segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

DIÁRIO DA EUROPA

1.
O Papa Francisco publicou a sua exortação evangélica e o jornalismo progressista (e preguiçoso) aplaudiu em delírio. Parece que o Papa tinha lançado um ataque devastador ao capitalismo, propondo uma via revolucionária - ou, pelo menos, bolivariana, para que o mundo pudesse seguir o excelso caminho da Venezuela de Maduro. 

Com a devida vénia aos alucinados, fui ler a exortação. E, com surpresa, verifiquei que em 220 páginas, o Papa dedica umas 10 ao estado actual da economia. E para dizer o quê? 

Simplesmente, o que qualquer cristão aprende desde os tempos da catequese: que temos obrigações para com os pobres e excluídos; que o mercado livre não resolve todos os problema sociais; que o dinheiro, por mais importante que seja, deve estar ao serviço da ética e do ser humano. 

E, pormenor fundamental, que mal vai o mundo quando permitimos que os mercados e a especulação financeira tiranizem todas as relações pessoais. 

Escusado será dizer que subscrevo cada palavra de Francisco. E, mais ainda, subscrevo cada palavra precisamente porque defendo o mercado livre. Isso significa duas coisas. 

Em primeiro lugar, e tal como afirma Francisco, que o mercado só funciona quando existe uma cultura de responsabilidade e valores morais a servi-lo (ler Adam Smith). 

E, em segundo lugar, que confundir uma "economia de mercado" com uma "sociedade de mercado" é não entender o papel importante, porém especificamente instrumental, da primeira como "sistema de liberdade natural" (Adam Smith novamente). 

Francisco relembrou a ouvidos modernos a mensagem da Igreja desde tempos antigos. O espanto orgásmico que escorreu por aí não diz nada sobre o Papa; mas diz muito sobre a ignorância evangélica de quem só agora aterrou na Doutrina Social da Igreja. 

2.
Já ninguém lê Bertrand de Jouvenel. Que pena. No século 20 europeu (e sobretudo francês), é difícil encontrar um filósofo que tenha analisado tão bem a forma como o Estado foi concentrando áreas cada vez maiores de poder sobre a vida dos indivíduos. 

O fenómeno começou na Idade Média quando as monarquias absolutas começaram por arrasar com a autoridade do baronato medieval. Continuou depois na Idade Moderna, quando os revolucionários franceses, longe de derrubarem a monarquia absoluta, acabaram por se apropriar dos seus mecanismos de controlo e violência (Tocqueville já tinha dito o mesmo). 

E continuou no século 20, quando os estados totalitários se tornaram, precisamente, totalitários. E hoje? 

Hoje, depois do fim das utopias, talvez exista a ilusão de que o Estado não é mais o "Minotauro" que Bertrand de Jouvenel tanto temia. Mas isso não passa de uma ilusão: sob a capa do "bem comum", o Estado continua a deter um poder sobre a vida dos indivíduos que seria impensável até para um rei absolutista como Louis 13. 

Se dúvidas houvesse, bastaria ler o que se passou no Reino Unido: conta o "Sunday Telegraph" que uma imigrante italiana grávida foi anestesiada à força para que os médicos pudessem retirar a criança do ventre. Motivo? 

Os "serviços sociais", preocupados com a saúde mental da mãe, consideraram que uma cesariana forçada era no melhor interesse de todos. A criança, hoje com 15 meses, continua numa instituição do Estado. A mãe apelou para a justiça. Vários juristas dizem que o caso é "insólito", para usar um eufemismo. 

Não, não é "insólito". É apenas a conclusão lógica de um processo de abuso autoritário crescente em que até o corpo de cada um não está a salvo das garras do Estado. 

3.
E por falar em corpos: no Antigo Egipto, nenhuma mulher jovem e bonita que morresse precocemente era entregue ao cangalheiro da época. As famílias sabiam que, antes das cerimónias fúnebres propriamente ditas, era preciso deixar apodrecer o corpo um bocadinho antes que o mesmo fosse parar às mãos de um homem. 

Passaram 5 mil anos. Os faraós desapareceram da paisagem. Mas é sempre bom saber que, na vizinhança do Oriente Médio, ainda há quem se preocupe com os cadáveres femininos. 

Leio na "Veja" que um mufti da Arábia Saudita, por exemplo, decidiu proibir os médicos, em geral, e os médicos legistas, em particular, de tocarem ou autopsiarem o corpo nu de uma mulher. O serviço só pode ser feito por outras mulheres. 

Pessoalmente, não sei se a proibição do mufti se explica por respeito puritano face às mulheres mortas - ou por desconfiança paranóica face aos homens demasiado vivos. 

Mas alguém devia explicar ao mufti que, aberração por aberração, existe sempre a hipótese de também existirem mulheres (vivas) para quem o corpo de uma mulher (morta) pode ter os seus encantos.Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

domingo, 8 de dezembro de 2013

O VALOR DOS VALORES

Aspecto importante da produtividade de um país, que não se mede em infraestrutura, ambiente de negócios, nível técnico dos trabalhadores e empresários ou nível de investimento. Falo da matriz cultural da produção. 


Em visita recente à Alemanha, fiquei mais uma vez impressionado pelo grau de organização, limpeza e qualidade da produção visto desde a feira livre até a empresa de alta tecnologia. O que me chamou mais a atenção foram o entusiasmo e a satisfação de executar um bom trabalho. 

É um círculo virtuoso: na medida em que cada um trata os demais com eficiência e cortesia, também recebe bom tratamento. 

Apesar de ter origem cultural diferente, o Brasil tem feito grandes progressos nessa direção. Tive duas experiências muito gratificantes que mostram isso. 

A primeira foi a construção da operação brasileira de uma multinacional que atingiu os melhores índices de eficiência, qualidade e satisfação do cliente na comparação com o resto do mundo. Depois, no setor público, dirigindo o Banco Central, tive experiência semelhante com equipe de colaboradores engajada e eficiente, que se orgulhava, valorizava muito o trabalho e, por meio dele, a si mesma. 

Embora tenhamos caminhado muito na valorização da qualidade e da produtividade, é preciso um grande avanço para elevar o nível de renda ao padrão dos países
desenvolvidos. 

Tive primeira visão mais crítica da questão quando li há muitos anos o diário de Charles Darwin sobre sua volta ao mundo nos anos 1830, na qual desenvolveu a teoria da evolução. 

Ao passar pelo Brasil, o que mais chamou sua atenção foi o conceito de que homem de bem era o que se dedicava às coisas nobres, como as artes, e não às coisas "menores",
como o trabalho, visto como atividade de escravos ou mal-intencionados. Mal-intencionado era todo aquele que quisesse ganhar dinheiro almejando o lucro, fosse comerciante ou agricultor. 

De lá para cá, o país evoluiu muito com o fim da escravidão, a urbanização, as ondas migratórias, a massificação educacional e a ocupação produtiva do interior. Hoje o Brasil busca produtividade e conta com uma classe de trabalhadores e com empreendedores cientes do valor do trabalho. 

Porém resiste em setores importantes uma visão arcaica contra o lucro e a meritocracia. Ter consciência de que ela é fruto de raízes culturais ultrapassadas contribui para seguir o processo de valorização da cultura do empreendedorismo, da meritocracia, da remuneração segundo a produtividade de cada um. 

Quanto mais esses valores prevalecerem, mais perto estaremos do desenvolvimento que buscamos para todos. 

Por: Henrique meirelles Folha de SP

MENTIR, CONSPIRAR, TRAIR

O PT nem inventou a corrupção nem a inaugurou no Brasil. Mas só o partido ousou, entre nós, transformá-la numa categoria de pensamento e numa teoria do poder. E isso faz a diferença. O partido é caudatário do relativismo moral da esquerda. Na democracia, sua divisa pode ser assim sintetizada: "Aos amigos tudo, menos a lei; aos inimigos, nada, nem a lei". Para ter futuro, é preciso ter memória. 


Eliana Tranchesi foi presa em 2005 e em 2009. Em 2008, foi a vez de Celso Pitta, surpreendido em casa, de pijama. Daniel Dantas, no mesmo ano, foi exibido de algemas. Nos três casos, e houve uma penca, equipes de TV acompanhavam os agentes federais. A parceria violava direitos dos acusados. Quem se importava? Lula batia no peito: "Nunca antes na história deste país se prendeu tanto". Era a PF em ritmo de "Os Ricos Também Choram". 

Ainda que condenados em última instância, e não eram, o espetáculo teria sido ilegal. Ai de quem ousasse apontar, como fez este escriba (os arquivos existem), o circo fascistoide! Tornava-se alvo da fúria dos "espadachins da reputação alheia", era acusado de defensor de endinheirados. Procurem um só intelectual petista --como se isso existisse...-- que tenha escrito uma linha contra os exageros do "Estado repressor". Ao contrário! Fez-se, por exemplo, um quiproquó dos diabos contra a correta 11ª Súmula Vinculante do STF, que disciplinou o uso de algemas. "A direita quer algemar só os pobres!", urravam. 

Até que chegou a hora de a trinca de criminosos do PT pagar a pena na Papuda. Aí tudo mudou. O gozo persecutório cedeu à retórica humanista e condoreira. Acusam a truculência de Joaquim Barbosa e a espetacularização das prisões, mas não citam, porque não há, uma só lei que tenha sido violada. Cadê o código, o artigo, o parágrafo, o inciso, a alínea? Não vem nada. 

Essa mentalidade tem história. Num texto intitulado "A moral deles e a nossa", Trotsky explica por que os bolcheviques podem, e devem!, cometer crimes, inaceitáveis apenas para seus inimigos. Ele imagina um "moralista" a lhe indagar se, na luta contra os capitalistas, todos os meios são admissíveis, inclusive "a mentira, a conspiração, a traição e o assassinato". 

E responde: "Admissíveis e obrigatórios são todos os meios, e só eles, que unam o proletariado revolucionário, que encham seu coração com uma inegociável hostilidade à opressão, que lhe ensinem a desprezar a moral oficial e seus democráticos arautos, que lhe deem consciência de sua missão e aumentem sua coragem e sua abnegação. Donde se conclui que nem todos os meios são admissíveis". 

O texto é de 1938. Dois anos depois, um agente de Stalin infiltrado em seu séquito meteu-lhe uma picaretada no crânio. Sinistra e ironicamente, a exemplo de Robespierre, ele havia escrito a justificativa (a)moral da própria morte. Vejam ali. Conspirar, mentir, trair, matar... Vale tudo para "combater a opressão". Só não é aceitável a infidelidade à causa. Pois é... 

José Dirceu quer trabalhar. O "consultor de empresas privadas" não precisa de dinheiro. Precisa é de um hotel. Poderia fazer uma camiseta: "Não é pelos R$ 20 mil!". Paulo de Abreu, que lhe ofereceu o, vá lá, emprego, ganhou, nesta semana, o direito de transferir de Francisco Morato para a avenida Paulista antena da sua Top TV, informou Júlia Borba nesta Folha. O governo tomou a decisão contra parecer técnico da Anatel, com quem Abreu tem um contencioso razoável. Dizer o quê? Lembrando adágio famoso, os petistas não aprenderam nada nem esqueceram nada. 

Aos amigos, tudo, menos a lei. Aos inimigos, José Eduardo Cardozo e Cade. É a moral deles. 

Por: Reinaldo Azevedo Folha de SP

O CRIME DE MAQUIAVEL

Maquiavel: O nome é todo um programa. E "maquiavélico" é adjetivo que dispensa apresentações. 

Quando acusamos alguém de maquiavelismo, não precisamos acrescentar mais nada. O sujeito é imoral, hipócrita, mentiroso, potencialmente violento. Uma mistura de Charles Manson com Hannibal Lecter, digamos. Estaremos a ser injustos com o florentino? 

Estamos, sim, responde Michael Ignatieff. Ponto prévio: Ignatieff, um excelente filósofo, andou uns tempos perdido (ou será iludido?) na política canadense. Liderou o Partido Liberal. Disputou eleições. Perdeu. Como normalmente acontece com os filósofos que flertam com a política e são desiludidos por ela, regressou agora aos livros. 

Em boa hora: na revista "The Atlantic", Ignatieff celebra os 500 anos de "O Príncipe" (escrito em 1513) e oferece uma das mais preciosas explicações para o desconforto que Maquiavel sempre provocou nas gerações posteriores. 

Uma empreitada dessas já tinha sido iniciada por Isaiah Berlin no clássico "The Originality of Machiavelli", que Ignatieff obviamente conhece como biógrafo "oficial" de Berlin. 

No ensaio, Berlin começava por listar as múltiplas interpretações que foram sendo urdidas sobre a obra e o autor ("um manual para gangsters", disse Leo Strauss; "um humanista angustiado", disse Benedetto Croce; "um homem de gênio", disse Hegel). 

E depois, como é usual nos ensaios mais "escolásticos" de Berlin, o próprio acrescentava a sua interpretação a respeito: o que perturba em Maquiavel não é a defesa da dissimulação ou da violência. Ele não foi o primeiro. Não será o último. 

O problema é que Maquiavel mostrou a incompatibilidade absoluta entre duas moralidades distintas na conduta de um político: a moralidade pagã e a moralidade cristã. 

Eis a "originalidade" de Maquiavel: quem deseja ser um bom cristão, cultivando as virtudes típicas do cristianismo (perdão, benevolência, compaixão etc.), o melhor que tem a fazer é afastar-se da política. Essas virtudes são boas em si mesmas (Maquiavel nunca negou isso, ao contrário do que se imagina). Mas elas são boas na vida privada dos indivíduos, não na defesa da comunidade. 

Em política, são as virtudes pagãs (força, disciplina, magnanimidade etc.) que garantem a sobrevivência do Estado. 

Ignatieff aceita o essencial dessa explicação. Mas acrescenta um ponto decisivo que está ausente do ensaio de Berlin e que me parece o mais importante: Maquiavel perturba-nos tanto, 500 anos depois, porque existe em nós a intolerável suspeita de que ele pode ter razão. 

Vivemos em sociedade. Desfrutamos de um mínimo de ordem. Queremos ser poupados ao crime e à violência de forma a perseguir os nossos interesses ou ambições. 

Mas, ao mesmo tempo, recusamos sequer a hipótese de que muitos dos nossos "ganhos civilizacionais" possam ser mantidos por políticos que "sujam as mãos" e não têm insônias com isso. 

Cuidado: não falo de políticos que "sujam as mãos" em proveito próprio. Essa hipótese seria intolerável para um patriota como Maquiavel. Falo de qualquer líder, em qualquer democracia, que muitas vezes usa a dissimulação, a mentira ou a brutalidade para que as insônias não nos perturbem a nós. 

Ignatieff dá um exemplo, apenas um entre mil: o momento em que Barack Obama invadiu o Paquistão para capturar e matar Bin Laden. O que diriam os Evangelhos dessa operação? E o que dizemos nós, ao saber que o mundo tem um terrorista a menos --o mais temível e procurado deles? 

Maquiavel, falando para a Florença do seu tempo, falou também para as Florenças de todos os tempos. E limitou-se a mostrar o "backstage" do nosso teatro cotidiano. No palco, tudo é luz e fantasia. Atrás do palco, existem muitas vezes situações de trevas em que, em nome do bem comum, o Príncipe tem de cometer males inevitáveis. 

No fundo, talvez o problema de "O Príncipe" não esteja no texto propriamente dito, mas no efeito que ele teve sobre a imagem virtuosa que gostamos de cultivar sobre nós próprios. 

Alguém dizia que os seres humanos nunca suportaram demasiada realidade. O crime de Maquiavel, 500 anos depois, foi ter insultado a nossa vaidade com esse excesso de realidade. Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

"A SOMBRA DE KISSINGER"


Para Obama, o foco deve se deslocar do Oriente Médio para a China, o que requer uma distensão com Teerã

Agora sabemos que o acordo nuclear não foi um raio no céu claro, mas o fruto de um ano de negociações bilaterais secretas entre os EUA e o Irã, em encontros furtivos em Mascate que contaram com a assistência logística do sultão Qaboos, de Omã. O acordo derivou de uma série de circunstâncias inesperadas, mas também de uma visão estratégica que tem a marca inconfundível da realpolitik. É, apenas, por ora, um acerto tático. Contudo, sinaliza uma brusca reacomodação das placas tectônicas da geopolítica do Oriente Médio. Daí, a fúria indiscreta de Israel e a cólera circunspecta dos sauditas.

Visão estratégica: Barack Obama prometeu engajar-se em negociações diretas com o Irã no discurso inaugural de seu primeiro mandato, em 2009. A iniciativa inscrevia-se na moldura da projetada retirada das forças americanas do Iraque e, mais amplamente, no conceito de um "giro estratégico" da política global de Washington em direção à Ásia. O enfraquecimento geral dos Estados árabes provocado pela onda de insurreições da chamada "primavera árabe" acentuou a convicção de que, na ausência de tropas americanas, a estabilidade do Oriente Médio depende de uma nova relação com o Irã. O acordo nuclear adquire sentido apenas nesse contexto.

Circunstâncias inesperadas: as negociações em Mascate ganharam impulso com a ascensão do moderado Hasan Rowhani à presidência do Irã, no início de agosto, mas quase descarrilharam semanas depois, sob o impacto do ataque químico na Síria. O advento de Rowhani e a nova disposição negociadora do Líder Supremo Ali Khamenei refletiram a eficácia das sanções internacionais articuladas pelos EUA. As palavras de Obama sobre a "linha vermelha", de 2012, foram formuladas como pretexto para circundar as pressões por uma intervenção na Síria --mas, ironicamente, arrastaram o presidente para o olho do furacão quando Bashar al-Assad ultrapassou a fronteira fatal. A decisão crítica de recuar na última hora representou um duro revés tático e feriu fundo a credibilidade americana --mas salvou o objetivo estratégico. O acordo nuclear desenhou-se naquele instante.

"Munique, Munique!", gritam os israelenses, acusando os EUA de repetirem a rendição ignominiosa de Chamberlain e Daladier diante de Hitler em 1938. É um paralelo tão previsível e fácil quanto falso. O acerto transitório com o Irã congela posições, abrindo um espaço para as negociações substanciais, mas contém o dispositivo crucial das inspeções, que faltava na peça propagandística encenada em 2010 por Ahmadinejad com a cumplicidade do turco Erdogan e de nosso Lula. Os EUA não sonham com a hipótese impossível de eliminação do programa nuclear iraniano, mas com um acordo que conserve Teerã dois passos antes da obtenção de uma bomba. Washington joga suas fichas num sistema de punições e incentivos, oferecendo ao Irã um lugar destacado nas mesas em que se decidirá o futuro da Síria e do Iraque. A sombra de Henry Kissinger, o estrategista dos governos Nixon e Ford, projeta-se sobre a diplomacia de Obama.

Numa era de retração, marcada pelo desastre no Vietnã, Kissinger afastou os EUA da tradição wilsoniana, formulando políticas ancoradas no conceito de equilíbrio de poder e operando a difícil transição americana de uma posição de hegemonia para a de liderança. Obama inclinou-se pelo intervencionismo liberal na Líbia e foi erroneamente acusado de insistir no cruzadismo neoconservador na "guerra ao terror", mas o vetor de sua política global é uma versão adaptada do realismo de Kissinger. No horizonte do presidente, o foco deve se deslocar do Oriente Médio para a China, um movimento que requer a distensão com Teerã.

"Munique!", alvoroçaram-se, por razões distintas, tanto os liberais quanto os neoconservadores diante da distensão de Nixon com Moscou e Pequim. Não era "Munique", como não é agora.Por: Demétrio Magnoli  Folha de S P

sábado, 7 de dezembro de 2013

"A AGONIA DO COLESTEROL"

Se reduzir os níveis de colesterol não confere proteção, por que insistir nas estatinas?


Nunca me convenci de que essa obsessão para abaixar o colesterol às custas de remédio aumentasse a longevidade de pessoas saudáveis.

Essa crença --que fez das estatinas o maior sucesso comercial da história da medicina-- tomou conta da cardiologia a partir de dois estudos observacionais: Seven Cities e Framingham, iniciados nos anos 1950.

Considerados tendenciosos por vários especialistas, o Seven Cities pretendeu demonstrar que os ataques cardíacos estariam ligados ao consumo de gordura animal, enquanto o Framingham concluiu que eles guardariam relação direta com o colesterol.

A partir dos anos 1980, o aparecimento das estatinas (drogas que reduzem os níveis de colesterol) abafou as vozes discordantes, e a classe médica foi tomada por um furor anticolesterol que contagiou a população. Hoje, todos se preocupam com os alimentos gordurosos e tratam com intimidade o "bom" (HDL) e o "mau" colesterol (LDL).

As diretrizes americanas publicadas em 2001 recomendavam manter o LDL abaixo de cem a qualquer preço. Ainda que fosse preciso quadruplicar a dose de estatina ou combiná-la com outras drogas, sem nenhuma evidência científica que justificasse tal conduta.

Apenas nos Estados Unidos, esse alvo absolutamente arbitrário fez o número de usuários de estatinas saltar de 13 milhões para 36 milhões. Nenhum estudo posterior, patrocinado ou não pela indústria, conseguiu demonstrar que essa estratégia fez cair a mortalidade por doença cardiovascular.

Cardiologistas radicais foram mais longe: o LDL deveria ser mantido abaixo de 70, alvo inacessível a mortais como você e eu. Seríamos tantos os candidatos ao tratamento, que sairia mais barato acrescentar estatina ao suprimento de água domiciliar, conforme sugeriu um eminente professor americano.

Pois bem. Depois de cinco anos de análises dos estudos mais recentes, a American Heart Association e a American College of Cardiology, entidades sem fins lucrativos, mas que recebem auxílios generosos da indústria farmacêutica, atualizaram as diretrizes de 2001.

Pasme, leitor de inteligência mediana como eu. Segundo elas, os níveis de colesterol não interessam mais.

Portanto, se seu LDL é alto não fique aflito para reduzi-lo: o risco de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral não será modificado. Em português mais claro, esqueça tudo o que foi dito nos últimos 30 anos.

A indústria não sofrerá prejuízos, no entanto: as estatinas devem até ampliar sua participação no mercado. Agora serão prescritas para a multidão daqueles com mais de 7,5% de chance de sofrer ataque cardíaco ou derrame cerebral nos dez anos seguintes, risco calculado a partir de uma fórmula nova que já recebe críticas dos especialistas.

Se reduzir os níveis de colesterol não confere proteção, por que insistir nas estatinas? Porque elas têm ações anti-inflamatórias e estabilizadoras das placas de aterosclerose, que podem dificultar o desprendimento de coágulos capazes de obstruir artérias menores.

O argumento é consistente, mas qual o custo-benefício?

Recém-publicado no "British Medical Journal", um artigo baseado nos mesmos estudos avaliados pelas diretrizes mostrou que naqueles com menos de 20% de risco em dez anos as estatinas não reduzem o número de mortes nem de eventos mais graves. Nesse grupo seria necessário tratar 140 pessoas para evitar um caso de infarto do miocárdio ou de derrame cerebral não fatais.

Ou seja, 139 tomarão inutilmente medicamentos caros que em até 20% dos casos podem provocar dores musculares, problemas gastrointestinais, distúrbios de sono e de memória e disfunção erétil.

A indicação de estatina no diabetes e para quem já sofreu ataque cardíaco, por enquanto, resiste às críticas.

Se você, leitor com boa saúde, toma remédio para o colesterol, converse com seu médico, mas esteja certo de que ele conhece a literatura e leu com espírito crítico as 32 páginas das novas diretrizes citadas nesta coluna.

Preste atenção: mais de 80% dos ataques cardíacos ocorrem por conta do cigarro, vida sedentária, obesidade, pressão alta e diabetes. Imaginar ser possível evitá-los sentado na poltrona, às custas de uma pílula para abaixar o colesterol, é pensamento mágico. 
Por: Drauzio Varella Folha de SP

PUXA-SACOS DE LADRÕES

No Brasil, não há presos políticos, mas políticos presos. A diferença entre uma coisa e outra é a que existe entre a ditadura cubana, que o governo petista financia, e a democracia, que o petismo difama. Se, no entanto, houvesse, a carcereira seria Dilma Rousseff. Ela pode fazer o STF sair com a toga entre as pernas. Basta evocar o inciso 12 do artigo 84 da Constituição: "Compete privativamente ao presidente da República (...) conceder indulto e comutar penas, com audiência, se necessário, dos órgãos instituídos em lei". Também vale para "presidentas". 


Paulo Vannuchi, um devoto da democracia à moda Carlos Marighella, comparou a condenação de José Dirceu à extradição de Olga Benário. É? Foi o STF que autorizou o envio para a Alemanha nazista de uma judia comunista. O fascistoide Getúlio Vargas, hoje herói das esquerdas, poderia ter impedido o ato obsceno. Deu de ombros. Que Dilma não cometa o mesmo erro e liberte a súcia de heróis. Ironia não tem nota de rodapé --ou vira alfafa. 

Está em curso um processo inédito de satanização do Judiciário. A sanha difamatória, na semana em que se comemora o Dia da Consciência Negra, não poupa nem a cor da pele de Joaquim Barbosa. Racistas virtuosos acham que ele se comporta como um "negro de alma branca". Lula lhe teria feito um favor, e ele não beija a mão de nhonhô... 

Protestar contra os três dias de regime fechado para José Genoino é do jogo. Intimidar o Judiciário é delinquência política. A doença do petista é real; a construção do mártir é uma farsa. No dia da prisão, ele recusou exame médico preventivo no IML. Era parte da pantomima do falso herói trágico. Barbosa não cometeu uma só ilegalidade. A gritaria é fruto da máquina de propaganda do PT, que se aproveita da ignorância específica de jornalistas. Não são obrigados a saber tudo; o problema, em certos casos, é a imodéstia... 

Um dos bons fundamentos do cristianismo é amar o pecador, não o pecado. Fiel à tradição das esquerdas, o PT ama é o pecado mesmo. O pecador é só o executor da tarefa em nome da causa. Leiam a peça "As Mãos Sujas", de Sartre, escrita antes de o autor se tornar um comunista babão. É esquemática, mas vai ao cerne do surrealismo socialista. 

Alguns de nossos cronistas precisam ler. Outros precisam ler Padre Vieira. No "Sermão do Bom Ladrão", ele cita a descompostura que Alexandre Magno passou num pirata. O homem responde ao Lula da Macedônia: "Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador?" Vieira emenda: "Assim é. (...) o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres." 

Na quarta, reportagem de Flávia Foreque, no site da Folha, foi ao ponto. Um grupo de deputados do PT visitou os varões de Plutarco na Papuda. Parentes de presos sem pedigree ideológico começaram a xingar os petistas: "Puxa-saco de ladrões!". A deputada Marina Sant'Anna (PT-GO) quis dialogar. Sem sucesso. A mulher de um dos piratas resumiu: "Qual é a diferença [entre presos do mensalão e os demais]? Só porque tem nível superior, porque roubou do povo?" Vieira via diferença, sim. Os bacanas são mais covardes. 

Indulto já, presidente! Até porque, entrando no 12º ano de governo e com mensaleiros em cana, o PT descobriu a precariedade das prisões. Este ano vai terminar com uma queda de 34,2% no valor destinado ao Plano Nacional de Apoio ao Sistema Prisional: R$ 238 milhões, contra R$ 361,9 milhões em 2012. Nas cadeias, só havia piratas "pobres de tão pretos e pretos de tão pobres". Agora há os Alexandres vermelhos, mas não de vergonha. 

Por: Reinaldo Azevedo Folha de SP twitter.com/reinaldoazevedo

"SINAIS ALARMANTES"

Finalmente se fez justiça no caso do mensalão. Escrevo sem júbilo: é triste ver na cadeia gente que em outras épocas lutou com desprendimento. Eles estão presos ao lado de outros que se dedicaram a encher os bolsos ou a pagar suas campanhas à custa do dinheiro público. Mais melancólico ainda é ver pessoas que outrora se jogavam por ideais ─ mesmo que controversos ─ erguerem os punhos como se vivessem uma situação revolucionária, no mesmo instante em que juram fidelidade à Constituição. Onde está a revolução? Gesticulam como se fossem Lenines que receberam dinheiro sujo, mas o usaram para construir a “nova sociedade”. Nada disso: apenas ajudaram a cimentar um bloco de forças que vive da mercantilização da política e do uso do Estado para se perpetuar no poder. De pouco serve a encenação farsesca, a não ser para confortar quem a faz e enganar seus seguidores mais crédulos.


Basta de tanto engodo. A condenação pelos crimes do mensalão deu-se em plena vigência do Estado de Direito, num momento em que o Executivo é exercido pelo Partido dos Trabalhadores (PT), cujo governo indicou a maioria dos ministros do Supremo. Não houve desrespeito às garantias legais dos réus e ao devido processo legal. Então, por que a encenação? O significado é claro: eleições à vista. É preciso mentir, autoenganar-se e repetir o mantra. Não por acaso, a direção do PT amplifica a encenação e Lula diz que a melhor resposta à condenação dos mensaleiros é reeleger Dilma Rousseff… Tem sido sempre assim, desde a apropriação das políticas de proteção social até a ideia esdrúxula de que a estabilização da economia se deveu ao governo do PT. Esqueceram as palavras iradas que disseram contra o que hoje gabam e as múltiplas ações que moveram no Supremo para derrubar as medidas saneadoras. O que conta é a manutenção do poder.

Em toada semelhante, o mago do ilusionismo fez coro. Aliás, neste caso, quem sabe, um lapso verbal expressou sinceridade. “Estamos juntos”, disse Lula. Assumiu meio de raspão sua fatia de responsabilidade, ao menos em relação a companheiros a quem deve muito. E ao país, o que dizer?

Reitero, escrevo tudo isso com melancolia, não só porque não me apraz ver gente na cadeia, embora reconheça a legalidade e a necessidade da decisão, mas principalmente porque tanto as ações que levaram a tão infeliz desfecho como a cortina de mentiras que alimenta a aura de heroicidade fazem parte de amplo processo de alienação que envolve a sociedade brasileira. São muitos os responsáveis por ela, não só os petistas. Poucos têm tido a compreensão do alcance destruidor dos procedimentos que permitem reproduzir o bloco de poder hegemônico; são menos numerosos ainda os que têm tido a coragem de gritar contra essas práticas. É enorme o arco de alianças políticas no Congresso cujos membros se beneficiam por pertencerem à “base aliada” de apoio ao governo. Calam-se diante do mensalão e das demais transgressões, como se o “hegemonismo petista” que os mantém fosse compatível com a democracia. Que dizer, então, da parte da elite empresarial que se ceva dos empréstimos públicos e emudece diante dos malfeitos do petismo e de seus acólitos? Ou da outrora combativa liderança sindical, hoje acomodada nas benesses do poder?

Nada há de novo no que escrevo. Muitos sabem que o rei está nu e poucos bradam. Daí a descrença sobre a elite política reinante na opinião pública mais esclarecida. Quando alguém dá o nome aos bois, como, no caso, o ministro Joaquim Barbosa, que estruturou o processo e desnudou a corrupção, teme-se que, ao deixar a presidência do STF, a onda moralizante dê marcha à ré. É evidente, pois, a descrença nas instituições. A tal ponto que se crê mais nas pessoas, sem perceber que por esse caminho voltaremos aos salvadores da Pátria. São sinais alarmantes.

Os seguidores do lulopetismo, por serem crédulos, talvez sejam menos responsáveis pela situação a que chegamos do que os cínicos, os medrosos, os oportunistas, as elites interesseiras que fingem não ver o que está à vista de todos. Que dizer, então, das práticas políticas? Não dá mais! Estamos a ver as manobras preparatórias para mais uma campanha eleitoral sob o signo do embuste. A candidata oficial, pela posição que ocupa, tem cada ato multiplicado pelos meios de comunicação. Como o exercício do poder se confundiu, na prática, com a campanha eleitoral, entramos já em período de disputa. Disputa desigual, na qual só um lado fala e as oposições, mesmo que berrem, não encontram eco. E sejamos francos: estamos berrando pouco.

É preciso dizer com coragem, simplicidade e de modo direto, como fizeram alguns ministros do Supremo, que a democracia não se compagina com a corrupção nem com as distorções que levam ao favorecimento dos amigos. Não estamos diante de um quadro eleitoral normal. A hegemonia de um partido que não consegue deslindar-se de crenças salvacionistas e autoritárias, o acovardamento de outros e a impotência das oposições estão permitindo a montagem de um sistema de poder que, se duradouro, acarretará riscos de regressão irreversível. Escudado nos cofres públicos, o governo do PT abusa do crédito fácil que agrada não só aos consumidores, mas, em volume muito maior, aos audaciosos que montam suas estratégias empresariais nas facilidades dadas aos amigos do rei. A infiltração dos órgãos de Estado pela militância ávida e por oportunistas que querem beneficiar-se do Estado distorce as práticas republicanas.

Tudo isso é arquissabido. Falta dar um basta aos desmandos, processo que, numa democracia, só tem um caminho: as urnas. É preciso desfazer na consciência popular, com sinceridade e clareza, o manto de ilusões com que o lulopetismo vendeu seu peixe. Com a palavra as oposições e quem mais tenha consciência dos perigos que corremos.

Por: Fernando Henriue Cardoso O Estadão

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

PERDIDO

O deficit externo brasileiro atingiu quase US$ 68 bilhões de janeiro a outubro deste ano, US$ 28 bilhões acima do registrado no mesmo período do ano passado, caminhando para ultrapassar com folga US$ 80 bilhões (pouco menos que 4% do PIB) neste ano, bem acima da previsão mais recente do BC, que ainda sugere um número na casa dos US$ 75 bilhões.


A maior parte desse aumento reflete a queda abrupta do saldo comercial, que passou de US$ 17,4 bilhões positivos nos dez primeiros meses do ano passado para US$ 1,8 bilhão negativo em 2013.

É, como sempre, difícil apontar uma única causa por trás do fenômeno. Vários fatores contribuíram para o resultado, da queda dos preços de commodities à contabilização tardia das importações de petróleo realizadas no ano passado, passando pela continuidade de incentivos à demanda interna, mesmo em face de indicações cada vez mais claras de que a economia opera muito mais próxima à sua capacidade máxima do que supõe a vã imaginação dos nossos gestores de política econômica.

Os dados, porém, sugerem que a piora dos preços externos desempenhou papel de menor peso na redução do saldo comercial.

Estimo que, caso os preços dos produtos exportados tivessem se mantido inalterados, as exportações aumentariam pouco mais de US$ 3 bilhões entre janeiro e setembro, ao invés de cair US$ 3 bilhões, como de fato ocorreu, uma diferença de US$ 6 bilhões. Por outro lado, sob as mesmas condições, as importações cresceriam US$ 17 bilhões no ano, cerca de US$ 2,5 bilhões a mais do que o efetivamente observado.

Dois problemas, contudo, complicam os cálculos. Um é a contabilização de importações de petróleo realizadas no ano passado, mas registradas apenas em 2013. Caso todo o aumento observado se deves- se a isso, haveria uma superestimação das importações da ordem de US$ 5 bilhões até setembro.A diferença de preços, portanto, explica a queda de US$ 3,5 bilhões do saldo até setembro, um valor nada desprezível, mas bem menor que a redução de US$ 17 bilhões observada na balança comercial do período.

Por outro lado, a Petrobras realizou exportações fictas de plataformas de exploração de petróleo (foram vendidas e alugadas de volta) de cerca de US$ 3 bilhões no mesmo período, de forma que o resultado líquido das operações extraordinárias fica ao redor de US$ 2 bilhões.

Há, portanto, uma redução da ordem de US$ 12 bilhões no saldo comercial que não pode ser atribuída nem à alteração de preços nem a fatores pontuais tais quais os mencionados acima. Resta, assim, analisar o descompasso entre demanda e oferta domésticas.

Como tenho insistido aqui, quando a produção, principalmente de manufaturados, sofre constrangimentos à sua expansão, seja por força do encarecimento da mão de obra, seja pelos gargalos de infraestrutura, a tendência é que as importações cresçam à frente das exportações para atender a demanda interna em expansão. Já nos setores em que as importações não têm papel relevante a desempenhar, são os preços que reagem, o que explica, por exemplo, a elevada inflação de serviços.

Isso resulta, em larga margem, da política deliberada de aumento da demanda doméstica por meio do gasto público, incluindo a expansão do crédito oficial. O descontrole fiscal está, portanto, na raiz dos dois desequilíbrios observados no país: a inflação alta e o elevado (e crescente) deficit externo.

A contabilidade criativa pode mostrar o que o governo quiser, mas não muda a natureza do fenômeno. Da mesma forma, de nada serve o governo comparar seus números (criativos) aos de outros países. Lá o problema é tipicamente insuficiência de demanda interna; aqui sofremos com gargalos de oferta.

Enquanto a natureza distinta do problema não for compreendida, continuaremos à busca de desculpas, mas sem uma ideia clara de como tratar os desequilíbrios visíveis da economia brasileira. Por: Alexandre Schwartsman

Fonte: Folha de S. Paulo, 27/11/2013

O DESEJO DE "REDISTRIBUIR RIQUEZA" É UMA FANTASIA

Alguns temas abordados por Ludwig von Mises ainda em suas primeiras obras, há quase 100 anos, se tornaram ainda mais intelectualmente instigantes hoje do que eram naquela época, quando ainda estavam começando a ser discutidos.

Um desses temas é a questão da redistribuição de riqueza. Mises, adepto do individualismo metodológico, sempre iniciava suas análises olhando para o indivíduo, e não para amplos agregados econômicos. Na questão da redistribuição de renda, Mises diferenciou os indivíduos que têm bens daqueles que não têm. Em específico, ele faz uma distinção entre bens de capital e bens de consumo. 

Bens de capital são os fatores de produção; são os bens que produzem outros bens e que também auxiliam os seres humanos em suas tarefas e, consequentemente, tornam o trabalho humano mais produtivo. Já os bens de consumo, como o próprio nome diz, são todos os itens para consumo final — como alimentos, roupas, cadeiras, televisões —destinados a satisfazer as necessidades humanas.

Bens de consumo beneficiam amplamente apenas uma pessoa de cada vez. Um indivíduo usufrui os benefícios trazidos por uma determinada camiseta apenas enquanto ele a está vestindo. Bens de capital — o maquinário que produz as camisetas — geram benefícios para uma enxurrada de consumidores de uma só vez.

Por que, então, ainda há essa fixação marxista em relação ao, por exemplo, gerenciamento estatal de empresas geradoras de energia elétrica, quando se sabe que seus consumidores têm apenas eletricidade? Mises observou que um consumidor não precisa ser o dono das instalações para ter eletricidade.

Tendo isso em mente, como o sentido convencional de distribuição de riqueza mudaria se excluíssemos os bens de capital dessa questão? Por exemplo, nos EUA, 1% população é dona de 38% da riqueza, dados de 2001. (No Brasil, 1% é dona de 13.3%). Como ficaria essa distribuição de riqueza se os bens de capital forem excluídos? O mais provável atualmente é que 95% da riqueza do 1% mais rico da população esteja atualmente ligada aos direitos de propriedade sobre esses bens de capital. Logo, a distribuição de riqueza entre os consumidores é muito mais acirrada do que os acadêmicos imaginam. Todos têm acesso a água corrente, telefones, comida e televisão. É isso que interessa para um padrão de vida.

Mises nos ajuda a perceber que a ideia de obter igualdade pela redistribuição de riqueza nada mais é do que fantasia. Você não pode redistribuir bens de consumo; como poderiam milhões de mulheres vestir o mesmo casaco de pele, as mesmas jóias e regalias, ou os mesmos sapatos que estão no armário de Imelda Marcos? Como poderiam milhões de homens ficar dentro da banheira de hidromassagem de Hugh Hefner? Um pedaço de pão não pode ser repartido infinitamente por várias bocas.

Da mesma maneira, você não pode fatiar um fogão em pedaços e dividir estas fatias igualitariamente entre as pessoas — e ainda esperar que o fogão funcione. Você tem de respeitar a integridade de todos os bens de capital para que eles funcionem. Uma central elétrica teria de ser triturada em átomos e repartida em pequenos envelopes para se obter uma distribuição igualitária.

Por sua natureza, bens de capital também não podem ser redistribuídos entre as pessoas de uma forma que resulte em igualdade e maior riqueza. A redistribuição de riqueza, se levada a sério, significa necessariamente acompleta e absoluta destruição de riqueza. Socialismo é niilismo, nada mais do que a destruição de valores.

Os comunistas nunca obtiveram êxito em distribuir riqueza igualitariamente. Isso é inerente à natureza da riqueza. Como a riqueza não pode ser subdivida entre as massas (somente a propriedade da riqueza pode), eles confiscam a riqueza alheia para benefício da própria camarilha. Todo o resto fica à míngua, morrendo de fome. É assim que a integridade da riqueza faz impor a realidade quando confiscada. Os socialistas não brigam para ser donos do ar; eles brigam para tomar o controle desta estação de rádio, daquela impressora, deste automóvel, oudaquele pedaço de carne estragada. A redistribuição de riqueza é criminalidade pura e ela exige um grau ainda maior de criminalidade após o confisco, como lobos brigando por uma carcaça ou rufiões eliminando seus cúmplices.

E, ainda assim, centenas de milhões de pessoas continuam achando que a redistribuição de riqueza irá gerar ganhos pessoais. Quando um político difunde por seu rebanho a ideia de "espalhar a riqueza para todos", o que os eleitores imaginam? No mundo perfeito, eles entenderiam que a riqueza deixaria de existir, mesmo que ela fosse confiscada e meticulosamente redistribuída — e caso realmente entendessem assim, o político será devidamente ridicularizado ainda em seus discursos. A diferença entre um político populista ser venerado e ser chutado para fora do palanque em que discursa está no eleitorado ser educado por essa pequena fatia de racionalidade misesiana.

Mises abordou a distinção entre bens de capital e bens de consumo no debate sobre redistribuição; essa percepção é extremamente valiosa no atual mundo em que vivemos. O debate sobre o cálculo econômico no mundo socialista já acabou, mas a noção de que a riqueza pode ser redistribuída e ainda continuar existindo não é amplamente reconhecida como uma contradição. Espalhar coercivamente a riqueza para todos gera apenas a sua destruição.

Redistribuição de riqueza é uma expressão contraditória. Esse fato reduz em cinzas o ímpeto do estado assistencialista. O estado de bem-estar social é um rematado destruidor de riqueza.

O capitalismo resulta em ampla propriedade dos meios de produção porque a propriedade privada é a sua característica distintiva. Somente em uma economia capitalista, em que os direitos de propriedade podem ser subdivididos em ações e livremente comercializados, pode uma ampla propriedade sobre os bens de capital manter inalterado seu caráter de riqueza. Nesse arranjo, as pessoas voluntariamente vendem sua propriedade; os novos proprietários adquirem os direitos de propriedade sobre os bens de capital. Há um genuíno mecanismo capitalista permitindo que isso aconteça. Quase todo mundo pode comprar ações dos meios de produção sob o capitalismo. Ninguém tem de morrer. Nenhum sangue é derramado.

Onde no socialismo pode você, ó nobre camponês, reivindicar sua fatia das escolas públicas, dos Correios ou das prisões? Não existe um mecanismo similar que permita a você ser dono da siderúrgica, da montadora, da mina, dos bancos e dos parques que foram todos estatizados — e não sobra muito da mina ou da siderúrgica após elas terem sido estatizadas.

Acabe com os direitos de propriedade privada e toda a riqueza desaparece. Voltamos à era da pilhagem de todos sobre todos e da privação mutuamente garantida. É isso que os governos e todos os que odeiam o mercado realmente querem. Um slogan honesto para um sistema de saúde pública universal seria "uma nação, a mesma seringa".

Os redistributivistas não acreditam na fantasia de que redistribuir riqueza traz igualdade de resultados. Eles apenas querem que você acredite nisso.

Por: Hans F. Sennholz (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos. Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou. Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997. Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.

Tradução de Leandro Roque

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

A BUSCA PELO LUCRO LEVOU AO FIM DA ESCRAVIDÃO

Há quem jure que a busca pelo lucro é algo cruel, abusivo, ultrajante, imoral e maléfico. É fato que há pessoas desonestas que recorrem a métodos inescrupulosos para obter lucros em seus empreendimentos, mas basear-se em tais pessoas para fazer uma condenação automática do lucro é uma postura ignorante.

A verdade é que foi a busca pelo lucro o que aniquilou aquela milenar abominação que foi a escravidão humana. Eliminar a capacidade das pessoas de buscar o lucro significaria reimplantar a escravidão no mundo. E creio que nenhum de nós quer isso de volta.

A escravidão era um sistema econômico

O que até hoje ainda não é corretamente entendido é que a escravidão era a base do sistema econômico vigente no mundo antigo — como na Grécia e em Roma.

Todo o sistema escravocrata se baseava praticamente em um só objetivo: obter excedentes. É claro que os defensores da escravidão sempre recorriam a justificativas criativas para defender o sistema escravocrata, mas, no final, tudo se resumia a obter excedentes. Pode-se dizer, portanto, que a escravidão era uma espécie depoupança coercivamente impingida.

Um indivíduo rudimentar e despreparado irá, caso seja abandonado à própria sorte, gastar praticamente tudo o que ele ganha. Se ele conseguir auferir algum excedente, ele provavelmente irá gastar este excedente em luxos, prazeres, frivolidades ou em coisas piores. Enquanto ele não desenvolver um caráter mais forte, enquanto ele não adquirir uma personalidade mais estável, sobrará muito pouco de seu excedente para ser utilizado em outras coisas.

Um escravo, por outro lado, jamais aufere rendimentos e, consequentemente, não tem como gastá-los. Todo o excedente produzido por um escravo é transferido para seu senhor. Foi exatamente este tipo de arranjo gerador de excedentes o que tornou Roma um império rico.

Mas então surgiu a Europa cristã. Antes do advento do cristianismo, não se encontra uma única cultura antiga que proibia a prática da escravidão; a escravidão era vista como algo absolutamente normal. Sendo assim, a Europa abolir o sistema escravocrata que havia herdado de Roma foi uma mudança monumental.

Os europeus substituíram a escravidão — de maneira lenta e por causa de seus princípios cristãos, e não em decorrência de algum plano consciente e deliberado — adotando as seguintes posturas:

1. Desenvolvendo o hábito da frugalidade e da poupança em nível individual. Isso requereu uma total mudança de postura e um enfoque vigoroso em virtudes como a temperança (autocontrole) e a paciência.

2. Substituindo o arranjo de "produção forçada de excedentes" pelo lucro. Para isso, os europeus tiveram de recorrer à criatividade para alterar totalmente a natureza de suas atividades comerciais. Eles tiveram de inovar, inventar e se adaptar para conseguir mais excedentes por meio do comércio.

Sob um novo sistema que acabou sendo rotulado de capitalismo, a poupança e a criatividade se tornaram os novos geradores de excedentes, e nenhum ser humano teve de ser escravizado.

Um mundo sem lucros

Por outro lado, temos exemplos bem recentes do que acontece quando uma cultura proíbe o lucro. Pense em tudo o que ocorreu em paraísos socialistas como a URSS de Stalin, a China de Mao, e as nações escravizadas do Leste Europeu, e no que ainda ocorre na Coréia do Norte e em Cuba.

São exemplos lúgubres que ilustram exatamente o que ocorre quando toda uma população é escravizada pelo partido dominante. Nestes sistemas, o indivíduo é obrigado a trabalhar e a produzir, mas é proibido de usufruir os frutos e os rendimentos de seu próprio trabalho, tendo até mesmo o seu consumo restringido pelo governo.

O lucro fornece incentivos para se trabalhar e empreender. Quando ele é abolido, não apenas o ato de trabalhar e de empreender perde sua função, como também aqueles que querem prosperar não têm como fazê-lo de maneira honesta. E isso leva ou ao desespero ou à criminalidade.

O lucro é obtido por meio de trocas comerciais inovadoras e recompensadoras. Se o lucro é eliminado, tem-se a escravidão. O formato dessa escravidão pode ser variável, mas será uma escravidão de algum tipo.

Com efeito, este resultado será o mesmo não importa se a eliminação do lucro ocorrer por meio do comunismo (em que o lucro é punido com a pena capital) ou do fascismo (em que todo o lucro é direcionado para os amigos do regime).

A questão principal é o excedente produzido:
Se o excedente pode ser produzido e acumulado pelo cidadão comum por meios honestos, a escravidão pode ser eliminada.
Se os cidadãos honestos não tiverem a permissão de produzir e de manter seus próprios excedentes (sendo seus excedentes confiscados ou pelo estado ou pelos parceiros do estado), o resultado será alguma forma de escravidão.

O lucro é simplesmente uma ferramenta — uma maneira de gerar excedentes sem a coerção imposta pela escravidão.

O que nos leva à conclusão definitiva: é impossível se livrar simultaneamente da escravidão e do sistema de lucros. Você pode eliminar um dos dois, mas sempre que eliminar um, ficará inevitavelmente com o outro.

O lucro se baseia nas virtudes

Para se viver em uma civilização que prospera por meio do lucro, é necessário que o ser humano saiba domar todos aqueles seus instintos mais primitivos — algo típico dos animais —, como a inveja. É necessário saber desenvolver o autocontrole, a paciência, a temperança e, principalmente, saber se concentrar em algo maior do que meras possessões materiais — afinal, é exatamente o materialismo o motor da inveja e do igualitarismo.

É vergonhoso que o Ocidente tenha, ao longo dos últimos séculos, se afastado de suas virtudes tradicionais, e passado a considerá-las vícios burgueses ou meras superstições. Se algum dia finalmente perdermos todas as nossas virtudes, o sistema de lucros perderá sua proteção e não mais será visto como um motor da prosperidade, e a antiga e extinta prática da escravidão irá voltar.

Nossas ações têm consequências.

Por: Paul Rosenberg  presidente da Cryptohippie USA, uma empresa pioneira em fornecer tecnologias que protegem a privacidade na internet. Ele é o editor FreemansPerspective.com, um site dedicado à liberdade econômica, à independência pessoal e à privacidade individual.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

A DIGNIDADE SE DÁ POR MEIO DA PRODUÇÃO

Então você é um sujeito decente e de bom coração, que não fala mal dos outros pelas costas nem falta com respeito aos mais velhos. Logo, o mundo lhe deve uma vida de prosperidade e realizações, certo?

Aqui vai um segredo. Independente do que você pensa que a sociedade lhe deve pelo fato de você ser gente boa, a verdade é que o sustento da sua vida vai depender da sua capacidade de produzir ou de aproveitar os frutos da produção de alguém.

Seja sincero, quantas vezes você sustentou pessoas desconhecidas pelo mero fato de elas serem gente boa (não gente boa com você, mas gente boa assim em abstrato)?

"A sociedade está cheia de pessoas que precisam de coisas," escancara essa citação improvável de David Wong,

Elas precisam de casas para morar, comida para se alimentar, elas precisam de entretenimento e de relações sexuais satisfatórias… Ou você começa a atender essas necessidades aprendendo algum tipo específico de habilidade, ou o mundo irá lhe rejeitar, não importa o quão gentil, bondoso e educado você seja. Você acabará pobre, solitário, e jogado no frio.

Produzir é criar valor a partir da combinação e realocação de recursos escassos em bens ou serviços. Como regra, toda pessoa depende da urgência da produção para que seja possível desfrutar do consumo essencial à vida e à felicidade humana. O mais relevante fator de produção é o trabalho, por sua utilidade não ser específica a determinado fim. "O trabalho humano é ao mesmo tempo apropriado e indispensável", dizia Ludwig von Mises, "para a realização de todos os modos de produção e processos imagináveis."

Dizem que o trabalho dignifica o homem. Mas não é qualquer trabalho. O trabalho de um ladrão pode envolver muito esforço e técnica. Mas subtrair valor de uma vítima não enobrece o criminoso. É o trabalho produtivo que dignifica o produtor.

Transferências de renda podem aliviar a miséria, mas não têm sido capazes de fazer com que seus recipientes sejam criadores de valor. Ninguém quer ser um recipiente onde se jogam esmolas. Não queremos ser um passivo para a sociedade. Queremos ter consciência de que nosso trabalho está gerando valor, de que nossa sociedade seria um lugar mais pobre sem a nossa presença. Quando produzimos, tornamo-nos um ativo social. Tornamo-nos dignos.

A miséria envergonha. Calouros universitários acham bonitinho pintar a cara e pedir trocado no sinal. Mas pessoas realmente pobres sentem vergonha ao pedir esmola. Depender de caridade coloca o pedinte numa posição inferior a quem se pede.

Há quem ache que a solução é exaltar a pobreza, tratar a pobreza com respeito, dignidade e fotografias do Sebastião Salgado. Mas não devemos dignificar a pobreza (até porque não resolve, como revela essa matéria). Devemos dignificar o pobre. Devemos exigir reformas políticas que diminuam o custo do trabalho, permitindo que os pobres produzam mais do que consomem, que sejam ativos sociais.

Há muito chão a percorrer. Segundo relatório da FGV, só os obstáculos da legislação trabalhista brasileira custam de 17% a 48% do salário do trabalhador.

Ao incluir [itens como gastos com treinamento e capacitação e despesas gerenciais e administrativas] o gasto total com um trabalhador fica aproximadamente 183% maior do que o salário em carteira em um contrato de trabalho que dure 12 meses.

Para dificultar ainda mais a produtividade do pobre,

O atual modelo de acesso ao FGTS com multa de 40%, além do aviso prévio indenizado, o seguro-desemprego e a possibilidade de manter-se um tempo trabalhando na informalidade, os trabalhadores têm incentivos em manter alta rotatividade entre empregos, criando menos investimentos em qualificação e afetando negativamente a produtividade total da economia.

Se fosse possível abolir a pobreza involuntária por decreto, eu assinaria esse decreto. Mas a pobreza não pode ser revogada com uma assinatura. Ela precisa ser superada. O melhor que o governo pode fazer é preparar um ambiente em que as forças produtivas dos indivíduos possam atuar, que as barreiras para o emprego sejam diminuídas, que a abertura de empresas seja facilitada e, não podemos esquecer, que a propriedade que o pobre produziu seja dele.

Sempre haverá os que são improdutivos involuntariamente e a esses devemos direcionar nossa compaixão e caridade. Mas se tratarmos o sujeito que se recusa a produzir da mesma forma que tratamos o que acorda cedo para suar a camisa, estaremos diminuindo o valor do suor, do esforço, da produção.

O ócio empobrece. A esmola (caridosa ou coercitiva) ameniza a pobreza. Mas só a produtividade verdadeiramente enriquece e dignifica.

Por: Diogo Costa  presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York. Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com

OS CINCO PILARES DA LIBERDADE ECONÔMICA

O grande debate entre capitalismo e socialismo sofre de uma enorme falta de clareza a respeito de suas respectivas definições. É imperativo entender que há uma diferença intransponível entre "capitalismo genuíno" e "capitalismo corporativo", ou, como dizem, capitalismo de compadres. 

O que exatamente você entende por 'capitalismo'?

Diariamente, por exemplo, lemos sobre como a bagunça econômica na Europa representa uma "crise do capitalismo". Oi? Já faz mais de cem anos que os governos europeus não mais deixam suas economias crescerem por conta própria, sem coagi-las com regulamentações, sem tributar espoliativamente o público, sem inundar o sistema financeiro com dinheiro falso criado do nada, sem cartelizar o sistema produtivo, beneficiando os amigos do regime, sem criar inúmeros benefícios assistencialistas, sem financiar colossais programas de obras públicas e por aí vai.

Alguns defensores da liberdade de mercado acreditam que o termo "capitalismo" deveria ser descartado permanentemente porque gera confusão. As pessoas podem pensar que você preconiza o uso do estado para defender o capital contra o trabalho, o uso de políticas públicas para defender importantes empresários contra os consumidores ou a imposição de prioridades políticas que favoreçam os negócios à custa do trabalho.

Se um termo explica uma ideia com grande acurácia, ótimo. Mas se ele causa confusão, então tem de ser alterado. A linguagem é algo que está em constante evolução. Nenhum arranjo específico de letras pode embutir em si um significado imutável. E o que está em jogo neste debate sobre a liberdade de mercado (ou o capitalismo ou o laissez-faire ou o livre mercado) é um conteúdo de profunda importância.

É com o conteúdo, e não com as palavras, que devemos nos importar. Não é exagero algum dizer que o futuro da civilização, o qual está cada vez mais periclitante, depende disso.

A seguir, cinco elementos essenciais a esta ideia de liberdade de mercado, ou seja lá como você queira chamar este arranjo. Trata-se de meu breve resumo sobre a visão liberal clássica a respeito da sociedade livre e de seu funcionamento, visão esta que não se resume apenas à economia, mas sim a tudo de que depende nossa vida.

Vontade 

Mercados se resumem ao exercício da escolha humana em todos os níveis da sociedade. Tais escolhas se estendem a todos os setores e a todos os indivíduos. Você pode escolher o seu trabalho. Ninguém pode obrigar você a ter um emprego que você não queira, mas você também não pode obrigar nenhum empregador a lhe contratar. Da mesma forma, ninguém pode obrigar você a comprar nada, mas você também não pode obrigar ninguém a vender algo para você. 

Este direito à liberdade de escolha reconhece a infinita diversidade que existe dentro de todo o conjunto de indivíduos que forma uma sociedade (ao passo que políticas governamentais têm necessariamente de supor que as pessoas nada mais são do que meras unidades perfeitamente permutáveis). Algumas pessoas sentem uma vocação para viver uma vida de oração e contemplação em uma comunidade de religiosos fervorosos. Outras possuem um talento para gerenciar ativos em fundos de alto risco. Já outras preferem as artes, ou a contabilidade, ou qualquer outra profissão ou vocação que você puder imaginar. Qualquer que seja sua vocação, você pode segui-la livremente, desde que o faça de maneira pacífica, sem iniciar violência ou coerção contra terceiros.

Você tem liberdade de escolha; porém, em suas relações com terceiros, "acordo" ou "concordância" é a palavra-chave. Isto implica a máxima liberdade para todos os indivíduos na sociedade. Também implica um papel máximo para aquilo que chamam de "liberdades civis". Implica ter liberdade de expressão, liberdade de consumo, liberdade de comprar e vender, liberdade publicitária e assim por diante. Nenhum arranjo de escolhas possui privilégios legais sobre outros.

Propriedade

Caso houvesse uma infinita abundância de recursos no mundo, não haveria necessidade de propriedade sobre os recursos. Porém, considerando a realidade do mundo em que vivemos, sempre haverá potenciais conflitos sobre recursos escassos. Estes conflitos podem ser resolvidos por meio de uma simples e brutal guerra por estes recursos, ou pelo reconhecimento de direitos de propriedade. Se quisermos paz em vez de guerra, vontades e escolhas em vez de violência, produtividade em vez de pobreza, todos os recursos escassos — sem exceção — terão de ser propriedade privada.

Todos os indivíduos podem utilizar sua propriedade de qualquer maneira que seja pacífica. Não há limites para a acumulação nem a necessidade de permissão para acumulações. A sociedade não pode declarar que alguém já está excessivamente rico (e que, logo, parte de sua riqueza deve ser confiscada) e nem proibir o asceticismo ao declarar que alguém é excessivamente pobre (e que, logo, terceiros devem ser roubados para que se possa enriquecer o pobre). Em situação alguma pode alguém pegar o que é seu sem sua permissão. Você tem plena liberdade de estipular como será a distribuição de sua propriedade para seus herdeiros após você morrer, sem que ninguém confisque uma fatia desta sua propriedade.

O socialismo realmente não é uma opção para o mundo material. Não é possível haver propriedade coletiva de qualquer coisa que seja materialmente escassa. Alguma facção sempre acabará exercendo o controle dos recursos em nome da sociedade. Inevitavelmente, esta facção será a mais poderosa da sociedade — ou seja, o estado. É por isso que todas as tentativas de se criar socialismo sobre bens ou serviços escassos sempre degenera em sistemas totalitários.

Cooperação

Vontade e propriedade garantem a qualquer indivíduo o direito de viver em um estado de total isolamento, em um estado de pura autarquia. Por outro lado, tal arranjo não levará ninguém muito longe. O indivíduo que assim deseja viver será pobre e sua vida, muito curta. Indivíduos necessitam de outros indivíduos para poder viver uma vida melhor. Nós incorremos em atividades comerciais para melhorarmos mutuamente nossa situação. Cooperamos por meio do trabalho. Criamos e desenvolvemos todas as formas de associação mútua: comercial, familiar e religiosa. A vida de cada um de nós é aprimorada pela nossa capacidade de cooperar, de alguma forma, com outras pessoas.

Em uma sociedade baseada em vontades e desejos, em propriedade e cooperação, redes de associações humanas se desenvolvem ao longo do tempo e do espaço para criar as complexidades da ordem social e econômica. Ninguém é o senhor da vida de ninguém. Se quisermos ser bem sucedidos em nossas vidas, temos de aprender a bem servir outros indivíduos — nossos clientes — da melhor maneira possível. Empresas e empreendedores servem a seus consumidores. Gerentes servem a seus empregados assim como os empregados servem à sua empresa.

Uma sociedade livre é uma sociedade de relações humanas extensivas. É uma sociedade de amizade ampliada para todos os setores. É uma sociedade de prestação de serviço, de benevolência e de cuidado para com a qualidade dos serviços ofertados para todos os indivíduos.

Aprendizado

Ninguém nasce sabendo muito a respeito de qualquer coisa. Aprendemos com nossos pais e professores, mas, ainda mais importante, aprendemos com os infinitos pedaços de informações que chegam a nós a cada instante do dia ao longo de todas as nossas vidas. Observamos o sucesso e o fracasso de terceiros, e aprendemos com eles. Acima de tudo, somos livres para aceitar ou rejeitar estas lições. Isso vai de cada um. Em uma sociedade livre, temos a liberdade de emular os outros, acumular sabedoria e colocá-la em prática, ler e absorver ideias, extrair informações de toda e qualquer fonte, e adaptá-las ao uso que mais nos aprouver.

Todas as informações com as quais nos deparamos ao longo de nossas vidas são bens gratuitos e não-escassos, desde que obtidas não-coercivamente. Elas não estão sujeitas às limitações da escassez porque são infinitamente copiáveis. Você, eu e todas as outras pessoas da sociedade podemos ter uma mesma informação e ainda assim ela não será escassa. A informação é algo que pode ser propriedade coletiva, sem limitações.

E é justamente neste ponto que encontramos o lado "socialista" do sistema capitalista. As receitas para o sucesso e para o fracasso estão disponíveis em todos os cantos, e plenamente livres para serem estudadas e utilizadas — ou descartadas. É por isso que a própria noção de "propriedade intelectual" é hostil à liberdade: ele sempre implica a coerção de pessoas e, consequentemente, a violação dos princípios da vontade, da autêntica propriedade e da cooperação.

Concorrência

Quando as pessoas pensam em capitalismo, provavelmente 'concorrência' é a primeira ideia que vem à mente. Porém, tal ideia é amplamente mal compreendida e interpretada. Concorrência não significa a necessidade da existência de vários ofertantes de todos os tipos específicos de bens e serviços, ou a necessidade da existência de um determinado número de produtores de qualquer coisa. Concorrência significa apenas a não existência de limites legais (coercivos) à entrada no mercado, o que significa que, falando mais diretamente, não deve haver restrições à maneira como podemos servir uns aos outros. E, realmente, há infinitas maneiras nas quais isto pode ocorrer.

Nos esportes, a competição possui um único objetivo: vencer. Na economia de mercado, a competição também possui um objetivo: atender ao consumidor com um grau de excelência continuamente crescente. Esta excelência pode vir na forma de uma oferta de produtos ou serviços mais baratos e de melhor qualidade, ou na forma de novas inovações que atendam às necessidades das pessoas de forma mais eficiente e barata do que os produtos e serviços já existentes. Competição não significa "aniquilar" os concorrentes; significa se esforçar para fazer um serviço melhor do que todos os seus concorrentes. 

Qualquer ato competitivo é um risco, um salto rumo a um futuro desconhecido. Se o julgamento foi certo ou errado, isto é algo que será ratificado pelo sistema de lucros e prejuízos. Lucros e prejuízos são sinais enviados pelo mercado que servem como mensurações objetivas: eles mostram se os recursos estão sendo utilizados corretamente ou não. Estes sinais são derivados dos preços cobrados pelos empreendedores e pelos custos nos quais eles incorrem para produzir, e são estabelecidos livremente no mercado — o que significa dizer que os preços atuais são um mero reflexo de todos os acordos prévios que foram feitos entre indivíduos com liberdade de escolha.

Ao contrário dos esportes, não há um ponto de chegada para a competição do mercado. Trata-se de um processo que nunca acaba. Não há um vencedor final; há um contínuo e ininterrupto rodízio de excelência entre os competidores. E qualquer um pode entrar no jogo, desde que participem dele pacificamente.

Resumo

Aí está, portanto: vontade, propriedade, cooperação, aprendizado e concorrência. Eis aí, a meu ver, a essência do capitalismo, exatamente como ele foi descrito pela tradição liberal-clássica, a qual foi aprimorada pelos teóricos sociais austríacos do século XX. Não se trata exatamente de um sistema, mas sim de um arranjo social — para todas as épocas e lugares — que favorece o desenvolvimento humano.

Não é difícil, portanto, especificar a visão política de genuínos liberais: se algo se encaixa nestes requisitos, somos a favor; se não, somos contra. Donde vem a pergunta: a atual crise mundial é realmente uma crise do capitalismo? Ao contrário, um autêntico capitalismo é a solução para os maiores problemas do mundo atual.