domingo, 26 de agosto de 2012

UM SÉCULO DE NELSON RODRIGUES


Não quero falar do voto de Ricardo Lewandowksi que absolve o petista João Paulo Cunha, nem das greves dos “servidores” públicos que assolam o país. Hoje é sexta-feira e de sol aqui no Rio. Falemos de algo melhor. Falemos de Nelson Rodrigues, que nessa quinta faria um século de vida.


Nada como a morte para tornar alguém querido por todos. É no mínimo curioso ver até gente da esquerda elogiando tanto nosso “reacionário” dramaturgo. Ah, se ele estivesse vivo... O fato é que Nelson jamais deu trégua para seus colegas da esquerda. Era paulada atrás de paulada, sempre com seu humor ácido. A canalha fala bem dele só porque agora ele não está mais aqui para detonar suas baboseiras “politicamente corretas”. Então façamos nós isso, resgatando algumas de suas célebres tiradas:


"Repito que o socialismo é todo um processo de desumanização."


"Daí o meu horror à medicina socializada. Vocês entendem? A socialização cria uma responsabilidade difusa, volatilizada, que não tem nome, nem cara, nem se individualiza nunca."


"O socialista que se diz anti-stalinista é, na melhor das hipóteses, um cínico. Os habitantes do mundo socialista, por maior que seja o seu malabarismo, acabarão sempre nos braços de Stalin. Admito que, por um prodígio de boa-fé obtusa, alguém se iluda. Não importa. Ainda esse é stalinista, sem o saber."


"Quem é a favor do mundo socialista, da Rússia, ou da China, ou de Cuba, é também a favor do Estado Assassino."

‎"Se me perguntarem qual a fatalidade de nossa época, responderia que são as esquerdas."
"O nosso homem de esquerda bate papo e só. Mas não sai do Leblon, não larga a praia e, à noite, vai para o Antonino's, gozar a sua boêmia ideológica."

"Há sujeitos, no Brasil, que não estão de quatro e urrando no bosque, porque há os Estados Unidos. Xingar essa pobre nação é uma maneira de ser inteligente sem ler, sem escrever, sem pensar."


Por fim, uma de minhas preferidas:



"Por que D. Hélder não vai rezar três Aves Marias e seus Padres Nossos para os seringueiros cegos, surdos e mudos? Ah, porque sem o ódio ao americano, nenhuma miséria é promocional, e não rende primeira página, nem manchete, nem entrevista, nem televisão.
Por: Rodrigo Constantino, para o Instituto Liberal

O HOMEM QUE LUTAVA PELA LIBERDADE


Se vivo fosse, Milton Friedman teria completado 100 anos no último dia 31 de julho. Este franzino economista foi reconhecidamente, inclusive por seus oponentes, um grande pensador e acadêmico, além de conselheiro de dois presidentes americanos.

Porém, seu mais importante legado foi a desmistificação da ciência econômica, cujos princípios ele ensinou de forma magistral não só aos privilegiados alunos da Universidade de Chicago mas, principalmente, ao cidadão comum que, a exemplo deste escriba, teve a oportunidade de travar algum contato com seus livros, artigos, entrevistas e programas de TV.

A economia para Friedman não era uma ciência obscura, mas uma poderosa ferramenta analítica da ação humana, que ele utilizava com extrema perícia. Falava com simplicidade, clareza e objetividade. Jamais se escondeu atrás de títulos acadêmicos nem precisou utilizar jargões ou linguagem hermética para explicar teorias e conceitos econômicos intrincados e muitas vezes contra intuitivos.

Seus argumentos em defesa da liberdade em geral e do livre mercado em particular não eram apenas intelectualmente poderosos, eram externados com perspicácia, fina ironia e acima de tudo respeito aos interlocutores. Embora fosse um obstinado guerreiro da liberdade, Friedman era um modelo de cordialidade, dotado de uma nobreza tal que, não raro, deixava sem palavras os seus adversários.

Defender o capitalismo de livre mercado não é tarefa simples. É fácil olhar para uma família pobre do interior do Nordeste e afirmar, baseado no forte apelo emocional que tal imagem induz, que aquela família deve ser ajudada por programas governamentais. Muito mais difícil e complexo é explicar que para financiar tais programas muitos impostos precisarão ser arrecadados, e que o dinheiro destinado ao pagamento desses impostos deixará de irrigar investimentos importantes, que criariam milhares de empregos.

É complicado também entender (e explicar) que programas assistencialistas costumam criar incentivos perversos, além desencadear consequências não intencionais que podem acabar por prejudicar exatamente aqueles a quem se pretendia ajudar. A principal virtude de Friedman talvez tenha sido saber explicar, usando apenas poucas palavras, coisas que, para a maioria dos mortais, demandariam extensos livros.

Ao contrário do que afirmam seus adversários, a liberdade defendida por Friedman não visava o benefício dos ricos, mas da sociedade em geral. O sistema de vouchers para a educação que idealizou, por exemplo, tinha por objeto dar aos pobres a mesma liberdade e alternativas de que dispõem os ricos na escolha das escolas para seus filhos. Do mesmo modo, quando se opunha às leis de salário mínimo, ele tinha em mente justamente aqueles indivíduos que, devido à baixa qualificação e produtividade, são marginalizados do mercado formal de trabalho.

Em 1975, convidado por uma instituição privada, Friedman viajou ao Chile, onde teve um encontro de uma hora com Pinochet. Aquele rápido encontro gerou diversas interpretações falsas sobre uma eventual consultoria econômica prestada à ditadura militar chilena. Questionado a respeito daquela reunião, Friedman disse ter dado ao general os mesmos conselhos que costumava dar a todos os governantes com os quais se encontrou – alguns inclusive de esquerda, embora sobre esses ninguém jamais tenha mostrado qualquer preocupação ou indignação. Na verdade, Friedman nunca trabalhou para a ditadura Pinochet, cuja economia ficou a cargo de economistas chilenos oriundos da Universidade de Chicago. “O verdadeiro milagre chileno não foi o sucesso econômico alcançado, mas o fato de o governo ter ido contra suas crenças [autoritárias, centralizadoras e intervencionistas] e optado por um sistema desenhado e gerenciado por gente comprometida com os princípios do livre mercado”, disse ele tempos depois.

Liberal (no sentido clássico do termo), Friedman patrocinava de forma vigorosa não apenas a liberdade econômica, mas também a liberdade de expressão, de associação e de crença. Para desgosto dos conservadores mais empedernidos, Friedman defendia a descriminação do consumo de drogas. Segundo ele, “o governo tem tanto direito de dizer o que pode entrar em minha boca, quanto o que pode dela sair.”

O que diferencia os grandes homens é a coragem de defender suas convicções, a sabedoria para transmiti-las, além de energia e habilidade para trabalhar em prol daquilo em que acreditam. Milton Friedman era genuinamente um desses homens.
Por: João Luiz Mauad, O GLOBO

CONVERSA FIADA


Sabe a razão pela qual a empresa estatal dificilmente alcança alto rendimento? Porque o dono dela --que é o povo-- está ausente, não manda nela, não decide nada. Claro que não pode dar certo.

Já a empresa privada, não. Quem manda nela é o dono, quem decide o que deve ser feito --quais salários pagar, que preço dar pela matéria-prima, por quanto vender o que produz--, tudo é decidido pelo dono.

E mais que isso: é a grana dele que está investida ali. Se a empresa der lucro, ele ganha, fica mais rico e a amplia; se der prejuízo, ele perde, pode até ir à falência.

Por tudo isso e por muitas outras razões mais, a empresa privada tem muito maior chance de dar certo do que uma empresa dirigida por alguém que nada (ou quase nada) ganhará se ela der lucro, e nada (ou quase nada) perderá se ela der prejuízo.

Sem dúvida, pode haver, e já houve, casos em que o dirigente de uma empresa estatal se revelou competente e dedicado, logrando com isso dirigi-la com êxito. Mas é exceção. Na maioria dos casos, indicam-se para dirigir essas empresas pessoas que atendem antes a interesses políticos que empresariais.

Isso sem falar nos casos --atualmente muito frequentes-- de gerentes que estão ali para atender a demandas partidárias.

Tais coisas dificilmente ocorrem nas empresas privadas, onde cada um que ali está sabe que sua permanência depende fundamentalmente da qualidade de seu desempenho. Ao contrário da empresa estatal que, por razões óbvias, tende a se tornar cabide de empregos, a empresa privada busca o menor gasto em tudo, seja em pessoal, seja em equipamentos ou publicidade.

E não é por que na empresa privada reine a ética e a probidade. Nada disso, é só porque o capitalista quer sempre despender menos e lucrar mais. Não é por ética, é por ganância.

A empresa pública, por não ser de ninguém --já que o dono está ausente-- é "nossa", isto é, de quem a dirige, e muitas vezes ali se forma uma casta que passa a sugá-la em tudo o que pode.

A Petrobras pagava a funcionários seus, se não me engano, 17 salários por ano e o Banco do Brasil, 15. Os funcionários da Petrobras gozavam também de um fundo de pensão (afora a aposentadoria do INSS), instituído da seguinte maneira: cada funcionário contribuía com uma parte e a empresa, com quatro partes.

Conheci um desses funcionários que, depois que se aposentou, passou a ganhar mais do que quando estava na ativa. Numa empresa privada, isso jamais acontece, não é? No governo Fernando Henrique aquelas mamatas acabaram, mas outras continuam.

Não obstante, o PT sempre foi contra a privatização de empresas estatais, "et pour cause". Lembram-se da privatização da telefonia? Os petistas foram para a rua denunciar o crime que o governo praticava contra o patrimônio público.

Naquela época, telefone era um bem tão precioso que se declarava no Imposto de Renda. Hoje, graças àquele "crime", todo mundo tem telefone, e a preço de banana.

Mas o preconceito ideológico se mantém. Os governos petistas nada fizeram para resolver os graves problemas estruturais que comprometem a competitividade do produto brasileiro e impedem o crescimento econômico, já que teriam de recorrer à privatização de rodovias e ferrovias.

Dilma fez o que pôde para adiá-la, lançando mão de medidas paliativas que estimulassem o consumo, mas chegou a um ponto em que não dava mais.

O PIB vem caindo a cada mês, o que a levou à hilária afirmação de que, mais importante, era o amparo a crianças e jovens... Disse isso mas, ao mesmo tempo, mandou que seu pessoal preparasse às pressas --já que as eleições estão chegando-- um plano para a recuperação da infraestrutura: investimentos que somarão R$ 133 bilhões em 25 anos. Ótimo.

Como privatização é "crime", pôs o nome de "concessão" e impôs uma série de exigências que limitam o lucro dos que investirem nos projetos e, devido a isso, podem comprometê-los.

Nessa mesma linha de atitude, afirmou que não está, como outros, alienando o patrimônio público. Conversa fiada. A Vale do Rio Doce, depois de privatizada, tornou-se a maior empresa de minério do mundo e das que mais contribuem para o PIB nacional. Uma coisa, porém, é verdade: cabe ao Estado trazer a empresa privada em rédea curta. 

Por: Ferreira Gullar, Folha de SP

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A ARMADILHA DA AMBIÇÃO


  
Nenhum marketing pode gerar alianças entre países se não estiver reunida uma grande massa crítica de interesses comuns militares, econômicos e diplomáticos


O Brasil nunca havia pertencido anteriormente a uma lista tão seleta e restrita de potências mundiais. No caso, nada nos custou ingressar nessa companhia. Por isso, é legítima a ressonância que a sigla adquiriu entre nós e a ênfase que lhe é dada na avaliação de nossa inserção internacional. Fazer parte dos Brics soma, mesmo porque não fazer parte é um ponto negativo para o prestígio de qualquer país emergente. Mas, além da unanimidade rodriguiana que se fez em nosso país, é também útil refletir um pouco mais sobre o significado do grupo na cena internacional e o valor efetivo que tem para nosso país, em especial.

Comecemos pelo óbvio. Três dos integrantes são países asiáticos com enormes populações, territórios e profundas divergências estratégicas, mas alguns interesses comuns. O Brasil pouco ou nada tem a ver com isso, nem a África do Sul, que entrou tardiamente para não deixar de incluir um país africano no grupo. Os Brics, na essência, acham-se centrados na China. Não que este país pretenda ou necessite obter apoio militar ou geopolítico dos seus parceiros. Os chineses não seriam nunca ingênuos para cogitar disso e só no momento da maior ameaça soviética, no início dos anos setenta, buscaram a aliança militar não totalmente explícita com os Estados Unidos, como ficou consolidado na visita de Nixon a Pequim e Xangai em 1972. Mas porque, sendo indiscutivelmente a segunda superpotência global, a China ocupa com naturalidade um lugar destacado em qualquer companhia e sua inclusão reforça poderosamente a imagem do grupo. A presença de quatro outros grandes países favorece-lhe a mão internacionalmente, sem engajá-la a mais do que declarações gerais ou propostas de difícil concretização, como um banco mundial alternativo. Os Brics dão à China uma excelente plataforma, de baixo custo político e nenhum comprometimento sério. A recíproca para os demais membros é igualmente verdadeira. Daí o valor básico da sigla.

