segunda-feira, 6 de julho de 2015

NA PRÁTICA, A TEORIA É OUTRA

O mundo chora de horror com os mortos do Mediterrâneo: refugiados que fogem da fome e da guerra na África para chegarem ao paraíso europeu.

Difícil discordar da comoção. Mas igualmente difícil é aceitar uma história a preto e branco. Não é possível compreender o êxodo dos desesperados sem olhar para as causas que alimentam o desespero.

E olhar para essas causas, por mais que custe ao pensamento politicamente correto, é olhar para uma longa lista de países africanos que são Estados falhados, ou em vias de, apesar dos bilhões de dólares de ajuda humanitária que o Ocidente já despejou sobre eles.

Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), a cifra andará hoje nos US$ 29 bilhões anuais (dados de 2013). Que, tradicionalmente, não chegam a quem precisa: acabam em contas bancárias das elites corruptas que governam esses países.

Por isso pasmo com a notícia da revista "The Economist" de que a indústria da ajuda humanitária começa a optar por modelos mais exigentes na hora de largar dinheiro. "Cash on delivery", eis o termo para um objetivo bem simples: só haverá cheque se existirem resultados.

Ou, simplificando, se o Reino Unido ou fundações privadas financiam escolas ou hospitais na África, o dinheiro dependerá sempre da construção efetiva dessas escolas e hospitais. Caso contrário, boa noite e boa sorte.

Pessoalmente, a parte chocante da notícia está em saber que essas vigilâncias só recentemente passaram a fazer parte da ajuda humanitária. Mas, por outro lado, resta a consolação de saber que os complexos coloniais não poderiam durar para sempre.

*

Osama bin Laden gostava de ler Noam Chomsky e consumir pornografia. Documentos descobertos na sua casa paquistanesa permitem desvendar esses gostos íntimos do célebre terrorista. E, por meio deles, conhecer melhor a natureza do radicalismo islamita.

Sayyid Qutb (1906""1966), o grande teórico do islamismo sunita, tinha horror a mulheres gostosas (que ele conheceu na sua viagem aos Estados Unidos) e pregava continuamente a necessidade de "descontaminar" o Oriente Médio da influência ocidental.

Certo. Mas, como dizem os brasileiros, na prática a teoria é outra: sabemos hoje que os autores dos atentados de 11 de Setembro passaram a última noite das suas vidas em clubes de striptease. As 72 virgens podem ter os seus encantos, para quem gosta do gênero. Mas, pelo sim, pelo não, há momentos na vida de um homem em que a virgindade não é o primeiro quesito que a carne pede.

Mas os gostos bibliófilos de Osama permitem mostrar mais: o ódio que ele sentia pelos Estados Unidos também era alimentado por um intelectual da República americana.

O caso não é novo: como já escrevi nesta Folha, Ian Buruma e Avishai Margalit analisaram o fenômeno no livro "Ocidentalismo". O desprezo por um Ocidente decadente, materialista e desprovido de valores espirituais ou heroicos começou por ocupar a cabeça de autores como Werner Sombart ou Oswald Spengler.

Escusado será dizer que Sombart ou Spengler foram lidos com atenção por radicais islâmicos, que encontraram nas teses antiocidentais de ambos munições teóricas para as suas próprias teses.

Que Osama fosse leitor de Chomsky, eis a conclusão lógica dessa vetusta tradição islâmica antiocidental, que bebe forte no masoquismo dos próprios ocidentais.

Aliás, se Chomsky tivesse queda para o negócio, passaria a exibir nos seus livros a frase promocional: "Um dos autores favoritos de Osama bin Laden". Há direitos de autor que merecem ser respeitados.

*

Francis Fukuyama escreveu o influente ensaio "O Fim da História" há 25 anos. Tese conhecida: com a desagregação do comunismo, o mundo marcharia triunfal para o modelo político democrático-liberal.

O ensaio foi um sucesso e, alguns anos depois, dois aviões derrubavam as Torres Gêmeas de Nova York.

Agora, Fukuyama revisita o ensaio e escreve outro no "The Wall Street Journal". Para afirmar que as premissas do primeiro texto mantêm a sua validade: não há alternativa à democracia liberal. A história chegou mesmo ao fim.

Não sei se o novo ensaio de Fukuyama foi distribuído pelo pessoal do Estado Islâmico, que já domina metade da Síria e, a prazo, chegará a Bagdá. Mas alguém deveria enviar pelo correio mais essa peça de humor para divertir o pessoal.
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

Nenhum comentário: