quarta-feira, 25 de março de 2015

ESPIRITUALIDADE E PENSAMENTO LIBERAL


O Instituto Liberal está com uma nova série chamada “Espiritualidade e pensamento liberal”, criada por Lucas Berlanza, que tenta compreender melhor, por meio de entrevistas, qual a possível ligação entre religião e liberalismo. Fui o primeiro entrevistado da série. Segue a entrevista abaixo:

Neste primeiro momento, começarei sempre pedindo ao entrevistado uma definição básica de sua crença. No seu caso, como se apresenta como ateu, pergunto apenas: esse ateísmo consiste na negação convicta de que Deus existe, ou está mais para o agnosticismo (isto é, haveria dúvida, com tendência a negar)?

Está mais para um agnosticismo filosófico. Se não há provas, então não posso afirmar que Deus existe. Mas o ateísmo militante, que garante a não-existência, parece insustentável também. Não se prova a inexistência de algo usando o conceito de refutabilidade popperiana. Quando me digo ateu, é mais porque todos somos “ateus” em relação aos deuses dos outros. Ninguém hoje se diz “agnóstico” em relação a Zeus. Mas quando se trata do conceito mais amplo e abstrato de “uma força superior” ou um “criador” de tudo isso, acho que o agnosticismo é mesmo a postura filosófica mais adequada.

Para firmar sua convicção como ateu, você teve alguma influência de autores com a mesma posição ou é apenas uma disposição pessoal isolada? Se você se inspira em alguns, quais seriam eles? As produções textuais desses autores, se existem, têm alguma implicação política?

Se não me falha a memória, foi com 16 ou 17 anos que me defini como ateu. O caminho foi o comum: questionamentos e reflexões sobre a incoerência de alguns postulados religiosos, e o dilema atribuído a Epicuro: Deus deseja prevenir o mal, mas não é capaz? Então não é onipotente. É capaz, mas não deseja? Então é malevolente. É capaz e deseja? Então por que o mal existe? Não é capaz e nem deseja? Então por que lhe chamamos Deus? Com o tempo, passei a ler alguns ateus sim, como George H. Smith, Dawkins, Sam Harris, Michel Onfray. Acho que há implicação política nesses escritos, e hoje entendo que há um lado negativo também, pois o que começa como apelo à racionalidade e à tolerância pode muito bem terminar como uma nova forma de seita irracional e intolerante.

Como você encara a “religião”? O que é a religião para você, e qual o lugar dela no mundo?

Vejo a religião como uma tentativa de o ser humano se “re-ligar” a um sentido pleno para a própria vida, a algo maior que justifique nossa existência e, talvez mais importante ainda, console nossa finitude. Talvez seja uma forma primitiva de filosofia, talvez seja a filosofia possível para as massas. Não um ópio, como dizia Marx, mas uma espécie de amuleto necessário para muitos, sob o risco de caírem no niilismo destrutivo sem ele. A busca de algo mais elevado, eterno, em meio a uma vida um tanto sem sentido e efêmera. Pode despertar sentimentos nobres, e pode, se virar dogmatismo exacerbado, descambar para o fundamentalismo intransigente.

A religião é constantemente apontada como motivação para conflitos políticos, guerras, opressões das mais variadas espécies, sendo isso normalmente feito por teóricos e militantes de esquerda – na maioria das vezes, apontando suas munições contra as tradições cristãs, preponderantes no que se convencionou chamar de Ocidente. Analisando a questão sob o ponto de vista mais genérico, e também especificando na forma como ela é tratada no mundo ocidental atualmente, você concorda com essa ideia de que a religião seria uma grande vilã na história humana?

Não. Acho que já foi pretexto para muito conflito, sem dúvida, e é tolice negar um fato histórico, mas é absolutamente ingênuo e romântico colocar a culpa na religião em si, como se fosse possível viver em paz eterna só abandonando Deus. O homem lutaria pela ideologia (uma religião secular), pelo time de futebol, pela propriedade, etc. A música de John Lennon, “Imagine”, especula como seria lindo abrir mão da religião e todos viverem felizes em comunhão. Isso é utopia. Uma perigosa utopia. Os comunistas atacaram as religiões, criando uma laica muito mais fanática, e deu no que deu. Os jacobinos, antes dos bolcheviques, também atacaram com fúria e ódio a religião, sem perceber que a sua fé nada tinha de racional. A Notre Dame virou o “templo da razão”, de forma arrogante, enquanto vidas inocentes eram ceifadas pelas guilhotinas do Terror. A esquerda ataca a religião pois quer o monopólio da virtude e de nossas consciências. Se não temos as respostas básicas, então sejamos tolerantes de verdade, em vez de endossar uma cartilha que supostamente já chegou a todas as respostas de maneira “racional”.

Há também os que afirmam o contrário; para eles, seriam religiosas as matrizes culturais das maiores conquistas da civilização, e os princípios políticos e éticos mais eficazes e nobres – normalmente, sob uma perspectiva liberal ou conservadora – viriam dessa fonte. Em que medida estão certos ou errados os que o afirmam? De que maneira um ateu pode encarar essa ideia?

Estão parcialmente certos, creio eu. Sem dúvida a religião contribuiu com muito dos valores da civilização ocidental. O próprio foco no indivíduo terá ligação com o Cristianismo. Mas os conservadores que lembram esse legado positivo costumam ignorar o lado mais sombrio, talvez por se colocarem na defensiva contra a difamação da esquerda. Um índice de livros proibidos, por exemplo, é inadmissível do ponto de vista liberal, assim como tantas atitudes bárbaras da Inquisição. É preciso ter em mente que as religiões foram “domesticadas” no Ocidente. O Iluminismo, especialmente o francês racionalista, merece muitas críticas pela arrogância, mas serviu para importantes conquistas que mitigaram os riscos do fanatismo religioso.

O que você, como ateu e liberal clássico, pensa sobre as discussões entre religião e política na atualidade? Qual seria o ponto de interseção, onde deveria haver maior afastamento? Qual a intensidade exata em que uma pode se fazer presente na outra?

Sou defensor, naturalmente, de um Estado laico, ou seja, que separa a religião do Estado, por entender que cada cidadão tem direito à sua própria crença e que o Estado não deve ter uma religião oficial. Mas acho que fomos longe demais com esse conceito, e hoje Estado laico mais parece Estado antirreligioso. As pessoas acham que as crenças religiosas devem ficar totalmente afastadas de qualquer debate público, mas isso não faz sentido se muitos valores morais são derivados das crenças religiosas. E achar que é possível responder a todos os dilemas éticos com base somente na razão é um tanto arrogante e temerário. Logo, estou com Michael Sandel nessa: o Estado não deve ser religioso, mas os religiosos podem trazer ao debate público suas crenças e tentar influenciar as decisões coletivas com base nelas.

Que benefícios uma ordem liberal pode trazer às mais diversas comunidades religiosas? Você acredita que a maioria dos religiosos está disposta a compreender esses benefícios?

O maior benefício é garantir a própria liberdade religiosa e de consciência. Política é a decisão da maioria, e a grande conquista ocidental foi preservar os direitos das minorias nesse modelo. O risco para o crente que defende mais simbiose entre religião e Estado é viver sob uma maioria que adota uma fé diferente da sua. Como fica? Logo, o melhor mecanismo de defesa é a ordem liberal, para que cada um tenha garantida a sua própria fé, sem medo de retaliação ou punição pelo “crime” de apostasia ou heresia. Acho que muitos religiosos já compreendem bem isso. Minorias religiosas costumaram ser perseguidas historicamente, e perseguiram outras quando tomaram o poder. O melhor antídoto é defender como um princípio básico e inegociável o direito independente de crença religiosa.

Por fim, você considera que temos um debate cultural interessante a provocar, estimulando integrantes de comunidades religiosas a promover um diálogo entre suas correntes e o pensamento liberal, chamando a atenção de seus companheiros de crença para a reflexão sobre o tema?

Sim, acho que é uma iniciativa válida, mas deve ser tratada com cautela. Mises, um grande liberal, achava que o liberalismo não devia se meter com religião, pois um fala de coisas terrenas, e outro do pós-morte. Não concordo muito, pelos motivos expostos acima, mas entendo seu receio: o tema religioso pode produzir faíscas e brigas até mesmo dentro de grupos liberais, pois é caro demais aos religiosos. O desafio é trazer o assunto religião para o debate liberal sem produzir ressentimento nas partes envolvidas. Acho louvável a empreitada. Existem muitos religiosos liberais por aí, e muitos ateus autoritários. A crença religiosa não define a postura ideológica. O liberal saberá respeitar a crença alheia, e defender uma postura de tolerância, dentro dos limites da própria sobrevivência da tolerância e das liberdades individuais básicas.
Por: Rodrigo Constantino  Do site:http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

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