Há grandes vantagens para nosso país em estar dentro dos Brics, principalmente agora que o grupo vai se organizando melhor e se reunindo com regularidade. Ombrear-se de forma equilibrada com alguns dos países gigantes de nosso tempo só pode ser positivo. A única precaução que sempre deve estar presente é a de não perder de vista os limites operacionais dos Brics. Em outras palavras, nunca encará-los como um aliança estratégica no verdadeiro sentido da palavra ou não esperar que entre eles se produza um alinhamento sistemático de políticas externas, nem pretender que representarão um fomento adicional ao nosso comércio exterior. Para usar uma expressão que os gregos usavam para significar ambição desmedida e perigosa, não podemos cair na armadilha do “hubris”. Porém, com pilares realistas, podemos esperar construir uma geometria variável que eleve o grupo dos Brics a um patamar de influência diplomática capaz de fazer-se ouvir gradativamente mais na cena internacional.Para a Rússia de Vladimir Putin, o que mais interessa é voltar a vestir o manto de grandeza e força mundial que foi da União Soviética e se perdeu, depois da queda. Todos os seus atos internacionais têm este foco essencial. Os Brics são parte dessa estratégia, ainda que de forma apenas subsidiária. Para a Índia, que aspira também a uma maior afirmação de seu poder, é muito útil pertencer a um grupo prestigioso e seleto, que lhe fornece apoio retórico e apresenta poucas cobranças, além talvez de uma vaga e imprecisa dissuasão militar contra seus inimigos. É necessário, entretanto, ter em mente que ambos os países vivem tempos difíceis e estão longe de ter uma economia consolidada que tenda a um alto crescimento sustentável. Para ambos, é vantajoso fazer parte dos Brics, mas não podem ver neles uma alavanca econômica de grande vigor. Esse é também o caso do Brasil e da África do Sul, cada um com suas características próprias, em particular a de não possuir força militar que se compare nem de longe aos três parceiros asiáticos.

O banqueiro Jim O”Neill, ao inventar a sigla, tinha um propósito estritamente profissional: fazer o marketing de um conjunto de países para criar e vender novos produtos de seu banco. A criatura caminhou muito além da imaginação de seu criador. Mas a mais elementar lição da história é que nenhum marketing pode gerar alianças entre países se não estiver reunida uma grande massa crítica de interesses comuns militares, econômicos e diplomáticos. O que não é definitivamente o caso dos Brics. Por: Luiz Felipe Lampreia

Fonte: O Globo, 24/08/2012

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

SOBE CONSUMO DE AGROTÓXICOS


Estudo mostra o aumento do uso de agrotóxicos nas lavouras brasileiras: baixa escolaridade de agricultores pode influenciar nos riscos

Brasil é líder no consumo de agrotóxicos/ Foto: CONSEA-MG

A produção de defensivos agrícolas cresce em todo o mundo em grandes proporções. Nos últimos 10 anos o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%. Especificamente no Brasil os dados são alarmantes: o crescimento foi de 190% e em 2008, o país tornou-se o maior consumidor mundial de agrotóxicos, ultrapassando os Estados Unidos. Segundo um dossiê divulgado em maio pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) a utilização de agrotóxicos nas lavouras do país saltou de 599,5 milhões de litros no ano de 2002 para 852,8 milhões de litros em 2011. O documento está sendo lançado em três partes. Já apresentado na Rio +20 e no World Nutrition 2012 terá sua terceira parte lançada no Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, em novembro, em Porto Alegre.

O texto do dossiê mostra que o consumo médio dos compostos químicos passou de 10,5 litros por hectare em 2002, para 12,01 por hectare em 2011 (Figura 01). Destaca ainda que o aumento do consumo está relacionado à diminuição dos preços e da isenção dos impostos sobre tais produtos, o que faz com que os agricultores utilizem maior quantidade por hectare.

De acordo com dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em 2010 o Brasil movimentou 19% da produção mundial destes agroquímicos. Para debater o uso dos produtos em plantações brasileiras, o Senado Federal promoveu em maio uma audiência pública sobre o mercado de agrotóxicos na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária. A comissão levou os debates para o terreno da Saúde Pública, trazendo o alerta da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sobre a utilização destes agentes químicos sem controle e para os danos causados à saúde através de seu consumo. “Nós não temos posição ideológica contra agrotóxicos, nós temos é que ter cuidado com a forma de produção, com a comercialização, com a prescrição e, principalmente, com a aplicação”, destacou José Agenor Álvares da Silva, diretor da Anvisa.

O Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos de Alimentos (PARA) da Anvisa realizou coleta de amostras em 2010 monitorando dezoito alimentos: abacaxi, alface, arroz, batata, beterraba, cenoura, pimentão, cebola, couve, feijão, laranja, mamão, manga, maçã, morango, pepino, tomate e repolho em 25 estados da federação, no caso, apenas São Paulo ficou fora da análise por ter uma pesquisa própria no estado. O estudo constatou que das 2.488 amostras coletadas 28% apresentavam resultados insatisfatórios. Isto pode estar relacionado tanto à aplicação de agrotóxicos na plantação, quanto por plantio em solo contaminado em colheita anterior.

O risco no Brasil pode ser observado mesmo nas pequenas lavouras. Um estudo realizado pela Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP, com agricultores no município de Bom Repouso (MG), onde 50% da população reside em áreas rurais, revelou que, a maior parte dos pequenos produtores que fazem uso dos defensivos agrícolas na região estão cientes dos riscos trazidos por eles. O município tem entre seus principais produtos cultivados a batata e o morango, considerado um dos vilões na lista de produtos onde podem ser encontradas maiores concentrações de agrotóxicos. Ainda de acordo com a pesquisa grande parte dos entrevistados revelou não conseguir entender as orientações do fabricante na bula do produto principalmente por conta de sua baixa escolaridade. Também foi citada a dificuldade na compreensão de termos técnicos.

Possível indicador dos riscos aos quais estão expostos os trabalhadores o fator escolaridade foi verificado no Censo Agropecuário do IBGE de 2006, que analisou práticas agrícolas no Brasil, manejo e conservação do solo e o uso de agrotóxicos. Segundo dados obtidos com a pesquisa mais da metade dos estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos não recebeu orientação técnica (785 mil ou 56,3%). O Censo aponta que 15,7% dos produtores responsáveis por aplicação de agrotóxicos não sabiam ler e escrever, fator que dificultava o acesso à informação correta sobre os agentes químicos. De modo geral, a pesquisa mostrou que o nível de escolaridade dos agricultores é baixo: entre as mulheres, o analfabetismo chega a 45,7%, enquanto entre os homens, essa taxa é de 38,1%. Os índices em outros níveis de ensino são: 8% para ensino fundamental completo, 7% para técnico agrícola ou nível médio completo, e apenas 3% com nível superior.

