segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

DIÁRIO DA EUROPA

1.
O Papa Francisco publicou a sua exortação evangélica e o jornalismo progressista (e preguiçoso) aplaudiu em delírio. Parece que o Papa tinha lançado um ataque devastador ao capitalismo, propondo uma via revolucionária - ou, pelo menos, bolivariana, para que o mundo pudesse seguir o excelso caminho da Venezuela de Maduro. 

Com a devida vénia aos alucinados, fui ler a exortação. E, com surpresa, verifiquei que em 220 páginas, o Papa dedica umas 10 ao estado actual da economia. E para dizer o quê? 

Simplesmente, o que qualquer cristão aprende desde os tempos da catequese: que temos obrigações para com os pobres e excluídos; que o mercado livre não resolve todos os problema sociais; que o dinheiro, por mais importante que seja, deve estar ao serviço da ética e do ser humano. 

E, pormenor fundamental, que mal vai o mundo quando permitimos que os mercados e a especulação financeira tiranizem todas as relações pessoais. 

Escusado será dizer que subscrevo cada palavra de Francisco. E, mais ainda, subscrevo cada palavra precisamente porque defendo o mercado livre. Isso significa duas coisas. 

Em primeiro lugar, e tal como afirma Francisco, que o mercado só funciona quando existe uma cultura de responsabilidade e valores morais a servi-lo (ler Adam Smith). 

E, em segundo lugar, que confundir uma "economia de mercado" com uma "sociedade de mercado" é não entender o papel importante, porém especificamente instrumental, da primeira como "sistema de liberdade natural" (Adam Smith novamente). 

Francisco relembrou a ouvidos modernos a mensagem da Igreja desde tempos antigos. O espanto orgásmico que escorreu por aí não diz nada sobre o Papa; mas diz muito sobre a ignorância evangélica de quem só agora aterrou na Doutrina Social da Igreja. 

2.
Já ninguém lê Bertrand de Jouvenel. Que pena. No século 20 europeu (e sobretudo francês), é difícil encontrar um filósofo que tenha analisado tão bem a forma como o Estado foi concentrando áreas cada vez maiores de poder sobre a vida dos indivíduos. 

O fenómeno começou na Idade Média quando as monarquias absolutas começaram por arrasar com a autoridade do baronato medieval. Continuou depois na Idade Moderna, quando os revolucionários franceses, longe de derrubarem a monarquia absoluta, acabaram por se apropriar dos seus mecanismos de controlo e violência (Tocqueville já tinha dito o mesmo). 

E continuou no século 20, quando os estados totalitários se tornaram, precisamente, totalitários. E hoje? 

Hoje, depois do fim das utopias, talvez exista a ilusão de que o Estado não é mais o "Minotauro" que Bertrand de Jouvenel tanto temia. Mas isso não passa de uma ilusão: sob a capa do "bem comum", o Estado continua a deter um poder sobre a vida dos indivíduos que seria impensável até para um rei absolutista como Louis 13. 

Se dúvidas houvesse, bastaria ler o que se passou no Reino Unido: conta o "Sunday Telegraph" que uma imigrante italiana grávida foi anestesiada à força para que os médicos pudessem retirar a criança do ventre. Motivo? 

Os "serviços sociais", preocupados com a saúde mental da mãe, consideraram que uma cesariana forçada era no melhor interesse de todos. A criança, hoje com 15 meses, continua numa instituição do Estado. A mãe apelou para a justiça. Vários juristas dizem que o caso é "insólito", para usar um eufemismo. 

Não, não é "insólito". É apenas a conclusão lógica de um processo de abuso autoritário crescente em que até o corpo de cada um não está a salvo das garras do Estado. 

3.
E por falar em corpos: no Antigo Egipto, nenhuma mulher jovem e bonita que morresse precocemente era entregue ao cangalheiro da época. As famílias sabiam que, antes das cerimónias fúnebres propriamente ditas, era preciso deixar apodrecer o corpo um bocadinho antes que o mesmo fosse parar às mãos de um homem. 

Passaram 5 mil anos. Os faraós desapareceram da paisagem. Mas é sempre bom saber que, na vizinhança do Oriente Médio, ainda há quem se preocupe com os cadáveres femininos. 

Leio na "Veja" que um mufti da Arábia Saudita, por exemplo, decidiu proibir os médicos, em geral, e os médicos legistas, em particular, de tocarem ou autopsiarem o corpo nu de uma mulher. O serviço só pode ser feito por outras mulheres. 

Pessoalmente, não sei se a proibição do mufti se explica por respeito puritano face às mulheres mortas - ou por desconfiança paranóica face aos homens demasiado vivos. 

Mas alguém devia explicar ao mufti que, aberração por aberração, existe sempre a hipótese de também existirem mulheres (vivas) para quem o corpo de uma mulher (morta) pode ter os seus encantos.Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

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