domingo, 3 de novembro de 2013

HOMENS E ANIMAIS, REVISITADOS

Recebi centenas de e-mails na semana passada por causa de um texto sobre os "direitos dos animais" ("Homens e animais", 22/10). Escuso de esclarecer que a maioria não foi simpática.

Com verdadeiro espírito humanista, muitos dos defensores dos animais desejaram-me doenças que eu, um hipocondríaco confesso, nem sabia que existiam. Sem falar das inevitáveis ameaças de morte, sempre antecedidas de tortura (lenta).

Agradeço a gentileza e espero ansiosamente pelo dia em que o mundo será governado pelo espírito tolerante dessa gente. Para os restantes leitores, que insistiram em seis perguntas recorrentes (e civilizadas), aqui vão respostas civilizadas:

1 - Se é possível fazer pesquisa sem animais, como justificar o uso dos bichos?

Infelizmente, não é possível fazer todo o tipo de pesquisas sem usar animais. Verdade que a ciência evoluiu imenso e a pesquisa "in vitro" (usando células em laboratório, algumas das quais humanas) e "in silico" (com computadores) tem ocupado as pesquisas "in vivo". Mas, para certas patologias, e sobretudo para se obterem respostas precisas a farmacologias várias, é necessário o uso de organismos vivos com certo grau de complexidade (o que exclui, por exemplo, moscas ou lesmas). Não usar animais implicaria, em muitos casos, usar seres humanos --ou, em alternativa, frear o progresso científico.

2 - Os animais dos laboratórios são tratados cruelmente.

Uma absoluta falácia. Os animais domésticos são, muitas vezes, tratados cruelmente. Animais de laboratório são, como o nome indica, seres vivos criados em ambiente controlado (temperatura, som, conforto, comida etc.) de forma a infligir o menor sofrimento possível. É claro que algumas experiências implicam dor ou desconforto. Mas o uso de animais em laboratório está submetido a legislação rigorosa, na qual os "limites de severidade" são cada vez mais apertados.

Dissecar animais em praça pública, como aconteceu no passado para conhecer o sistema circulatório (um feito que fez a medicina avançar vários séculos), seria impensável nos dias de hoje. E ainda bem.

3 - É legítimo usar animais para testar cremes e batons?

Não é legítimo e deve ser severamente punido. Na Europa, já é desde março deste ano. Mas a discussão do artigo lidava com pesquisa médica, não estética. Confundir ambas revela ignorância ou má-fé.

4 - Todos os ativistas dos "direitos dos animais" estão errados?

Pelo contrário: a ciência deve muito aos ativistas razoáveis dos "direitos dos animais", que contribuíram para que a ciência "humanizasse" o seu trato com os bichos.
Os defensores razoáveis dos "direitos dos animais" legaram à ciência o desafio dos "três R's": "to reduce" (reduzir, sempre que possível, o número de animais em laboratório); "to replace" (substituir, sempre que possível, o uso de animais por outra alternativa --estudo de células ou simulação computacional, por exemplo); e "to refine" (refinar, sempre que possível, a forma como a pesquisa é feita --uso de anestésicos e analgésicos quando o desconforto é previsto; criação de um ambiente confortável e estimulante para os animais etc.). O diálogo entre cientistas e "eticistas" deve por isso continuar.

5 - Você não gosta de animais e por isso defende o uso deles pela ciência?

Não pretendo tornar a discussão pessoal. Mas gosto de animais, tenho animais e até já escrevi sobre todas as lições "filosóficas" que aprendi com o meu gato.

6 - Todas as vidas são sagradas e nenhum animal deve ser sacrificado para nosso benefício.

Quem parte dessa premissa encerra o debate mesmo antes dele começar. Infelizmente, não tenho essas certezas --e, como onívoro, é evidente que continuo a usar os animais como fonte principal de alimentação. Sobre a "sacralidade" da vida, confesso uma certa paralisia agônica com certos cálculos utilitaristas mesmo em relação à vida humana (para mim, a mais importante).

Se, por hipótese, fosse possível salvar 10 milhões de pessoas gravemente doentes pelo sacrifício em laboratório de dez indivíduos, valeria a pena matar esses dez inocentes?

Instintivamente, direi que não e ficarei feliz com as minhas vaidades deontológicas. Pensando friamente, não sei se diria não --e que Deus, ou o sr. Kant, me perdoe. Porém, se a vida de 10 milhões de pessoas dependesse da vida do meu gato, não haveria hesitação alguma.
Por: João pereira Coutinho  Folha de SP

O PENSADOR COLETIVO

O Pensador Coletivo é uma máquina regida pela lógica da eficiência, não pela ética do intercâmbio de ideias

Você sabe o que é MAV? Inventada no 4º Congresso do PT, em 2011, a sigla significa Militância em Ambientes Virtuais. São núcleos de militantes treinados para operar na internet, em publicações e redes sociais, segundo orientações partidárias. A ordem é fabricar correntes volumosas de opinião articuladas em torno dos assuntos do momento. Um centro político define pautas, escolhe alvos e escreve uma coleção de frases básicas. Os militantes as difundem, com variações pequenas, multiplicando suas vozes pela produção em massa de pseudônimos. No fim do arco-íris, um Pensador Coletivo fala a mesma coisa em todos os lugares, fazendo-se passar por multidões de indivíduos anônimos. Você pode não saber o que é MAV, mas ele conversa com você todos os dias.

O Pensador Coletivo se preocupa imensamente com a crítica ao governo. Os sistemas políticos pluralistas estão sustentados pelo elogio da dissonância: a crítica é benéfica para o governo porque descortina problemas que não seriam enxergados num regime monolítico. O Pensador Coletivo não concorda com esse princípio democrático: seu imperativo é rebater a crítica imediatamente, evitando que o vírus da dúvida se espalhe pelo tecido social. Uma tática preferencial é acusar o crítico de estar a serviço de interesses de malévolos terceiros: um partido adversário, "a mídia", "a burguesia", os EUA ou tudo isso junto. É que, por sua própria natureza, o Pensador Coletivo não crê na hipótese de existência da opinião individual.

O Pensador Coletivo abomina argumentos específicos. Seu centro político não tem tempo para refletir sobre textos críticos e formular réplicas substanciais. Os militantes difusores não têm a sofisticação intelectual indispensável para refrasear sentenças complexas. Você está diante do Pensador Coletivo quando se depara com fórmulas genéricas exibidas como refutações de argumentos específicos. O uso dos termos "elitista", "preconceituoso" e "privatizante", assim como suas variantes, é um forte indício de que seu interlocutor não é um indivíduo, mas o Pensador Coletivo.

O Pensador Coletivo interpreta o debate público como uma guerra. "A guerra de guerrilha na internet é a informação e a contrainformação", explica o deputado André Vargas, um chefe do MAV. No seu mundo ideal, os dissidentes seriam enxotados da praça pública. Como, no mundo real, eles circulam por aí, a alternativa é pregar-lhes o rótulo de "inimigos do povo". Você provavelmente conversa com o Pensador Coletivo quando, no lugar de uma resposta argumentada, encontra qualificativos desairosos dirigidos contra o autor de uma crítica cujo conteúdo é ignorado. "Direitista", "reacionário" e "racista" são as ofensas do manual, mas existem outras. Um expediente comum é adicionar ao impropério a acusação de que o crítico "dissemina o ódio".

O Pensador Coletivo é uma máquina política regida pela lógica da eficiência, não pela ética do intercâmbio de ideias. Por isso, ele nunca se deixa intimidar pela exigência de consistência argumentativa. Suzana Singer seguiu a cartilha do Pensador Coletivo ao rotular o colunista Reinaldo Azevedo como um "rottweiler feroz" para, na sequência, solicitar candidamente um "bom nível de conversa". Nesse passo, trocou a função de ombudsman da Folha pela de Censora de Opinião. Contudo, ela não pertence ao MAV. Os procedimentos do Pensador Coletivo estão disponíveis nas latas de lixo de nossa vida pública: mimetizá-los é, apenas, uma questão de gosto.

Existem similares ao MAV em outros partidos? O conceito do Pensador Coletivo ajusta-se melhor às correntes políticas que se acreditam possuidoras da chave da porta do Futuro. Mas, na era da internet, e na hora de uma campanha eleitoral, o invento será copiado. Pense nisso pelo lado bom: identificar robôs de opinião é um joguinho que tem a sua graça. Por: Demétrio Magnoli Folha de SP


-

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

POR QUE O RETORNO AO MUNDO NATURAL TEM TANTO APELO, MAS NÃO LEVA A LOGAR NUNHUM

BOM PRA QUEM, CARA-PÁLIDA? Na raiz de todo ativismo violento está a noção utópica e errônea de que Thomas Hobbes pensou errado e, portanto, a vida selvagem é idílica, prazerosa e fraternal (Deagostini/Getty Images)

Por Eurípedes Alcântara, na VEJA:

“Sou homem. Nada do que é humano me é estranho”, já dizia o romano Terêncio, dramaturgo de apenas relativo sucesso do segundo século antes de Cristo. Mas temos de concordar com ele. Eta espécie complicada esta nossa. Depois de ralar durante milênios para construir uma civilização tecnológica com aviões, carros, internet, vacinas, antibióticos e anestesia, o bacana agora é lutar pela volta ao mundo natural. Depois de experimentar toda a sordidez da servidão humana aos mais sanguinários tiranos e de sofrer no lombo os mais odiosos arranjos coletivistas totalitários, ainda temos entre nós quem se encante com aiatolás-presidentes, mulás-chefes de po­lícia e caudilhos latino-americanos cobertos de adereços indígenas, medalhas no peito ou pancake no rosto. Depois de rios de sangue derramados para arrancar dos poderosos o compromisso inarredável com os direitos humanos, a justiça igualitária, o rodízio pacífico de poder, a organização econômica baseada no respeito à propriedade, aceitamos que mascarados aterrorizem as grandes cidades quebrando e queimando indiscriminadamente apenas porque estão incomodados com o estilo de vida da maioria. Depois do sacrifício dos mártires que deram a vida para impor o uso apenas legítimo da força pelos governantes, impedindo que o Estado use brucutus para impor a vontade dos ricos sobre os pobres, dos fortes sobre os fracos, ficamos contra os policiais que tentam impedir o triunfo do reino de terror nas ruas. Depois de tudo isso, esquecemos que o que nos trouxe ao atual estágio civilizatório foi o trabalho obstinado e austero de mentes brilhantes em ambientes monásticos e idolatramos os barulhentos ativistas. 


A ÚNICA CHANCE?de salvar os cães é nos salvar, ou seja, acelerar os avanços científicos e tecnológicos, e não colocar obstáculos intransponíveis a eles?






Esse é o dilema oculto do ativista, a pessoa que se cansou de esperar que as coisas ocorram naturalmente da maneira como ela imagina, e vai à luta para tentar embicar o mundo para o rumo que ela acha certo e com o uso das armas que ela própria acha conveniente usar. Os ativistas que libertam cães em São Paulo, que quebram vitrines em Londres e Paris, que se propõem a ocupar Wall Street, em Nova York, têm em comum a ideia de que a lei e a ordem existem apenas para garantir o modo de vida das pessoas das quais eles discordam – ou, frequentemente, que eles odeiam. Outro ponto comum, em geral inconsciente, para a maioria deles, é a negação do que em sociologia se chama “contrato social”, que nada mais é do que a aceitação da tese de que sua liberdade termina onde começa a do outro. Os filósofos da baderna sustentam que isso que denominamos civilização não passa de uma grande e castrante prisão, à qual somos moldados desde o nascimento, primeiro pelo amor materno e paterno, depois pela educação formal, mais tarde pela democracia representativa, pelo consumo, pela arte degenerada e pelos remédios antidepressivos.



A REVOLTA DA VACINA – No Rio Janeiro, em 1904, o medo da vacinação obrigatória contra a varíola gerou protestos violentos, como este na Praça da República





Para quem pensa assim, nós todos vivemos uma vida vicária, uma vida substituta, uma vida no lugar da verdadeira vida que está… que está… que está onde? Ora, na natureza, no mundo selvagem, nas selvas, florestas e savanas, na cova dos leões onde seremos recebidos com lambidas fraternas como aquelas que as feras ofereceram ao profeta Daniel. O que muito se discute atualmente é se a ideia de que o homem solto na natureza, fora do alcance das leis, das instituições, completamente alheio às convenções sociais, estaria mesmo condenado à perversão moral e ao sofrimento físico, vítima da “guerra de todos contra todos”, como o inglês Thomas Hobbes disse ser a vida humana “em estado natural”. É disso que se trata. A vontade de ser seu próprio juiz, único e absoluto, do que é certo ou errado é o traço filosófico que une os ativistas que desprezam as leis, que lutam contra moinhos de vento ditatoriais em pleno regime democrático, contra as injustiças sociais em um Brasil onde há pleno emprego, contra a violência policial quando são eles que mais agridem e vandalizam. Thomas Hobbes escreveu que, fora dos arranjos sociais em que as pessoas obedecem a regras em troca do direito à convivência em sociedade, a vida do homem é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”. Hoje, o bacana é apostar que Hobbes pensou errado e que a verdadeira conquista é escapar dos contratos sociais. O preço a pagar para testar aquela hipótese é muito alto. Como é impagável também o preço de um mundo sem ativismo, sem idealismo, sem sonhos.

O engajamento solidário em causas consideradas justas é uma das grandes conquistas da modernidade. Divisor de águas é o caso do jovem capitão Alfred Dreyfus, judeu falsamente acusado de espionagem e condenado no fim do século XIX em uma França antissemita. A injustiça contra ele foi tão flagrante que se mobilizaram em sua defesa cientistas, artistas, escritores e estudantes . “Meu dever é falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu”, dizia a famosa carta aberta ao presidente da República escrita por Émile Zola em um jornal sob o título: “Eu Acuso…!”. Por serem homens de letras e de ciências, os defensores de Dreyfus eram chamados de modo depreciativo de “intelectuais”. Logo o termo ganhou a conotação positiva de “sábio engajado”. Claro que havia idealismo, sacrifício e nobreza de espírito antes do caso Dreyfus, mas nunca antes tantas pessoas haviam se mobilizado por uma causa sem que tivessem interesse direto nela – seja partidário, religioso, nacionalista, patriótico ou étnico. Elas se mobilizaram contra uma injustiça flagrante. Contra isso sempre valerá a pena lutar.

Por Reinaldo Azevedo

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

ACHADOS E PERDIDOS


Às vezes, eu sinto a angústia de um menino perdido numa multidão. Vivemos hoje no Brasil um período inusitado de estabilidade política permeada pelas superimposições promovidas pelo casamento entre hierarquias aristocráticas – que em todas as sociedades (e sobretudo na escravidão, como percebeu o seu teórico mais sensível, Joaquim Nabuco) têm como base a amizade e a simpatia pessoal; e o individualismo moderno relativamente igualitário que demanda burocracia e, com ela, uma impecável, abrangente e inatingível impessoalidade.

O hibridismo resultante pode ser negativo ou positivo. Pelo que capturo, o hibridismo – ou o mulatismo ético – é sempre mal visto porque ele não cabe no modo ocidental de pensar. Provam isso as Cruzadas, a Inquisição, o Puritanismo, as Guerras Mundiais, o Holocausto e a exagerada ênfase na purificação e na eugenia – na coerência absoluta entre gente, terra, língua e costumes, típicas do eurocentrismo. A mistura corre do lado errado e tende a derrapar como um carro dirigido por jovens bêbados quando saem da balada; ou da esquerda carismática-populista, burocrática e patrimonialista no poder.

Desconfio que continuamos divididos entre tipos de dominação weberiana e suas instituições. Fazer a lei e, sobretudo, preparar a sociedade para a lei, ou simplesmente prender? Chamar a polícia (que é, salvo as honrosas exceções, intensamente ligada aos bandidos e chefes do crime paradoxalmente presos) ou resolver pela “política”? Mas como fazê-lo se os “políticos” (com as exceções de praxe) estão interessados no desequilíbrio porque a estabilidade impede e dificulta a chegada ao “poder”? Poder que significa, além da sacralização pessoal, um imoral enriquecimento pelo povo e com o povo. Ademais, somente uma minoria acredita na política representada por instituições igualitárias e niveladoras.

Para ser mais preciso ou confuso, amamos a dominação racional-legal estilo germano-romana, mas não deixamos de lado nosso apreço infinito pela dominação carismática em todas as esferas sociais, inclusive na “cultura”, como revela esse disparate de censurar biografias. Temos irrestrita admiração por todos os que usaram e abusaram da liberdade individualista nesse nosso mundinho relacional quando os perdoamos e não os criticamos, o que conduz a uma confusão trágica entre o uso da liberdade e o seu abuso irresponsável. Esses mimados pela vida e exaltados pelos amigos – os nossos maluquinhos – legitimam a ambiguidade que se consolida pelo pessoalismo do herói a ser lido pelo lado do direito ou do avesso. Esse avesso que, no Brasil, é confundido com a causa dos oprimidos num esquerdismo que tem tudo a ver com uma “ética da caridade” do catolicismo balizador e historicamente oficial. Com isso, ficamos sempre – como dizia aquele general-ditador – a um passo do abismo. Andar para trás é condescendência, para a frente, suicídio.

Como gostamos de brincar com fogo, estamos sempre a um passo da legitimação da violência justificada como a voz dos oprimidos que ainda não aprenderam a se manifestar corretamente. E como fazê-lo se jamais tivemos um ensino efetivamente igualitário ou instrumental para o igualitarismo numa sociedade cunhada pelo escravismo e por uma ética de condescendência pelos amigos e conhecidos?

Pressinto uma enorme violência no nosso sistema de vida. Temo que ela venha a ocupar um território ainda mais denso e seja usada para legitimar outras violências tanto ou mais brutais do que o “quebra-quebra” hoje redefinido como “manifestações”. Protestos que começam como demandas legitimas e, infiltrados, tornam-se “quebra-quebras”. Qual é o lado a ser tomado se ambos são legítimos e, como é óbvio, dizem alguma coisa como tudo o que é humano?

Estou, pois, um tanto perdido e um tanto achado nessa encruzilhada entre demandas legais e prestígios pessoais. Entre patrimonialismo carismático e burocracia, os quais sustentam o “Você sabe com quem está falando?” – esse padrinho do “comigo é diferente”, “cada caso é um caso”, “ele é meu amigo”, “você está errado mas eu continuo te amando”… E por aí vai numa sequência que o leitor pode inferir, deferir ou embargar.

Embargar, aliás, é o verbo e a figura jurídica do momento em que vivemos e dos sistemas que se constroem pela lei, mas confundindo a regra com o curso torto, podre e vaidoso da humanidade, tem as suas cláusulas de desconstrução. Com isso, condenamos com a mão direita e embargamos com a esquerda; ou criamos os heróis com a esquerda e os embargamos com a direita. Construímos pela metade. O ponto que já foi ressaltado por mim algumas vezes é o simples: se conseguirmos assumir e controlar abertamente a ambiguidade, há a esperança de controlá-la. E isso pode ser uma enorme vantagem num planeta cujo futuro é um inevitável “abrasileiramento”.

Assim, entre o ser obrigado a calvinisticamente condenar, como fazem os nossos brothers americanos que todo dia atiram nos próprios pés, podemos assumir em definitivo que todos têm razão. Afinal de contas, o Brasil é um vasto programa de auditório com pitadas de missa solene e jogo de futebol.

Por: Roberto DaMatta Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/10/2013

terça-feira, 29 de outubro de 2013

HISTÓRIA, POLÍTICA, POLÍTICA E TEMPERAMENTO, QUEM É QUEM NA POLÍTICA ARGENTINA

Nos últimos 67 anos os diversos peronismos – em ritmo felino – governaram a Argentina mais da metade do tempo

“Quando os outros nos ouvem gritar acham que estamos brigando. Nada disso..somos como os gatos. Quando gritamos estamos nos reproduzindo!” (Juan Domingo Perón, explicando com felina metáfora como são as brigas/cópulas dos peronismo. O quadro acima é “Gatos lutam em uma despansa”, de Paul de Vos, 1663.

Os argentinos foram às urnas neste domingo para renovar metade da Câmara de Deputados e um terço do Senado. Os principais protagonistas deste embate – cujo decisivo campo de batalha será a província de Buenos Aires (que concentra 38% do eleitorado) – serão Martín Insaurralde, cabeça da lista de candidatos a deputado da Frente pela Vitória, e Sergio Massa, da Frente Renovadora. No entanto, as duas “Frentes” – a primeira kirchnerista e a segunda anti-kirchnerista – são duas sublegendas rivais do Partido Justicialista (Peronista), movimento que chegou ao poder em 1946, quando foi eleito Juan Domingo Perón, fundador da griffe política à qual deu seu nome.

Dos 67 anos transcorridos de lá para cá, o Peronismo – em suas mais variadas modalidades – governou a Argentina mais da metade do tempo (34,5 anos).

Perón governou entre 1946 e 1955, ano em que foi deposto por um golpe. Em 1973 Perón, que estava no exílio, usou um velho braço-direito no Parlamento, Héctor Cámpora, para vencer em seu nome as eleições presidenciais. O representante do velho caudilho foi eleito com o slogan “Cámpora no governo, Perón no poder”.

Menos de três meses depois Cámpora suspendia a proibição existente no país sobre a atuação política de Perón, renunciava e deixava a presidência interina nas mãos do peronista Raúl Lastiri, genro de José López Rega, astrólogo de Perón e sua eminência parda. Cámpora, um conservador mas que contava com vários ministros de esquerda, abria o caminho para que seu chefe voltasse do exílio e fosse eleito em outubro desse ano.

Com a saída de Cámpora estava concluída a “Primavera Peronista” e iniciava um período conservador, com alguns toques neoliberais de Perón, que estava reconfigurando suas políticas. Este Perón, que havia voltado do exílio e ia contra-mão de seu intervencionismo dos anos 50 morreu em 1974.

Sua esposa e vice-presidente, Maria Estela Martinez de Perón, conhecida pelo apelido de “Isabelita”, assumiu o comando do país. A nova presidente – que Perón havia conhecido quando ela era dançarina em um cabaré no Panamá – foi deposta pelos militares em 1976, no meio do caos político.

O peronismo perdeu suas primeiras eleições em 1983, com a volta da democracia. Mas, teriam sua vingança nas urnas em 1989, com a eleição do peronista Carlos Menem, que fizera sua campanha com slogans pregando maior intervenção do Estado na economia. No entanto, imediatamente Menem deu uma guinada implantou as privatizações mais radicais da História da América Latina.

A política neoliberal de Menem provocou um êxodo de peronistas que deixaram o partido e fundaram a Frepaso. Menem foi reeleito em 1995. Mas, em 1989, seu candidato, Eduardo Duhalde, que não sintonizava totalmente com o neoliberalismo de Menem, perdeu as eleições.

Duhalde foi derrotado pela coalizão Aliança UCR-Frepaso, formada pela centenária União Cívica Radical, de centro, e os progressistas da Frepaso.

Em dezembro de 2001 a crise econômica e social provocou a queda de Fernando De la Rúa, da Aliança, que foi substituído por uma sequência de três breves presidentes provisórios peronistas (Ramón Puerta, Eduardo Caamaño e Adolfo Rodríguez Saá).

Em janeiro de 2002, Duhalde assumiu como presidente provisório. Em maio de 2003 deixou o cargo a Néstor Kirchner, seu delfim, que depois o trairia. Kirchner, ele próprio um ex-menemista e ex-duhaldista, atraiu ex-menemistas, ex-duhaldistas e boa parte dos antigos frepasistas que voltaram ao seio do peronismo.


O novo presidente deu um tom intervencionista ao governo, recuperando parte do peronismo de Perón em seu primeiro governo. Simultaneamente Kirchner tentou remover da memória popular que havia respaldado as políticas neoliberais de Menem nos anos 90, sendo figura crucial na privatização da petrolífera YPF.

Em 2007 Kirchner lançou sua própria esposa, Cristina Kirchner, para a sucessão presidencial em 2007. Kirchner morreu em 2010. Cristina foi reeleita em 2011. Um ano depois Cristina intensificaria seu perfil intervencionista ao reestatizar a YPF (desta vez, com o respaldo do ex-neoliberal senador Menem). Mas, em meados deste ano daria uma guinada no discurso nacionalista ao associar a YPF à empresa Chevron.

Nas eleições parlamentares deste domingo, o kirchnerista Insaurralde se confronta com Sergio Massa, atualmente ex-kirchnerista (que foi chefe do gabinete de Cristina entre 2008 e 2009). No entanto, ambos são peronistas.

“O Peronismo é como a Coca-Cola”, me disse em off um idoso ex-vice-ministro peronista. “Você tem Coca light, Coca regular, etc. O Peronismo é assim: tem neoliberais, esquerdistas, e as mais diversas variáveis. No fundo, tudo é Coca-Cola, isto é, todos são peronistas. Mudam o rótulo da quantidade do ‘açúcar’ político dependendo da conveniência. Mas continua sendo a mesma marca. Assim é com o Peronismo. É como um refrigerante que pretende atender todos os gostos”.

Depois, recorda uma marota frase de Perón que deixava claro que as supostas brigas entre os peronistas não eram motivo de preocupação: “quando os outros nos ouvem gritar acham que estamos brigando. Nada disso..somos como os gatos. Quando gritamos estamos nos reproduzindo!”. 
Perón usava gatos em suas metáforas políticas. Mas ‘El General’ era fã mesmo dos cachorros. Mais especificamente, dos poodles.


E para encerrar, ad hoc com os felinos peronistas, o “Duetto buffo di due gatti” (Dueto buffo de dois gatos), de Gioacchino Rossini: 




PERFIL: Ariel Palacios fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996.


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"DIA DA DEMOCRACIA"

“A data da morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, é considerada o ponto de partida para a retomada do processo democrático no Brasil. Por isso, o dia de hoje 25 DE OUTUBRO, é considerado por muitos o DIA da DEMOCRACIA.

