Algumas sugestões: beber água; usar chapéu para proteger do sol; abrir as janelas para arejar as casas; não deixar crianças (ou animais) no interior dos carros; usar roupa leve - a lista é infindável e eu, mesmo com o cérebro a derreter, pergunto com honestidade se alguém, esmagado pelo calor, optaria voluntariamente pela desidratação; pela insolação; pela asfixia doméstica; pelo homicídio negligente de crianças (ou animais) em carros-fornalha; ou por roupa de alpinista para ir às compras.
Perguntas absurdas, claro: no Estado "babysitter" em que a Europa vive, cada adulto é uma criança (retardada). Espantoso é ainda não ter aparecido um organismo qualquer, devidamente financiado por dinheiro público, lembrando aos nativos a importância da inspirar e expirar como condições fundamentais para uma correcta respiração.
Uma questão de tempo, não mais.
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A loucura não chegou a Londres. Pelos menos, eu não reparei em nada. Mas leio nos jornais que chegou a França, Itália e até na Alemanha. Falo dos actos antissemitas contra judeus - violência, queima de sinagogas etc. - porque a guerra entre Israel e o Hamas continua no Oriente Médio.
Sobre o caso francês, nada a declarar: como escrevi nesta Folha, 50% dos crimes racistas em França são contra judeus. Já na Itália e na Alemanha, o caso tem mais piada: 70 anos depois, esses dois países, que têm a mancha do antissemitismo gravada nos ossos, são como os antigos Bourbons. Não aprenderam nada nem esqueceram nada.
Porque falamos de antissemitismo e não, como se pensa, de antissionismo. Quando, em finais do século 19, um certo jornalista húngaro escrevia em Paris sobre o "Caso Dreyfus" (um oficial francês, de origem judaica, era acusado de passar segredos militares à Alemanha), o que espantou Theodor Herzl (1860 - 1904) não foi o irracionalismo do julgamento.
Foi ver, na porta do tribunal, cartazes onde se lia: "Morte aos judeus!". Atenção às palavras: não era "Morte a Dreyfus!". Era "Morte aos judeus!", como se todos eles fossem igualmente culpados por um crime falso.
O raciocínio de Herzl, que nunca verdadeiramente tinha pensado na "questão judaica" (ele, apesar de judeu, era um caso de integração exemplar), foi imediato: se os judeus não estavam em segurança no país mais avançado do Ocidente, onde poderiam encontrar essa segurança? A Palestina otomana (sublinhemos o "otomana", por favor) era a opção historicamente mais lógica.
Herzl não inventou o "sionismo". Mas, com ele, emergiu um sionismo político moderno, baseado na compra e no trabalho da terra (sublinhemos as palavras "compra" e "trabalho" da terra).
Passou em século. E voltamos a ver os mesmos cartazes - "Morte aos judeus!" - pelas ruas da Europa. Repito: não é "Morte a Netanyahu!" ou "Morte a Israel!" ou "Morte aos soldados israelenses!". É "Morte aos judeus!", todos eles, começando no soldado que invade Gaza e terminando no anónimo vendedor de livros junto ao rio Sena, que nem sequer sabe onde fica Israel no mapa.
Quem disse que não era possível escrever poesia depois de Auschwitz, esqueceu-se de incluir a farsa.
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Ainda sobre Israel: o meu último texto para esta Folha mereceu incontáveis mensagens. De apoio e repúdio.
Lamento. No texto, limitei-me a relembrar factos. A começar pelo facto singelo de o Hamas ser uma organização terrorista e jihadista que nem sequer aceita a existência de Israel. A exigência do "fim do bloqueio" a Gaza é conversa para otários.
Mas uma acusação não deixou de cintilar no meu email: eu, na minha condenação do Hamas, era insensível aos civis mortos (e às crianças mortas!) que o exército de Israel provocava no território. Confrontado com imagens do horror, o mais certo era eu dançar de alegria, agradecendo a Herodes a matança dos inocentes.
Não vale a pena perder tempo com cabeças doentes. Nem sequer para recordar o óbvio: o Hamas persiste em usar civis como escudos humanos, armazenando o seu arsenal bélico em escolas ou hospitais - e até impedindo a saída dos civis de áreas que o próprio exército de Israel avisa antecipadamente que serão atacadas. Quem começa por matar os palestinos são os próprios terroristas palestinos.
De resto, e depois de anos a ler e a ensinar sobre o conflito, começo a chegar à triste conclusão que o melhor mesmo seria Israel conceder independência total a Gaza e à Cisjordânia. Isso teria dois efeitos.
O primeiro, previsível, seria uma guerra civil entre os próprios palestinos, que obviamente olham para Israel de formas distintas: a Autoridade Palestina (na Cisjordânia) como um vizinho possível; o Hamas (em Gaza) como um câncer que é preciso extirpar.
Depois, se houvesse lançamento de foguetes, Israel poderia defender-se como qualquer estado soberano quando atacado por outro estado soberano.
Não que isso convencesse a "comunidade internacional" da justeza israelense - falo sobretudo da comunidade europeia, que gosta de transformar os israelenses em novos nazistas por óbvios sentimentos de culpa.
Mas seria mais difícil sustentar que um país, ao ser atacado por outro, deveria receber os mísseis de braços abertos.
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Por que motivo os políticos não pedem a aposentadoria? Conversava tempos atrás com um amigo sobre um conhecido político português. Que, apesar de idade respeitável, continua à solta, debitando inanidades atrás de inanidades.
Ele, com bonomia, replicou: ser político não é diferente de ser músico, pintor ou escritor. Uma questão de paixão. Ninguém espera que um artista deixe de pintar ou escrever só porque atingiu uma qualquer idade. Quem ama o que faz, ama até ao fim.
E, apesar da política partidária ser (para mim) caminho interdito, é preciso compreender as paixões alheias, tão legítimas (ou ilegítimas) quanto as minhas.
Falou e disse. Calei e fui-me. E agora, na Tate Modern, é impossível não lembrar a conversa. Nos últimos 14 anos de vida, Henri Matisse (1869 - 1954) já tinha idade (e doença) para pendurar as chuteiras. O trabalho estava feito: a pintura moderna é incompreensível sem ele, ou seja, sem entender a continuidade que o francês deu a Gauguin (na planificação antinaturalista das formas) e, claro, a Cézanne, pai de todos os "fauves".
Mas Matisse não pendurou as chuteiras. Com a ajuda de assistentes, em especial de Lydia Delectorskya, começou a usar tesouras quando já não conseguia usar tintas e pincéis. O resultado são os famosos "gouaches découpés", ou seja, recortes em papel colorido aplicados sobre a tela.
Todas as composições valem a pena - a começar pelas colagens que fez para o seu estúdio em Vence. Mas a exposição tem o bónus de vermos em filme o próprio Matisse, nos últimos tempos de vida, recortando um lençol de papel com um gesto só - uma energia infantil, habilidosa, audaz, própria de quem acredita ter o futuro inteiro à sua espera.
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Ligo a TV do hotel. Imagens de um avião civil malaio abatido na Ucrânia. Quase trezentos mortos. Responsabilidades? Tudo aponta para separatistas russos, armados por Moscovo e plantados na Ucrânia pelo Kremlin como forma de abocanhar mais um pedaço de território para a órbita moscovita.
Vladimir Putin nega. O mundo não acredita. Mas depois começa a conversa sobre a melhor forma de "punir" Putin. Há sanções económicas sobre a mesa. Proibição de acesso a certos mercados de capitais. Procura de alternativas ao fornecimento de energia russa. E etc. etc. etc.
Inútil. A única coisa remotamente inteligente sobre o assunto foi escrita por Tunku Varadarajan para o "The Daily Beast": a melhor forma de punir Putin é simplesmente retirar-lhe a Copa do Mundo de 2018.
Isso pode ser feito directamente - o autor sugere que a Holanda, país atingido pela tragédia e ironicamente o concorrente vencido para a organização da Copa de 2018, poderia tomar as rédeas do assunto.
Ou então os países da União Europeia e da OTAN (no fundo, o essencial do futebol mundial) poderiam recusar a honra de participar no endeusamento de Putin. Selecções de África (ou da Ásia), caso aceitassem o vexame, chegavam e sobravam para fazer da Copa de Putin um belíssimo fiasco.
Porque futebol é política: uma forma de afirmação nacionalista em que os governos gostam de mostrar grandeza, real ou imaginária. Se a FIFA tivesse "cojones" e ameaçasse levar "o jogo bonito" para outras paragens, aposto que a guerra ucraniana teria os dias contados.
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Quando vemos Bill Nighy entrar em palco, tememos o pior. Será que o homem vai repetir todos os tiques cabotinos que o popularizaram nos filmes de Richard Curtis ou até nos exercícios televisivos de Stephen Poliakoff?
A princípio, sim: Bill é Tom, um homem de negócios, que depois da morte da mulher finge que o mundo continua igual. Ele continua igual. "Detached", para usar uma palavra inglesa sem tradução exacta para português. "Cool" - idem. Ele não puxa uma cadeira para se sentar - com as mãos. Ele usa a ponta do pé para o efeito - como se fosse Gene Kelly num musical de Minnelli.
Mas uma máscara é uma máscara é uma máscara. E ao entrar em casa de Kyra (Carey Mulligan), antiga e jovem amante durante a doença da mulher, a máscara cai. Tom é um poço de tristeza e de culpa e de derrota. E também de ilusão: a ilusão de que é possível retomar o que ficou para trás.
"Skylight", a peça de David Hare dirigida por Stephen Daldry (no Wyndham's Theatre até 23 de Agosto), é a evidência desencantada de que o amor não basta quando a vida é mais célere do que a memória dos amantes.
E é pungente - não há outra palavra - ver Bill Nighy, um gigante do teatro inglês (em vários sentidos da palavra), reduzido a uma sombra do homem que vimos que início, abraçar e abandonar Kyra na mais longa madrugada da sua viuvez. Nunca a neve de Londres foi tão parecida com as lágrimas.
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Regresso a Portugal. A estada será curta. Tempo apenas para esvaziar a mala e enchê-la de novo para cruzar o Atlântico rumo ao Brasil. O pretexto é o livro "As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários" (3 Estrelas), já com 1ª reimpressão. Obrigado, gente.
Para os interessados, aqui ficam as datas: dia 2 de Agosto, às 14.30h, estarei em Paraty, durante a FLIP, para falar na Casa Folha. Dia 4 de Agosto, das 18.30h às 21.30h, estarei na Livraria da Vila, no Shopping Pátio Higienópolis, em São Paulo. Para conhecer leitores e detractores.
Claro que gostaria também de fazer uma visita ao Rio, a Belo Horizonte, a Brasília, a Salvador e a todos as cidades da Copa. Mas como verdadeiro português, falta-me o sangue germânico para fazer uma turnê inteira.
Além disso, o colunista merece férias. Essa coluna regressa a 25 de Agosto.
Como dizem os brasileiros, é isso aí. Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP