segunda-feira, 20 de julho de 2015

UM DESAFIO MAIOR QUE A CONQUISTA DA MANDIOCA

Buscar emprego será o esporte de inverno para centenas de milhares de pessoas postas na rua pela recessão, no Brasil, e ainda sujeitas a preços em disparada. Foram fechadas 452.835 vagas formais nos 12 meses terminados em maio. Nos primeiros cinco meses do ano foram 243.948 postos encerrados e há sinais de piora. O semestre finda com desemprego na vizinhança de 8%, inflação no rumo de 9%, atividade em queda e Tesouro em crise, enquanto a presidente Dilma Rousseff saúda a mandioca e o PT defende as empreiteiras investigadas na Operação Lava Jato.


Não há mistério na preocupação do PT e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com as empreiteiras. Mas o entusiasmo presidencial com a mandioca, apontada como “uma das maiores conquistas do Brasil”, intriga por um detalhe: por que “conquista”? Embora o assunto seja fascinante, o Brasil poderá sobreviver sem resposta a essa pergunta. Difícil, mesmo, será sair do atoleiro com uma governante frágil, confrontada no Congresso, condenada e esnobada por seu eleitor mais importante, acuada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e em risco permanente de ser contaminada pelo escândalo da Petrobrás.

Em breve a presidente deverá explicar ao TCU as pedaladas fiscais do ano passado. Não há como negar os atrasos de repasses, tentativas evidentes de maquiar as contas da administração federal. Restará discutir se os adiantamentos feitos por bancos oficiais, com recursos próprios, caracterizam financiamento ao governo e, portanto, violação da Lei de Responsabilidade Fiscal. A resposta dependerá mais de sutilezas legais do que de uma simples e límpida verificação financeira. Não há, enfim, como excluir a hipótese de um arranjo para poupar a presidente e evitar uma crise política muito mais grave.

Contornado esse risco, sobrarão todos os grandes desafios – técnicos e políticos – do programa de governo. Com uma Presidência quase vaga e muita resistência no Congresso, a equipe econômica terá de avançar, de qualquer forma, no conserto das contas públicas, no ataque à inflação e na busca do retorno ao crescimento. Nessa altura, já se terá decidido, quase certamente, se a meta inicial para as finanças públicas será mantida ou se o governo buscará um resultado menos ambicioso. A meta original, um superávit primário de R$ 66,3 bilhões para pagamento de juros, parece hoje quase inalcançável.

O governo central – Tesouro, Previdência e Banco Central (BC) – deve, em princípio, alcançar um resultado primário de R$ 55,2 bilhões, ficando o resto para os demais níveis da administração e para as estatais. O poder central fechou o mês passado com um déficit primário de R$ 8 bilhões e acumulou em cinco meses um superávit de apenas R$ 6,63 bilhões, 67,5% menor que o de um ano antes, descontada a inflação. Para cumprir a sua parte de acordo com o plano original terá de obter um resultado primário de R$ 48,6 bilhões em sete meses, quase um milagre. É preciso um enorme otimismo para apostar nisso. Com a economia atolada, a receita em cinco meses, R$ 529,57 bilhões, foi 3,5% menor que a de janeiro a maio de 2014.

Nada permite prever um quadro muito melhor no segundo semestre. O novo cenário apresentado pelos economistas do Banco Central em seu relatório trimestral de inflação é bem pior que o anterior. A inflação prevista para ao ano subiu de 7,9% para 9%, enquanto a contração estimada para o produto interno bruto (PIB) passou de 0,5% para 1,1%. No mercado financeiro, a mediana das projeções na semana anterior já era de um PIB 1,46% menor que o do ano passado. Para a produção industrial estava prevista uma redução de 3,65%. Um mês antes ainda se estimava uma diminuição de 2,8%.

Antes de sair o balanço do governo central, o pessoal da Receita já havia apontado os efeitos da recessão na coleta de impostos e contribuições. As quedas da produção industrial, do emprego, do consumo e das importações puxaram para baixo a arrecadação dos principais tributos. Se a atividade continuar deprimida, o aumento de alíquotas dificilmente reforçará de forma significativa a posição do Tesouro.

Além do aumento da tonelagem de grãos e oleaginosas, têm aparecido, no País, poucos indicadores positivos. O BC reduziu de US$ 84 bilhões para US$ 81 bilhões o déficit previsto para a conta corrente do balanço de pagamentos. Se a projeção for confirmada, haverá uma inegável melhora contábil, especialmente se for levado em conta o resultado de 2014, um buraco de US$ 104,84 bilhões. Mas a explicação principal será a piora da economia. Pela estimativa do BC, a exportação de mercadorias será 10,95% menor que a de um ano antes. O encolhimento da importação será bem maior, 14,68%. Com o desemprego elevado, a renda corroída, o consumo retraído e mais uma redução do valor investido em máquinas e equipamentos, a diminuição das importações será, como tem sido até agora, inevitável.

Com a depreciação do real os produtos brasileiros deveriam ficar mais baratos no exterior, mas nem por isso as exportações deixaram de cair. O dólar mais caro pode ter pesado em algumas importações e certamente afetou a disposição de viajar e de gastar fora do Brasil. Mas o desequilíbrio menor das contas externas tem sido até agora, e com certeza será até o fim do ano, explicável principalmente pelo mau estado da economia.

Se o ajuste avançar e a inflação diminuir, retomar o crescimento será mais fácil. Mas ainda falta implantar medidas para o aumento da produtividade, uma condição indispensável. O programa de infraestrutura e o recém-anunciado plano de exportações indicam o caminho. Mas ainda são uma lista de bons propósitos. Sua execução depende, em parte, de recursos orçamentários muito escassos. A conquista do crescimento parece bem mais difícil, por enquanto, que a conquista da mandioca.
Por: Rolf Kuntz Publicado no jornal O Estado de S Paulo

domingo, 19 de julho de 2015

O AVANÇO DA NOVA DIREITA

O avanço da nova direita: quem são e como pensam jovens líderes que influenciam multidões pelo país
Articulados como nunca, eles se dividem entre liberais e conservadores, mas se unem para fustigar a esquerda e criar um novo movimento político
Por: Paulo Germano
Foto: Rafael Ocaña / Arte ZH


O megafone está na prateleira de cima, exposto como um troféu no gabinete da Assembleia Legislativa. Foi com o aparelho a pilha que Marcel van Hattem, 29 anos, hoje deputado estadual do PP, acossou aos berros a petista Maria do Rosário no ano passado – os dois faziam campanha no Parque da Redenção, em Porto Alegre, quando o candidato levou o megafone à boca.

– Gostaria de dizer que a senhora nos envergonha! Porque a senhora defende bandido, e nós queremos a defesa da família! – gritava ele, enquanto um assessor gravava o inflamado discurso em vídeo, um bate-boca entre militantes começava, e Maria do Rosário preferia se afastar.

Não faltou quem achasse aquilo uma grosseria. O presidente do PP gaúcho, Celso Bernardi, telefonou para Van Hattem e classificou a provocação como irresponsável, um incentivo ao tumulto. A colegas mais próximos, disse que o episódio foi "uma oportunidade para o PT nos chamar de ditadores".

Só que em poucos dias o vídeo beirava 100 mil visualizações, passava de 5 mil compartilhamentos e recebia dezenas de comentários na linha "ganhou meu voto" no Facebook. É inegável que a estratégia deu certo: líderes do PT e do PP, além do próprio Van Hattem (foto abaixo), concordam que o embate com Rosário foi fundamental para sua boa votação: 35.345 votos.

De lá para cá, o deputado mais jovem da Assembleia repete a tática quase que diariamente: seus vídeos provocando parlamentares petistas – há sempre um assessor com celular por perto –, são um sucesso nas redes sociais. Essa receita de fustigar a esquerda em tom de fúria, conclamando cidadãos indignados com Dilma Rousseff, com o Foro de São Paulo, com o excesso de impostos ou com "a roubalheira do PT", é a face mais evidente de uma nova direita que cresce em ritmo galopante, com poder de articulação sem precedentes desde a redemocratização do Brasil.

