segunda-feira, 23 de março de 2015

POR QUE ESCREVER NÃO É ALGO SIMPLES?

Escrever não é algo simples, ainda que acessível a todos os alfabetizados, principalmente os que se exercitam de alguma forma, copiando receitas de bolo ou escrevendo e-mails no trabalho e redações na escola.


Se, nos dias de hoje, os jovens encontram grande dificuldade para escrever, isso se deve à pedagogia socioconstrutivista, que minimiza a importância da escrita1, dando maior relevância ao que denomina “comunicação”.

Décadas de submissão ao socioconstrutivismo criaram a ilusão de que a escrita equivale a um gesto ou a um sinal de trânsito — equiparação que só pode existir no cérebro de pedagogos que, antes de serem educadores, são ideólogos.

Mas meu objetivo aqui não é discutir os detalhes desse absurdo nivelamento. Olavo de Carvalho já o fez, com sua reconhecida maestria, em artigo publicado no Diário do Comércio, em 30 de outubro de 2012. E sintetizou suas idéias mais recentemente, num post em sua página do Facebook.

Quero falar aqui sobre a complexidade do ato de escrever.

Por que escrever não é algo simples?

Pense nos materiais que circundam a escrita. Quando, por exemplo, usamos um dicionário, não refletimos sobre o que se esconde nos verbetes: esforço de inteligência, disciplina para reunir e organizar informações, pesquisa acumulada ao longo da história, capacidade expressiva para explicar as múltiplas acepções de um vocábulo.

Você pode pensar em utensílios menos intelectuais. Entre numa papelaria e observe a diversidade de material relacionado à escrita. O aperfeiçoamento técnico — que hoje nos permite utilizar inclusive processadores de texto poderosos como Scrivener — faz com que escrever seja, literalmente, menos cansativo do que há dois mil anos.

Mas pense também na complexidade do ato de escrever sob uma perspectiva imaterial: a dos mecanismos cerebrais.

Escrever não é algo simples

O exercício de abstração é algo grandioso, sobre o qual não costumamos refletir.

Quando você escreve, seu ser inteiro conflui para cada sentença, cada escolha vocabular. Seu passado, tudo que sua família e seus antepassados lhe transmitiram, suas relações sociais, seus valores, suas emoções, sua fé, sua memória.6

Vamos supor que você deseja apenas descrever, em poucas linhas, o que sente quando saboreia um doce que sua bisavó fazia – ou qualquer outra sensação. Como seu cérebro trabalha para imaginar e, ao mesmo tempo, conceituar algo que, num primeiro instante, é apenas uma recordação fugidia?

Ou, ainda mais complexo, como escritores conseguem descrever sentimentos e atitudes que eles nunca experimentaram?

O exercício de abstração — separar mentalmente um ou mais elementos de certa totalidade complexa e colocá-lo em palavras — é algo grandioso, sobre o qual não costumamos refletir.2

Na verdade, qualquer experiência subjetiva parece ser indescritível.

Mas a história da literatura mostra que essa é apenas uma primeira impressão.

A representação das idéias ou dos sentimentos por meio de sinais gráficos, quando utilizada por um escritor experiente, pode sintetizar as emoções mais sutis.

Mas esse escritor só consegue alcançar seu objetivo se ordenar suas idéias; se conhecer as possibilidades que o idioma oferece; se tiver habilidade para julgar o que deve dizer, para escolher a forma específica por meio da qual se expressará e, por fim, decidir o que efetivamente deseja escrever.

Cada um desses atos, feitos de maneira automática, escondem séculos de permanente adaptação do nosso cérebro e de reelaboração do código lingüístico.

O escritor enlouqueceria se percorresse cada uma dessas etapas de forma consciente, se escrevesse raciocinando sobre tais questões, se consultasse o dicionário pensando no trabalho do dicionarista.

E é desnecessário que ele pense em tudo isso quando escreve.

Mas esse incrível acúmulo de recursos está ali, pulsando a cada escolha, a cada idéia. Só esse surpreendente acúmulo de recursos transformou o ato de escrever numa prática aparentemente simples. 
Por: Rodrigo Gurgel Do site: http://rodrigogurgel.com.br

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