segunda-feira, 23 de março de 2015

POR QUE ESCREVER NÃO É ALGO SIMPLES?

Escrever não é algo simples, ainda que acessível a todos os alfabetizados, principalmente os que se exercitam de alguma forma, copiando receitas de bolo ou escrevendo e-mails no trabalho e redações na escola.


Se, nos dias de hoje, os jovens encontram grande dificuldade para escrever, isso se deve à pedagogia socioconstrutivista, que minimiza a importância da escrita1, dando maior relevância ao que denomina “comunicação”.

Décadas de submissão ao socioconstrutivismo criaram a ilusão de que a escrita equivale a um gesto ou a um sinal de trânsito — equiparação que só pode existir no cérebro de pedagogos que, antes de serem educadores, são ideólogos.

Mas meu objetivo aqui não é discutir os detalhes desse absurdo nivelamento. Olavo de Carvalho já o fez, com sua reconhecida maestria, em artigo publicado no Diário do Comércio, em 30 de outubro de 2012. E sintetizou suas idéias mais recentemente, num post em sua página do Facebook.

Quero falar aqui sobre a complexidade do ato de escrever.

Por que escrever não é algo simples?

Pense nos materiais que circundam a escrita. Quando, por exemplo, usamos um dicionário, não refletimos sobre o que se esconde nos verbetes: esforço de inteligência, disciplina para reunir e organizar informações, pesquisa acumulada ao longo da história, capacidade expressiva para explicar as múltiplas acepções de um vocábulo.

Você pode pensar em utensílios menos intelectuais. Entre numa papelaria e observe a diversidade de material relacionado à escrita. O aperfeiçoamento técnico — que hoje nos permite utilizar inclusive processadores de texto poderosos como Scrivener — faz com que escrever seja, literalmente, menos cansativo do que há dois mil anos.

Mas pense também na complexidade do ato de escrever sob uma perspectiva imaterial: a dos mecanismos cerebrais.

Escrever não é algo simples

O exercício de abstração é algo grandioso, sobre o qual não costumamos refletir.

Quando você escreve, seu ser inteiro conflui para cada sentença, cada escolha vocabular. Seu passado, tudo que sua família e seus antepassados lhe transmitiram, suas relações sociais, seus valores, suas emoções, sua fé, sua memória.6

Vamos supor que você deseja apenas descrever, em poucas linhas, o que sente quando saboreia um doce que sua bisavó fazia – ou qualquer outra sensação. Como seu cérebro trabalha para imaginar e, ao mesmo tempo, conceituar algo que, num primeiro instante, é apenas uma recordação fugidia?

Ou, ainda mais complexo, como escritores conseguem descrever sentimentos e atitudes que eles nunca experimentaram?

O exercício de abstração — separar mentalmente um ou mais elementos de certa totalidade complexa e colocá-lo em palavras — é algo grandioso, sobre o qual não costumamos refletir.2

Na verdade, qualquer experiência subjetiva parece ser indescritível.

Mas a história da literatura mostra que essa é apenas uma primeira impressão.

A representação das idéias ou dos sentimentos por meio de sinais gráficos, quando utilizada por um escritor experiente, pode sintetizar as emoções mais sutis.

Mas esse escritor só consegue alcançar seu objetivo se ordenar suas idéias; se conhecer as possibilidades que o idioma oferece; se tiver habilidade para julgar o que deve dizer, para escolher a forma específica por meio da qual se expressará e, por fim, decidir o que efetivamente deseja escrever.

Cada um desses atos, feitos de maneira automática, escondem séculos de permanente adaptação do nosso cérebro e de reelaboração do código lingüístico.

O escritor enlouqueceria se percorresse cada uma dessas etapas de forma consciente, se escrevesse raciocinando sobre tais questões, se consultasse o dicionário pensando no trabalho do dicionarista.

E é desnecessário que ele pense em tudo isso quando escreve.

Mas esse incrível acúmulo de recursos está ali, pulsando a cada escolha, a cada idéia. Só esse surpreendente acúmulo de recursos transformou o ato de escrever numa prática aparentemente simples. 
Por: Rodrigo Gurgel Do site: http://rodrigogurgel.com.br

sexta-feira, 20 de março de 2015

NÃO É A MERITOCRACIA; É O VALOR QUE SE CRIA


Não. Ele é pobre porque não conseguiu gerar valor para ninguém.

Meritocracia é uma palavra bonita. Não. É uma palavra que remete a uma coisa bonita: que cada um receba de acordo com seu mérito, que em geral é igual a esforço, dedicação; às vezes se inclui a inteligência.

E — é o que garantem alguns liberais — é isso que vigora no mercado. Quem se esforça, chega lá.

É questionável até que ponto esse tal mérito pessoal sequer exista. Hélio Schwartsman, na Folha, apontou aquele fato que ninguém gosta de lembrar: o esforço pessoal, o suor, a capacidade de trabalho, a inteligência; todos dependem de variáveis que estão fora da escolha pessoal — do mérito, portanto — do indivíduo. Essa esfera do que é só meu, do mérito próprio distinto das circunstâncias do ambiente e da história, simplesmente não existe. Ao menos, não da forma simplória que se vende.

E existindo ou não, será verdade que o mercado premia justamente o mérito? Se for, caro liberal, então você está obrigado a defender que Gugu Liberato e Faustão têm mais mérito do que um professor realmente excelente e que realmente ensine coisas úteis.

Nada contra o Gugu e o Faustão, mas eles não são meu exemplo ideal de disciplina, dedicação e trabalho duro. E, mesmo assim, o mercado os recompensa muito bem. Do outro lado, milhões de trabalhadores labutam dia e noite, e outros milhões de desempregados procuram o que fazer, e continuam pobres. Ainda falta esforço? São preguiçosos, burros talvez?

Nada disso.

O que realmente determina a remuneração no mercado não é o mérito, não é a virtude, não é o esforço ou a dedicação. É apenas a criação de valor; o valor que aquela pessoa consegue adicionar à vida dos demais.

Não importa se é por esforço, inteligência, sorte, talento natural, herança; quanto mais imprescindível ela for aos outros, mais os outros estarão dispostos a servi-la.

O esforço por si só não garante nada. É verdade que, tudo o mais constante, se a pessoa encontra um campo em que ela gera valor, o esperado é que mais esforço gere mais valor. Com o passar das gerações, a ascensão social se acumula: a filha da retirante nordestina que trabalha de empregada tem computador, aula de inglês e provavelmente não será doméstica quando crescer.

É assim que as sociedades enriquecem. Não é de uma hora para outra, e não tem nada a ver com a crença ingênua de que a renda é ou deveria ser proporcional ao mérito.

Nada é garantido. Às vezes o setor em que o sujeito trabalha fica obsoleto, e o valor produzido pela dedicação de uma vida cai abruptamente. Havia gente muito dedicada entre os técnicos de vitrola de meados dos anos 1990; e mesmo assim…

Meritocracia é um conceito que se aplica ao interior de organizações. Promover membros com base no mérito (em geral medido por algum indicador) pode ser melhor do que fazê-lo por tempo de serviço, pela opinião subjetiva de um superior etc. Meritocracia é um modelo de gestão. Até mesmo o governo, por exemplo, poderia se beneficiar dela, reduzindo suas ineficiências. Não é um modelo sem falhas: a necessidade de mostrar resultados cria uma pressão interna muito grande e pode minar a cooperação, a manipulação dos indicadores pode viciar o sistema de avaliação.

Encontrar o sistema mais adequado a cada contexto é uma questão de administração, de funcionamento interno de organizações, que nada tem a ver com o mercado. Mercado é o processo (sim, memorizem isso: o mercado é um processo) no qual algumas organizações existem e operam. Às vezes organizações nada meritocráticas prosperam no mercado, e organizações meritocráticas podem existir fora dele.

Satisfaça as necessidades dos outros, e as suas serão satisfeitas. Não importa se é por mérito, por sorte ou por talento. O cara mais esforçado e bem-intencionado do mundo, se não criar valor, ficará de mãos vazias.

Achou injusto? Então aqui vai um segredo: é você quem perpetua esse sistema. Se sua geladeira quebra, você vai querer um técnico esforçado e que dê tudo de si, ou vai querer um que faça um ótimo serviço, com pouco esforço e a um baixo custo? Quer um restaurante ruim mas com funcionários esforçados ou quer comer bem? O mundo reflete o seu código de valores e, veja só, ele não é meritocrático.

A vida não é e nem deve ser uma corrida que parte de condições iguais e na qual, no fim do jogo, vencem os melhores. Na medida em que esse sonho meritocrático é sequer possível (estamos muito longe de corrigir desigualdades genéticas, por exemplo), ele exigiria um investimento enorme só para produzi-lo; sacrificaríamos valor para criar condições artificiais que se adequem a esse ideal abstrato. Todos ficariam mais pobres para realizar esse sonho moral.

Mas quem disse que a igualdade é moralmente superior à desigualdade? Se um meteorito cai na minha casa e não na sua, isso é injusto? É imoral?

O sistema de mercado não premia a virtude; ele premia, e portanto incentiva, o valor. É feio dizê-lo? Pode ser, mas ele tem um lado bom: é o sistema que permite que a vida de todos melhore ao mesmo tempo. Que todo mundo que quer subir tenha que ajudar os outros a subir também. Ele não iguala o patamar de todo mundo, mas garante que a direção de mudança seja para cima.

O ideal da meritocracia tem o seu apelo, mas ele depende de meias-verdades: a ideia do mérito que é só meu e de mais ninguém, a de que meu suor justifica o que eu ganhei. Sem suor ou inteligência, o ganho é sujo, indevido. Mas o outro lado dessa moeda é feio: implica dizer que quem não chegou lá não teve mérito; que a pobreza é culpa do pobre.

A lógica do mercado é outra: você criou valor, será recompensado. Sua riqueza não diz nada sobre o seu mérito; ela não justifica e nem precisa ser justificada. O resultado desse foco no valor é que mais valor é criado. Você recebe aquilo que entrega e todos ganham.

[Nota do IMB: por que Faustão, Gugu, jogadores de futebol e artistas globais ganham mais de R$ 1 milhão por mês ao passo que um professor realmente bom ganha apenas uns R$ 5 mil? Um bom professor pode realmente gerar valor, mas ele gera valor para uma quantidade ínfima de pessoas ao ano. Quantos alunos diferentes ele tem? Provavelmente, não mais do que 200 (um número bem exagerado). Portanto, ele cria valor para 200 pessoas por ano. É uma produtividade extremamente baixa. Já os indivíduos supracitados têm alcance nacional (alguns, mundial), milhões de pessoas consomem voluntariamente seus serviços, e eles geram retornos — goste você ou não deles — para seus empregadores semanalmente, que estão satisfeitos em lhes pagar salários milionários. Se não gerassem valor, seria simplesmente impossível terem esses salários.]
Por: Joel Pinheiro da Fonseca, mestre em filosofia e escreve no site spotniks.com." Siga-o no Twitter: @JoelPinheiro85  Do site: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2054



quarta-feira, 18 de março de 2015

POR QUÊ OS INTELECTUAIS ODEIAM O CAPITALISMO?

N. do T.: o artigo a seguir foi adaptado de um discurso improvisado feito pelo autor, daí o seu tom mais coloquial.

Por que os intelectuais sistematicamente odeiam o capitalismo? Foi essa pergunta que Bertrand de Jouvenel (1903-1987) fez a si próprio em seu artigo Os intelectuais europeus e o capitalismo.

Esta postura, na realidade, sempre foi uma constante ao longo da história. Desde a Grécia antiga, os intelectuais mais distintos — começando por Sócrates, passando por Platão e incluindo o próprio Aristóteles — viam com receio e desconfiança tudo o que envolvia atividades mercantis, empresariais, artesanais ou comerciais.

E, atualmente, não tenham nenhuma dúvida: desde atores e atrizes de cinema e televisão extremamente bem remunerados até intelectuais e escritores de renome mundial, que colocam seu labor criativo em obras literárias — todos são completamente contrários à economia de mercado e ao capitalismo. Eles são contra o processo espontâneo e de interações voluntárias que ocorre de mercado. Eles querem controlar o resultado destas interações. Eles são socialistas. Eles são de esquerda. Por que é assim?

Vocês, futuros empreendedores, têm de entender isso e já irem se acostumando. Amanhã, quando estiverem no mercado, gerenciando suas próprias empresas, vocês sentirão uma incompreensão diária e contínua, um genuíno desprezo dirigido a vocês por toda a chamada intelligentsia, a elite intelectual, aquele grupo de intelectuais que formam uma vanguarda. Todos estarão contra vocês.

"Por que razão eles agem assim?", perguntou-se Bertrand de Jouvenel, que em seguida pôs-se a escrever um artigo explicando as razões pelas quais os intelectuais — no geral e salvo poucas e honrosas exceções — são sempre contrários ao processo de cooperação social que ocorre no mercado.

Eis as três razões básicas fornecidas por de Jouvenel.

Primeira, o desconhecimento. Mais especificamente, o desconhecimento teórico de como funcionam os processos de mercado. Como bem explicou Hayek, a ordem social empreendedorial é a mais complexa que existe no universo. Qualquer pessoa que queira entender minimamente como funciona o processo de mercado deve se dedicar a várias horas de leituras diárias, e mesmo assim, do ponto de vista analítico, conseguirá entender apenas uma ínfima parte das leis que realmente governam os processos de interação espontânea que ocorrem no mercado. Este trabalho deliberado de análise para se compreender como funciona o processo espontâneo de mercado — o qual só a teoria econômica pode proporcionar — desgraçadamente está completamente ausente da rotina da maior parte dos intelectuais.

Intelectuais normalmente são egocêntricos e tendem a se dar muito importância; eles genuinamente creem que são estudiosos profundos dos assuntos sociais. Porém, a maioria é profundamente ignorante em relação a tudo o que diz respeito à ciência econômica.

A segunda razão, a soberba. Mais especificamente, a soberba do falso racionalista. O intelectual genuinamente acredita que é mais culto e que sabe muito mais do que o resto de seus concidadãos, seja porque fez vários cursos universitários ou porque se vê como uma pessoa refinada que leu muitos livros ou porque participa de muitas conferências ou porque já recebeu alguns prêmios. Em suma, ele se crê uma pessoa mais inteligente e muito mais preparada do que o restante da humanidade. Por agirem assim, tendem a cair no pecado fatal da arrogância ou da soberba com muita facilidade.

Chegam, inclusive, ao ponto de pensar que sabem mais do que nós mesmos sobre o que devemos fazer e como devemos agir. Creem genuinamente que estão legitimados a decidir o que temos de fazer. Riem dos cidadãos de ideias mais simplórias e mais práticas. É uma ofensa à sua fina sensibilidade assistir à televisão. Abominam anúncios comerciais. De alguma forma se escandalizam com a falta de cultura (na concepção deles) de toda a população. E, de seus pedestais, se colocam a pontificar e a criticar tudo o que fazemos porque se creem moral e intelectualmente acima de tudo e todos. 

E, no entanto, como dito, eles sabem muito pouco sobre o mundo real. E isso é um perigo. Por trás de cada intelectual há um ditador em potencial. Qualquer descuido da sociedade e tais pessoas cairão na tentação de se arrogarem a si próprias plenos poderes políticos para impor a toda a população seus peculiares pontos de vista, os quais eles, os intelectuais, consideram ser os melhores, os mais refinados e os mais cultos.

É justamente por causa desta ignorância, desta arrogância fatal de pensar que sabem mais do que nós todos, que são mais cultos e refinados, que não devemos estranhar o fato de que, por trás de cada grande ditador da história, por trás de cada Hitler e Stalin, sempre houve um corte de intelectuais aduladores que se apressaram e se esforçaram para lhes conferir base e legitimidade do ponto de vista ideológico, cultural e filosófico.

E a terceira e extremamente importante razão, o ressentimento e a inveja. O intelectual é geralmente uma pessoa profundamente ressentida. O intelectual se encontra em uma situação de mercado muito incômoda: na maior parte das circunstâncias, ele percebe que o valor de mercado que ele gera ao processo produtivo da economia é bastante pequeno. Apenas pense nisso: você estudou durante vários anos, passou vários maus bocados, teve de fazer o grande sacrifício de emigrar para Paris, passou boa parte da sua vida pintando quadros aos quais poucas pessoas dão valor e ainda menos pessoas se dispõem a comprá-los. Você se torna um ressentido. Há algo de muito podre na sociedade capitalista quando as pessoas não valorizam como deve os seus esforços, os seus belos quadros, os seus profundos poemas, os seus refinados artigos e seus geniais romances. 

Mesmo aqueles intelectuais que conseguem obter sucesso e prestígio no mercado capitalista nunca estão satisfeitos com o que lhes pagam. O raciocínio é sempre o mesmo: "Levando em conta tudo o que faço como intelectual, sobretudo levando em conta toda a miséria moral que me rodeia, meu trabalho e meu esforço não são devidamente reconhecidos e remunerados. Não posso aceitar, como intelectual de prestígio que sou, que um ignorante, um parvo, um inculto empresário ganhe 10 ou 100 vezes mais do que eu simplesmente por estar vendendo qualquer coisa absurda, como carne bovina, sapatos ou barbeadores em um mercado voltado para satisfazer os desejos artificiais das massas incultas."

"Essa é uma sociedade injusta", prossegue o intelectual. "A nós intelectuais não é pago o que valemos, ao passo que qualquer ignóbil que se dedica a produzir algo demandado pelas massas incultas ganha 100 ou 200 vezes mais do que eu". Ressentimento e inveja.

Segundo Bertrand de Jouvenel,

O mundo dos negócios é, para o intelectual, um mundo de valores falsos, de motivações vis, de recompensas injustas e mal direcionadas . . . para ele, o prejuízo é resultado natural da dedicação a algo superior, algo que deve ser feito, ao passo que o lucro representa apenas uma submissão às opiniões das massas.
[...]

Enquanto o homem de negócios tem de dizer que "O cliente sempre tem razão", nenhum intelectual aceita este modo de pensar.

E prossegue de Jouvenel:

Dentre todos os bens que são vendidos em busca do lucro, quantos podemos definir resolutamente como sendo prejudiciais? Por acaso não são muito mais numerosas as ideias prejudiciais que nós, intelectuais, defendemos e avançamos?

Conclusão

Somos humanos, meus caros. Se ao ressentimento e à inveja acrescentamos a soberba e a ignorância, não há por que estranhar que a corte de homens e mulheres do cinema, da televisão, da literatura e das universidades — considerando as possíveis exceções — sempre atue de maneira cega, obtusa e tendenciosa em relação ao processo empreendedorial de mercado, que seja profundamente anticapitalista e sempre se apresente como porta-voz do socialismo, do controle do modo de vida da população e da redistribuição de renda.

Por: Jesús Huerta de Soto , professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor de A Escola Austríaca: Mercado e Criatividade Empresarial, Socialismo, cálculo econômico e função empresarial e da monumental obra Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos.

QUEDA DE BRAÇO

O PT é um partido ilegal, e a eleição de Dilma Rousseff foi resultado de fraude eleitoral maciça e ostensiva


Os fatos são patentes e inegáveis:

1. O PT é filiado a uma organização estrangeira, o Foro de São Paulo, que ele reconhece como “coordenação estratégica da esquerda na América Latina” (sic) e cujas resoluções, unanimemente assinadas nas suas assembleias anuais, ele acata e cumpre. Consultem-se, a respeito, o vídeo do III Congresso do partido (veja aqui), as atas das assembleias do Foro de São Paulo (leia aqui) e o discurso comemorativo pronunciado pelo sr. Luís Inácio Lula da Silva, então presidente da República, no décimo-quinto aniversário da entidade – discurso publicado na própria página oficial da Presidência, depois comentado e linkado no meu artigo (leia aqui). As provas não poderiam ser mais abundantes nem mais inquestionáveis.


A Lei dos Partidos Políticos (Lei número 9.096 de 19 de setembro de 1995) determina que o STF casse o registro desse partido, por violação do artigo 28, alínea II: “estar subordinado a entidade ou governo estrangeiros.”

A violação independe de o partido ter ou não recebido fundos dessa entidade, o que é crime suplementar a ser investigado.

2. O PT tem sob o seu comando e alimenta com vultosas verbas públicas uma entidade paramilitar, armada, clandestina e sem registro legal, treinada por técnicos estrangeiros para atividades de guerrilha, especializada em invadir e queimar propriedades rurais e em bloquear pela força o direito do cidadão brasileiro de circular livremente pelo território nacional, e não hesita em convocar essa entidade, chamando-a mui apropriadamente de “exército”, a mostrar o seu poder e interferir na política nacional como instrumento de pressão e intimidação.


Isso viola a alínea IV da Lei dos Partidos Políticos (“manter organização paramilitar”), obrigando o STF a cancelar o registro do partido, mediante “denúncia de qualquer eleitor, de representante de partido, ou de representação do Procurador-Geral Eleitoral”.

O PT é portanto um partido ilegal, cuja possibilidade de existência continuada só é garantida por um conluio criminoso, regado a dinheiro público, do qual participam políticos, juízes e altos funcionários das estatais, tudo sob a proteção da “grande mídia”.


3. O governo Dilma Rousseff concedeu empréstimos ilegais a várias nações comunistas, violando o artigo 49 da Constituição Federal, segundo o qual assinar tratados e compromissos internacionais que impliquem despesas para os cofres públicos “é de competência exclusiva do Congresso Nacional”. Reconhecendo cinicamente que esses empréstimos são inconstitucionais e ilegais, o governo Rousseff ainda os tornou secretos, roubando ao Congresso e à nação a mera possibilidade de investigá-los.

Não poderia haver prova mais patente de crime de improbidade administrativa, tornando o impeachment da Sra. Rousseff não apenas legal, mas obrigatório, mesmo sem Mensalão, Petrolão e demais crimes coadjuvantes que esse governo jamais se eximiu de praticar.

Para maiores informações, veja.

4. A sra. Rousseff deve o seu segundo mandato à fraude eleitoral maciça e ostensiva da apuração secreta dos votos, que nega o mais elementar princípio de transparência sem o qual nenhuma eleição é válida ou legítima à luz da razão e do Direito. Para dar viabilidade ao truque sujo, colocou na presidência do Tribunal Eleitoral, após tê-lo feito passar pelo STF, um advogado do seu partido e homem notoriamente desprovido das qualificações para cargos superiores da magistratura.

Nessas condições, proclamar, como o faz praticamente a totalidade da classe política e da mídia, que a sra. Rousseff governa o país com base num mandato legítimo e democraticamente instituído é atitude de uma mendacidade e de um cinismo que raiam a amoralidade psicopática pura e simples.

Cansados de esperar e implorar que o Congresso e as autoridades judiciárias fizessem cumprir a lei, dois ou três milhões de cidadãos saíram às ruas, no maior protesto político de toda a nossa História, apenas para ver, no dia seguinte, o governo, auxiliado pelos políticos ditos “de oposição” e pela mídia, tentar tirar proveito do seu próprio descrédito e da sua própria torpeza, utilizando-se da ira popular como pretexto para vender, de novo, a fraudulenta proposta da “reforma política” bolivariana.

Com toda a evidência, a elite política e midiática deste país entrou num pacto calculado para impor a autoridade do PT acima da Constituição e das leis, incondicionalmente e sem possibilidade de discussão.

No tempo de Collor e FHC, qualquer passeata de umas dezenas de milhares de manifestantes, convocados e dirigidos por organizações políticas, era glorificada como “clamor popular” e alegada como razão iminente para um impeachment.

Dois milhões de pessoas clamando espontaneamente nas ruas pelo simples cumprimento das leis não bastam para demover essa elite da sua firme e inabalável decisão de vender como “democracia” um ritual grotesco de legitimação do crime e da iniquidade.

A ruptura entre o povo e a elite mandante é hoje profunda, radical e insanável. Não há diálogo nem conciliação possível. A vida política nacional tornou-se uma queda de braço entre os happy few e a massa indignada, entre a palhaçada de cima e a realidade de baixo.

Mais dia, menos dia, a realidade vencerá, mas quanto sofrimento isso ainda vai custar aos brasileiros?

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio

segunda-feira, 16 de março de 2015

A HORA E A HISTÓRIA

O governo Dilma 2 acabou antes de começar. Batida pelo turbilhão da crise que ela mesma engendrou, a presidente perdeu, de fato, o poder, que é exercido por dois primeiros-ministros informais: Joaquim Levy comanda a economia; Eduardo Cunha controla as rédeas da política. Na oposição, entre setores da base aliada e, sobretudo, nas ruas, a palavra impeachment elevou-se, de murmúrio, à condição de grito ainda abafado. É melhor pensar de novo, para não transformar o Brasil num imenso Paraguai.


Nos sistemas parlamentares, um voto de desconfiança do Parlamento derruba o gabinete, provocando eleições antecipadas. No presidencialismo paraguaio, regras vagas de impeachment conferem aos congressistas a prerrogativa de depor um chefe de Estado que não enfrenta acusações criminais. Um parecer de Ives Gandra Martins sustenta a hipótese de impedimento presidencial por improbidade administrativa, mesmo sem dolo. Na prática, equivale a sugerir que Dilma poderia ser apeada com a facilidade com que se abreviou o mandato de Fernando Lugo. A adesão a essa tese faria o Brasil retroceder do estatuto de moderna democracia de massas ao de uma democracia oligárquica latino-americana.

Não são golpistas os cidadãos que fazem circular o grito abafado. Dilma Rousseff tornou-se um fardo pesado demais. Lula deu o beijo da morte no segundo mandato da presidente ao lançar sua candidatura para 2018 antes ainda da posse. No ato farsesco de "defesa da Petrobras", o criador da criatura emitiu sinais evidentes de que, em nome de sua campanha plurianual, prepara-se para assumir o papel um tanto ridículo de crítico do governo. Diante de uma presidente envolta na mortalha da solidão, os partidos oposicionistas parecem aguardar uma decisão das ruas. Fariam melhor oferecendo um rumo político para a indignação popular.

Antes de tudo, seria preciso dizer que, na nossa democracia, a hipótese de impeachment só se aplica quando há culpa e dolo. O complemento honesto da sentença é a explicação de que, salvo novas, dramáticas, informações da Lava Jato, inexiste uma base política e jurídica sólida para abrir um processo de impedimento da presidente. Contudo, só isso não basta, pois o país não suportará mais quatro anos de "dilmismo", essa mistura exótica de arrogância ideológica, incompetência e inoperância.

"Governe para todos –ou renuncie!". No atual estágio de deterioração de seu governo, a saída realista para Dilma é extrair as consequências do fracasso, desligando-se do lulopetismo e convidando a parcela responsável do Congresso a compor um governo transitório de união nacional. O Brasil precisa enfrentar a crise econômica, definir a moldura de regras para um novo ciclo de investimentos, restaurar a credibilidade da Petrobras, resgatar a administração pública das quadrilhas político-empresariais que a sequestraram. É um programa e tanto, mas também a plataforma de um consenso possível.

"Governe para todos –ou renuncie!". O repto é um exercício de pedagogia política, não uma aventura no reino encantado da ingenuidade. As probabilidades de Dilma romper com o lulopetismo são menores que as de despoluição da baía da Guanabara até a Olimpíada. Isso, porém, não forma uma justificativa suficiente para flertar com o atalho do impeachment. Se a presidente, cega e surda, prefere persistir no erro, resta apontar-lhe, e a seu vice, a alternativa da renúncia, o que abriria as portas à antecipação das eleições.

Dilma diz que a culpa é de FHC. Lula diz que é da imprensa, enquanto reúne-se com o cartel das empreiteiras. A inflação fará o ajuste fiscal. Por aqui, os camisas negras usam camisas vermelhas. A justa indignação da hora faz do impeachment uma solução sedutora. Mas a história não é a hora. Dilma vai passar, cedo ou tarde. Ela não vale o preço da redução do Brasil a um Paraguai.
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

GERAÇÃO "X" CHUTA O BALDE


Essa semana recebi um e-mail de despedida de uma amiga e parceira de trabalho. Ela vendeu sua parte na sociedade da empresa que ela mesma havia montado, anos atrás, para tirar um período sabático. Vai para a Europa estudar gastronomia e fotografia, suas duas paixões. Não é a primeira nem última amiga minha, por volta dos 35 anos, com uma carreira bem sucedida e vida estável, que toma essa decisão. Uns três anos atrás, um amigo próximo um dia disse adeus ao emprego que tinha. Todos ficaram meio surpresos. O cara trabalhava há mais de uma década em grandes empresas, era respeitado e tinha uma vida confortável no Rio de Janeiro. Mas encheu o saco. Resolveu estudar Gestalt, voltou pra Florianópolis – sua cidade natal – e abdicou de grande parte do conforto em busca do que o faria feliz de verdade. Ele nunca mais fez uma apresentação de power point na vida, usa o excel apenas para controlar seus gastos mensais e esbanja um brilho nos olhos toda vez que nos vemos.

Fato é que histórias como essas têm sido cada vez mais comuns na minha geração. Enquanto todos se preocupam com a urgência e ambição da Geração Y, a Geração X, imediatamente anterior, está repensando seus conceitos e valores. Fomos criados acreditando que uma vida feliz era falar línguas, fazer carreira, trabalhar a vida inteira numa ou duas grandes empresas, comprar o apartamento próprio, construir uma família para sempre e ir pra Disney (ou Paris) uma vez por ano. Uma vida estável e fixa, sem rompantes de aventura. Acontece que grande parte da Geração X chegou aos 30, 40 anos e descobriu que para juntar meio milhão e dar entrada, com sorte, num apartamento modesto que irá pagar até seus 60 anos, o caminho é longo e o preço é alto, bem alto. Os poucos que conseguem, heroicamente, conquistar seus bens e sonhos sem a ajuda dos pais, estão exaustos. Olham em volta e mal têm tempo de curtir os filhos ou as férias exóticas que sonham (e têm dinheiro para tirar) para a Tailândia, Marrocos ou Havaí. Há também aqueles que ficaram tão ocupados em conquistar aquilo que lhes foi prometido que deixaram para “daqui a pouco” os filhos, os hobbies e a felicidade e perceberam, agora, que “desaprenderam a dividir”.

No meio disso, veio essa sedutora mobilidade contemporânea, mostrando a nós o que nossos pais ainda não podiam nos ensinar, que é possível existir estando em qualquer lugar e que não é uma mesa de escritório ou um cartão de visitas que nos faz mais nobre, mas sim aquilo que de melhor podemos oferecer ao mundo. Só que descobrimos isso depois de passarmos grande parte da nossa juventude preocupados em nos sustentar, sermos bem sucedidos, conquistar prestigio e reconhecimento. Para, enfim, ter a liberdade de chutar o balde e sair por aí…
Fabiana Gabriel é jornalista, tem cartão de visitas, mas ainda não comprou sua casa própria, nem chutou o balde…
Fonte: http://revistacarneseca.com/a-geracao-x-esta-chutando-o-balde/

domingo, 15 de março de 2015

'VOZ DO BRASIL'

Eu sabia que eles assinariam um manifesto. Ingênuo, imaginei que, desta vez, seria um texto contra o pacote fiscal de Dilma Rousseff (culpando, bem entendido, o mordomo, que se chama Joaquim).


Contudo, eles desistiram de fingir: o inevitável manifesto, intitulado “O que está em jogo agora”, é tão oficialista como “A voz do Brasil” dos velhos tempos. Num lance vulgar de prestidigitação, o texto dos “intelectuais de esquerda”, assinado por figuras como Marilena Chaui, Celso Amorim, Emir Sader, Fabio Comparato, Leonardo Boff, Maria da Conceição Tavares e Samuel Pinheiro Guimarães, apresenta-se como uma defesa da Petrobras — mas, de fato, é outra coisa.

O ofício intelectual não combina bem com manifestos. Dos intelectuais, espera-se o pensamento criativo, a crítica do consenso, a dissonância — não o chavão, a palavra de ordem ou o grito coletivo. Por isso, eles deveriam produzir manifestos apenas em circunstâncias excepcionais.

Os “intelectuais de esquerda”, porém, cultivam o estranho hábito de assinar manifestos. Vale tudo: crismar um crítico literário como inimigo da humanidade, condenar a palavra equivocada no editorial de um jornal, tomar o partido de algum ditador antiamericano, denunciar a opinião desviante de um parlamentar. O manifesto sobre a Petrobras é parte da série — mas, num sentido preciso, distingue-se negativamente dos demais.

A fabricação em série de manifestos é um negócio inscrito na lógica do marketing. De fato, pouco importa a substância do texto, desde que ele ganhe suficiente publicidade, promovendo a circulação do nome dos signatários.

Como os demais, o manifesto da Petrobras é uma iniciativa em proveito próprio. Mas, nesse caso, o proveito tem dupla face: além do marketing da marca, busca-se ocultar o fracasso de uma ideologia. Por isso — e só por isso! — ele merece a crítica de quem não quer contribuir, involuntariamente, com a operação mercantil dos “intelectuais de esquerda”.

Segundo o manifesto, a Operação Lava-Jato desencadeou uma campanha da mídia malvada para entregar a Petrobras, junto com nosso petróleo verde-amarelo, aos ambiciosos imperialistas.

A meta imediata da conspiração dos agentes estrangeiros infiltrados seria restabelecer o regime de concessão. Sua meta final seria remeter-nos “uma vez mais a uma condição subalterna e colonial”. A fábula, dirigida a mentes infantis, esbarra numa dificuldade óbvia: sem o aval do governo, é impossível alterar o regime de partilha.

A Petrobras não foi derrubada à lona pelo escândalo revelado por meio da Lava-Jato, que apenas acelerou o nocaute. Os golpes decisivos foram assestados ao longo de anos, pela política conduzida nos governos lulopetistas, sob os aplausos extasiados dos “intelectuais de esquerda”.

No desesperador cenário atual, a direção da Petrobras anuncia uma redução brutal de investimentos na prospecção e extração, precisamente os setores em que a estatal opera com eficiência. O regime de partilha obriga a empresa a investir em todos os campos do pré-sal.

A troca pelo regime de concessão será, provavelmente, a saída adotada pelo governo Dilma. Os “intelectuais de esquerda”, móveis e utensílios do Planalto, escreveram o manifesto para, preventivamente, atribuir a mudança de rumo aos “conspiradores da mídia”. Por meio dessa trapaça, conciliam a fidelidade ao “governo popular” com seus discursos ideológicos anacrônicos. Ficam com o pirulito e a roupa limpa.

Há uma diferença de escala, de zeros à direita, entre as perdas decorrentes da corrupção e as geradas pelo neonacionalismo reacionário. A Petrobras é vítima, antes de tudo, do investimento excessivo movido a dívida, da diversificação ineficiente e do controle de preços de combustíveis.

Numa vida inteira de falcatruas, Paulo Roberto Costa, o “Paulinho”, e Renato Duque, o “My Way”, seriam incapazes de causar danos remotamente comparáveis aos provocados pelos devaneios ideológicos do lulopetismo — que são os dos signatários do manifesto.

“A História dirá!”: os “intelectuais de esquerda” invocam, ritualmente, o veredito de um futuro sempre adiável. O manifesto é uma manobra diversionista. Ele existe para desviar a atenção pública de um singelo, mas preciso, veredito histórico: a falência da Petrobras é obra de uma visão de mundo.

Franklin Martins, o verdadeiro autor do manifesto, cometeu um erro tático ao colocar seu nome entre os signatários. Ao fazê-lo, o ex-ministro descerra o diáfano véu de independência que cobriria a nudez do texto. O manifesto não é a “voz da sociedade”, nem mesmo de uma parte dela, mas a Voz do Brasil.

Nasceu no Instituto Lula, como elemento de uma operação de limitação dos efeitos da Lava Jato. Enquanto os “intelectuais de esquerda” assinavam uma folha de papel, Lula reunia-se com representantes do cartel das empreiteiras e Dilma preparava o “acordo de leniência” destinado a restaurar os laços de solidariedade entre as empresas e os políticos.

Sem surpresa, no último parágrafo, o manifesto menciona o ano mágico. A conspiração “antinacional” e “antidemocrática” dos inimigos da Petrobras almejaria provocar uma “comoção nacional” e, finalmente, a “repetição” do golpe militar de 1964.

Na Venezuela, que deixou de ser uma democracia, o regime aprisiona líderes opositores sob acusações fantasiosas de conspiração golpista. No Brasil, que é uma democracia, acusações similares partem dos “intelectuais de esquerda”.

Os signatários do manifesto, sempre encantados por regimes nos quais a divergência política equivale à traição da pátria, sonham com o dia em que falariam sozinhos, como porta-vozes de um poder incontestável.

O manifesto é uma peça de corrupção intelectual. Ele contamina a praça do debate público com os resíduos de um discurso farsesco. A Petrobras é um pretexto. Os “intelectuais de esquerda” enrolam-se no pendão auriverde para fingir que não estão pelados.
Por: Demétrio Magnoli Publicado em O Globo

O POVO DO LIVRO: OS JUDEUS E AS PALAVRAS


Contando com apenas 0,2% da população mundial e 2% da população americana, os judeus ganharam 22% de todos os Prêmios Nobel, 20% das Medalhas Fields para matemáticos e 67% das Medalhas John Clarke Bates para economistas com menos de 40 anos. Judeus também ganharam 38% de todos os prêmios Oscar para melhor diretor, 20% dos Pullitzer Prizes para não-ficção e 13% dos Grammy Lifetime Achievement Awards.

Essas informações constam em uma nota de rodapé do livro Civilization, de Niall Ferguson, de 2011. Desde então, judeus acumularam mais alguns desses prêmios. Além disso, Israel, com apenas 8 milhões de habitantes, é a grande locomotiva mundial quando o assunto é tecnologia, e possui mais empresas listadas no Nasdaq do que toda a Comunidade Europeia junta.

Diante desses dados, o leitor pode concluir que os judeus fazem parte de um grande complô mundial, uma conspiração planetária que os coloca no domínio de tudo, como queriam os antissemitas que produziram Os Protocolos do Sábio de Sião; ou então que eles possuem uma inegável superioridade genética. Não aprecio nenhuma das duas alternativas, e fico com uma terceira, mais plausível: o ambiente cultural do judaísmo é um fator de diferenciação que abre certa vantagem na hora de competir no mercado.

E o que justificaria tal vantagem? Que segredo cultural seria este? O novo livro do escritor israelense Amós Oz, escrito com sua filha, a historiadora Fania Oz-Salzberger, oferece uma boa dica. Em Os judeus e as palavras, os autores mergulham no grande legado do judaísmo, que não seria apenas ou principalmente religioso, muito menos genético, e sim cultural. No princípio era o verbo, e desde então também. O conteúdo verbal, transmitido de geração em geração, é o que forma esse continuum único, que sempre serviu como cola para unir os hebreus e lhes transmitir certas características interessantes.

Vale notar que os autores são judeus seculares, e com viés de esquerda quando o assunto é política. Isso não os impediu de defender a tradição, a importância da Bíblia judaica como fonte de valores, alegorias e mitos fundadores. Ao mesmo tempo em que buscam no legado das palavras de antepassados a inspiração para explicar a continuidade judaica, reconhecem que uma das características mais marcantes desse legado é justamente a ousadia de questionar, de inovar, e isso faz toda a diferença. Não só os judeus foram historicamente mais alfabetizados, por depositar grande importância na palavra, como eram questionadores e adoravam um bom debate.

“Nenhuma civilização antiga”, escreveu Mordecai Kaplan, “pode oferecer um paralelo comparável em intensidade com a insistência do judaísmo em ensinar os jovens e inculcar neles as tradições e costumes de seu povo”. Não eram apenas os ricos, mas todos os jovens que eram colocados em contato com a palavra escrita, e numa idade bastante tenra. E mais: eles aprendiam desde cedo a perguntar, questionar. No Talmude, uma opinião inteligente de um jovem às vezes prevalecia sobre a de seu mestre. Um bom aluno deve ser livre para criticar seu mestre. No judaísmo, os alunos eram encorajados a se erguer contra o professor, discordar dele, tentar provar que ele estava errado.

“Uma descendência informada é a chave para a sobrevivência coletiva”, escrevem os autores. Como povo exilado, os judeus compreenderam cedo que precisavam transmitir a memória nacional em forma de textos, o que permitiu esse foco na educação. Além disso, as histórias hebraicas presentes nesses textos não eram somente morais ou religiosas, mas também legais. Versavam sobre detalhes da vida no cotidiano, suas personagens, ainda que fictícias (ou não), eram indivíduos com problemas reais. Regras de conduta eram assim transmitidas.

Enquanto outras culturas tratavam as crianças como “puras”, vendo inocência na ignorância, os judeus eram mais realistas e sabiam que crianças não eram anjos, e que precisavam ser aculturadas. Os judeus valorizam a erudição. Não há sancta simplicitas para eles. Era preciso “passar a tocha” intelectual para a próxima geração, para que a mensagem pudesse sobreviver, assim como os valores e costumes. Essa educação baseada em perguntas era espirituosa, tratava de ideias, encorajava a curiosidade e exigia leitura.

“A propensão a discutir e o humor geram aquele outro traço judaico, a irreverência”, afirmam os autores. A palavra chutzpá captura bem essa ideia. Nem mesmo o Todo Poderoso ficou livre dessa irreverência, dos questionamentos, cobranças ou mesmo humor. “Não só não existe Deus, mas tente conseguir um encanador no fim de semana”, disse o sacrílego judeu Woody Allen, herdeiro dessa tradição. Mas não pense que está só ou é um caso isolado. Quando o repórter da BBC perguntou a um rabino de Jerusalém qual a sensação de rezar pela paz entre judeus e árabes no Muro Ocidental (das lamentações) nos últimos trinta anos, ele respondeu: “É como falar com um muro de tijolos”.

Apesar de patriarcal ou mesmo machista, como todas as civilizações antigas, o judaísmo antigo dava um crédito enorme às mulheres. A Bíblia é plena de mulheres fortes, poderosas, ativas, vocais e individualizadas, que fazem a diferença. Ninguém vai sustentar que as meninas eram tratadas como os meninos, mas poucas culturas abriram tanto espaço para a educação feminina. “E assim”, argumentam os autores, “quando as universidades abriram seus portões havia muito fechados, tanto para judeus quanto para mulheres, elas estavam mais que prontas”. Não por acaso as judias despontaram em várias áreas no século XX.

“As palavras eram suas catedrais”, dizem de forma poética pai e filha no livro. Eram histórias de indivíduos, sem deixar de lado a importância do coletivo, e sem valorizar o martírio ou a morte, e sim a vida e a sobrevivência, até porque os judeus já tinham sofrido o suficiente com o exílio e as perseguições. Isso alimentava a esperança, o desejo de superação, e tudo por meio da educação formal, da leitura dos livros sagrados. Foi assim que os judeus preservaram sua civilização, mas uma civilização viva, aberta ao questionamento, ao novo, com disputas infindáveis de diferentes interpretações. Bastam três judeus para termos quatro opiniões diferentes, diz a “piada”.

Se há uma razão para o relativo sucesso dos judeus, talvez a explicação esteja aí: nessa obsessão pela palavra, nesse incrível legado transmitido por meio da educação. O Povo do Livro, como é dito. No princípio era o verbo. E desde então continua sendo…
Por:Rodrigo Constantino Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

sábado, 14 de março de 2015

O EXPERIMENTO KEYNESIANO DA CORÉIA DO SUL SE TORNA GLOBAL


Aqueles que já atingiram uma determinada idade certamente devem se lembrar de que, no final da década de 1980 e início da década de 1990, era dado como certo que o Japão estava dominando o mundo economicamente. Os melhores e mais desejados carros eram japoneses. Seus videogames eram onipresentes. Todos os países desenvolvidos utilizavam tecnologia japonesa em tudo.

Os japoneses estavam destinados a conquistar o mundo, era o que diziam. Eles sabiam como trabalhar em equipe. Eles colocavam mais ênfase no grupo do que no indivíduo. Eles trabalhavam mais duro. Em 1992, um político japonês do alto escalão, Yoshio Sakurauchi, declarou que os americanos eram "preguiçosos demais" para competir com os trabalhadores japoneses, e que um terço dos trabalhadores americanos "não sabiam nem ler". O livro de Michael Crichton, Sol Nascente, lançado em 1992 (e que virou filme em 1993, com Sean Connery e Wesley Snipes) estimulou ainda mais essas controvérsias na mente dos americanos.

Atualmente, ninguém mais pensa que os japoneses estão dominando o mundo. O que aconteceu é que a supostamente robusta e inquebrantável economia japonesa era fundamentada menos em trabalho duro e em equipe e mais em planejamento centralizado, crédito farto e barato, subsídios às grandes corporações, e protecionismo às gigantes de vários setores. Por isso, quando a economia japonesa se estagnou após uma década de forte crescimento, tal fenômeno não deveria ter surpreendido ninguém versado na teoria dos ciclos econômicos.

Hoje, a Coréia do Sul parece ter, em vários aspectos, assumido o posto do Japão. Ao passo que a japonesa Sony entrou em profundo declínio, as coreanas Samsung e LG são hoje marcas internacionalmente respeitadas. A Hyundai, embora ainda considerada por muitos como sendo de baixa qualidade, ainda assim se expandiu maciçamente na última década. Apenas nos EUA, a marca já abriu duas fábricas de um bilhão de dólares: uma no Alabama, em 2005, e a outra na Geórgia, em 2009.

A ascensão da Coréia do Sul no cenário global

Mas a estratégia sul-coreana de dominação global é diferente da japonesa. Enquanto a cultura pop japonesa — música, filmes e seriados — jamais alcançou muita popularidade fora do Japão [Nota do IMB: os americanos certamente não foram expostos a Jaspion, Changeman e Jiraya], a cultura pop sul-coreana se transformou em um fenômeno global. Além de utilizarmos seus carros e seus celulares, também ouvimos as suas musicas a assistimos aos seus filmes.

Poucos notaram a ascensão da cultura pop sul-coreana antes de 2012, quando o clipe "Gangnam Style", do rapper sul-coreano PSY, se tornou um dos mais visualizados do YouTube em todos os tempos. Repentinamente, todos passaram a conhecer a cultura pop sul-coreana.

Adicionalmente, aqueles acostumados a baixar filmes e seriados pelo Netflix muito provavelmente já perceberam um sensível aumento na oferta de filmes sul-coreanos, incluindo-se aí filmes de grande êxito internacional, como o filme de ação Oldboy, de 2003, e o filme de monstro O Hospedeiro, de 2006.

A ascensão das músicas, dos filmes e dos seriados sul-coreanos — e também dos videogames — não foi, no entanto, uma obra do livre mercado. Foi, isso sim, resultado de uma política do governo sul-coreano voltada para coordenar, subsidiar e proteger a indústria da cultura pop sul-coreana, bem como também outras indústrias.

Em seu novo livro The Birth of Korean Cool, a autora Euny Hong explora as origens e os sucessos desse programa — que é pesadamente financiado e coordenado por agências governamentais sul-coreanos — conhecido como Hallyu, ou "A Onda Sul-Coreana". Não se trata apenas de poder econômico, mas também de relações internacionais. O governo sul-coreano utiliza a Hallyu como parte de um amplo programa criado para proteger o "poder brando" da Coréia do Sul.

Na Coréia do Sul, eles fazem de maneira diferente

Hong, que é jornalista, aborda o tópico utilizando sua própria experiência como uma sul-coreana que nasceu nos EUA e que viveu na Coréia do Sul durante sua adolescência. Ela relata o crescente nacionalismo que impregnou as escolas da Coréia do Sul e toda a sociedade, a necessidade de ser conformar com a ordem vigente, e a deferência geral que os sul-coreanos têm para com o estado e a nação, ao mesmo tempo em que um comportamento "individualista" é considerado uma espécie de patologia social.

Hong relata vários episódios que ilustram cada uma dessas características com grande compaixão pela Coréia do Sul e pelos sul-coreanos. Para qualquer ocidental com uma mentalidade mais laissez-faire, tais experiências são vistas como estupefação e talvez até mesmo com horror. Personalidades do tipo "bad boy", muito proeminentes na cultura americana, não existem na Coréia do Sul, explica Hong.

E isso pode ser visto na cultura popular do país. O mais próximo que a música pop sul-coreana já produziu de um "bad boy" é justamente o rapper PSY, que é considerado um rebelde simplesmente porque ele não tirava notas máximas na escola e ocasionalmente desapontava seus pais.

Nada surpreendentemente, relata Hong, a cultura popular na Coréia do Sul é do tipo corporativista, arregimentada, planejada e, acima de tudo, governada por uma ética de comprometimento ao grupo e de supressão do artista individual.

Por meio de uma agência governamental chamada "Ministério da Criação Futura", o governo sul-coreano trabalha em parceria com empresas privadas ostensivamente voltadas para a cultura pop com o intuito de disseminar e maximizar a influência da cultura pop sul-coreana tanto domesticamente quanto no estrangeiro.

Historicamente, o governo sul-coreano sempre recorreu ao protecionismo para estimular a cultura pop do país. Hong observa, por exemplo, que nas décadas passadas o governo sul-coreano exigiu que os cinemas do país exibissem filmes nacionais durante um mínimo de 146 dias por ano, e que "a indústria cinematográfica nacional produzisse um filme sul-coreano para cada filme estrangeiro exibido. É seguro dizer que a indústria cinematográfica nacional foi beneficiada por esse tipo de protecionismo. ... O governo também construía e gerenciava as casas de teatro".

Desde a crise financeira asiática ocorrida no final da década de 1990, no entanto, o governo sul-coreano também passou a ajudar a cultura pop sul-coreana no mercado internacional, utilizando impostos para financiar a dublagem de programas sul-coreanos em língua estrangeira e utilizando diplomatas para negociar a exibição de programas sul-coreanos nas redes de televisão de outros países.

A "cooperação" entre governo e empresas privadas

Assim como a economia japonesa é há muito tempo influenciada e até mesmo dominada por grandes corporações ligadas umbilicalmente ao governo — entidades essas conhecidas como keiretsu e zaibatsu —, a Coréia do Sul também apresenta um arranjo análogo, cujas empresas são conhecidas como chaebols. Sendo a versão sul-coreana do "grande demais para falir", mas muito mais significativas para economia sul-coreana como um todo, essas entidades têm sido essenciais para executar as políticas do governo sul-coreano por meio da "pareceria governo-chaebol".

Hong observa que a ascensão, na Coréia do Sul, da cultura pop promovida pelo governo não pode ser completamente entendida fora desse contexto. Essa tradição de parceria entre governo e grandes corporações fez com que Samsung, LG e outras grandes empresas fossem criadas por meio de favores governamentais e com dinheiro de impostos.

Como explica Hong em seu livro: "Assim como várias histórias de sucesso discutidas neste livro, a ascensão da Samsung no cenário mundial é atribuível [à] ... intervenção direta do governo sul-coreano durante estágios cruciais do desenvolvimento da empresa".

E caso alguém pense que a Samsung é apenas uma corporação como outra qualquer, Hong nos lembra que "a Samsung sozinha é responsável por um quinto do PIB do país". Não é difícil entender por que o estado sul-coreano vê a Samsung como sendo essencialmente uma continuação de si próprio. "O que é bom para a Samsung é bom para a Coréia do Sul" é um sentimento que, sem dúvidas, perpassa todos os corredores de todas as agências governamentais da Coréia do Sul.

Hong, como jornalista, simplesmente aceita a política econômica do governo sul-coreano como um dado da natureza. "É claro que todo esse planejamento centralizado da economia sul-coreana foi um enorme sucesso", é o que ela dá a entender. É perceptível como o padrão de vida do país cresceu acentuadamente desde 1960, quando a Coréia do Sul era essencialmente um país de terceiro mundo.

Trata-se de uma grande história de sucesso — ao menos é o que nos dizem — do neo-mercantilismo keynesiano, no qual grandes corporações controladas ou subsidiadas pelo governo executam planos e estratégias governamentais para aprimorar a economia, e tudo isso baseando-se em decisões de funcionários públicos.

Já aqueles que realmente conhecem os fundamentos da teoria econômica, e que seguem os ensinamentos de Bastiat, apenas olham para esse arranjo econômico e pensam em tudo aquilo que "não é visto" e que está oculto sob todo esse arranjo de favoritismo governamental e decisões centralizadas. Como os sul-coreanos gastariam seu dinheiro se ele não lhes fosse confiscado pelo governo e repassado para as poderosas chaebols? O que eles consumiriam se o governo não tomasse sua renda para subsidiar empresas ligadas a políticos? Mais ainda: quais inovações poderiam ter sido criadas se as pequenas e médias empresas da Coréia do Sul tivessem a oportunidade de pelo menos poder concorrer com esses grandes conglomerados protegidos e subsidiados pelo governo?

Jamais saberemos.

[Nota do IMB: esse modelo sul-coreano de parceria entre governo e grandes corporações, e de estímulo governamental — por meio do BNDES — para a criação das "campeãs nacionais" já existe há muito tempo no Brasil. Só que não deu muito certo... Enriqueceu sobremaneira os empresários ligados ao regime, mas não trouxe nenhum benefício à população, que ficou apenas com a fatura]

Histórias que exigem cautela

O que realmente sabemos, no entanto, é que, quando um governo decide colocar todos os ovos em uma única cesta, como fez o estado sul-coreano, o sucesso pode ser bastante efêmero. E se a Samsung for pelo mesmo caminho da Sony? E se a Hyundai tiver o mesmo destino da General Motors? O governo sul-coreano simplesmente recorrerá a mais pacotes de socorro, mais "estímulos" e, como sugerem as experiências japonesas e americanas, mais programas de crédito farto e barato?

Em uma cultura que preza o trabalho duro, que vê o lazer como algo suspeito, e cujos estudantes têm de estudar dezoito horas por dia, é bem possível que esse arranjo dure por bastante tempo: enquanto os investimentos errôneos subsidiados pelo governo vão se avolumando, cada vez mais riqueza é confiscada da população trabalhadora (e condescendente) para continuar sustentando grandes corporações. 

Enquanto houver uma população trabalhadora, dedicada e que produz uma riqueza que é confiscada sem protestos, esses desequilíbrios podem se perpetuar por muito tempo.

Porém, como o Japão — e cada vez mais os EUA — demonstrou, tais políticas acabam em estagnação e destruição de capital. Sob tais condições, os trabalhadores japoneses e americanos trabalham mais apenas para manter o padrão de vida de antes, mas a renda disponível não aumenta.

O Japão, que já foi visto como "o futuro dominador do mundo", é um exemplo de cautela. A Coréia do Sul, como mostra o livro The Birth of Korean Cool, ainda está na fase do crescimento. Mas já vimos esse filme antes, só que em outro idioma.

[Nota do IMB: Não deixa de ser extremamente curioso ver progressistas brasileiros — que defendem a redução da jornada de trabalho, o aumento do assistencialismo, o fim da família tradicional, a supressão de provas e vestibulares, e até mesmo o fim da competição entre estudantes — defendendo a adoção do modelo sul-coreano, que impõe longas jornadas de trabalho e de estudo, uma rigorosa competição entre alunos, a submissão dos filhos aos pais, o controle estatal da produção cultural (o governo proíbe qualquer coisa considerada "subversiva") e que vê o ócio e o lazer como um comportamento típico de derrotados e preguiçosos. 

Mais ainda: toda essa cultura sul-coreana foi implantada por um governo militar.

De resto, vale repetir, a parceria entre governo e grandes corporações, e o estímulo governamental — por meio do BNDES — para a criação das "campeãs nacionais" já existe há muito tempo no Brasil. Enriqueceu sobremaneira os empresários ligados ao regime, mas não trouxe nenhum benefício à população, que ficou apenas com a fatura.]




Ryan McMaken é o editor do Mises Institute americano.

quinta-feira, 12 de março de 2015

POR QUE O PRINCÍPIO DA NÃO-AGRESSÃO É O ÚNICO CONDIZENTE COM A MORALIDADE E COM A ÉTICA



Todo o credo libertário se baseia em um axioma central: nenhum homem, ou grupo de homens, pode cometer uma agressão contra a pessoa ou a propriedade de terceiros inocentes. Isso pode ser chamado de "axioma da não-agressão". 

"Agressão" é definida como o uso, ou ameaça de uso, da violência física contra a pessoa ou propriedade de qualquer outro indivíduo. Agressão é, portanto, um sinônimo de invasão.

Se nenhum indivíduo pode cometer uma agressão contra outro inocente; se, em suma, todos os inocentes têm o direito absoluto de estar "livres" da agressão de terceiros, então isso implica diretamente que o libertário se encontra firmemente ao lado daquilo que se convencionou chamar de "liberdades civis": a liberdade de falar, de publicar, de se reunir, e de se envolver em qualquer um dos chamados "crimes sem vítima", como pornografia, desvios sexuais, e prostituição (ações essas que o libertário não entende como "crimes", uma vez que, para algo ser um genuíno "crime", tem de haver uma invasão violenta da pessoa ou propriedade de outro indivíduo).

No que mais, o libertário entende que atitudes como o alistamento militar compulsório são uma forma de escravidão em escala colossal. E, uma vez que a guerra, especialmente as guerras modernas, provoca a chacina em massa de civis inocentes, o libertário vê tais conflitos como assassinatos em massa e, portanto, totalmente ilegítimos.

Atualmente, na balança ideológica contemporânea, todas estas posições são consideradas "de esquerda". 

Por outro lado, como o libertário também se opõe a todos os tipos de ataque à propriedade privada, isso também significa que ele se opõe com a mesma ênfase à interferência do governo sobre todos os direitos de propriedade e sobre todos os contratos voluntariamente firmados e cumpridos, o que significa que o libertário se opõe a toda e qualquer interferência governamental sobre a economia por meio de regulamentações, subsídios, tarifas, controles, impostos e proibições. 

Se todo indivíduo tem o direito de possuir sua própria propriedade legitimamente adquirida sem sofrer ataques, então ele também tem o direito de transmitir a sua propriedade (legado ou herança) ou de trocá-la pela propriedade de outros indivíduos (livre contrato e a economia de livre mercado) sem interferência.

O libertário defende o direito irrestrito à propriedade privada e à livre troca. Ele defende, portanto, um sistema de livre mercado baseado no "capitalismo laissez-faire".

Portanto, na terminologia corrente, a posição libertária a respeito da propriedade privada e da economia seria chamada de "ultra-direita". 

O libertário, no entanto, não vê inconsistência alguma em ser rotulado de "esquerdista" em algumas questões e de "direitista" em outras. Pelo contrário, ele vê a sua própria posição como sendo a única consistente — consistente com os interesses da liberdade de cada indivíduo.

Afinal, como pode o esquerdista se opor à violência da guerra e do alistamento militar compulsório ao mesmo tempo em que apóia a violência da tributação (e do encarceramento para os "sonegadores"), das tarifas protecionistas (que sustentam os fartos lucros dos grandes empresários) e dos controles e regulamentações governamentais — que impedem pessoas inocentes de entrarem livremente em um determinado mercado para ofertar seus serviços? 

E como pode o direitista alardear sua devoção à propriedade privada e à livre iniciativa ao mesmo tempo em que defende a guerra, o alistamento compulsório, e a proibição de atividades empreendedoriais não-invasivas, mas que ele julga imorais? 

E como pode o direitista ser a favor de um livre mercado ao mesmo tempo em que defende a tributação de empreendedores e da renda das pessoas para financiar as forças armadas e todas as ineficiências improdutivas que envolvem o complexo militar-industrial?

Ao mesmo tempo em que se opõe a toda e qualquer agressão, privada e coletiva, contra os direitos do indivíduo inocente, o libertário entende que, ao longo da história e até os dias de hoje, sempre existiu um agressor central, dominante e preponderante sobre todos esses direitos: o estado.

Diferentemente de todos os outros pensadores, sejam eles de esquerda, de direita ou de centro, o libertário se recusa a conceder ao estado a legitimidade moral para cometer atos que quase todos concordam que seriam imorais, ilegais e criminosos caso fossem cometidos por qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos na sociedade. O libertário, em suma, insiste em aplicar as mesmas leis morais a todos, e não permite isenções especiais a nenhum indivíduos ou grupo de indivíduos.

Porém, se examinarmos o estado nu, por assim dizer, veremos que ele recebe permissão universal, e é até mesmo estimulado, a cometer atos que até mesmo os não-libertários admitem ser crimes repreensíveis. O estado sequestra as pessoas e rotula essa prática de "alistamento militar obrigatório". O estado encarcera pessoas que ingeriram substâncias não-aprovadas pelo governo e rotula essa prática de "guerra contra as drogas". O estado pratica o roubo e a espoliação em massa e rotula essa prática de "tributação". O estado pratica homicídios em massa e rotula essa prática de "política externa". O estado pratica privilégios para grandes empresas e rotula essa prática de "políticas de proteção à indústria". O estado destrói o poder de compra da moeda e rotula essa prática de "política monetária". O estado impõe restrições à liberdade de empreendimento e rotula essa prática de "regulamentação". O estado estimula o parasitismo e rotula esta prática de "políticas de bem-estar social".

O libertário insiste que o fato da maioria da população apoiar ou não essas práticas é absolutamente irrelevante para a moralidade de cada ato. A despeito de uma eventual sanção popular, guerra é assassinato em massa, alistamento compulsório é escravidão, impostos, subsídios e tarifas são roubo, encarceramento por crimes sem vítima é imoral, e restrições ao empreendedorismo é uma prática anti-liberdade e com fins de privilegiar poderosos já estabelecidos.

O libertário, em suma, é aquela criança da fábula, avisando insistentemente que o rei está nu.

Ao longo dos tempos, o rei foi presenteado com uma série de roupas fajutas que lhe foram fornecidas pela casta intelectual da nação. Em séculos passados, os intelectuais informavam o público que o estado ou seus governantes eram divinos, ou pelo menos estavam investidos da autoridade divina e, portanto, o que poderia parecer ao olho ingênuo e inculto como despotismo, assassinato em massa e roubo em grande escala era apenas o divino agindo de sua maneira misteriosa e benigna sobre o corpo político.

Nas últimas décadas, à medida que a sanção divina começou a ficar um pouco puída, os "intelectuais da corte" do rei começaram a tecer apologias cada vez mais sofisticadas, informando ao público que tudo aquilo que o governo faz é para o "bem comum" e para o "bem-estar público", que o processo de tributar-inflacionar-gastar funciona por meio do misterioso "multiplicador keynesiano", que isso mantém a economia equilibrada, e que, de qualquer maneira, uma vasta gama de "serviços" governamentais não poderia ser executada apenas por cidadãos agindo voluntariamente, no mercado ou na sociedade.

Tudo isso é negado pelo libertário; ele vê estas diversas apologias como meios fraudulentos de obter o apoio do público ao estado, e insiste que quaisquer serviços que o governo possa de fato realizar poderiam ser fornecidos de maneira muito mais eficiente e muito mais moral pela iniciativa privada e pela interação voluntária entre os cidadãos.

O libertário considera, portanto, uma de suas tarefas educacionais primordiais espalhar a desmistificação e dessantificação do estado entre seus súditos desafortunados. Sua tarefa é demonstrar repetidamente, e a fundo, que não apenas o rei, mas também o estado "democrático", estão nus; que todos os governos subsistem por meio do domínio explorador sobre o público; e que este domínio é o oposto da necessidade objetiva.

Ele luta para mostrar que a própria existência dos impostos e do estado instaura, obrigatoriamente, uma divisão de classes entre os governantes exploradores e os governados explorados. Ele procura mostrar que a tarefa dos intelectuais da corte que constantemente apoiaram o estado sempre foi a de tecer mistificações para induzir o público a aceitar o governo do estado, e que estes intelectuais obtêm, em troca, uma parcela do poder e da pilhagem extraída pelos governantes de seus súditos iludidos.

Pegue-se, por exemplo, a instituição da tributação, que os estatistas alegam ser, de certa forma, realmente "voluntária". Qualquer um que realmente acredite na natureza "voluntária" dos impostos está convidado a se recusar a pagar seus impostos e ver o que acontecerá a ele. Se analisarmos a tributação, descobriremos que, entre todas as pessoas e instituições da sociedade, apenas o governo obtém seus rendimentos por meio da violência. Todo o resto da sociedade obtém sua renda ou por meio de doações voluntárias (associações, instituições de caridade, clubes de xadrez) ou por meio da venda de mercadorias ou serviços adquiridos voluntariamente por consumidores.

Se qualquer um além do governo começasse a "taxar", seria evidentemente acusado de coerção e de banditismo. No entanto, os adornos místicos da "soberania" encobriram de tal maneira o processo, que apenas os libertários estão preparados para chamar o imposto do que ele é: roubo, legalizado e organizado, em grande escala.

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Para um maior aprofundamento de cada uma das questões abordadas neste texto, inclusive sobre o funcionamento de uma sociedade sem estado, tenham a bondade os artigos contidos no link abaixo:


Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies. 

quarta-feira, 11 de março de 2015

NOAM CHOMSKI: O ESTADO ISLÂMICO É UMA MONSTRUOSIDADE; MAS NÃO VEIO DO NADA


Ativista político e professor emérito do MIT aponta a contradição da política de Washington em relação ao EI: quer destrui-lo, mas opõe-se a todas as forças que o combatem. E o seu principal aliado, a Arábia Saudita, é o principal financiador dessa organização.
5 de Março, 2015 - 07:37h

Noam Chomsky no Democracy Now.
Entrevistado pelo Democracy Now, Noam Chomsky diz que a estratégia dos EUA é a da Alice no País das Maravilhas: querem destruir o EI, mas opõem-se a todas as forças que o combatem.
Democracy Now: Noam, queria perguntar-lhe acerca do Estado Islâmico. A notícia de hoje é que o Iraque está a planear uma grande ofensiva para retomar Mossul. Atualmente está envolvido em ataques para recapturar Tikrit com o apoio dos EUA. A minha pergunta é sobre a eficácia da estratégia dos EUA. Até que ponto é que a sua política, em termos de eficácia para derrotar o EI, é prejudicada pelas ligações com a Arábia Saudita e a sua recusa de combater ao lado do Irão e de grupos como o Hezbollah, que têm sido eficazes no combate ao EI?

Noam Chomsky: Patrick Cockburn, que fez de longe as melhores reportagens sobre este tema, descreve a situação como uma estratégia de Alice no País das Maravilhas. Os EUA querem destruir o EI, mas opõem-se a todas as forças que estão a combater o EI. O principal Estado que se opõe ao EI é o Irão, que apoia o governo xiita do Iraque. Mas o Irão, como se sabe, é nosso inimigo. Provavelmente as principais tropas terrestres que combatem o EI são o PKK e os seus aliados, que estão na lista de terroristas dos EUA. Eles estão presentes tanto no Iraque quanto na Síria. A Arábia Saudita, o nosso principal aliado, junto com Israel, é desde há muito o principal financiador do EI e de grupos semelhantes – não necessariamente o governo saudita, mas ricos sauditas e outras pessoas nos emirados – não só o financiador, mas são a fonte ideológica. A Arábia Saudita está comprometida e é dominada por uma versão fundamentalista e extremista do Islão: a doutrina wahhabita. E o EI é um ramo da doutrina wahhabita. A Arábia Saudita é um Estado missionário. Cria escolas, mesquitas espalhando a sua versão radical do Islão. Assim, eles são os nossos aliados; e os nossos inimigos são os que estão a combater o EI. E é mais complexo.

A Arábia Saudita, o nosso principal aliado, junto com Israel, é desde há muito o principal financiador do EI e de grupos semelhantes
O EI é uma monstruosidade. Não há muitas dúvidas sobre isso. Não veio do nada. É um dos resultados dos ataques dos EUA a uma sociedade muito vulnerável – o Iraque – com brutalidade, o que deu origem a conflitos sectários que não existiam antes. Tornaram-se muito violentos. A violência dos EUA tornou-os piores. Todos conhecemos os crimes. Daqui saíram muitas forças violentas e assassinas. O EI é uma delas. Mas as milícias xiitas não são tão diferentes. Quando dizem que o exército iraquiano está a atacar, provavelmente são principalmente as milícias xiitas co o Exército iraquiano na retaguarda. Quer dizer: a forma como o exército iraquiano entrou em colapso é um facto militar espantoso. Trata-se de um exército de, creio, 350 mil efetivos, pesadamente armado pelos Estados Unidos e treinado pelos Estados Unidos durante dez anos. Apareceram alguns milhares de guerrilheiros e fugiram todos. Os generais, aliás, foram os primeiros a fugir. E os soldados, que não sabiam o que fazer, fugiram em seguida.

Hoje é difícil ver como o Iraque, chegado a este ponto, pode manter-se unificado. Tem sido devastado pelas sanções dos EUA, pela guerra, pelas atrocidades de que é responsável. A política atual, seja ela qual for, não parece credível: é como pôr um penso num cancro.
Fonte: http://www.esquerda.net//artigo/noam-chomsky-o-estado-islamico-e-uma-monstruosidade-mas-nao-veio-do-nada/36058?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook