a nata da literatura brasileira, especialmente Machado de Assis, esse livro é de autoria do poeta, romancista, dramaturgo e ensaísta Afonso Celso de Assis Figueiredo Júnior (1860-1938), o conde Afonso Celso, que entrou para a história da literatura brasileira de forma pejorativa. De seu livro é que provém o termo “ufanismo”, para caracterizar o patriotismo deslumbrado e acrítico, que fantasia grandezas que o País não tem.
Afonso Celso colocou o ponto final nessa sua mais conhecida obra em 8 de setembro de 1900, em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Era um homem de 40 anos, com vários livros publicados, muitos deles de poesia, e uma carreira política no Império, como deputado por Minas Gerais. O autor dedicou a obra a seus dois filhos, como forma de celebrar os 400 anos do Descobrimento do Brasil.
“Porque Me Ufano do Meu País” alcançou quatro edições de imediato, numa prova de que suscitou polêmica. No livro, o autor apresenta onze motivos para um brasileiro ufanar-se do Brasil: a sua grandeza territorial; a sua beleza; a sua riqueza; a variedade e amenidade de seu clima; a ausência de calamidades; a excelência dos elementos que entraram na formação do tipo nacional; os nobres predicados do caráter nacional; o fato de o Brasil nunca ter sofrido humilhações nem nunca ter sido vencido; o procedimento cavalheiroso e digno para com os outros povos; as glórias a colher nele e a sua história.
O conde começa por negar que o Brasil tenha sido colonizado por homens degenerados e diz que os portugueses se empenharam em colonizar a nova terra, mandando para cá muitos nobres, ainda que tenham mandado também alguns punidos com o degredo. “Mas, aceitemos a origem humilde da nossa gente. Que resulta daí de desairoso?”, indaga. “Ao contrário, glória nos advém de havermos chegado ao que chegamos, partindo de tão baixo. A Austrália, hoje prospérrima, começou como presídio de criminosos. O berço de Roma foi um covil de bandidos, capitaneados por um enjeitado que uma loba amamentara”, argumenta.
Antecipando Gilberto Freyre (1900-1987), Afonso Celso louva a mestiçagem brasileira, resultante da confluência de três elementos: “o selvagem americano, o negro africano e o português”. E afirma, de modo taxativo: “Qualquer daqueles elementos, bem como o resultante deles, possui qualidades de que nos devemos ensoberbecer. Nenhum deles fez mal a humanidade ou a deprecia”. E observa que, na época, entre as nações latinas, o Brasil só estava atrás da França e da Itália.
Afonso Celso enumera dez qualidades do brasileiro, começando pelo “sentimento de independência, levado até à indisciplina”. E cita a hospitalidade, a afeição à ordem, a paciência, a doçura, a caridade, a tolerância, a honradez e a acessibilidade “que degenera, às vezes, em imitação do estrangeiro”. O brasileiro pintado pelo autor de “Porque Me Ufano de Meu País” não é um forte, como o sertanejo de Euclides da Cunha, mas um santo: “A estatística dos crimes depõe muito em favor dos nossos costumes. Viaja-se pelo sertão, sem armas com plena segurança, topando sempre gente simples, honesta, serviçal” – afirma.
Para os olhos do Brasil de hoje, assolado pela corrupção, Afonso Celso beira o surrealismo ao afirmar: “Os homens de Estado costumam deixar o poder mais pobres do que nele entram. Magistrados subalternos, insuficientemente remunerados, sustentam terríveis lutas obscuras em prol da justiça, contra potentados locais. Casos de venalidade enumeram-se raríssimos, geralmente profligados. (...) Quase todos os homens políticos brasileiros legam a miséria às suas famílias. Qual o que já se locupletasse à custa do benefício publico?”, indaga, numa piada involuntária, ao menos quando lido no Brasil do mensalão.
Do ufanismo ao escarnecimento
Mesmo reconhecendo-se que a corrupção material tende a ser um fenômeno moderno, fruto direto do processo de institucionalização do Estado, não dá para crer que os contemporâneos de Afonso Celso fossem assim tão probos. Ou eles não seriam contemporâneos de Machado de Assis e Lima Barreto, sutil e ferrenho críticos, respectivamente, da elite brasileira. Mas também não parece plausível o Brasil descrito nos livros didáticos atuais – ou seríamos todos ladrões, homicidas e estupradores. Hoje, há uma espécie de obra aberta sendo escrita coletivamente pelos formadores de opinião, cujo título poderia ser: “Porque Escarneço do Meu País”.
E não se trata de escarnecer do País baseado em fatos – como os 63 mil homicídios anuais e os recorrentes escândalos de corrupção – mas, sim, escarnecê-lo com base em mitologias, mediante a invenção de um passado tenebroso que transforma todos os brasileiros em filhos da monstruosidade. Foi o que fez, por exemplo, o escritor mineiro Luiz Ruffato, um dos 70 representantes oficiais do Brasil na Feira de Frankfurt, comitiva criticada pelo escritor Paulo Coelho, que, diante do discurso engajado de Ruffato, parece ter razão.
Na tarde de terça-feira, 8, ao discursar na abertura da participação brasileira na Feira de Frankfurt, Luiz Ruffato foi ovacionado pelos presentes. Começou indagando a si mesmo: “O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças”.
Estilisticamente, o discurso foi digno de Luiz Ruffato, sem dúvida um bom escritor, em que pese eu não suportar as invencionices de “Eles Eram Muitos Cavalos” (Editora Boitempo, 2001), sua mais festejada obra. Mas, quanto ao conteúdo, o discurso de Ruffato deve ter feito Machado de Assis e Guimarães Rosa revirarem no túmulo. Até Graciliano Ramos, preso pela ditadura de Getúlio Vargas sob a acusação de comunismo, haveria de bradar nas ventas do infeliz: “Que discurso mais besta!”.
É certo que o Velho Graça diz, nas “Memórias do Cárcere”, que “quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas” e “escreverá talvez asperezas, mas é delas que a vida é feita: inútil negá-las, contorná-las, envolvê-las em gaze”. Luiz Ruffato, filho de uma “lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto”, é dos que dormiram no chão. Ele próprio foi “pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete”, cujo destino, segundo ele, foi modificado pelo contato fortuito com os livros. Mas os pobres que Ruffato costuma representar em sua obra ficaram fora do seu discurso em Frankfurt.
Em seus livros, como “Estive em Lisboa e Me Lembrei de Você” (Companhia das Letras, 2009), Ruffato recria com irônica precisão a vida das classes baixas, captando, com maestria, o Brasil que se urbanizava na década de 70. Mas, em Frankfurt, o escritor esqueceu esses pobres de verdade e foi se ocupar dos “excluídos”, que são pobres de proveta, criados pela academia. Tirando a sintaxe e o vocabulário, Luiz Ruffato era Luiz Inácio falando em Frankfurt. Só faltou usar a frase “nunca antes neste país”, tão cara a Lula.
A mecanização dos homens
É verdade que a acelerada e, por vezes, violenta urbanização do País, que desenraizou milhões de famílias de trabalhadores rurais, transformando-as em sem-teto na cidade, parece ser culpada pelo “capitalismo selvagem” mencionado por Ruffato. Mas essa é uma visão simplista da urbanização. O capitalismo que deu o castigo, criando o êxodo rural ao mecanizar as lavouras, também deu o pão ao aumentar exponencialmente a produção de alimentos. A dietética Marina Silva come porque Ronaldo Caiado planta. A cesta básica de hoje é relativamente mais barata e mais diversificada do que aquela que os pais de Ruffato, uma lavadeira e um pipoqueiro, podiam comprar em sua infância.
Também é indigna da inteligência de Luiz Ruffato a relação que ele estabelece entre as “fronteiras que caíram para as mercadorias”, mas não caíram “para o trânsito de pessoas”. Para começo de conversa, quem mais impede o trânsito de pessoas não é o capitalismo, mas o comunismo: outrora no Leste Europeu e, hoje, ainda em Cuba e na Coreia do Norte. Mas fronteira é muito mais do que alfândega e passaporte. Ai de um mundo em que as pessoas, como as mercadorias, circulassem o tempo todo! Nas regiões do planeta em que as fronteiras de gente são tão tênues quanto as fronteiras de mercado, vive-se uma tragédia humana. Que o digam os Bálcãs e o Afeganistão. Mercadoria não tem raiz. É um vetor direcionado para o consumo. Já uma pessoa nunca atravessa sozinha uma fronteira: leva junto sua cultura, que pode ser explosiva quando perde o chão de onde brotou.
Além disso, Ruffato deveria saber que a livre circulação de mercadorias, proporcionada pelo capitalismo, alarga o universo simbólico e derruba também as fronteiras humanas, sem que homens e mulheres precisem ultrapassá-las fisicamente. Machado de Assis jamais foi ter com o mundo, mas o mundo vinha ter com ele através do telégrafo e dos navios mercantes que traziam um pouco de Paris para o Rio de Janeiro.
A própria linguagem, matéria-prima de Ruffato, beneficia-se da livre circulação de mercadorias. Os atos de vender e comprar, que precisavam ser registrados, é que levaram os fenícios, um povo mercantil, a criar a escrita. É claro que mercado em demasia também traz contraindicações, mas não porque o capitalismo seja selvagem e, sim, porque é demasiadamente humano, sujeito às vicissitudes de homens e mulheres. Por que o comunismo jamais deu certo? Justamente por sua desumana racionalidade, que, ao querer planificar a vida, mecaniza o homem.
O afrodisíaco das mulheres
Ruffato também diz que “a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença”. E, num dos lastimáveis momentos “USP” de seu discurso, bradou: “Nascemos sob a égide do genocídio”. E depois de discorrer sobre o extermínio dos índios, atacou a “democracia racial brasileira”, que considera um mito, por tentar esconder a “dizimação” sob o manto da “assimilação”. E arrematou: “Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas – ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos”.
Se tivesse ocorrido esse estupro coletivo como regra, o Brasil não sobreviveria como nação. Nenhum povo que chegasse a esse nível de barbárie conseguiria sobreviver a si mesmo. O estupro é crime privativo de poucos. O homem normal só se torna um estuprador numa situação de guerra, quando a sobrevivência se impõe sobre a civilidade e o sexo volta a ser somente carne, sem os filtros culturais que enobrecem o desejo. A civilização, domando os instintos, emancipa o homem da condição de fera e liberta a fêmea da condição de caça.
Até os temidos desbravadores tinham esse verniz mínimo de civilização. O navegador português Fernão de Magalhães (1480-1521) manteve-se praticamente casto ao dar a volta ao mundo, enquanto seus marujos refestelavam-se na carne alegre e voluntária de nativas pelo mundo afora. Muitos chefes puniam com chibatadas o marujo que ousasse importunar uma moça. Até um bandeirante, para manter sua autoridade, não podia se comportar como um cavalo no cio, pulando cercas para estuprar fêmeas. Nem precisava. Se hoje, em pleno século da liberdade sexual, centenas de mulheres se oferecem para transar com o Maníaco do Parque na cadeia, quantas negras e índias bonitas não se ofereciam sorridentes aos bandeirantes, senhores de engenho e outros poderosos da época? Ruffato, um bom romancista, ainda não aprendeu que o poder masculino é afrodisíaco para as mulheres?
Luiz Ruffato também se mostra um defensor da ideia equivocada de que o Brasil é um País racista, pois parece atribuir a maior pobreza dos negros a uma questão de pele e não de história. E, ao falar da desigualdade social, o escritor afirma: “Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...” Ora, é justamente o contrário: como o País é estatizante desde as Capitanias Hereditárias, nunca vicejou entre nós a responsabilidade individual, alicerce de todos os deveres. Do cabra de eito ao senhor de engenho, do sindicalista da CUT ao empresário da Fiesp, todos se julgam no direito de ter a tutela perene e elástica do Estado.
Escritor critica os tucanos
Quando fala da educação, Ruffato incorre num raciocínio comum a pessoas que são, ao mesmo tempo, ignorantes e críticas. Depois de observar que o Brasil apresenta um dos piores desempenhos escolares do mundo, ele afirma: “A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior”.
Notem que, sutilmente, ele ataca Fernando Henrique Cardoso e os tucanos – “a elite que permaneceu no poder até muito recentemente” e tinha como estratégia “a perpetuação da ignorância como marca da dominação”. O que é uma mentira: FHC foi quem universalizou a escola básica no País. Luiz Ruffato parece fazer parte dos “20% de analfabetos funcionais” mencionados em seu discurso, que “não têm capacidade de ler e interpretar os textos mais simples”. Aliás, ele não consegue interpretar nem seu próprio texto. Ora, se a elite brasileira investe na perpetuação da ignorância, como se explica que 35% do mercado editorial é absorvido pelo governo e destinado às bibliotecas públicas e escolares? É bom frisar que essa política de distribuição de livros para bibliotecas remonta ao regime militar, com a criação do Instituto Nacional do Livro, e diversas fundações privadas – que integram a elite do País – participam ativamente das campanhas de doação de livros. Isso é apostar na ignorância como dominação?
Em seu discurso em Frankfurt, Luiz Ruffato não deixou de fora nenhuma palavra de ordem das esquerdas. Criticou o machismo da sociedade brasileira, bradou contra a homofobia e não esqueceu nem mesmo os bandidos, compadecendo-se deles. Nas estatísticas sobre criminalidade, baixou o índice de homicídios para 37 mil pessoas mortas por ano, quando o Mapa da Violência, encampado pelo Ministério da Justiça, chega a falar em 50 mil homicídios. Mas eu acredito mais num estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que, ao denunciar a fragilidade das estatísticas de mortalidade, estimou o número de homicídios no Brasil em 63 mil por ano.
Mas Luiz Ruffato não parece ter pena das vítimas. Sua grande preocupação é com os bandidos: “E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução”. Notem que, mesmo descrevendo toda uma história de genocídio, estupro de mulheres, desigualdade extrema, ignorância provocada e miseráveis abandonados à própria sorte etc., o “ponto nevrálgico” para ele é o coitadinho do preso.
Também pudera, no País dos criminosos que ateiam fogo às vítimas ostentando um sorriso nos lábios, Luiz Ruffato escreve: “Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios – semelhante torna-se o inimigo”. Pronto! A se crer em Ruffato, o Estado deve exumar o cadáver da dentista que morreu queimada e enforcá-la simbolicamente pelo crime de não ter humanizado seus algozes.
O ufanismo petista de Ruffato
Por fim, Luiz Ruffato encarnou o conde Afonso Celso e reeditou o “Porque Me Ufano do Meu País” numa versão petista: “Mas, temos avançado. A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia – são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas”.
No último parágrafo de seu discurso, o escritor Luiz Ruffato afirma: “Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura”. Conta que é filho de operários e que teve seu destino transformado pelo livro. “E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade”, diz. É como se a literatura, os leitores e os livros obedecessem a uma rígida mecânica universal em que cada leitura produzisse exatamente o mesmo efeito à revelia do leitor e de suas circunstâncias. Só para registro: os quatro maiores genocidas do século XX – Lenin, Stalin, Hitler e Mao Tsé-Tung – eram assíduos leitores.
Ruffato diz ainda: “Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual – como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir”. Será que Ruffato não se dá conta do ridículo? Por acaso, vivemos numa aldeia talibã, em que a mulher é completamente anulada? Não havia mulheres em sua plateia? No Brasil em que ele vive, já não nascem mais crianças? Os homens brasileiros, invertendo o grego Aristófanes, é que estão fazendo greve de sexo, por ver nas mulheres seres extraterrestres, um estranho “outro”, para o qual dão as costas?
Imaginando encerrar seu texto com chave de ouro, Luiz Ruffato diz: “Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora”.
Ruffato chama isso de utopia. Eu chamo de burrice. Hoje, todo intelectual que não pensa com lógica esconde a irracionalidade sob a onírica palavra “utopia”. Que não se pergunte a ele como é que a humanidade poderá ser feliz se todos correrem, ao mesmo tempo, atrás da felicidade, com sofreguidão, “aqui e agora”. Como se vê, o escritor Luiz Ruffato ataca o “capitalismo selvagem” para pôr em seu lugar o “humanismo selvagem”. E pelos aplausos que recebeu em Frankfurt, sua utopia já está em curso e se não se pôr nela uma ferradura, o futuro nos reserva um epitáfio: “Eles eram muitos cavalos”.
(Foto: Adriana Vichi)
Por: José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.
Publicado no Jornal Opção.