As redes sociais podem decididamente ajudar e estão ajudando a transformar o Brasil e o mundo.

Apesar de todos os riscos do “mau caratismo” e da desconfiança que nós temos pelos episódios que estão ocorrendo, continuemos participando, falando com sinceridade, criando amizades e um mundo melhor.

Estamos atravessando um período interessante do mundo moderno contemporâneo.

Quando o nosso Presidente Ministro do STF Joaquim Barbosa ousa, ouvindo até mesmo outros magistrados, dizer que a Justiça Brasileira é confusa é importante, um gesto valente, corajoso.

Pouco importa as incompreensões.

Coisa igual faz o Papa Francisco, de uma instituição secular como a Igreja Católica, quebrando tabus e falando franco, usando termos como “Vaticanocracia”, e demitindo bispos deslumbrados, como o bispo alemão irresponsável.

É o mundo mudando.

Que essas coisas ou cousas, possam ser aprendidas e apreendidas por nós todos e que a gente, independente de pequenezas, façamos a nossa parte.

Continuaremos amigos e faremos das redes sociais um instrumento de discussões honestas, esclarecedoras e por isso libertária.

Sujeitas à chuvas e trovoadas;

· Voto, infelizmente nem sempre é atestado de honradez ou certificado de competência.

Os exemplos estão aí, desnecessários citá-los.

· Sigla partidária não é carimbo da Vigilância Sanitária. São heterogêneas. Vai desde a Madre Paulina até o Fernandinho beira-mar. Vamos regenera-las.

· Algumas de nossas melhores ideias andam também infelizmente pela boca de alguns de nossos piores homens. Daí a confusão em distingui-los.

· Eleição não é doença é remédio.

· Carteira de identidade, os suínos, os bovinos e até os galináceos tem (chip).

Titulo de eleitor só os cidadãos.

Exige inteligência, raciocínio, livre arbítrio, responsabilidade social.

· Coletivo não é só sinônimo de ônibus.

Pensar o coletivo é ser cidadão, é ser solidário.

· Se interessar pela politica não é só exercer um direito, é uma obrigação de cidadania.

Embora não pareça, os apátridas, os traficantes, os criminosos se preocupam, e muito.

· Lobista é uma coisa, deputado é outra.

Deputado lobista desserve a democracia.

São agentes da corrupção. O Brasil precisa se livrar deles.

· A Reforma Tributaria não sai, não acontece, porque a falta dela é que mantém a vassalagem, a subserviência.

Transforma o direto em um favor.

Temos que fazê-la.

· Essas observações fazem parte do contexto da democracia. Em verdade, se constituem numa homenagem simples ao jornalista Herzog.

Pensemos a respeito.

Qualquer dia tem mais.

Saudações democráticas,

Por: Jaison Barreto.






'O PALÁCIO E OS 'MOVIMENTOS SOCIAIS".

“É um absurdo vender isso. A sociedade não participou do debate sobre o tema. Nossa tentativa é sensibilizar o governo para negociar e discutir.” As sentenças, de Francisco José de Oliveira, diretor da Federação Única dos Petroleiros (FUP), referiam-se ao leilão de Libra, na faixa do pré-sal. Mas a lógica subjacente a elas, expressa na segunda frase, nada tem de singular. Nas duas últimas décadas, os “movimentos sociais” repetem aborrecidamente a ladainha sobre “a sociedade” excluída do “debate”, enquanto invadem órgãos públicos em nome da “participação”. Vivemos nos tempos do supercorporativismo, um ácido corrosivo derramado sobre o material de nossa democracia.

O Brasil moderno nasceu, pelo fórceps de Getúlio Vargas, sob o signo do corporativismo. A “democracia social” do Estado Novo cerceava os direitos do indivíduos, subordinando-os a direitos coletivos. Na definição do historiador Francisco Martinho, “o cidadão nesse novo modelo de organização do Estado era identificado através de seu trabalho e da posse de direitos sociais e não mais por sua condição de indivíduo e posse de direitos civis ou políticos” (O corporativismo em português, Civilização Brasileira, 2007, p. 56). Inspirado no salazarismo português e no fascismo italiano, o corporativismo varguista organizou a sociedade como uma família tripartida: governo, sindicatos patronais e sindicatos de trabalhadores. O supercorporativismo, uma obra do lulopetismo, infla o balão do corporativismo original até limites extremos.

Um traço forte, comum a ambos, é o desprezo pelos direitos civis e políticos, que são direitos individuais associados à ordem da democracia representativa. A principal diferença encontra-se no atributo nuclear da cidadania: o cidadão varguista definia-se pelo trabalho; o cidadão lulopetista define-se pela militância organizada. No Estado Novo, a carteira de trabalho funcionava como atestado de inserção na ordem política nacional. Sob o lulopetismo, o documento relevante é a prova de filiação a um “movimento social”. Na invasão do Ministério das Minas e Energia, junto com a FUP, estavam líderes do Movimento dos Sem Terra (MST) e do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) — que, em tese, não têm interesse no tema da exploração do pré-sal. A sociedade, segundo o supercorporativismo, é a soma das entidades sindicais e dos “movimentos sociais”. É por isso que, sem o consenso dessas corporações da nova ordem, nenhum assunto jamais estará suficientemente “debatido”.

Lula nasceu no berço do sindicalismo. O PT estabeleceu, na origem, íntimas relações com os “movimentos sociais”. Nas democracias, a sociedade civil organiza-se para exercer pressão legítima sobre os poderes de Estado. O lulopetismo, porém, borrou a fronteira entre sociedade civil e Estado assim que chegou ao governo: sua reforma da CLT estendeu a partilha do imposto sindical varguista às centrais sindicais, enquanto os “movimentos sociais” passaram a receber financiamento público direto ou indireto. O cordão umbilical que liga o poder de Estado aos “movimentos sociais” é a Secretaria Geral da Presidência, um ministério estratégico chefiado por Luiz Dulci, no governo Lula, e por Gilberto Carvalho, no governo Dilma Rousseff. Os dois engenheiros do edifício do supercorporativismo pertencem ao círculo de fiéis incondicionais de Lula.

O PT sempre enxergou os “movimentos sociais” como tentáculos partidários. Os líderes mais destacados desses movimentos são militantes petistas. O financiamento público elevou a conexão a um novo patamar: na última década, eles se converteram em satélites do Palácio. Os dirigentes do MST, do MAB e de inúmeros movimentos similares ajustam suas agendas políticas às do Partido e cerram fileiras com o lulopetismo nos embates eleitorais. Durante a odisseia do mensalão, eles desceram às trincheiras enlameadas para proteger José Dirceu et caterva. Contudo, na dialética do supercorporativismo, os “movimentos sociais” também precisam promover mobilizações contra o governo, sob pena de se condenarem à irrelevância.

O corporativismo varguista almejava a harmonia social. No mecanismo de regulação do lulopetismo, a desordem é um componente da ordem. Os “movimentos sociais” palacianos produzem fricções cíclicas, que são reabsorvidas pelo recurso a negociações simbólicas e compensações materiais. A extensão inevitável do “direito à desordem” a movimentos controlados por facções dissidentes (PSOL, PSTU) provoca perturbações suplementares, mas, paradoxalmente, robustece os alicerces lógicos do supercorporativismo. Os invasores do Ministério de Minas e Energia são obrigados a confirmar periodicamente seu estatuto de interlocutores privilegiados do poder por meio de ações de contestação limitada da ordem.

A democracia representativa ancora-se no princípio da soberania popular, que é exercida por meio da delegação de poder, em eleições gerais. O sistema político-partidário brasileiro desmoraliza a representação para assegurar privilégios especiais a uma elite política de natureza patrimonialista. O lulopetismo, um sócio majoritário desse sistema, aproveita-se de seus desvios para erguer o edifício do supercorporativismo como esfera paralela de negociação política. Na dinâmica extraparlamentar do supercorporativismo, o Partido pode ignorar as demandas dos cidadãos comuns, dialogando exclusivamente com a casta mais ou menos amestrada de dirigentes dos “movimentos sociais”. Sabe com quem está falando? Você só é alguém se possuir a carteirinha de um “movimento social” ─ eis a mensagem veiculada pelo Palácio.

Nas “jornadas de junho”, manifestações multitudinárias falaram em “saúde” e “educação”, reivindicando direitos universais estranhos à lógica do supercorporativismo. Por isso, nervoso e assustado, o Partido as rotulou como uma “reação da direita”. Ah, bom…

Por: Demétrio Magnolo O Globo

domingo, 27 de outubro de 2013

A FRANÇA E O ÁPICE DA SOCIAL-DEMOCRACIA: IMPOSTOS PARA TODOS, EMPREGO PARA POUCOS

Um em cada quatro franceses com formação universitária quer sair do país em busca de uma vida melhor. Mais de 70% dos franceses creem que os impostos estão "excessivos" e 80% acreditam que a política econômica do governo é "equivocada" e "ineficiente".

Esta é a nova França de François Hollande, hoje o país com a mais alta carga tributária do mundo. Neste ano, estima-se que as receitas tributárias irão chegar a 46,3% do PIB. O primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault, do Partido Socialista, criou nada menos que 84 novos impostos apenas nos últimos dois anos. E essa cifra ainda não contém aquela que seria a mais egrégia de suas façanhas: um imposto de 75% sobre rendas superiores a um milhão de euros. Tal proposta foi considerada inconstitucional. Mas os social-democratas não devem se preocupar, pois alguns políticos franceses não irão deixar essa mera decisão judicial atrapalhar seus planos: a proposta ainda continua sendo discutida na assembléia nacional francesa, com algumas pequenas alterações.

E a possibilidade de essa proposta ser aprovada vem gerando algumas consequências inesperadas. Uma das diversões favoritas dos franceses — junto com os queijos brie e as baguettes — poderá ser duramente atingida: o futebol. Os times franceses correm o risco de serem relegados às pequenas ligas caso esta nova proposta seja aprovada. Afinal, seus melhores jogadores ganham altos salários. Uma alíquota de 75% sobre seus salários fará com que eles exijam salários ainda maiores, apenas para manter o mesmo valor real de antes. E dado que os custos dos jogadores já são hoje uma grande preocupação, acrescentar um pesado tributo sobre salários já historicamente altos será um fardo insuportável para a maioria dos times franceses, que terão muitas dificuldades em se manterem competitivos.

Como consequência, já se fala em isenções para times de futebol. O jornal francês Le Figaro estima que uma isenção tributária criada especificamente para os jogadores de futebol poderia poupar à liga francesa 82 milhões de euros por ano. O time com a mais alta folha de pagamento, o Paris Saint-Germain, pouparia 32 milhões de euros. O Olympique de Marseille, 14,2 milhões. E o Lyon, 12,5 milhões.

Salvar o futebol é uma atitude que pode manter as massas pacificadas, mas é curioso notar como tal medida ensina uma lição bem mais ampla: ora, se times e jogadores de futebol necessitam de isenções tributárias para se manter competitivos, por que não todo o resto da economia? É verdade que os salários dos jogadores são maiores e as alíquotas tributárias são mais altas, mas a lógica básica também se aplica ao proletariado e às demais classes trabalhadoras. Estes também são escorchados por impostos, e poucos saem em sua defesa pedindo isenções ou impostos menores. 

Mas prossigamos.

Algumas pessoas poderiam pensar que os 84 novos impostos criados ao menos teriam o efeito benéfico de reduzir um pouco o fardo da dívida pública do governo. Afinal, há outros países que aparentemente também seguem este receituário. A Noruega, por exemplo, é famosa por ter altos impostos. Mas a diferença crucial é que o governo norueguês apresenta incríveis superávits orçamentários de dois dígitos.

Mas não é isso o que ocorre na França. Tendo a maior carga tributária do mundo, é natural que o gasto público também já tenha se tornado o maior do mundo, de 57% do PIB. Apenas para se ter uma ideia de como as coisas funcionam por lá, a França tem pelo menos 30.000 funcionários públicos cuja única função é supervisionar empresas de consultoria privada que são pagas pelo governo para elaborar planos de governo. Apenas uma amostra de como o capitalismo de estado e o socialismo são grandes parceiros de cama.

Essa diferença entre receitas e gastos faz com que o governo tenha de contrair empréstimos para fechar suas contas. Naturalmente, esses empréstimos não advêm dos cidadãos franceses, que praticamente ficam sem nenhum dinheiro para investir após a Receita Federal abocanhar sua fatia. Logo, os empréstimos vêm de fora. A consequência é que a França possui hoje uma dívida externa de mais de $5 trilhões. Isso é o equivalente a quase $75.000 por pessoa (para se ter uma ideia, esse valor é 50% maior do que a dívida per capita dos EUA, que são um país notoriamente endividado).

Como os próprios francês gostam de dizer, plus ça change, plus c'est la même chose. Mais de 200 anos atrás, Jean-Baptiste Colbert alertou o rei Luis XIV que "A arte da tributação consiste em depenar o ganso de modo a obter a maior quantidade de penas com o menor volume possível de grasnido." O som que hoje se ouve na França é o de franceses grasnando indignados. Os gansos com mais penugem — Gérard Depardieu, membros da família Peugeot e da Chanel — já deixaram o país em busca de um futuro melhor.

David Howden é professor assistente de economia na Universidade de St. Louis, no campus de Madri, e vencedor do prêmio do Mises Institute de melhor aluno da Mises University.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

GORDURA SATURADA NÃO É A VILÃ PARA O CORAÇÃO, DIZ ESTUDO

DA EFE, DE LONDRES


As gorduras saturadas da manteiga, do queijo e da carne vermelha não são tão prejudiciais para o coração como se pensava até agora, de acordo com um estudo publicado nesta quarta-feira (23) na revista médica "British Medical Journal".

A pesquisa foi coordenada por Aseem Malhotra, um dos cardiologistas mais prestigiados do Reino Unido e especialista do hospital universitário de Croydon, em Londres.

Em seu artigo, Malhotra afirma que o consumo de produtos com pouca gordura "paradoxalmente" aumentou o risco de ter doenças cardiovasculares.

Segundo o especialista, as pessoas consomem todo tipo de produtos desnatados pensando que são melhores para a saúde e que ajudarão a perder peso, mas que, na realidade, muitos deles contêm grandes quantidades de açúcares acrescentados.

A explicação é que a indústria alimentícia substitui as gorduras eliminadas nos alimentos por açúcares e adoçantes, já que a comida livre de gordura não é tão saborosa, acrescentou Malhotra.

No entanto, acrescenta o especialista, é necessário diferenciar as chamadas "gorduras trans" (encontradas em fast food, produtos de confeitaria e margarina), que são prejudiciais, e as gorduras do leite, do queijo e da carne, que não são ruins para a saúde.

O especialista criticou a "obsessão" médica com os níveis de colesterol, que levou milhões de pessoas a tomarem muitos remédios com estatinas para reduzir a quantidade de gorduras prejudiciais no sangue.
Miguel Mendez/AFP 
Filé sendo colocado em grelha de churrascaria de Buenos Aires, Argentina


Para isso, o cardiologista recomenda que as pessoas com risco de sofrer doenças cardiovasculares façam uma dieta mediterrânea rica em peixes oleosos, azeite de oliva, verduras e frutos secos.

"É hora de romper o mito do papel das gorduras saturadas nas doenças do coração" que esteve presente na indicação dietética e nas recomendações nutricionais durante quase quatro décadas, afirmou Malhotra.

A teoria foi respaldada por outros especialistas como David Haslam, Chefe do Fórum Nacional sobre a Obesidade, que afirmou que a evidência científica está demonstrando atualmente que os carboidratos refinados e o açúcar são na realidade os culpados pelo aumento da gordura no sangue.

Timothy Noakes, professor de ciências do esporte e da atividade física na Universidade da Cidade do Cabo, acrescentou que "o pior erro médico de nossa época foi considerar a alta concentração de colesterol no sangue como a causa exclusiva da doença cardíaca coronária". EFE   Folha de SP

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

OS FATORES QUE LEVARAM AO FIM DA ESCOLÁSTICA

Este artigo é a última parte da série sobre os pós-escolásticos. Leia a primeira e a segunda parte.

6. Os últimos pós-escolásticos e o declínio do escolasticismo

Além de Mariana, os historiadores costumam destacar mais dois escolásticos tardios contemporâneos a ele: Leonardo Léssio (1554-1623) e Juan de Lugo (1583-1660).

Léssio, jesuíta nascido na Bélgica, sustentava que o preço justo de qualquer bem era aquele determinado pela estimativa comum de mercado. Embora admitisse que um preço determinado pelo governo também pudesse ser justo, apontou diversos casos em que o preço de mercado teria de ser escolhido em detrimento do preço legal. Primeiro, quando o preço de mercado é menor e, segundo, quando, "na alteração de circunstâncias de aumento ou diminuição da oferta e fatores semelhantes, as autoridades forem negligentes em alterar o preço legal".

Ainda mais fortemente, até mesmo um indivíduo poderia pedir um preço acima do teto legal caso as autoridades estivessem "mal informadas sobre as circunstâncias comerciais", o que, segundo ele, seria provável de acontecer praticamente sempre. Para ele, a demanda do mercado era o fator determinante dos preços e isso não dependia das despesas dos comerciantes: caso essas despesas fossem maiores (ou menores) do que o preço de venda, os comerciantes deveriam assumir os prejuízos (ou auferir os lucros).

Como ressalta Jesús Huerta de Soto no livro editado por Holcombe, Léssio enxergou com bastante clareza como os mercados econômicos estão inter-relacionados, inclusive o mercado cambial. Aplicou a boa teoria econômica também no campo monetário e no dos salários, que para ele deveriam ser determinados pelas leis da demanda e oferta, tal como qualquer outro preço, o que configuraria a existência de justiça. A respeito do que seria um "salário mínimo ideal", ele percebeu que a simples existência de outra(s) pessoa(s) disposta(s) a executar o mesmo trabalho recebendo aquele salário era um indicador de que esse salário não poderia ser "injusto". Sustentava também o que chamava de "salário psíquico": "Se a obra traz consigo status social e emolumentos, o pagamento pode ser baixo porque o status e vantagens associados são, por assim dizer, uma parte do salário".

Escreveu também que os trabalhadores são contratados pelo empregador por causa dos benefícios que aqueles lhes proporcionam, benefícios esses que devem refletir a produtividade. Assim, Léssio estabeleceu um esboço muito bem elaborado da teoria da produtividade marginal da demanda por mão de obra e, consequentemente, uma teoria para explicar a determinação dos salários, bem semelhante ao que foi estabelecido pelos austríacos e outros economistas neoclássicos, no final do século XIX.

Enfatizou ainda a importância do empreendedorismo na determinação do lucro: a qualidade do empreendedor, a "indústria" de combinar eficientemente fatores de produção, é escassa e, portanto, o empreendedor pode ganhar uma renda muito maior do que os que não são aquinhoados com esse dom. Léssio também fornece uma análise sofisticada da moeda, em que demonstra que seu valor depende de sua oferta e de sua demanda. Quando há excesso de oferta de uma dada moeda, ela valerá menos, tanto para a compra de bens como para a compra de moeda estrangeira e, mutatis mutandis, uma escassez de moeda aumenta o seu valor.

Contribuiu também para o banimento da "lei da usura", com o argumento carentia pecuniae, segundo o qual o credor sofre pela falta de sua liquidez durante o prazo do empréstimo e que, portanto, ele tem o direito de cobrar juros por esta perda. O tempo de renúncia à liquidez, dessa forma, é moralmente justificável. Argumenta que letras de câmbio, ou quaisquer direitos a dinheiro futuro, devem sempre ter um desconto, que é, naturalmente, a taxa de juros. Assim, para Lessius, o preço a ser recebido pela renúncia ao dinheiro em que o emprestador incorre durante o período do empréstimo deve ser estabelecido nos mercados organizados de empréstimos, os"loanable funds markets".

Para diversos estudiosos do escolasticismo, com a cláusula carentia pecuniae Leonard Léssio contribuiu para acabar de uma vez por todas com a proibição da usura, embora, formalmente, ainda tivesse mantido a proibição. Mas foi, sem dúvida, o teólogo cujas visões sobre a usura mais decididamente marcaram a chegada de uma nova era. Foi um precursor do mundo financeiro moderno.

O derradeiro grande nome dos escolásticos tardios de Salamanca foi o cardeal jesuíta Juan de Lugo, no século XVII, em que o poder da Espanha na Europa já estava em declínio. Estudou Direito e Teologia em Salamanca e em seguida foi para Roma lecionar no colégio jesuíta da capital italiana. Depois de ensinar Teologia em Roma por 22 anos, Lugo foi feito cardeal e tornou-se membro de várias comissões influentes da Igreja em Roma. Um teórico bastante respeitado, Lugo é considerado por muitos como o maior teólogo moral desde São Tomás. Escreveu um livro sobre Psicologia e outro sobre Física e sua obra mais importante sobre Direito e Economia foi a De Justitia et Jure, publicado em 1642, livro que passou por várias edições.

Sua Teoria do Valor é uma joia preciosa da Escola de Salamanca, que provê uma explicação subjetiva e bastante avançada para a época a respeito da determinação do valor. Os preços dos bens, observou, flutuam "por conta de sua utilidade em relação à necessidade humana, e apenas por conta da estimativa, pois as joias são muito menos úteis do que o milho, e ainda assim seu preço é muito maior". É fácil perceber que essa afirmativa soa como uma premonição da teoria subjetiva do valor de acordo com a utilidade marginal e para destrinchar o "paradoxo do valor": o milho é mais abundante do que as joias e, portanto, tem maior valor de uso, mas é mais barato no preço. A resposta para o paradoxo é que as estimativas subjetivas ou avaliações diferem do valor objetivo de uso, e este por sua vez é afetado pela escassez relativa.

Para tornar essa explicação perfeita, faltou apenas a Lugo incluir o conceito de utilidade marginal. A subjetividade de Lugo significa que as estimativas ou valorações são feitas tanto por pessoas prudentes como também por pessoas imprudentes ou, em linguagem moderna, de maneira racional ou não racional. Portanto, o preço justo é o preço de mercado determinado pela demanda e valorização do consumidor e, se os consumidores são tolos ou avaliarem tolamente, paciência, pois o preço de mercado será um preço justo de qualquer forma.

Ao abordar o comércio, Lugo acrescenta ao conceito de custo de oportunidade os gastos mercantis. Um comerciante só vai continuar a fornecer um produto se o preço cobrir suas despesas e a taxa de lucro que ele poderia ganhar caso exercesse outras atividades.

Em sua teoria monetária, Lugo é um autêntico escolástico tardio: o valor ou poder de compra da moeda é determinado pela qualidade de seu conteúdo metálico, sua oferta e sua demanda. E a moeda sempre se move da área onde seu valor é inferior para onde seu valor é maior.

No que diz respeito à usura ele não concorda com as implicações claras de Léssio e outros de que a proibição da usura deve terminar. Por essa razão, ele se recusa a aceitar o argumento de Léssio de que o credor tem o direito de cobrar pela falta de seu dinheiro durante o período do empréstimo. Mas, por outro lado, admite poderosas armas favoráveis à cobrança de juros, a saber, o risco e o lucrum cessans. Chega a ampliar o conceito de risco explicitamente e também amplia a cláusula do lucrum cessans, pois permite que o credor inclua não apenas o lucro provável de seu empréstimo, mas também a expectativa do lucro que poderia obter em uma aplicação alternativa.

Outro autor importante desse mesmo período foi o filósofo e jurisconsulto genovês Sigismundo Scaccia, cujoTractatus de Commerciis et Cambiis foi publicado em 1618 e reeditado com frequência na Itália, França e Alemanha, até cerca de meados do século XVIII. O ensino de Scaccia é baseado principalmente no da Escola de Salamanca e em Léssio, embora também muitas vezes ele se refira aos escolásticos medievais. Sobre o valor dos bens, ele cita Covarrubias e Azpilcueta no sentido de que as coisas valem menos quando são abundantes e mais quando são escassas e argumenta que um artigo ser "abundante" significa que muitas pessoas o ofertam para a venda para venda, e "escasso" quando mais compradores de vendedores surgirem nos mercados. Em seu capítulo sobre as bolsas estrangeiras, Scaccia menciona e endossa a explicação dada por Soto para o prêmio cobrado sobre letras de câmbio negociadas na Antuérpia e em Espanha e sustenta que a doutrina de Soto se aplica de uma forma muito lúcida para as trocas entre França e Itália.

É evidente que a teoria monetária da Escola de Salamanca espalhou-se por vários países durante as décadas iniciais do século XVII e que continuou a ser desenvolvida e aplicada nos principais tratados sobre Teologia e Jurisprudência. Embora a maioria dos membros originais da Escola tenham sido dominicanos, entre os escritores do século XVII que continuaram seu ensino havia muitos jesuítas. Como moralistas práticos, os jesuítas eram muito influentes naquele momento, uma vez que grande parte de seu trabalho estava no confessionário. Assim, produziram um grande número de manuais para uso dos confessores, em que muitas vezes discutiam problemas complicados de ética comercial com linhas escolásticas.

Pode-se supor que suas doutrinas tenham sido filtradas através dos leigos. Como salienta Marjorie Grice-Hutchinson, "não estou sugerindo que estes trabalhos tediosos constituíam a leitura favorita do "honnête homm" e médio, mas só temos a quem recorrer em Pascal, em suas Cartas Provinciais, para perceber como foi grande a influência dos teólogos jesuítas sobre a vida comum e o pensamento na França naquele período". 

Pascal empregou toda a sua verve irônica atacando muitos dos escritores cuja obra analisamos (ele dedica a Carta Oitava para impugnar a sua doutrina da usura), e é evidente que, escrevendo em 1656, ele olhou para os nossos escritores espanhóis e todas as suas obras como uma força viva e perigosa para seus padrões. [pp. 160-163]

Por sua vez, pensadores do calibre de Condillac, Turgot, Galiani e outros afirmaram que sua própria ênfase na utilidade e raridade era uma novidade. Todos os três escritores foram famosos por seu ensino, especialmente na Teologia e na Jurisprudência e é difícil acreditar que não tinham lido nenhum dos pós-escolásticos. Como filósofos do século XVIII, talvez tenham relutado em reconhecer sua dívida para com os casuístas. Mas nenhuma relutância pode ser estendida a Grotius, Pufendorf, ou Hutcheson. Pode-se supor, como Hutchinson, que Galiani se deparou com os elementos essenciais da sua teoria do valor no trabalho em alguns autores anteriores e que a inteligência e graça com que ele expressa estas verdades antigas fez com que parecessem inovações para seus contemporâneos. No entanto, a existência de uma teoria subjetiva do valor na obra dos escolásticos tardios e seus sucessores pode ter pavimentado o caminho para a recepção favorável concedida à grande obra de Galiani.

7. A decadência do escolasticismo

Às portas da Renascença, a Escolástica já se encontrava moribunda. Com o declínio dos impérios português e espanhol, a filosofia medieval cristã praticamente desapareceu, enquanto o cartesianismo, o positivismo e o agnosticismo kantiano alcançavam o seu ápice.

O chamado iluminismo, um movimento intelectual da elite europeia do século XVIII, que procurou mobilizar o poder da razão para reformar a sociedade e o conhecimento herdados da tradição medieval, muitas vezes é apontado como sendo responsável pelo fim do escolasticismo. O Iluminismo floresceu até cerca de 1790-1800, após o qual a ênfase na razão deu lugar à ênfase na emoção e surgiu um movimento contra-iluminista. No entanto, quando o movimento iluminista eclodiu, praticamente já não existiam autores escolásticos. Apenas no final do século XIX é que houve uma tentativa de resgatar o escolasticismo sob um prisma mais moderno, principalmente com Jacques Maritain (1882-1973), um filósofo francês de orientação católica e tomista, cujas obras influenciaram a democracia cristã.

O ataque fatal à Escolástica veio de dois campos contrastantes, um externo e o outro interno, mas curiosamente aliados: o aumento dos grupos de protestantes calvinistas e a Igreja, que a denunciou por sua suposta decadência e defeitos de formação moral.

O brilho dos argumentos pós-escolásticos para justificar a usura não impressionou seus inimigos, nem mesmo com toda a escolástica jesuítica de "casuísmo", isto é, de aplicar princípios morais, naturais e divinos para os problemas concretos da vida quotidiana. Pode-se pensar que a tarefa da casuística deve ser considerada importante e nobre, pois, se existem princípios morais gerais, por que não deveriam ser aplicados à vida diária? Mas ambos os conjuntos de adversários conseguiram rapidamente fazer da própria palavra "casuísmo" um termo vulgarizado (o que acontece até hoje), a obediência estrita a rigorosos preceitos morais e a imposição de dogmas ultrapassados e "reacionários".

Essa dupla aliança externa e interna contra a Escolástica teve efeitos muito mais profundos do que a discussão sobre a usura. Na raiz do catolicismo como religião, Deus pode ser compreendido pelas faculdades do homem, ou seja, não apenas por meio da fé, mas também pela razão e os sentidos. O protestantismo e, especialmente, o calvinismo, coloca Deus severamente fora das faculdades do homem e considera, por exemplo, modalidades sensoriais de amor do homem por Deus, como pinturas ou esculturas, como constituindo atos de idolatria e blasfêmia, que precisam ser eliminados para limpar o caminho para a única comunicação adequada com Deus, que seria a pura fé na revelação. A ênfase tomista na razão como meio de apreender a lei natural de Deus e até mesmo aspectos da lei divina choca-se com a ênfase protestante na fé na vontade arbitrária de Deus.

A tendência protestante básica, com raras exceções, era opor-se a qualquer lei natural para derivar Ética ou Filosofia Política a partir do uso da razão do homem, pois o homem era muito pecaminoso e corrupto em sua razão e seus sentidos, uma personificação da corrupção e, portanto, só a fé pura em comandos arbitrários, e revelada por Deus, era aceita como base para a ética humana. Essa descrença por parte dos protestantes na lei natural os impedia de criticar as ações do Estado. Com efeito, o calvinismo e até o luteranismo foram incapazes de contestar o Estado absolutista que floresceu em toda a Europa durante o século XVI e triunfou no século XVII.

Como explica Rothbard: 



Se o protestantismo abriu o caminho para o Estado absoluto, os secularistas dos séculos XVI e XVII, o abraçaram. Despojado de leis naturais críticas do Estado, os novos secularistas, como o francês Jean Bodin, adotaram o Direito Positivo do Estado como o único critério possível para a política. Assim como os protestantes antiescolásticos exaltaram a vontade arbitrária de Deus como fundamento da ética, os novos secularistas levantaram a vontade arbitrária do Estado ao status de "soberano" incontestável e absoluto. No nível mais profundo da questão de como sabemos o que sabemos, ou "epistemologia", tomismo e escolástica sofreram os assaltos contrastantes, mas aliados, dos defensores da "razão" e do "empirismo". No pensamento tomista, a razão e o empirismo não estão separados, mas aliados e entrelaçados. A verdade é construída pela razão em uma base sólida na realidade empiricamente conhecida. O racional e o empírico foram integrados em um todo coerente.

Rothbard prossegue sua excelente narrativa escrevendo que na primeira parte do século XVII, dois filósofos contrastantes conseguiram fortalecer o racionalismo e o empirismo, que continuam a assolar o método científico até os dias atuais. Foram eles o inglês Francis Bacon (1561-1626) e o francês René Descartes (1596-1650). Descartes foi o campeão de uma "razão" dissecada matematicamente e divorciada da realidade empírica, enquanto que Bacon foi o defensor de peneirar incessantemente os dados empíricos. Rothbard afirma enfaticamente: 



Tanto o ilustre advogado inglês, que passou a se tornar Lord Chancellor (Lord Verulam), Visconde do reino e juiz corrupto e o aristocrata francês tímido e errante, concordaram em um ponto crucial e destrutivo: o rompimento da razão e do pensamento a partir de dados empíricos. Assim, a partir de Bacon surgiu a tradição inglês "empirista", mergulhada sem pensar em dados incoerentes, e de Descartes a tradição puramente dedutiva e, por vezes, a tradição matemática do "racionalismo" continental.

O resultado foi que a lei natural, que antes integrava o racional com o empírico, foi vítima de um verdadeiro assalto, resultando em uma mudança drástica e sistemática no pensamento europeu no período "pré-moderno" (séculos XVI e XVII, especialmente), Ocorreu em razão disso uma mudança radical nas universidades.

Os teólogos e filósofos que escreveram e pensaram sobre Economia, Direito e outras disciplinas da ação humana durante os períodos medieval e renascentista eram professores universitários. Paris, Bolonha, Oxford, Salamanca, Roma e muitas outras universidades foram as arenas para a produção intelectual e de combate durante séculos. E mesmo as universidades protestantes do início do período moderno eram centros de ensino do Direito Natural.

Mas dos grandes teóricos e escritores dos séculos XVII e XVIII quase nenhum foi um professor. Eram panfletários, empresários, errantes aristocratas, como Descartes, funcionários públicos menores, como John Locke, e clérigos como o bispo George Berkeley. Essa mudança de foco foi muito facilitada pela invenção da imprensa por Johannes Gensfleisch zur Laden zum Gutenberg (1398-1468), que tornou muito menos dispendiosa a publicação de livros e escritos e criou um mercado muito mais amplo para a produção intelectual. A impressão foi inventada em meados do século XV e no início do século XVI tornou-se possível, pela primeira vez, ganhar a vida como escritor independente, com a venda de livros.

Uma das consequências dessas mudanças foi o esfacelamento da Escolástica e do tomismo do pensamento ocidental, facilitado pela substituição do latim – que na Idade Média era o idioma em que todos escreviam – para o vernáculo de cada país. Esse fato contribuiu para desfazer uma comunidade intelectual que até então tinha uma linguagem comum. Os protestantes tiveram papel decisivo nessa alteração, pois julgavam que a Bíblia deveria ser lida e estudada por todos na linguagem que dominavam.

Por fim, houve um verdadeiro ataque contra a Cia. de Jesus, que despontou em França com o manual Escobar. O assalto foi liderado por um grupo de cripto-calvinistas influentes dentro da Igreja Católica francesa, que desfecharam forte ataque sobre o que diziam ser a "suposta frouxidão moral da Ordem dos Jesuítas". Essa guerra aos jesuítas e sobre sua devoção à razão e à liberdade da vontade tinha começado na Bélgica e foi acelerada no final do século XVI por Michael Bay, chanceler da grande Universidade de Louvain. O bayanismo atacou Leonardo Léssio e os jesuítas na faculdade. No início do século XVII, dois discípulos de Bay, ex-alunos dos jesuítas, tomaram a defesa de sua causa, sendo o mais importante Cornelius Jansen, fundador do movimento neocalvinista jansenista, que se tornou extremamente poderoso na França. Jansen, como muitos teólogos protestantes, instou abertamente a volta à pureza moral de Santo Agostinho e das doutrinas cristãs dos séculos IV e V.

O filósofo e matemático francês Blaise Pascal assumiu a causa jansenista com um ataque aos jesuítas, particularmente Escobar, por seu suposto fracasso moral em ser condescendente com a usura. Pascal ainda inventou um novo termo popular, "escobarderie", com o qual denunciou a disciplina importante da casuística como sendo evasiva e repleta de tergiversações. Outra vítima da caneta venenosa de Pascal foi o austero jesuíta francês Etienne Bauny que, em Somme des Pechez (1639), estendeu o enfraquecimento da proibição da usura, indo longe demais — segundo Pascal — para justificar taxas de juros superiores à taxa máxima permitida por decreto real, com o argumento de que "os devedores as aceitaram voluntariamente". Embora os jansenistas tenham sido condenados pelo Papa, a agitação indecente de Pascal contra os jesuítas produziu um efeito considerável para ajudar a acabar com a primazia do pensamento escolástico, pelo menos na França.

Em suma, a visão de mundo humanista sofreu diversos ataques, vindos de vários fronts e um dos muitos efeitos perversos dessas críticas foi o que denomino de "desumanização" da Economia e das demais ciências da ação humana, fenômeno que foi aguçado na primeira metade do século XIX com o advento do positivismo de Auguste Comte. Um estrago quase que irreparável e que a Escola Austríaca até hoje tenta neutralizar.

8. Conclusões

Podemos extrair conclusões gerais a partir de nosso estudo da teoria econômica da Escola de Salamanca. A principal é que algumas das principais ideias da teoria econômica moderna têm uma história mais longa do que muitas vezes se supõe. Creio que o leitor que tenha despendido tempo para estudar aqueles antigos tratados não pode deixar de ficar impressionado com a grande medida de acordo sobre os problemas fundamentais da teoria econômica, que uniram os homens de todos os países e períodos, vivendo em vários sistemas religiosos, culturais, sociais e econômicos. Hutchinson, a esse respeito, cita Marshall. "As novas doutrinas têm complementado o velho, o estenderam, desenvolveram, e às vezes o corrigiram, e muitas vezes lhes deram um tom diferente ou uma nova distribuição de ênfase, mas muito raramente o subverteram". [pp 165-166]

Muitas vezes somos advertidos contra o pecado de desejarmos ler nossas próprias ideias em trabalhos de escritores mais velhos. Muitas vezes, de fato, a literatura econômica antiga agora parece remota sob o ângulo de nossas próprias formas de pensamento e por isso não nos desperta muito interesse. Com isso a história das doutrinas econômicas passa a ser considerada como um luxo, como algo supérfluo, já que os refinamentos – especialmente os modelos matemáticos com sua elegância - da teoria moderna deixam menos tempo para isso. Os economistas nos últimos 120 anos vêm apresentando uma lamentável tendência de desprezar os autores do passado e isso vem se acelerando a partir da segunda metade do século XX, quando as técnicas econométricas se desenvolveram rapidamente e os computadores foram popularizados.

Com isso, infelizmente, a Economia, uma ciência que lida claramente com a ação humana no processo de mercado em condições de incerteza genuína passou a receber tratamento semelhante ao de uma ciência exata. Um desastre. Desumanizaram algo que é humano, sob o pretexto de estarem produzindo "ciência". 

Mas há certos eventos na história do pensamento econômico que são familiares para a maioria dos estudantes. Sabemos, por exemplo, que a Saxônia foi o cenário de uma controvérsia monetária famosa no século XVI, que a Itália foi o país com a melhor teoria monetária e a pior política monetária no século XVII, que os fisiocratas inventaram um esquema elaborado chamado de Tableau Économique. E os britânicos sentem orgulho de Adam Smith, David Ricardo e Alfred Marshall.

No entanto, a literatura econômica pós-escolástica, particularmente a do século XVII e XVIII, em Espanha, Portugal e na Itália, é tão extensa e interessante que exige que lhe façamos justiça. É uma tarefa, sem dúvida, que temos que cumprir se quisermos de fato re-humanizar a Ciência Econômica.

Creio que, depois de tudo o que foi abordado no artigo sobre as ideias econômicas dos escolásticos tardios, desejo apenas, primeiro, enfatizar que suas doutrinas econômicas eram compatíveis com a da Escola Austríaca e, segundo, reforçar — já que demonstrá-lo demandaria substancial pesquisa adicional — que suas ideias influenciaram importantíssimos pensadores não escolásticos, como Turgot, Galeani, Condilac, Say, Bastiat, Molinari, Rocher e, por fim, Carl Menger.

Espero que este despretensioso artigo tenha servido para deixar claro que foi no ambiente da "Escolástica Tardia" que se produziram muitas importantes concepções do jus-naturalismo e da ideia de Direito Internacional, além dos tratados de Economia que viriam a influenciar a escola marginalista e o liberalismo da Escola Austríaca nos séc. XIX e XX.

Por isso, posso encerrar com as palavras de meu amigo Alejandro Chafuen que, na conclusão de seu famoso livroEconomia y Etica: Raices Cristianas de La Economia de Mercado, escreve:



Es imposible probar que todos lós escritos de la escolástica tardia favorecían el libre mercado. Tampoco podemos concluir diciendo que para ser um buen Cristiano hay que creer em la economia libre. El hecho de que gente santa defienda uma cierta teoria no es garantia de certeza. El análisis de lós escritos de estos autores sugiere que lós economistas modernos defensores de la libertad econômica tienen para com ellos uma deuda mayor de la que se imaginan. Lo mismo podemos decir de la sociedad libre. [p. 201]

E as últimas palavras de sua conclusão são:



"La propriedad privada está fundamentada em la libertad humana, que a su vez se desprende de la naturaleza humana que, como toda naturaleza, es creada por Dios. La propriedad privada es um prerrequisito esencial para El respeto de las libertades econômicas. La misma seguirá siendo amenazada desde vários frentes y su defensa dependerá de uma nueva generación de escolásticos, hombres de buena formación em El campo de la filosofía moral y de lãs ciências sociales". [p. 202, negrito meu]

O que posso acrescentar a essas palavras de Chafuen, a não ser um "é verdade" repleto de esperança nos jovens que cada vez se interessam mais pela Escola Austríaca, a mais condizente com os valores da ética e da liberdade individual dentre todas as Escolas de Pensamento Econômico?

É verdade, Alex! Como escreveu São Paulo aos coríntios (II Cor 3,17): "Ubi autem Spiritus Domini, ibi libertas". Esta frase do apóstolo dos gentios, que escolhi como lema para minha página na Internet, significa que onde estiver o Espírito do Senhor, aí estará também a liberdade.

Referências bibliográficas:

CALZADA, Gabriel.Las Orígines de la Escuela Austriaca, palestra proferida em 24/1/ 2008 na Universidade Francisco Marroquin, encontrada em: http://www.newmedia.ufm.edu 

CATHARINO, Alex. Antiguidade e Idade Média, A Filosofia Moral e a Teoria Política de Santo Tomás de Aquino, Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista - Cieep, Rio de Janeiro, sem data.

CHAFUEN, Alejandro A. Economia y Etica: Raices Cristianas de la Economia de Libre Mercado,Rialp, Madrid, 1991

GRICE-HUTCHINSON, Marjorie. The School of Salamanca, Oxford at Clarendon Press, London, 1952, disponível na forma de iBook em: www.mises.org.br 

HOLCOMBE, Randall G. "The Great Austrian Economists." Ludwig von Mises Institute, 1999, iBook.

IORIO, Ubiratan J. Economia e Liberdade: A Escola Austríaca e a Economia Brasileira, Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1997 (2ª ed.)

LAURES, John, S.J. The Political Economy of Juan de Mariana, New Yoork, Fordham University Press, 1928, disponível em: www.mises.org em pdf.

ROTHBARD, Murray. Economic Thought Before Adam Smith: An Austrian Perspectiveon the History of Economic Tought, vol. I, Elgar, 1995

SANTOS, Renan. Escolástica: A filosofia durante a Idade Média, em:http://educacao.uol.com.br/disciplinas/filosofia/escolastica-a-filosofia-durante-a-idade-media.htm

SOTO, Jesus H. A Escola Austríaca, S. Paulo, Instituto Mises Brasil, 2ª ed, 2010, cap. 3

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Visite seu website.