– Antes, só a esquerda falava alto. Chegou o momento de confrontá-la. Havia muita gente órfã de um posicionamento mais firme em relação ao estado das coisas a que chegamos – afirma Van Hattem, filho de um engenheiro holandês e de uma arquiteta paulista que, após se conhecerem em um congresso luterano, casaram-se em Dois Irmãos, onde o menino cresceu e se elegeu vereador aos 18 anos.


Quase a mesma idade do paulista Kim Kataguiri, que tem apenas 19 e desponta como principal líder do Movimento Brasil Livre (MBL) – em oito meses de existência, o grupo fundou diretórios em 173 cidades brasileiras e convocou manifestações que levaram às ruas centenas de milhares de pessoas pedindo o impeachment da presidente.

Com o crescimento do MBL, Kim abandonou a faculdade de Economia na Universidade Federal do ABC. Decidiu dedicar-se com mais afinco ao movimento e às palestras que ministra país afora, ensinando formas de levar ideias liberais a jovens pouco engajados na política. No fim deste mês, a convite da respaldada organização Cato Institute, vai expor suas visões em quatro painéis em Washington, nos Estados Unidos. Para o Natal, está previsto o lançamento de seu primeiro livro, ainda sem nome, pela editora Record, uma das maiores do país.

– Continuo lendo sem parar. Só parei de estudar formalmente porque as faculdades de Economia no Brasil são muito atrasadas, ainda dominadas por uma visão de esquerda. Dificilmente você encontrará uma cadeira sobre a Escola Austríaca, por exemplo – avalia Kim, mencionando os maiores ídolos do pensamento econômico dessa jovem direita: Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992), dois entusiastas do livre mercado e do Estado minúsculo.

Mas a fonte de renda fixa de Kim Kataguiri (foto acima), o canal Inimigos Públicos, no YouTube, passa menos pela menção aos teóricos e mais pela surra no PT. Ou em qualquer arauto da esquerda. O mês que rendeu mais dinheiro ao líder do MBL foi abril, quando seu vídeo chamando de "figura patética" o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) – que dias antes o havia classificado como "analfabeto político" – atingiu 650 mil acessos. Sua participação nos lucros com os anúncios publicitários veiculados pelo YouTube neste vídeo passou de R$ 5 mil.

Ao contrário do que se poderia pensar, Kim é a favor do casamento gay, bandeira medular de Jean Wyllys. E esta é uma das principais divisões entre os novos direitistas: o chamado liberalismo de costumes. Boa parte é a favor dos princípios liberais apenas na economia, pregando uma radical reforma tributária, o fim da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a privatização de estatais e até a redução da pobreza – mas por meio de empregos, de um mercado superaquecido, de impostos menores sobre alimentos e remédios, e nunca por meio de transferência de renda. Agora, quando o assunto é família, nem sempre a tal liberdade prevalece.

– Só que outra boa parte, na qual me incluo, entende que o liberal contrário ao casamento gay está em absoluta contradição – diz Hélio Beltrão, 48 anos, presidente do Instituto von Mises, uma das cerca de 30 organizações liberais que pipocam no Brasil desde o fim da década passada (informação importante: eram apenas três em 2005), promovendo cursos e debates sobre liberalismo. – O liberal de verdade defende trocas voluntárias e, se você quer trocar afeto com quem quer que seja, se busca um acordo comum entre seus bens e de outra pessoa, não há como um liberal ser contra.

No mês passado, Marcel van Hattem vociferou na tribuna da Assembleia contra a proposta do governo federal de discutir "identidade de gênero" em salas de aula – a ideia, em linhas gerais, era conscientizar estudantes sobre as diversas orientações afetivas e proteger do bullying alunos gays ou transexuais. Van Hattem subiu o tom ao dizer que "é dever da família educar seus filhos":

– Querer, dentro da escola, dizer que homem não é necessariamente homem, querer incutir isso na cabeça das crianças, é um crime, é uma afronta!

Por isso Hélio Beltrão, presidente do Mises, salienta que ficaria "muito brabo" se este texto o identificasse como um homem de direita. Ele afirma ser "um liberal e ponto".

– Sou a favor do casamento gay, a favor da legalização das drogas, discuto a propriedade intelectual, odeio aquela conversa de "bandido bom é morto" e detesto autoritarismo. Como é que vou ser de direita? – questiona ele, um privatista inveterado que defende até a gestão do Bolsa Família por empresas privadas.

Embora Kim Kataguiri e Van Hattem jamais se oponham ao termo "direita" para etiquetá-los, no Brasil a definição tem, de fato, certa conotação pejorativa: regimes autoritários como a ditadura militar, além do antigo coronelismo, sempre foram identificados com valores direitistas.

Não surpreende que o Partido Novo, idealizado pelo engenheiro e ex-executivo de bancos João Dionísio Amoedo, também fuja do incômodo rótulo. Com as 492 mil assinaturas necessárias já colhidas, aguardando homologação do Tribunal Superior Eleitoral, o coordenador da legenda em Porto Alegre, Carlos Alberto Molinari, 33 anos, prefere que os interessados pela ideologia do Novo entrem no site e tirem suas conclusões:

– Você acha correto que os Correios tenham o monopólio sobre a entrega de correspondências? Acha correto que apenas meia dúzia de empresas possam prestar serviço de transporte público em uma capital? A livre concorrência diminuiria os preços, e só o cidadão seria beneficiado – prega Molinari.

Em tempo: até o início da campanha presidencial, quando PT e PSDB reforçaram suas atuações nas redes sociais, nenhuma sigla tinha mais curtidas no Facebook do que o ainda inexistente Partido Novo. Hoje, são mais de 800 mil, contra pouco mais de 900 mil do PT. O que está havendo com o partido que tradicionalmente mais mobilizava militantes?

– O PT está velho. Eu, que sou a figura proeminente do PT, tenho 69 anos, estou cansado, já estou falando as mesmas coisas que falava em 1980 – disse o presidente Lula em discurso um mês atrás.

– Quando um vácuo se abre, quando há uma insatisfação geral com o sistema político, alguém tem que ocupar o espaço – conclui o cientista político Fernando Filgueiras, da Universidade Federal de Minas Gerais.

A nova direita – ou os novos liberais, como queiram – correm para ser a bola da vez.

CADA UM NO SEU QUADRADO

Direita: liberdade

Em geral, entende que os indivíduos são diferentes uns dos outros. Portanto, todos devem ter liberdade para alcançar suas metas da forma como acharem melhor, podendo alguns se destacarem mais do que outros de acordo com os méritos próprios.

Esquerda: igualdade

Tem como princípio a visão de que o ser humano só consegue se destacar com a ajuda do coletivo, da colaboração de todos. Portanto, não é justo que alguns tenham destaque ou posição social muito superior a outros. Deve-se buscar certa igualdade.

O liberal

Prega que o Estado interfira o mínimo possível na vida das pessoas. Só uma economia sem regulação estatal pode garantir que o indivíduo exerça de fato sua liberdade e suas plenas capacidades. No campo pessoal ou afetivo, cada um faz o que acha melhor.

O liberal-conservador

É liberal no plano econômico, mas, no âmbito familiar e pessoal, mantém ideias conservadoras. Ou seja, entende que a sociedade tem tradições que envolvem idioma, religião, costumes e convenções que precisam ser respeitados e protegidos.

Publicado no Jornal Zero Hora de Porto Alegre RS


O TRÁGICO LEGADO DA "NOVA MATRIZ ECONÔMICA" - UM RESUMO CRONOLÓGICO


"O Brasil está conseguindo o raro feito de extrair opiniões quase unânimes mundo afora. São poucos, pouquíssimos, os economistas que ousam discordar de que o país entrou em um ciclo de desenvolvimento sustentado. E mais: são ainda mais raros aqueles que duvidam da capacidade de o Brasil se tornar uma das maiores potências econômicas do planeta em um par de dezenas de anos."

O trecho acima foi extraído de uma reportagem da edição de 29 de dezembro de 2010 da revista IstoÉ, a mesma que, em outra edição daquele mesmo ano, afirmou que já éramos uma potência.

Dentre os "poucos, pouquíssimos, economistas que ousam discordar de que o país entrou em um ciclo de desenvolvimento sustentado" certamente estavam os economistas deste site, que ainda em 2010 alertavam que tudo era infundado.

E onde estamos hoje?

Eis uma amostra de notícias colhidas apenas nos últimos dois meses:
















Como viemos parar nesta situação?

O pano de fundo

No primeiro semestre de 2008, a economia brasileira estava relativamente arrumada. As prudentes políticas fiscal e monetária adotadas no primeiro mandato do governo Lula pela dupla Palocci-Meirelles haviam gerado um nível de confiança e uma estabilidade econômica poucas vezes vivenciados no país pós-democratização. 

A renda da população crescia. O poder de compra do salário mínimo chegaria ao segundo maior valor da história do real (o maior havia sido alcançado em agosto de 1998). A pobreza e a miséria haviam caído 50% entre 2003 e 2008, e os investimentos aumentaram 25% (de 15,3% para 19,1% do PIB) também nesse período. 

A inflação de preços, embora jamais invejável para um suíço, manteve-se relativamente comportada (pelo menos em termos de Brasil): após o IPCA acumulado em 12 meses ter chegado a 17% em maio de 2003, o índice despencou para saudosos 2,9% em março de 2007.

Tudo isso foi possibilitado por uma política monetária previsível e austera (para os padrões brasileiros), conduzida por uma equipe que jamais havia se deixado seduzir pelo conto de que "um pouco mais de inflação gera mais crescimento". 

Em decorrência dessa política monetária decente — atestada pelo comportamento do real em relação ao ouro —, o real se apreciou continuamente perante o dólar e perante todas as principais moedas do mundo, o que garantiu um crescente padrão de vida para os brasileiros.

Para coroar, em abril de 2008, o país viria a ganhar o grau de investimento (investment grade) conferido pela agência de classificação de risco pela Standard & Poor's.

Essa foi uma época em que era difícil para a oposição atacar o governo em termos econômicos, pois a condução pragmática da economia — principalmente em termos de política monetária — não oferecia grandes brechas para um ataque.

E então veio a crise financeira mundial, em setembro de 2008. E, com ela, veio uma guinada na condução da política econômica.

Eis, a seguir, um breve resumo cronológico de tudo o que o governo fez com a economia brasileira desde o segundo semestre de 2008.

O roteiro da lambança

1) A economia brasileira chega ao primeiro trimestre de 2008 relativamente arrumada, com uma política monetária prudente, com o real se valorizando em relação às principais moedas do mundo, e com a renda e osinvestimentos crescendo.

2) No segundo semestre de 2008, ocorre a crise financeira mundial.

3) Para combater os efeitos da crise, o governo brasileiro dá uma guinada na política econômica e passa a utilizar os bancos estatais — principalmente o BNDES — como a principal ferramenta de expansão do crédito.

4) Como a economia até então estava arrumada, essa política de expansão do crédito estatal aparenta funcionar no curto prazo. A economia cresce e a inflação de preços permanece sob controle (para os níveis brasileiros, é claro). O Brasil chama a atenção do resto do mundo.

5) Dilma Rousseff toma posse em janeiro de 2011 e sua equipe econômica não apenas decide manter a vigente política de crédito dos bancos estatais, como ainda decide intensificá-la, adicionando outros elementos heterodoxos.

6) A Nova Matriz Econômica é oficializada. Essa "nova matriz" — na realidade, incrivelmente velha — se baseia em cinco pilares: política fiscal expansionista, juros baixos, crédito barato fornecido por bancos estatais, câmbiodesvalorizado e aumento das tarifas de importação para "estimular" a indústria nacional. A crença do governo passa a ser a de que "um pouco mais de inflação gera mais crescimento econômico".

7) No início de 2012, o governo declara guerra aos bancos privados que não baixarem os juros, e utiliza os bancos estatais para fornecer empréstimos a juros baixos, ampliando dessa forma a expansão do crédito. O consumismo e o endividamento passam a ser explicitamente estimulados pelo governo, com a crença de que ambos é que são os motores do crescimento econômico. A expansão do crédito em conjunto com o aumento das tarifas de importação faz com que a inflação de preços comece a incomodar.

8) Também em 2012, o governo unilateralmente decide revogar os contratos de concessão das empresas de geração e transmissão de energia (os quais terminariam entre 2014 e 2018) com o intuito de fazer novos contratos e impor tarifas menores.

9) Com o ataque às geradoras e transmissoras, as distribuidoras ficam sem alternativa e têm de recorrer ao mercado de energia de curto prazo, no qual os preços negociados são muito superiores em relação aos ofertados pelas geradoras que ficaram sob intervenção. As distribuidoras ficam desabastecidas e endividadas.

10) O Tesouro — ou seja, nós, os pagadores de impostos — começa a repassar dinheiro para as distribuidoras, garantindo artificialmente a política de tarifas baratas. O endividamento do governo aumenta.

11) O governo faz concessões de aeroportos e poços de petróleo, mas tabela o lucro permitido e impõe regulamentações esdrúxulas. Os grandes investidores não se interessam.

12) Em paralelo a tudo isso, um mastodôntico esquema de corrupção já operava na Petrobras, que destroça o capital da empresa. Ao mesmo tempo, o governo obriga a Petrobras a vender às distribuidoras gasolina abaixo do preço pelo qual ela foi importada. E a obriga também a produzir utilizando uma determinada porcentagem de insumos fabricados no Brasil. O capital da Petrobras, portanto, sofre um triplo ataque. A Petrobras se torna a empresa mais endividada do mundo.

13) O uso do BNDES para a escolha de campeãs nacionais é intensificado. O Tesouro se endivida emitindo títulos que pagam o valor da SELIC e repassa esse dinheiro para o BNDES, o qual irá então emprestá-lo a grandes empresas a juros abaixo de 5%, e em prazos que chegam a 30 anos. Tal política não apenas é inflacionária como ainda afeta substantivamente a situação das contas públicas. A dívida bruta do governo começa a subir acentuadamente.

14) Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal intensificam o uso do crédito direcionado, que consiste em empréstimos para pessoas físicas e jurídicas a juros muito abaixo da SELIC. O intuito é estimular tanto o consumismo quanto os investimentos. Essa medida, além de pressionar a inflação de preços, levou oendividamento das famílias a níveis recordes.

15) Em decorrência dos repasses do Tesouro ao BNDES e às distribuidoras de energia, as contas públicas entram em desordem. Para mantê-las artificialmente equilibradas, o governo recorre a truques contábeis que consistem em atrasar repasses tanto para bancos estatais quanto para autarquias, como o INSS. Esses truques contábeis se tornam popularmente conhecidos como "pedaladas fiscais", as quais constituem um crime de responsabilidade fiscal.

16) A inflação de preços em nenhum momento fica perto da meta de 4,50% estabelecida pelo próprio Banco Central. Em vários momentos ela ultrapassa o teto da meta, de 6,50%. No setor de serviços, a inflação de preços fica continuamente entre 8 e 9%.

17) O descontrole das contas públicas, a inflação de preços persistentemente alta, o tabelamento dos lucros nos serviços de concessão e as seguidas demonstrações de desrespeito aos contratos do governo (como a Medida Provisória 579, a qual alterou totalmente o sistema elétrico) afetam o humor dos empresários, que reduzem os investimentos (os quais estão em queda há nada menos que sete trimestres seguidos).

18) O número de miseráveis volta a crescer.

19) Os investidores estrangeiros finalmente percebem os truques contábeis do governo e entendem que a dívida bruta está alcançando padrões perigosos. A agência de classificação de risco Standard & Poor's ameaça acabar com o grau de investimento do país.

20) Como consequência, a taxa de câmbio dispara. O dólar, que estava em R$ 1,65 no início do governo Dilma, chega a R$ 3,25 em meados de março de 2015 (estando hoje entre R$ 3,10 e R$ 3,15). A moeda brasileira derrete.

21) Em simultâneo à disparada do dólar, os repasses do Tesouro às distribuidoras de energia são abolidos. As tarifas encarecem, em média, 58%. (Em Porto Alegre e São Paulo, os reajustes ficam acima de 70%; em Vitória e Curitiba, passam dos 80%). Paralelamente, a Petrobras decide que é hora de recompor seu caixa (dizimado tanto pela corrupção quanto pela política de vender gasolina a preços menores que os custos de importação), e opreço da gasolina dispara nas bombas.

22) Em decorrência de tudo isso, a taxa de inflação de preços passa a subir a um ritmo não vivenciado desde 2003. O IPCA acumulado em 12 meses chega a 8,47% em maio de 2015.

23) O aumento dos combustíveis e da conta de luz obriga empresas, estabelecimentos comerciais e ofertantes de serviços a repassar esses custos aos seus preços. Como consequência, vendem menos e a receita cai.

24) O Banco Central, que havia se mantido totalmente submisso ao governo no primeiro mandato de Dilma, tenta recuperar a credibilidade perdida e volta a tentar controlar a carestia aumentando seguidas vezes a taxa básica de juros. Isso restringe uma parte do crédito e, consequentemente, afeta o crescimento da renda nominal

25) No entanto, dado que a carestia é majoritariamente decorrente da desvalorização cambial e do reajuste de preços administrados pelo governo, os aumentos da SELIC são inócuos nesse combate. Logo, cria-se uma situação de renda estagnada e preços em ascensão, o que gera uma queda da renda real da população.

26) Os seguidos aumentos dos juros, em vez de combaterem a carestia, afetam severamente os investimentos e oconsumo.

27) Com a carestia em alta, a renda real em queda e o endividamento recorde da população, as vendas no varejodespencam, as vendas de automóveis desabam, a indústria encolhe (e já vem encolhendo há 4 anos, não obstante todo o protecionismo) e o desemprego aumenta. As famílias endividadas — consequência inevitável de uma política de estímulo ao consumo — têm dificuldade para quitar as parcelas de suas dívidas. A inadimplência bate recorde.

28) Com renda em queda e custo de vida em alta, a classe média vai atrás de bicos para tentar fechar as contas. E pode encolher este ano.

29) Empresários se dizem pessimistas e sem intenção de investir. A confiança do consumidor é a pior em 13 anos

30) Com previsões de que a economia encolherá quase 1,5% e a inflação de preços fechará o ano em 8,79%, o cenário econômico é de estagflação. As perspectivas futuras não são nada alvissareiras.

Conclusão

A obra acima descrita não é resultante de uma única política ruim. Ela é o resultado de meticulosas e desastrosas intervenções governamentais na economia. Não se chega à situação atual de um mês para o outro ou mesmo de um ano para o outro; é necessária toda uma soma de erros. É necessária toda uma série de intervenções que, ao darem errado, exigem novas intervenções apenas para "corrigir" os efeitos inesperados das intervenções anteriores.

E esta sequência de intervenções adquiriu um ritmo espantoso no Brasil dos últimos 4 anos. 

Poucos países minimamente sérios vivenciam, de forma tão explícita e tão rotineira quanto o Brasil, as consequências das intervenções estatais em suas economias.

Exatamente por isso não deixa de ser curioso que, justamente o país em que os resultados nefastos das intervenções do governo na economia são os mais visíveis, é também aquele que possui uma das populações que mais adoram o estado.



Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

SOMOS TODOS DESONESTOS


Era uma vez um jovem honesto e idealista que, um dia, descontente com o rumo do país, resolveu entrar para a política. Seu objetivo: mudar o país para melhor. Em sua terceira campanha eleitoral, finalmente se elegeu vereador.

Eleito, ele começou a enfrentar dificuldades na Câmara Legislativa Municipal. Três anos depois, nada do que propôs havia sequer sido votado, quanto mais aprovado. Enquanto isso, vários de seus colegas aprovavam tudo o que queriam, normalmente apenas em benefício próprio. As eleições se aproximavam e, com elas, a necessidade de financiamento para a próxima campanha eleitoral e de alguma realização para apresentar a seus eleitores. Ele resolveu que, em nome de um bem maior, seu projeto de um país melhor, por uma única vez, aceitaria participar de um esquema ilícito para aprovar seu projeto e financiar sua campanha. Afinal, o que era uma única “pequena” irregularidade em relação a seu importante e grandioso projeto?

Depois disso, ele se elegeu deputado estadual, deputado federal e há mais de 20 anos é senador. Neste meio tempo, aprovou inúmeros projetos. Hoje, é rico, poderoso e invejado. O jovem que 40 anos antes quis entrar para a política para mudar o país não o reconheceria. Ele virou político para combater pessoas como a que ele mesmo acabou se tornando.

Cercado por outros corruptos, hoje ele sequer acha que o que faz é corrupção. É apenas a forma como as coisas são feitas. Nós seres humanos temos a habilidade de acostumarmo-nos com quase qualquer situação, o que é muito útil para lidar com as mudanças que a vida sempre traz. Infelizmente, esta habilidade vem com um grande ônus. Nós nos acostumamos e consideramos normal o que a maioria está fazendo, principalmente se incluir nosso próprio grupo social. Até ao nazismo, em um dado contexto histórico, muitos acabaram se acostumando e vários até aderindo.

No Brasil, acostumamo-nos com a corrupção. A percepção é que a maioria é corrupta. Trouxas são os que não aproveitam as oportunidades de benefícios próprios que determinados cargos ou situações criam. Esta percepção acaba determinando as ações de muitos e criando uma profecia auto-realizável. Se você acha que essa história só vale para políticos e empreiteiros, atire a primeira pedra quem nunca traiu a namorada, colou na prova ou guiou no acostamento.

O mesmo sujeito que joga uma garrafa na rua e se queixa de como sua cidade está suja, não joga nem uma bituca de cigarro e elogia a limpeza quando viaja para Miami ou Cingapura. O padrão aqui é sujar e reclamar. Lá, é cuidar e elogiar. A pessoa é a mesma.

Precisamos criar condições que estimulem os comportamentos que queremos. A cidade de Nova York, onde morei por quase dez anos, é famosa por ter reduzido radicalmente a criminalidade e a sujeira com tolerância zero a ambas. Aqui, precisamos estender a tolerância zero a todos os padrões errados com os quais nos acostumamos. Aceitando pequenos delitos abrimos a porta para delitos cada vez mais graves, até que eles se tornam a norma.

No Japão, um político corrupto sente tanta vergonha quando descoberto que, muitas vezes, se suicida. No Brasil, até recentemente, políticos corruptos sequer temiam ser punidos.

Tomara que a Operação Lava-Jato e punições severas aos culpados comecem a criar uma nova cultura no país, mas se queremos realmente que o país mude, temos antes de mais nada que ser a mudança que queremos ver.

Por: Ricardo Amorim, apresentador do Manhattan Connection da Globonews, colunista da revista IstoÉ, presidente da Ricam Consultoria, único brasileiro na lista dos melhores e mais importantes palestrantesmundiais do Speakers Corner e economista mais influente do Brasil segundo a revista Forbes internacional e uma das 100 pessoas mais influentes do Brasil segundo a Forbes Brasil. Publicado na Revista Istoé


quarta-feira, 15 de julho de 2015

FILÓSOFO GRAMSCI É O ESTRATEGISTA DO MAL QUE INFLUENCIA O BRASIL

O gramscismo chegou ao governo antes de chegar ao poder. As fortes instituições reagiram à busca da hegemonia e não houve clima para a implantação de reeleições sucessivas. Nem por isso estamos a salvo


Karl Marx, Vladimir Lênin e Antonio Gramsci: o alemão e o russo foram superados pelo filósofo italiano, que é mais perspicaz

O filósofo italiano Antonio Gramsci é tido como um dos mais importantes formuladores comunistas. Não está fora de questão que seja o mais importante. Esse sardo franzino, casado com uma russa, nascido em 1891, chegou a trabalhar com Mussolini na redação do jornal socialista italiano “Avanti!”, em 1915. Foi preso por ação do mesmo Mussolini em 1926, e condenado a vinte anos de prisão. Recebeu liberdade condicional por motivo de saúde e morreu em uma clínica romana em 1937.

Na prisão escreveu suas reflexões, publicadas no Brasil pela editora Civilização Brasileira, na década de 1970, com o título de “Cadernos do Cárcere” (quatro volumes). Não são fáceis de ler. Gramsci escrevia quase que em código, para que os censores não confiscassem suas “lições”, que saíam da prisão por uma sua cunhada, funcionária da embaixada soviética em Roma.

Eram entregues ao líder comunista italiano Palmiro Togliatti, exilado em Moscou durante o fascismo e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

O leitor que quiser se aprofundar em seu raciocínio deve buscar um guia da obra, com um glossário, que lhe sirva de orientação.

Há vários, de esquerda ou conservadores. Marx foi e é um mito para os comunistas. No entanto, suas formulações sempre ficaram longe do real. A “crise do capitalismo”, em que a ganância dos capitalistas provocaria uma concentração de riqueza cada vez maior na mão de poucos, com um crescente empobrecimento do operariado, que ao final se revoltaria, provocando a “crise final do capitalismo” e a “ditadura do proletariado”, mostrou-se uma escatologia sem qualquer parentesco com a realidade.

Nos países verdadeiramente capitalistas, patrões e empregados prosperam paralelamente, bem ao contrário do que aconteceu em todos os países comunistas, onde não se conseguiu prover aos trabalhadores um mínimo de conforto. Zero para Marx. Lênin (co­mo Rosa Luxemburgo), baseado principalmente na experiência da revolução comunista russa, julgava que um assalto ao Estado, por um braço armado do proletariado, como acontecera ali, seria de molde a apressar a derrocada do capitalismo e a implantar o socialismo, e logo o comunismo, em qualquer parte do globo. Fracassou essa teoria na Alemanha, na Itália, na Polônia, e até no Brasil (com a Intentona Comunista de 1935).

As nações que se tornaram comunistas, com raríssimas exceções, foram as da ocupação soviética ao fim da Segunda Guerra, ou por suas consequências. Zero para Lênin. Gramsci observava tudo isso da cadeia. E escrevia. Era muito mais inteligente que seus mestres, embora, comunista disciplinado, não os criticasse, e apenas apontasse “correções de rumo”.

O que dizia Gramsci, que via mais fundo e mais longe que Marx e Lênin: o golpe de Estado deu certo na Rússia. Sociedades como a russa czarista (que ele chamou de “sociedades orientais”) têm um Estado forte, mas não têm organizações civis importantes como respaldo. Tomado o Estado, só resta “educar” a massa amorfa, o povo, no rumo socialista, usando o próprio Estado, agora submetido, como tudo mais, ao partido (comunista, e único). Nas sociedades com forte presença da “sociedade civil” (sociedades ocidentais, dizia Gramsci) o golpe de Estado não funciona.

Tomar o Estado significa apenas tomar uma fortaleza avançada. Atrás dela estão inúmeras “trincheiras e casamatas” não neutralizadas. Re­fe­ria-se às organizações burguesas co­mo igreja, sindicatos, universidades, imprensa. Não se pode fazer, para tomar estas sociedades, a “guerra de movimento”, que teve sucesso na Rússia. É preciso fazer uma “guerra de posição”, desgastar essas trincheiras e casamatas, neutralizá-las para que, tomado o Estado, se tenha também o poder, e não surjam resistências.

É preciso que o proletariado seja “hegemônico” sobre as demais classes, que exista o “consenso” sobre sua visão de mundo. Essa visão, evidentemente, é a comunista. Gramsci usava as imagens da Primeira Guerra Mundial. No que consistia conquistar essa hegemonia: organizar o partido das classes oprimidas (proletariado, campesinato e demais “excluídos” da sociedade burguesa), formar dirigentes, organizar entidades não estatais de apoio, fazer alianças ainda que com partidos ou entidades adversárias, conquistar posições nos organismos da sociedade civil burguesa e nos órgãos estatais (fase econômico-corporativa). Depois, lutar efetivamente pela hegemonia das classes subalternas sobre a classe dominante. Os valores tradicionais das classes burguesas deveriam ser pacientemente destruídos, e substituídos pela nova “visão da sociedade e do mundo”. Valores culturais deveriam ser contestados e apontados outros, mais de acordo com a visão das classes dominadas, e de molde a permitir a ascensão destas.

O mesmo deveria ocorrer com valores morais e éticos, de modo a neutralizar as trincheiras burguesas. O Judiciário deveria ser criticado em suas decisões legalistas, e incentivado a adotar decisões “sociais”, ignorando os dispositivos legais. Pressão deveria ser exercida nas decisões que pudessem prejudicar o partido, seus membros, simpatizantes, ou simples elementos das “classes subalternas”, independente das cominações legais a que estivessem sujeitos. As casas legislativas deveriam ser objeto de constante crítica e desmoralização, enquanto os representantes do partido “proletário” surgiriam como únicos acima das críticas. As Forças Armadas deveriam ficar sob constante açulamento, e deveriam ser vistas como desnecessárias, perdulárias, ignorantes, ditatoriais.

As polícias seriam sempre acusadas de truculência, violência e corrupção, enquanto a marginalidade deveria ser alvo da proteção dos direitos humanos e da tolerância, por pertencer à classe subalterna. Se o bandido age à margem da lei é apenas por falta de opções, sendo a marginalidade fruto, pois, da injustiça social e da exclusão burguesa. Nada mais justo, pois, que os burgueses sofram na pele, sem reclamar, o castigo de serem “expropriados” de seus bens, e até às vezes “justiçados” pelos “excluídos”.

A Igreja Católica deveria ser lembrada por suas falhas, como a pedofilia, a riqueza e o alinhamento com a aristocracia. Não se deveria falar nas suas qualidades, como as modelares instituições de ensino e caridade. Os padres “socialistas” deveriam ser tratados como santos, exaltados como portadores de todas as virtudes. As minorias deveriam ser despertadas para a marginalização a que foram sujeitas e seriam chamadas à vingança contra a dominação burguesa, fossem minorias raciais, étnicas ou sexuais.

Todo o sistema capitalista deveria ser demonizado: os fazendeiros como latifundiários exploradores de mão de obra escrava, depredadores da natureza; os industriais como gananciosos apropriadores da mais valia e sonegadores; os banqueiros como parasitas especuladores; os órgãos de imprensa como vendidos ao capital nacional e estrangeiro.

Os intelectuais tradicionais deveriam ser cooptados, e os intelectuais da “classe”, os dito orgânicos (isto é, todos os cidadãos que fossem inteiramente obedientes ao partido), deveriam ser estimulados a um incessante trabalho de convencimento e doutrinação (fase da hegemonia). Numa última fase, neutralizados os organismos burgueses da sociedade civil, quando a sociedade já aceita a imposição de novos valores culturais, éticos e morais, já não mais tem mecanismos de reação, é hora de tomar o poder, instituir o socialismo e caminhar para a etapa final, o comunismo (fase estatal).

Agora, o partido é quem detém, na verdade a hegemonia. É partido único e aponta os dirigentes. É o “moderno príncipe”, como dizia Gramsci, admirador de Maquiavel.

Desde a instituição do Foro de São Paulo (uma reunião de en­ti­dades marxistas latino-americanas) em 1990, uma ação organizada das esquerdas, com solidariedade incondicional dos participantes (maior mesmo que os in­te­resses nacionais) fez com que o so­cialismo avançasse, detendo o poder na Venezuela, Bolívia e E­quador e caminhando em vários outros países, Brasil inclusive.

No Brasil, o gramscismo chegou ao governo antes de chegar ao poder. As fortes instituições reagiram à busca da “hegemonia”, como vimos com a questão do mensalão e da tentativa de censurar a imprensa. Não houve clima para uma implantação de reeleições sucessivas, como na Venezuela. Nem por isso estamos a salvo. Estamos já em plena fase gramscista de busca da hegemonia. Que não está parada. 

Por: Irapuan Costa Junior Publicado em : JORNAL OPÇÃO

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domingo, 12 de julho de 2015

ADOLF HITLER, LEITOR

Ah, as virtudes da leitura! Não existe político ou intelectual "engagé" que, em programas de governo ou artigos de ocasião, não fale apaixonadamente sobre a importância do ato para uma vida luminosa.


Sempre tive dúvidas. Ler não é verbo desgarrado. Nem questão de quantidade. Ler é uma questão de qualidade. Não interessa que o sujeito leia muito. Interessa que ele leia o que vale a pena. Más leituras em más cabeças costumam ter efeitos trágicos.

Adolf Hitler é um caso: 70 anos atrás, o "Führer" enfiava uma bala na cabeça. A rendição da Alemanha na Segunda Guerra Mundial viria logo a seguir.

E, nas explicações convencionais sobre a emergência do "monstro", Hitler é precisamente isso: um "monstro", sem explicação humana ou racional.

Lamento discordar: Hitler é um produto perfeitamente compreensível de uma Alemanha arruinada pela Primeira Guerra –e novamente arruinada pela Grande Depressão da década de 1930.

Além disso, a instabilidade política da República de Weimar foi terreno fértil para que um demagogo talentoso e ressentido conquistasse uma nação inteira.

Mas Hitler não se explica apenas com os conhecidos fatos da história. Aquele homem pensava, escrevia e discursava daquela maneira porque era também um leitor voraz.

Timothy W. Ryback, em livro que recomendo ("A Biblioteca Esquecida de Hitler"), permite conhecer o erudito Adolf. Quando morreu em seu bunker, Hitler deixava 16 mil volumes para a posteridade. Desses 16 mil, existem hoje uns 1.200 nos Estados Unidos.

Olhando para essas obras, e sobretudo para os sublinhados e anotações dos livros que Hitler terá realmente lido, é possível compreender melhor a sua cabeça destrutiva.

Ponto prévio: enganam-se os que pensam que o nacional-socialismo, na sua imensa boçalidade, se fez à sombra das páginas complexas de Fichte, Schopenhauer ou Nietzsche.

Desses três, Hitler retirou, quando muito, uma expressão aqui, um pensamento acolá –tudo para enfeitar os seus textos com uma ilusão de conhecimento. Hitler era um leitor voraz, repito; mas era um mau leitor voraz: porque procurava no pensamento alheio argumentos, ou pseudoargumentos, que apenas reforçassem as suas lunáticas teorias.

Mas Hitler era também um mau leitor porque, resumindo uma longa história, os seus livros de eleição eram lixo puro para qualquer intelecto civilizado.

Deixando de lado o número impressionante de obras de ocultismo e espiritismo que só reforçaram a sua messiânica paranoia, a Hitler interessava sobretudo "meditações" científicas, ou pseudocientíficas, sobre a decadência da Alemanha e a contaminação –material, intelectual, rácica– de que era vítima o povo alemão.

Isso começou logo na Primeira Guerra Mundial, quando um pequeno livro sobre Berlim, da autoria de Max Osborn (ironicamente, um autor judeu), foi lido e relido pelo então cabo austríaco.

Em "Berlin", Osborn defendia uma cidade limpa de "elementos estranhos" que pudessem degradar arquitetonicamente "uma distintiva visão teutônica". O livro teve uma influência tão profunda em Hitler que, anos mais tarde, nos seus desejos grandiosos de refazer Berlim, era no livro de Osborn que o "Führer" pensava ainda.

E quem fala em corrupção arquitetônica, fala em corrupção internacionalista. O nacionalismo de Hitler encontra-se em autores românticos como Herder ou o referido Fichte?

Não, não se encontra: está antes na prosa medíocre de um Otto Dickel que, contra o fatalismo de Oswald Spengler, apelava aos instintos mais primários da nação germânica para que regenerasse o Ocidente.

Por último, a "praga judaica": como explicar essa funesta obsessão?

Com livros, sempre com livros. Não apenas com as obras infames de Stewart Chamberlain ou Henry Ford. Mas lendo –e levando a sério– os avisos de Madison Grant, um autor de terceira categoria, para quem a "raça nórdica" (ou "ariana", como Hitler preferia chamar-lhe) se deixara abastardar pelo contato com "raças inferiores". A miscigenação que ocorreu na América Latina era a prova dessa bastardia.

Nos 70 anos da morte de Hitler, escutaremos os clichês recorrentes sobre a ascensão e queda do "monstro". Mas jamais conheceremos verdadeiramente esse "monstro" se nos esquecermos da singela observação de Walter Benjamin: a biblioteca de um homem é a sua mais fiel (auto)biografia. 
Por: João pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

quinta-feira, 9 de julho de 2015

DE OLHOS BEM FECHADOS

Os seres humanos nunca suportaram demasiada realidade, dizia o poeta. A frase transformou-se em clichê. Mas os clichês existem por um motivo: normalmente, são verdadeiros.


Passaram 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. E quando o mundo lembra 1945, eu lembro 1939. Quando tudo começou.

Historiadores vários sempre disseram que as origens da Primeira Guerra Mundial eram mais difíceis de entender do que as origens da Segunda. Talvez.

Embora, no caso de 1914-1918, o conflito sempre me pareceu uma mistura óbvia de ressentimentos nacionalistas, ingenuidade bélica –e respeito sagrado pela palavra e pelos tratados defensivos firmados, típico da era aristocrática que as trincheiras enterraram de vez.

No caso da Segunda Guerra, as origens são fáceis de entender: Hitler marchou sobre a Polônia e quebrou a última ilusão dos "apaziguadores". Mas difíceis de entender são as ilusões propriamente ditas. Será possível recuar a 1933, quando Hitler se tornou chanceler alemão, e não vislumbrar o filme todo?

Falo da política interna e da política externa da Alemanha. Em relação ao primeiro quesito, os mais cegos dos cegos ainda poderiam conceder ao tirano o benefício da dúvida.

Mas, 18 meses depois de chegar ao poder, não restavam mais dúvidas: a Alemanha era uma ditadura governada por um gângster, que dizimava opositores políticos, forças paramilitares que não controlava (os "camisas castanhas" de Ernst Röhm) –e, a partir de 1935, uma máquina de perseguição aos judeus, com as Leis de Nuremberg, em que estava todo o programa antissemita do Reich.

Mas se esses eram os sinais internos, que dizer dos ensurdecedores alarmes externos?

No seu "Mein Kampf", Hitler declarava, como os jihadistas islâmicos de hoje, o que pretendia fazer com o poder que (ainda) não tinha: rasgar o Tratado de Versalhes; unir os povos germânicos sob o seu chicote; e conseguir "espaço vital" a Leste para a grandeza perdida da Alemanha.

Uma vez mais, os mais cegos dos cegos poderiam voltar a conceder o benefício da dúvida, dizendo que o livro era um delírio de juventude. Mas, a partir de 1935, também já não havia qualquer dúvida: o livro não era um delírio de juventude.

A Alemanha, rasgando o Tratado de Versalhes, rearmava-se perante o silêncio das potências europeias; em 1936, marchava sobre a Renânia; em 1938, anexava a Áustria; com o beneplácito do Reino Unido e da França, devorava a Tchecoslováquia (primeiro, a região dos sudetos; depois, o país inteiro). A Polônia era uma questão de tempo –e uma conclusão lógica. Como foi possível tapar os olhos na década de 1930?

Conheço as explicações tradicionais: a dolorosa memória das carnificinas da Primeira Guerra, que ninguém desejava repetir; a ideia de que a Alemanha poderia ser um mal necessário para controlar a influência bolchevique no continente europeu –tudo isso pode ter paralisado a Liga das Nações e os seus vetustos membros.

Mas é preciso mais que isso: uma certa covardia moral para ver a realidade exatamente como ela é. Uma recusa do literal, digamos, que consiste em negar ao inimigo as intenções claras que ele afirma e pratica.

Escusado será dizer que essa covardia e essa recusa do literal continuam. E se falei dos jihadistas radicais não foi por acaso.

Hoje, os terroristas que matam em nome do Profeta não negam os seus objetivos –e, mais que isso, dizem com todas as letras qual é o programa de festas: a submissão dos infiéis pela força da espada e a reconstrução utópica de um Califado.

Perante isso, a reação da "intelligentsia" ocidental é semelhante à reação dos "apaziguadores" da década de 1930: uns, preferem não ver ou escutar; e aqueles que escutam normalmente apagam as palavras alheias com as suas próprias palavras.

O problema é a pobreza, dizem; ou Israel; ou os Estados Unidos; ou o Ocidente; ou o rato Mickey –tudo, exceto a declaração explícita dos fanáticos de que não admitem negociação ou compromisso.

Em 1945, o mundo tinha 60 milhões de mortos para enterrar. A loucura de Hitler explica muita coisa. Mas a covardia de gente sã, ontem como hoje, explica muito mais.
Por: João pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 6 de julho de 2015

NA PRÁTICA, A TEORIA É OUTRA

O mundo chora de horror com os mortos do Mediterrâneo: refugiados que fogem da fome e da guerra na África para chegarem ao paraíso europeu.

Difícil discordar da comoção. Mas igualmente difícil é aceitar uma história a preto e branco. Não é possível compreender o êxodo dos desesperados sem olhar para as causas que alimentam o desespero.

E olhar para essas causas, por mais que custe ao pensamento politicamente correto, é olhar para uma longa lista de países africanos que são Estados falhados, ou em vias de, apesar dos bilhões de dólares de ajuda humanitária que o Ocidente já despejou sobre eles.

Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a cifra andará hoje nos US$ 29 bilhões anuais (dados de 2013). Que, tradicionalmente, não chegam a quem precisa: acabam em contas bancárias das elites corruptas que governam esses países.

Por isso pasmo com a notícia da revista "The Economist" de que a indústria da ajuda humanitária começa a optar por modelos mais exigentes na hora de largar dinheiro. "Cash on delivery", eis o termo para um objetivo bem simples: só haverá cheque se existirem resultados.

Ou, simplificando, se o Reino Unido ou fundações privadas financiam escolas ou hospitais na África, o dinheiro dependerá sempre da construção efetiva dessas escolas e hospitais. Caso contrário, boa noite e boa sorte.

Pessoalmente, a parte chocante da notícia está em saber que essas vigilâncias só recentemente passaram a fazer parte da ajuda humanitária. Mas, por outro lado, resta a consolação de saber que os complexos coloniais não poderiam durar para sempre.

*

Osama bin Laden gostava de ler Noam Chomsky e consumir pornografia. Documentos descobertos na sua casa paquistanesa permitem desvendar esses gostos íntimos do célebre terrorista. E, por meio deles, conhecer melhor a natureza do radicalismo islamita.

Sayyid Qutb (1906""1966), o grande teórico do islamismo sunita, tinha horror a mulheres gostosas (que ele conheceu na sua viagem aos Estados Unidos) e pregava continuamente a necessidade de "descontaminar" o Oriente Médio da influência ocidental.

Certo. Mas, como dizem os brasileiros, na prática a teoria é outra: sabemos hoje que os autores dos atentados de 11 de Setembro passaram a última noite das suas vidas em clubes de striptease. As 72 virgens podem ter os seus encantos, para quem gosta do gênero. Mas, pelo sim, pelo não, há momentos na vida de um homem em que a virgindade não é o primeiro quesito que a carne pede.

Mas os gostos bibliófilos de Osama permitem mostrar mais: o ódio que ele sentia pelos Estados Unidos também era alimentado por um intelectual da República americana.

O caso não é novo: como já escrevi nesta Folha, Ian Buruma e Avishai Margalit analisaram o fenômeno no livro "Ocidentalismo". O desprezo por um Ocidente decadente, materialista e desprovido de valores espirituais ou heroicos começou por ocupar a cabeça de autores como Werner Sombart ou Oswald Spengler.

Escusado será dizer que Sombart ou Spengler foram lidos com atenção por radicais islâmicos, que encontraram nas teses antiocidentais de ambos munições teóricas para as suas próprias teses.

Que Osama fosse leitor de Chomsky, eis a conclusão lógica dessa vetusta tradição islâmica antiocidental, que bebe forte no masoquismo dos próprios ocidentais.

Aliás, se Chomsky tivesse queda para o negócio, passaria a exibir nos seus livros a frase promocional: "Um dos autores favoritos de Osama bin Laden". Há direitos de autor que merecem ser respeitados.

*

Francis Fukuyama escreveu o influente ensaio "O Fim da História" há 25 anos. Tese conhecida: com a desagregação do comunismo, o mundo marcharia triunfal para o modelo político democrático-liberal.

O ensaio foi um sucesso e, alguns anos depois, dois aviões derrubavam as Torres Gêmeas de Nova York.

Agora, Fukuyama revisita o ensaio e escreve outro no "The Wall Street Journal". Para afirmar que as premissas do primeiro texto mantêm a sua validade: não há alternativa à democracia liberal. A história chegou mesmo ao fim.

Não sei se o novo ensaio de Fukuyama foi distribuído pelo pessoal do Estado Islâmico, que já domina metade da Síria e, a prazo, chegará a Bagdá. Mas alguém deveria enviar pelo correio mais essa peça de humor para divertir o pessoal.
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

domingo, 5 de julho de 2015

PARA REALMENTE GERAREM VALOR PARA A POPULAÇÃO, EMPRESAS TÊM DE TER LUCRO

A frase a seguir é atribuída ao sindicalista Samuel Gompers, o fundador da Federação Americana do Trabalho:


O pior crime contra o povo trabalhador é uma empresa que não consegue operar lucrativamente.

Talvez nem o próprio Gompers tivesse ideia da poderosa verdade encapsulada nessa sua frase. O sindicalista, já naquela época, foi capaz de perceber algo que vários progressistas de hoje ainda não entenderam: uma economia em que não há lucros é uma economia em um profundo estado de depressão.

Ainda pior, há quem genuinamente acredite que lucros denotam um comportamento suspeito, o qual deveria ser coibido pelo governo. Para muitos, "ter lucro" é uma expressão politicamente incorreta e imoral — o que aplica apenas para terceiros, é claro; aqueles que condenam o lucro não se opõem quando são eles os ganhadores.

Eis outro comentário relacionado ao assunto:

A situação econômica das empresas terá de depender diretamente dos lucros, e os lucros não poderão cumprir sua função enquanto os preços não foram libertados das amarras dos subsídios. Ao longo dos séculos, a humanidade não encontrou nenhuma mensuração mais eficaz do trabalho do que o lucro. Somente o lucro pode mensurar a quantidade e a qualidade da atividade econômica; somente o lucro nos permite relacionar os custos de produção aos resultados de maneira efetiva e inequívoca. . . . Nossa atitude de desconfiança em relação ao lucro revela uma ignorância histórica, resultado do analfabetismo econômico das pessoas...

Essas palavras foram escritas pelo economista Nikolay Shmelyov na edição de junho de 1987 do Novy Mir, o principal jornal político e literário da então União Soviética. Os soviéticos, após anos de propaganda anti-lucros e de políticas que geraram uma economia em frangalhos, estavam dando sinais de querer reverter um pouco daquele analfabetismo econômico até então vigente.

Nos EUA, quando os Peregrinos [primeiros colonos ingleses, calvinistas, que fundaram em 1620 a colônia de Plymouth, no Nordeste dos EUA] chegaram à América, eles quase morreram de fome, pois adotaram um sistema de agricultura comunal. Cada indivíduo tinha de produzir para todos e, em troca, cada um recebia uma igual fatia da produção total. Nessa total ausência de incentivos para se buscar o lucro, vários morreram de fome. 

Ao perceber esse erro, William Bradford, líder da expedição Mayflower, reorganizou os peregrinos de Massachusetts em um regime de propriedade privada sobre a terra e de liberdade na busca pelo lucro. Os incentivos criados pela propriedade privada prontamente criaram uma impressionante reviravolta econômica. Homens e mulheres passaram a produzir visando ao lucro, e o resultado foram colheitas abundantes, com as mesas sempre repletas de alimentos.

Aqueles que condenam o lucro preferem exaltar as virtudes da abnegação e do altruísmo; eles supostamente preferem exaltar a busca pela caridade. Uma preocupação afetuosa para com seus semelhantes pode ser algo belo, especialmente quando vem genuinamente do coração. Mas a realidade econômica permanece inalterada: a busca pelo lucro gerou muito mais coisas — muito mais! — do que toda a caridade do mundo.

Apenas olhe ao seu redor, neste local em que você está agora. Se você está dentro de um imóvel, observe o mobiliário à sua volta, o próprio edifício em que você está, o computador (ou o tablet ou o smartphone) que você está utilizando, a internet que está lhe permitindo acesso ao mundo, as roupas que você está utilizando. Você realmente acredita que todos esses itens surgiram e estão à sua disposição porque alguém queria perder dinheiro (ou aceitou trabalhar em troca de nada) apenas para tornar a sua vida mais confortável? Perdoe-me a sinceridade, mas você não é tão importante assim para o resto do mundo.

Tudo isso só existe e está à sua disposição porque alguém imaginou que poderia lucrar ao inventar todas essas coisas.

Pense nisso da próxima vez em que você estiver em algum almoço de domingo com a sua família. As pessoas que cultivaram o frango, a carne bovina ou a carne suína ali presentes não fizeram isso porque amavam sua família e queriam ajudar vocês. O mesmo é válido para todas as outras pessoas que produziram todos os outros alimentos do almoço: elas não acordaram cedo, trabalharam diuturnamente e se sacrificaram apenas por algum impulso caritativo. Elas fizeram isso porque queriam melhorar a vida delas próprias. E, para melhorar a vida delas próprias, elas buscaram o lucro. E, ao buscarem o lucro, elas melhoraram a sua vida e a vida da sua família.

Eis aqui uma maneira simples e leiga de entender o lucro. Imagine que você adquiriu um material que, em seu estado bruto e inalterado, vale $100. Ato contínuo, você altera essa matéria-prima, adiciona sua criatividade e sua mão-de-obra, e gera um produto final que as pessoas irão voluntariamente querer adquirir por $150. Você gerou valor para a sociedade. Você acrescentou valor para a sociedade e auferiu um lucro por causa disso. Agora, imagine que você adquire esse mesmo material, que em seu estado bruto e inalterado vale $100, altera-o à sua maneira e gera um produto final valorado em apenas $50 pelas pessoas. Você não apenas não auferiu lucro nenhum, como na realidade subtraiu riqueza da sociedade. A sociedade ficou mais pobre por sua causa. 

Como isso pode ser considerado algo virtuoso? É exatamente por isso que empresas que geram prejuízos são deletérias para uma sociedade. Elas consomem recursos e não entregam valor. Elas, na prática, subtraem valor da sociedade. Uma empresa que opera com prejuízo é uma máquina de destruição de riqueza. (O mecanismo sinalizador que orienta todas as decisões e fornece os resultados é o sistema de preços). 

E é por isso que empresas que operam continuamente com prejuízo — por mais importantes que elas sejam para o "orgulho nacional" — devem falir e ser vendidas para novos administradores mais competentes. Falências são algo extremamente positivo para uma economia, pois permitem que aqueles concorrentes mais produtivos e mais capazes tenham a oportunidade de comprar os ativos das empresas falidas a preços de barganha, permitindo-os fortalecer suas operações e voltar a criar valor para a sociedade. Um governo proteger empresas falidas ou que operam com seguidos prejuízos é a maneira mais garantida de empobrecer uma economia.

No que mais, qual dessas façanhas é mais difícil de ser alcançada seguidamente: lucros ou prejuízos? Não creio ser exagero dizer que não é necessário nenhum talento especial para se alcançar prejuízos contínuos. Agora, lucrar continuamente em uma economia livre — uma economia na qual nenhuma empresa usufrui privilégios e proteções do governo —, isso sim exige talento. Com efeito, é muito difícil até mesmo ficar no zero a zero.

Economistas veem o lucro de uma maneira mais profunda. Para eles, o lucro não é um montante amorfo que sobrou após todos os custos terem sido pagos. Segundo Ludwig Von Mises:

O que possibilita o surgimento do lucro é a ação empreendedorial em um ambiente de incerteza. Um empreendedor, por natureza, tem de estar sempre estimando quais serão os preços futuros dos bens e serviços por ele produzidos. Ao estimar os preços futuros, ele irá analisar os preços atuais dos fatores de produção necessários para produzir estes bens e serviços futuros. Caso ele avalie que os preços dos fatores de produção estão baixos em relação aos possíveis preços futuros de seus bens e serviços produzidos, ele irá adquirir estes fatores de produção. Caso sua estimação se revele correta, ele auferirá lucros.

Portanto, o que permite o surgimento do lucro é o fato de que aquele empreendedor que estima quais serão os preços futuros de alguns bens e serviços de maneira mais acurada que seus concorrentes irá comprar fatores de produção a preços que, do ponto de vista do estado futuro do mercado, estão hoje muito baixos. Consequentemente, os custos totais de produção — incluindo os juros pagos sobre o capital investido — serão menores que a receita total que o empreendedor irá receber pelo seu produto final. Esta diferença é o lucro empreendedorial.

Por outro lado, o empreendedor que estimar erroneamente os preços futuros dos bens e serviços irá comprar fatores de produção a preços que, do ponto de vista do estado futuro do mercado, estão hoje muito altos. Seu custo total de produção excederá a receita total que ele irá receber pelo seu produto final. Esta diferença é o prejuízo empreendedorial.

Assim, lucros e prejuízos são gerados pelo sucesso ou pelo fracasso de se ajustar as atividades produtivas de acordo com as mais urgentes demandas dos consumidores. [...]

Lucros e prejuízos são fenômenos que só existem constantemente porque a economia está sempre em contínua mudança, o que faz com que recorrentemente surjam novas discrepâncias entre os preços dos fatores de produção e os preços dos bens e produtos por eles produzidos, e consequentemente haja a necessidade de novos ajustes. [...]

O que cria lucros e prejuízos não é o capital empregado. Ao contrário do que pensava Marx, o capital não "gera lucro". Bens de capital são objetos sem vida que, por si sós, não realizam nada. Se eles forem utilizados de acordo com uma boa ideia, haverá lucros. Se eles forem utilizados de acordo com uma ideia equivocada, haverá prejuízos ou, na melhor das hipóteses, não haverá lucros. É a decisão empreendedorial o que cria tanto lucros quanto prejuízos. É dos atos mentais, da mente do empreendedor, que os lucros se originam, essencialmente. O lucro é um produto da mente, do sucesso de se saber antecipar o estado futuro do mercado. É um fenômeno espiritual e intelectual.

Condenar qualquer lucro como sendo 'excessivo' pode levar a situações tão absurdas quanto aplaudir uma empresa que, outrora muito lucrativa, passou a desperdiçar capital e a produzir ineficientemente a custos mais altos. Esta redução na eficiência e, consequentemente, nos lucros logrou apenas fazer com que os cidadãos fossem privados de todas as vantagens que poderiam usufruir caso os bens de capital desperdiçados por esta empresa fossem disponibilizados para a produção de outros produtos.

Ao repreender alguns lucros como sendo 'excessivos' e consequentemente penalizar empreendedores eficientes com uma elevação de impostos para "compensar" os altos lucros, a sociedade está prejudicando a si própria. Tributar lucros é o equivalente a tributar quem se mostrou bem-sucedido em servir ao público.

Quando uma determinada empresa surge no mercado com um produto novo ou altamente aprimorado, satisfazendo desejos e demandas dos consumidores, os lucros que ela passa a auferir com esse produto podem, à primeira vista, parecer enormes. Só que, quanto maiores forem esses lucros, mais eles atrairão novos concorrentes [N. do T.: a menos que o governo proíba ou dificulte ao máximo, como fazem, por exemplo, as agências reguladoras no Brasil], os quais aumentarão a oferta desse produto. Ato contínuo, a maior oferta fará com que os altos lucros da empresa se evaporem. Olhando em retrospecto, torna-se evidente que os altos lucros funcionaram como um sinal enviado aos outros produtores: "Ei, olhem para cá! As pessoas realmente querem esse produto; querem mais desse produto!".

Conclusão

A hostilidade direcionada ao lucro, seja ela motivada ou pela inveja ou pela ignorância ou pela demagogia, é irracional. Ela só é aceitável quando uma determinada empresa aufere seus lucros em decorrência de suas conexões políticas com o governo (que garante a ela subsídios, ou que a protege da concorrência externa via tarifas protecionistas, ou que impede o surgimento de concorrentes via agências reguladoras).

Fora isso, em um mercado livre, lucros representam muito mais do que a saúde financeira de uma empresa: eles indicam que a empresa está utilizando recursos escassos de maneira sensata e está satisfazendo os desejos dos consumidores; indicam que a empresa está genuinamente criando valor para a sociedade e está aprimorando a qualidade de vida e o progresso.

Lucro é aquilo que todos nós buscamos quando, ao tentar melhorar nosso bem-estar, acabamos por melhorar o bem-estar de terceiros por meio de transações comerciais pacíficas e voluntárias.

Lucro não é evidência de comportamento suspeito. Comportamento suspeito, isso sim, é fazer acusações infundadas contra o lucro.

Atualmente, há no mundo um regime voltado exclusivamente para se certificar de que nenhum indivíduo esteja auferindo qualquer tipo de lucro: a Coreia do Norte marxista. Como consequência, não há nem sequer luz elétrica para a sua população.
Por: Lawrence W. Reed é o presidente da Foundation for Economic Education
Do site: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2113