O relatório final do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos de Alimentos (PARA) destaca a necessidade da difusão e multiplicação da informação e da formação de agricultores com boas práticas agrícolas, bem como a fiscalização nos pontos de venda , na manipulação e produção dos alimentos. A Anvisa está reavaliando a autorização para uso de alguns compostos químicos utilizados em plantações em função dos danos à saúde decorrentes da exposição dietética e ocupacional.
Referências Bibliográficas

Agricultor não tem acesso a 50% dos agrotóxicos registrados [Internet]. Brasília (DF): ANVISA; 2012 Abr 11 [acesso em 06 jul 2012]. Disponível em:http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/anvisa+portal/anvisa/sala+de+imprensa/menu+-+noticias+anos/2012+noticias/agricultor+nao+tem+acesso+a+50+dos+agrotoxicos+registrados

ANVISA-Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA): Relatório de Atividades de 2010. Brasília; 2011 [acesso em 06 jul 2012]. Disponível em:http://portal.anvisa.gov.br/wps/wcm/connect/b380fe004965d38ab6abf74ed75891ae/Relat%C3%B3rio+PARA+2010+-+Vers%C3%A3o+Final.pdf?MOD=AJPERES

Carneiro FF, Pignati W, Rigotto RM, Augusto LGS, Rizollo A, Muller NM, Alexandre VP, Friedrich K, Mello MSC. Dossiê ABRASCO – Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Rio de Janeiro: ABRASCO; 2012 [acesso em 06 jul 2012]. Disponível em: http://www.abrasco.org.br/UserFiles/File/ABRASCODIVULGA/2012/DossieAGT.pdf

Censo Agro 2006: IBGE revela retrato do Brasil agrário [Internet]. IBGE; 2009 Set 30 [acesso em 09 jul 2012]. Disponível em:http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1464&id_pagina=1

Impacto de agrotóxicos na saúde é tema de debate na Câmara [Internet]. Brasília (DF): ANVISA; 2012 Maio 10 [acesso em 06 jul 2012]. Disponível em:http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/anvisa+portal/anvisa/sala+de+imprensa/menu+-+noticias+anos/2012+noticias/impacto+de+agrotoxicos+na+saude+e+tema+de+debate+na+camara

Soares N. Pequenos produtores estão cientes de riscos dos agrotóxicos [Internet]. São Paulo: Agências USP de Notícias; 2012 Fev 16 [acesso em 06 jul 2012]. Disponível em: http://www.usp.br/agen/?p=88464

Por: Por Jaqueline Pimentel

09/07/12 | 09:07

SEM EDUCAÇÃO NÃO HÁ FUTURO


Levei um choque na manhã em que li a notícia estampada na primeira página da “Zero Hora”, como faço todos os dias, segundo a qual o pior resultado apurado pelo Ministério da Educação mediante a avaliação processada pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) estava no sul do país. Eu não ignorava que a qualidade do ensino sul-rio-grandense estivesse em nível pouco desejável, mas também não esperava que lhe fosse reservada esta deplorável qualificação, até porque o resultado nacional não é lisonjeiro… Basta dizer que foram tímidos os avanços no Ensino Fundamental, que envolve 98% dos alunos entre 7 e 14 anos, e em relação ao Ensino Médio, que atende os jovens de 15 a 18 anos, foi de estagnação. Neste quadro geral e neste cenário, forçoso é reconhecer, é lamentável a posição do ensino na Província de São Pedro.

A propósito, lembro que quando a senhora presidente mostrou-se desgostosa com a aferição do PIB em determinado triênio e sua influência com o PIB do ano de 2012, desprezou-o publicamente, como se a sua medição tivesse alguma culpa no caso, e não se limitasse a medir o que vira e sentira, preferindo os maravilhosos benefícios da educação como critério a revelar as realidades nacionais, lembrei que além da educação nada ter com o pífio resultado do PIB, e o que era mais, o ensino brasileiro não estava em condições de recomendar o país. Infelizmente, ficou confirmado que a emenda fora pior que o soneto. A senhora presidente ficaria melhor servida se voltasse ao PIB como é em todo o mundo e também na Alemanha, na França e na Itália, que são as três maiores economias da Europa, e ainda na Espanha e no Reino Unido tiveram “crescimento negativo” e nem por isso romperam relação com o respectivo PIB.Ela é tanto mais desairosa quando o ensino no Rio Grande era um dos dois melhores em todo o Brasil, tempos que lembram o saudoso secretário Coelho de Souza. A verdade é que hoje a realidade é outra e a indagação que deve ser feita é como e por que isto ocorreu. Dispensável dizer que a causa não será única, mas várias como só acontecer, e não será no espaço de um artigo que se poderá apontá-los. Com esta ressalva, mencionarei apenas um. Não direi novidade que o ensino supõe a conjugação de variados elementos, a partir do professor, a cordialidade, o respeito, a cordura, a serenidade, o exemplo, sem falar na competência referente ao que ensina e na maneira de ensinar e em quanta coisa mais. Ora, parece-me inegável a emergência de um fator novo, pouco ou nada compatível com as qualidades exemplificativamente aludidas, que chamarei de belicosidade, na ausência de melhor designação. Ontem não entrava no colégio, hoje tomou conta do ensino e foi além. O ensino e a belicosidade são incompatíveis. Não sei se diga que na medida em que o ensino se foi desfigurando a belicosidade crescente ou se na medida em que a belicosidade chegou à sala de aula a qualidade do ensino entrou a mermar. O fato é que parece ter havido uma convergência da violência com o declínio da qualidade do ensino. A violência ou a belicosidade tem ou vem tendo várias modalidades, inclusive a do sindicato ou que outro nome tenha. Não ignoro que a menção a este dado poderá desagradar a um ou outro setor, mas tenho o hábito de dizer o que penso ainda que pedindo desculpas pelo eventual desgosto que possa causar. Estou convencido de que o sindicato consorciou-se com o ensino, impurificando o ambiente com seu mau hálito. Um fato é inconteste: o sindicato agigantou-se e o ensino decaiu.

O PIB mostra que o momento presente é grave, tanto que aí está o perigo da desindustrialização. Os dados do ensino alarmam, pois sem educação não temos futuro.

Mal no presente, comprometidos para o futuro, será que nos resta só o passado?

Por: Paulo Brossard Fonte: Zero Hora, 20/08/2012

CAPITALISMO POPULAR x CAPITALISMO DE COMPADRES


Um excelente livro novo é A Capitalism for the People, de Luigi Zingales, da Universidade de Chicago. Seu livro anterior,Salvando o Capitalismo dos Capitalistas, escrito em parceria com Rugharam Rajan, também é muito bom. O tema é basicamente o mesmo: o perigo do capitalismo de compadres.

Nascido na Itália, Zingales foi para os Estados Unidos quando jovem em busca de um ambiente mais livre, com maiores oportunidades individuais com base no mérito. Como ele próprio reconhece, o ambiente italiano era hostil a qualquer um que ousasse caminhar com as próprias pernas contando apenas com o talento, pois a rede de contatos pessoais era muito mais importante para definir o sucesso. A Itália é mesmo o Brasil da Europa.

Zingales encontrou essa “terra da liberdade” na América, e prosperou. Só que, de uns tempos para cá, ele tem visto os Estados Unidos se parecerem cada vez mais com a Itália da qual ele fugiu. O livre mercado tem sido capturado pelo interesse de grandes negócios, afetando o equilíbrio na democracia.

O povo está com raiva, principalmente após a crise de 2008 e os constantes pacotes de resgates. Sem saber exatamente diagnosticar as causas dos problemas, a população condena o capitalismo como um todo, em vez de sua versão deturpada. Foi para alertar sobre esses riscos que Zingales escreveu o livro.

Um capitalismo que permite que as pessoas fiquem ricas por meio de conexões políticas, não pelo sucesso no mercado, é um capitalismo que parece injusto e corrupto para muita gente. A crença de que o trabalho árduo será recompensado é parte essencial da cultura americana, e foi essa atitude que reduziu as pressões anticapitalistas nos Estados Unidos ao longo do tempo. Ela está agora ameaçada.

A maioria dos americanos acredita no poder dos mercados, mas está perturbada com a influência das grandes empresas no sistema. Na área financeira isso é ainda mais verdadeiro. Os lobistas de Wall Street exercem enorme poder sobre o banco central. Movimentos populistas ganham força com demandas de redistribuição de renda por meio do governo, o que coloca o livre mercado ainda mais em xeque.

O grande valor do mercado está na competição. Quando o governo cria subsídios, barreiras, privilégios, o mercado se transforma em algo completamente diferente. Isso não quer dizer que não exista um papel regulador para o estado. Zingales reconhece os riscos do excesso de regulação, mas ele acha que é importante ter regras claras impostas pelo governo que protejam a concorrência.

Sem uma proteção legal eficiente, sem garantias aos acionistas, com pouca informação aos clientes, os empresários mais inescrupulosos ganham, não os mais eficientes. Zingales deposita muita importância nas instituições, nas regras do jogo. Quando essas podem ser distorcidas de forma arbitrária, os vencedores não são os melhores jogadores, mas os mais corruptos.

Basta pensar nos oligarcas russos, em Silvio Berlusconi na Itália, no Carlos Slim no México, em Eike Batista no Brasil. Todos eles são muito próximos de seus respectivos governos. Suas fortunas vêm de setores sob forte intervenção estatal. Compare-se a isso o falecido Steve Jobs da Apple, Bill Gates da Microsoft ou os donos da Google, e a diferença salta aos olhos. Infelizmente, até nos Estados Unidos a via política tem ganhado cada vez mais peso relativo.

Uma vez que o sistema econômico é construído para favorecer as relações políticas em vez da eficiência, fica extremamente complicado reformá-lo, pois os grupos de interesse passam a acumular poder demais e criam barreiras às mudanças.

Defender o livre mercado não é o mesmo que defender os negócios. Quando os defensores do capitalismo passam a ser confundidos com os defensores desses grandes empresários ligados ao estado, então a imagem do capitalismo sai totalmente manchada. O povo acaba nutrindo ódio ao capitalismo, quando deveria condenar o “capitalismo de compadres”. 

Para o capitalismo sobreviver, as pessoas devem aceitar resultados desiguais. Mas quando os resultados passam a ser extremamente desiguais, e devido ao poder dos lobistas, então a maioria passa a rejeitar o modelo.

Essa é a idéia central do livro. O autor desenvolve com riqueza de detalhes os pontos, e apresenta dados interessantes. O objetivo deve ser resgatar a idéia de uma livre competição, com poder descentralizado, com o mecanismo de pesos e contrapesos funcionando. A hipertrofia do setor financeiro representa uma grande ameaça a isso.

O “capitalismo de compadres” só pode ser derrotado com apoio popular. Virar as costas para a democracia não resolve o problema. É preciso mostrar que a revolta é legítima, mas o alvo está mal calibrado. A culpa não é do capitalismo, mas de sua degeneração. É preciso resgatar a confiança no sistema, com regras simples e igualmente válidas para todos.

É preciso ainda recuperar o “capital cívico”, os valores éticos que rejeitam a idéia de que o importante é vencer, custe o que custar. Como vencer faz toda diferença do mundo. Atletas que ganham sob efeito de doping sofrem rejeição popular. É preciso exercer o mesmo tipo de pressão social contra negócios que vencem graças aos favores estatais. 
Por: Rodrigo Constantino



quarta-feira, 22 de agosto de 2012

POLÍTICA EM TEMPOS LIBERAIS


Escrevo invocando a figura de Amaury de Souza, morto por um câncer no pâncreas aos 69 anos na semana que passou. Foi um dos melhores cientistas políticos de sua geração. Encarou como poucos a tarefa de passar do criticar ao construir, essa travessia fundamental que a finitude e o afeto demandam.

Conheci Amaury nos Estados Unidos, em 1969, onde ele fazia doutorado em Ciência Política no MIT e eu em Antropologia Social em Harvard. Como estrangeiros e um tanto desbravadores, estabeleceu-se entre nós uma simpatia e solidariedade imediatas. Era um momento de grandes esperanças, intensas ansiedades e paradoxais expectativas. A ditadura militar enrijecia no Brasil e nós todos - uma primeira leva de estudantes de Ciências Sociais - aguardávamos com ansiedade o retorno para compartilhar as nossas descobertas pessoais e profissionais. Um dia, em Harvard, ouvi do Amaury a seguinte frase a proposito de um ensaio que escrevi sobre a noção de má sorte - a panema - na Amazônia: "O que importa é demonstrar os argumentos. Tens argumentos?" Jamais me esqueci da majestade da observação. Amaury dizia coisas grandes - toda a história da humanidade é uma tentativa de demonstrar argumentos - de modo direto. A última vez que com ele falei foi num seminário sobre liberalismo no qual, a caminho do palco, ele me confessou sem rodeios: "O que você fez para escrever tão bem?" Passou-me pela cabeça duvidosa do elogio generoso responder de pronto - o sofrimento; mas, logo vi, que essa derradeira pergunta era tão difícil de enfrentar quanto a primeira.

Usando uma palavra em moda, peço vênia ao leitor para louvar a sua coragem de ser um liberal num país que jamais entendeu o que é liberalismo e, graças ao prestígio imenso de sua "esquerda" e ao peso maior ainda de sua ignorância, se dá o luxo de ignorar o pensamento de gente como Alexis de Tocqueville. No Brasil, liberalismo virou nome feio e ser liberal, uma categoria acusatória. Deixo o meu pesar pela travessia do Amaury de Souza e louvo o seu exemplo de vida.

E por falar em liberalismo, impossível não crer que Lula e toda a cúpula do PT soubessem dos meandros do mensalão. Neste Brasil onde as relações pessoais são mais importantes do que as persuasões individuais e ideológicas - aos amigos tudo, aos inimigos a lei! E, com o PT, aos companheiros, tudo isso e o céu também... Numa sociedade marcada por múltiplas éticas, todas a serem respeitadas ou jamais discutidas, porque conhecemos seus praticantes, e dentro de um partido em que o projeto de poder sempre se confundiu com o futuro e o bem-estar da coletividade no qual ele existe, me parece impossível que Lula, José Dirceu, o famoso capitão do time, e outros próceres não tivessem articulado o plano de chegar ao socialismo compadresco petista pelo capitalismo selvagem nacional - o infame mensalão.

Não posso, por tudo o que sei sobre o Brasil, aceitar - data vênia - a tese das defesas segundo a qual a república lulista agia à americana, individualisticamente, com cada qual cumprindo religiosa e burocraticamente o seu papel oficial, num país no qual as obrigações para com os amigos abrangem aceitá-lo até mesmo na sua mais profunda ingratidão, inveja e ressentimento. No Brasil, a amizade não se individualiza e, sendo relacional, engloba os amigos que são aturados ou suportados, por mais loucos que possam ser. Amigo de amigo é amigo; inimigo de amigo é inimigo; mulher de amigo é homem... Conforme dizia um rebelde pernambucano que confundia liberalismo com golpe: eu resisto a tudo, menos ao pedido de um amigo! Até no outro mundo, os pistolões e as rezas nos aliviam. E como ter uma cultura escravocrata se não culpamos e individualizamos o inferior e absolvemos os superiores, com os quais nos apadrinhamos compulsivamente?

Lula foi salvo pelo papel de presidente e lembra o caso Nixon, e, mais adiante, Clinton. Em Watergate, alguns pegaram prisão. Nixon, porém, livrou-se das grades, mas foi destituído do cargo. O tratamento privilegiado concedido aos presidentes (representados como mártires, como Lincoln e Vargas; ou como malandros que passaram raspando pelo fundo da agulha, como Clinton ou JK; ou dissolutos, como Nixon e Collor) mostra como mesmo em tempos pós-modernos a velha identificação entre Deus e rei continua atuando implicitamente junto a certos cargos públicos. Não é, obviamente, um elo axiomático como foi no Egito e no Oriente Médio, mas o papel exclusivo abarcado pela Presidência de um país ultrapassa facilmente os limites do partido e do governo, abarcando a sociedade e seus valores.

No caso do Brasil, há um claro messianismo que todos os populistas exploram sem cessar e que é a marca do lulismo. O Brasil sou eu, diz o nosso populismo real e divino. Um milenarismo tingindo ideologicamente que não é fácil de confrontar porque ele fala a linguagem arcaica da realeza divina e, no caso da nossa presidência divina, que isenta o presidente de atos impuros ou profanos, mesmo quando eles são inescapáveis, ele também discursa usando o mais moderno jargão desta nova língua nacional que se chama economês. Esse idioma de um demonizado neoliberalismo que fala em mercado, competição, igualdade perante a lei, moeda forte, responsabilidade pública, fiscal e pessoal, e meritocracia. Ou seja, tudo isso que o grosso das elites brasileiras odeiam de todo o coração. E que - não tenhamos dúvidas - é o que está em jogo no julgamento desse desprezível mensalão. 
Por: Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo

CINQUENTA TONS DE GOVERNO



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Recentemente, durante uma viagem de avião, notei que pelo menos um terço dos passageiros estava lendo um determinadobest seller. Isso me fez pensar.

Toda organização politicamente ativa e poderosa o suficiente para fazer lobby quer algo do governo, e o governo, sempre que possível, se mostrará extremamente satisfeito em aquiescer às demandas. Durante períodos eleitorais, tal relação se torna ainda mais explícita. Tudo não passa de uma troca de favores: votos em troca de poder e privilégios.

Uma outra maneira da colocar tudo isso: o governo aloca privilégios na forma de regulamentações específicas, de espoliação de uns em troca de favorecimentos para outros, de proteção aos favoritos e de punições aos não condescendentes. Todos os grupos de interesse e todos os partidos políticos têm ideias sobre como seu poder sobre nós pode e deve ser usado.

Para os que não são privilegiados e poderosos o bastante para entrar neste arranjo, como você e eu, será que realmente faz alguma diferença quem irá receber os espólios? Se você será tributado para o governo construir ciclovias ou para dar aumentos salariais ao funcionalismo, o resultado final é o mesmo: você está sendo proibido de utilizar uma parte da sua renda apenas para que políticos e burocratas possam satisfazer seus desejos. Se as regulamentações dizem que você não pode trabalhar em troca de um valor salarial que esteja abaixo de um valor estipulado arbitrariamente por políticos ou se elas proíbem você de comprar determinados produtos, o efeito final é o mesmo: sua liberdade de fazer contratos voluntários está sendo solapada.

O problema real é que todos se limitam a discutir interminavelmente apenas sobre como o governo pode e deve ser usado. Ninguém concebe tirar o governo de cena. O governo deve proibir gays de se unirem civilmente ou deve proibir empresas privadas de discriminar pessoas que optam pela união homossexual? Ou o estado proíbe alguma coisa ou impõe outra. Estes são os dois extremos de sua amplitude de atuação. De um jeito ou de outro, o estado está sendo utilizado para dizer às pessoas o que elas podem e o que elas não podem fazer. Neste sentido, esquerda e direita têm muito mais em comum do que aceitam admitir: ambas partem do princípio — para elas axiomático — de que o estado pode gerenciar a ordem social melhor do que a liberdade. Ambas têm planos sobre como o estado pode bem gerir as pessoas.

O governo deve restringir a circulação de automóveis ou deve estimular suas aquisições? Os bancos devem ser protegidos e estimulados a se fundirem ou devem ser estritamente regulados de modo a não poderem realizar outras atividades senão as bancárias? As grandes empresas devem ser subsidiadas e protegidas das importações ou devem ser tributadas ao máximo? Gordura saturada deve ser de consumo obrigatório como parte de uma nova dieta nacional ou deve ser proibida como sendo um risco à saúde? Remédios devem ter seu acesso dificultado ou subsidiado?

Estes são os grandes debates da nossa era. Mas é óbvio que eles não representam debates. Fundamentalmente, são meras empulhações com o objetivo único de sacramentar o poder decisório do estado. Qualquer que seja a escolha dentre as opções acima, o real vencedor sempre será o governo, seus agentes, seus porta-vozes e seus poderes. Acima de tudo, será a consagração da nossa aceitação do estado controlando nossas vidas, nossas decisões e nossa cultura. Ou o estado me proíbe ou ele me obriga. Estas são as únicas opções ofertadas. E, incrivelmente, tal totalitarismo segue inquestionável pelo rebanho.

A carga tributária deve ser de 40% do PIB ou 37,2%? Deve incidir majoritariamente sobre a renda ou sobre o consumo? Qualquer que seja a escolha, a liberdade é a perdedora, e os direitos de propriedade se tornam cada vez menos garantidos.

Religiosos devem poder controlar o que vemos na televisão, o que lemos e o que fumamos, ou os ateus devem poder impor leis que impeçam as pessoas religiosas de se expressarem livremente? Qualquer que seja a escolha, está-se concedendo ao governo mais controle sobre a sociedade.

Essa é a grande tragédia de se viver sob o leviatã. O ser humano sempre terá ideias distintas e conflitantes sobre como as questões devem ser conduzidas. Isso é inevitável. O problema ocorre quando se delega o monopólio da tomada suprema de decisões para uma entidade amorfa e acima da lei. Quem deve ser premiado? Quem deve ser punido? Quem deve receber privilégios? Quem deve pagar a conta? No final, tudo se torna uma guerra entre grupos de interesse, cada um se esforçando ao máximo para ter influência sobre o estado e, com isso, viver à custa de todo o resto da sociedade.

E o que realmente é essa coisa a que chamamos de estado? O que é o governo? Trata-se de uma gangue envolta por toda uma estrutura institucional que cria regras arbitrárias, fiscaliza seu cumprimento e impõe punições aos dissidentes. Ao mesmo tempo, o estado e seus agentes vivem em uma dimensão paralela, completamente alheios e imunes às leis que eles próprios impõem ao resto da população. Nós não podemos roubar, mas o governo pode. Nós não podemos matar, mas o governo pode. Nós não podemos falsificar dinheiro, mas o governo pode. Nós não podemos sequestrar nem praticar fraude, mas o governo pode. Esta coisa chamada governo possui, obviamente, um forte interesse em manter seu poder, seu prestígio e seu financiamento. Que seus agentes queiram manter seus privilégios, embora moralmente condenável, é algo um tanto compreensível. O que realmente não dá para entender é que pessoas que estão fora do esquema continuem defendendo a existência dele.

A natureza do estado é a mesma, independentemente de qual seja a estrutura do governo. Oligarquia, monarquia absolutista, monarquia constitucional, república presidencialista, república parlamentarista, democracia — todos têm uma característica em comum: eles criam uma casta privilegiada de cidadãos que vivem à custa de todo o resto do populacho.

Em uma democracia, o arranjo é ainda mais descarado. O governo consegue recrutar toda a população para defender a sua causa. O governo magicamente consegue fazer com que as pessoas se limitem a discutir apenas como o governo deve ser utilizado para se alcançar determinados objetivos econômicos e sociais. Que o governo sequer deve ser utilizado para tais fins é algo que não passa pela cabeça das pessoas. Enquanto esta alienação persistir, o governo continuará sendo o vencedor, para o regozijo dos grupos de interesse. Em uma democracia, a função de lobistas e de grupos de interesse é justamente a de recompensar a classe política por seus esforços, transferindo nosso poder e dinheiro para ela. Exatamente qual é a desculpa utilizada — e ela muda de acordo com o momento; algumas vezes sutilmente, outras, dramaticamente — é algo que não interessa ao governo.

O governo é um camaleão, perfeitamente jubiloso em vestir qualquer manto cultural ou ideológico que o permita se camuflar e se imiscuir com quaisquer que sejam as demandas sociais e culturais da época. Em uma democracia litigiosa — como todas são —, existem cinquenta tons de governo, cada tom apropriado para uma determinada época e lugar, cada tom adaptado aos propósitos do momento, todos com o interesse único de firmar seu controle sobre todos.

É disso que se trata todo o "espectro político". O governo nos domina e nós nos submetemos. Ele nos coloca em servidão e nós obedecemos à sua disciplina. Tem de haver uma boa desculpa para tudo isso, caso contrário jamais nos submeteríamos a tamanha humilhação voluntária. Temos de acreditar que o governo, de alguma maneira, em algum nível, está fazendo algo que nos agrade. Talvez, como dizem, o governo seja nós mesmos...

As pessoas gostam de dizer que, na Idade Média, na "era da fé", diferenças religiosas levavam a guerras. No entanto, alguns historiadores que se puseram a analisar aquele período mais detalhadamente observaram algo diferente: governos que querem fazer guerras adoram utilizar a religião como desculpa.

E o mesmo raciocínio se aplica à atualidade. Na atual "era da ciência", somos submetidos a um planejamento científico social no qual especialistas, com as mãos firme nas alavancas de controle, dizem às pessoas como irão utilizá-las. Se a desculpa apresentada será religiosa ou científica, ambientalista ou pragmática, nacionalista ou globalista, realmente não interessa para o resto de nós. Os direitos e as liberdades daqueles que terão de pagar a conta estarão para sempre sacrificados em prol da agenda política de terceiros.

Portanto, na próxima eleição, quando você estiver indo como um cordeirinho para as urnas, pense nos nomes dos candidatos e no que estas pessoas prometeram fazer por você e para você caso você sancione o direito delas de mandar em você. Afinal, sempre que votamos, nos dizem que nós fizemos nossa escolha voluntariamente e agora temos de viver com ela.

Mas é claro que, neste arranjo, não há escolha nenhuma. Um dia talvez percebamos de que não há nenhum sentido em nos submetermos a esta servidão consentida. Ainda haverá um dia em que revogaremos nossa dependência e rejeitaremos toda esta relação escravo-senhor, a qual é a base de sustentação de todo o sistema. Cinquenta Tons de Governo tem sido um best seller há centenas de anos. Já é hora de os governados escreverem um livro totalmente novo.




é o presidente da Laissez-Faire Books e consultor editorial do mises.org. É também autor dos livros It's a Jetsons World: Private Miracles and Public Crimes e Bourbon for Breakfast: Living Outside the Statist Quo

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O SISTEMA BANCÁRIO BRASILEIRO


O sistema bancário brasileiro e seus detalhes quase nunca mencionados



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Ao leitor leigo que teve a coragem de clicar neste artigo não obstante seu título nada atraente, prometo meu máximo esforço para tornar esta leitura palatável e perfeitamente compreensível. O assunto pode parecer árido e desinteressante à primeira vista, porém é o mais importante de toda a economia. Afinal, é justamente o sistema bancário quem multiplica a quantidade de dinheiro na economia e, consequentemente, afeta a oferta de crédito. 

Qualquer assunto que envolva a criação e a manipulação de dinheiro e da oferta de crédito possui mais impacto sobre a economia do que qualquer pacote de estímulo fiscal, qualquer regulamentação, qualquer parceria público-privada. A diferença é que o impacto surge mais no longo prazo e quase sempre suas reais causas não são compreendidas. A manipulação da moeda de um país é algo que afeta a todos, mas em proporções muito distintas. Alguns ganham e muitos (a maioria) perdem. 

Se você entender este artigo, entenderá como realmente funciona o nosso atual sistema financeiro — e o considerará, no mínimo, muito estranho. 

Estrutura

As relações entre o Banco Central e o sistema bancário já foram exaustiva e detalhadamente cobertas em uma série de artigos deste site (dentre os quais, sugiro este, este e este), de modo que neste artigo vamos nos concentrar mais na mecânica do sistema bancário. 

Mais especificamente, vamos nos ater às seguintes questões: como de fato os bancos criam dinheiro, expandem o crédito e afetam toda a economia? Seria possível o sistema bancário criar moeda e expandir a oferta de crédito continuamente caso não houvesse um Banco Central? Como os bancos podem atender ao apelo daquele animador de circo que ocupa o cargo de Ministro da Fazenda e sair concedendo crédito a rodo? A inflação de preços no Brasil, teimosamente alta, tem a ver com o nosso sistema bancário?

Os três primeiros artigos linkados acima detalham como o Banco Central, por meio de suas compras de títulos públicos que estão em posse do sistema bancário, deposita dinheiro (meros dígitos eletrônicos criados do nada, ao simples apertar de uma tecla de computador) em uma conta que os bancos mantêm junto ao Banco Central. Estes dígitos recém-adicionados às suas contas são então utilizados pelos bancos para expandir a oferta de crédito em uma quantidade várias vezes maior do que a quantidade de dígitos criada pelo Banco Central.

Isso é apenas o básico. Os detalhes, no entanto, explicam muita coisa. Vamos a eles.

Os dez principais bancos brasileiros, elencados pelo valor de seus ativos, são: Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, BNDES, Caixa Econômica Federal, Santander, HSBC, Votorantim, Safra e BTG Pactual. Menção honrosa para o Citibank em 11º e para o Banrisul em 12ª, inflando o orgulho dos gaúchos. 

Olhando esta lista — e excluindo o BNDES pelo fato de ele não ser um banco comercial no sentido estrito do termo, isto é, com correntistas pessoas físicas —, é fácil perceber como o sistema bancário brasileiro é concentrado. Afinal, quantas pessoas você conhece que são correntistas apenas do Votorantim, do Safra, do BTG Pactual e do HSBC? Votorantim e BTG sequer trabalham com caderneta de poupança. E os ativos do Santander, quinto da lista sem o BNDES, são a metade dos do Itaú, o segundo da lista.

Logo, se, por exemplo, o Itaú emprestar dinheiro para alguém, o dinheiro deste empréstimo muito provavelmente acabará sendo depositado ou em uma agência do BB, ou em uma do Bradesco, ou em uma da CEF, ou em uma do próprio Itaú. Com uma menor probabilidade, este dinheiro pode ir para o Santander. E com muito menos probabilidade, ele pode ir para qualquer outro banco.

(E se considerarmos a hipótese mais realista de que empréstimos vultosos feitos por uma instituição tendem a ser pulverizados para vários cantos da economia, as chances de que uma fatia deste dinheiro volte para a própria instituição bancária que originou o empréstimo é bem grande.)

Todos estes prolegômenos têm um só objetivo: mostrar que o sistema bancário brasileiro é extremamente concentrado. Fazendo uma simplificação relativamente realista, não é exagero dizer que temos apenas 5 bancos: BB, Itaú, Bradesco, CEF e Santander. Com boa vontade, podemos incluir o HSBC, cujos ativos são quase nove vezes menores que os do BB. Isto significa que, sempre que BB, Itaú, Bradesco ou CEF fizerem um empréstimo, a chance de uma fatia deste dinheiro voltar para eles próprios é bem alta. Mais especificamente, sempre que o BB, por exemplo, faz um empréstimo vultoso, pode-se dizer que 20% (um quinto) deste dinheiro volta para ele.

Juntos, BB, Itaú, Bradesco, CEF e Santander detêm 74% dos ativos de todo o sistema bancário.

E as consequências disso são muitas.

As características do atual sistema bancário

Em teoria — e é isso o que diz os manuais de economia e até mesmo de direito —, a função de um banco é a de servir de intermediário entre o poupador e o investidor. Um banco captaria um depósito de um cliente, o poupador, e emprestaria este valor para um empreendedor. Para fazer isso, o banco emitiria um título prometendo pagar uma determinada taxa de juros Y. O poupador compraria este título. Ato contínuo, o banco emprestaria o dinheiro assim obtido para um empreendedor que necessitasse de financiamento. O banco cobraria deste empreendedor uma taxa de juros X, com X sendo maior do que Y. Esta diferença entre a taxa de juros que o banco paga para captar recursos e a taxa de juros que ele cobra para emprestar se chama spread, e ela seria a principal fonte de receita dos bancos.

Neste modelo, os bancos atuariam como genuínos intermediadores financeiros. Mais ainda: eles estariam agindo como empreendedores alertas às oportunidades e atentos a todas as eventuais descoordenações do mercado. Ao coordenarem um equilíbrio entre poupadores e empreendedores, ao verem que em um setor da economia há alguém disposto a emprestar dinheiro a 10% e, em outro setor, há alguém disposto a pegar dinheiro emprestado a 15%, os bancos fariam esta intermediação e lucrariam com ela. Sua "função social" seria justamente a de reconhecer esta descoordenação, corrigi-la e, neste processo, auferir lucros. Sua atividade como intermediador financeiro seria a de coletar poupança e direcioná-la para empreendedores. 

Neste caso, como os empréstimos feitos pelos bancos estão vindo de uma poupança real que estaria apenas sendo transferida de um indivíduo para o outro, podemos dizer que está havendo a criação de crédito real. O crédito real é a base da acumulação de capital e do crescimento econômico.

No entanto, como bem sabem nossos leitores, o sistema bancário atual — tanto no Brasil quanto no mundo — opera de uma maneira um tanto distinta. Em vez de atuarem como intermediadores da poupança e do investimento, os bancos na realidade possuem o privilégio legal e exclusivo de criar dinheiro do nada, emprestarem este dinheiro e cobrarem juros sobre ele. Como se trata de algo importante e bizarro demais para ser ignorado, vale a pena enfatizar: bancos possuem o privilégio legal, concedido pelo estado, de criar dinheiro eletrônico, de emprestar estes dígitos eletrônicos para pessoas e empresas, e de cobrar juros sobre eles. Algo que lhe daria cadeia se você fizesse, os bancos fazem com a autorização e até mesmo com um forte incentivo estatal.

A principal característica do atual sistema bancário é que o seu real modus operandi não permite sequer que digamos que os bancos também fazem uma intermediação financeira. Não, o sistema bancário atual não atuatambém direcionando poupança para investimentos. Os bancos de hoje lidam majoritariamente com dígitos eletrônicos que eles próprios criam. E, quando você lida com dígitos eletrônicos que podem ser criados do nada, você não se preocupa com a origem daquele dígito. Se você pode criar dígitos eletrônicos para emprestar para João, você não tem de se preocupar em remover estes dígitos eletrônicos da conta do José. Você pode criar os dígitos eletrônicos na conta de João ao mesmo tempo em que José segue tendo total e irrestrito acesso aos dígitos eletrônicos dele.

Sendo assim, a realidade é que, para todas as operações de concessão de crédito, os bancos criam dinheiro eletrônico do nada e emprestam este dinheiro para pessoas, empresas e governos (federal, estaduais e municipais), em um processo que veremos mais abaixo. Dado que tais depósitos bancários assim criados não vieram da poupança, podemos dizer que está havendo a criação de crédito bancário (e não de crédito real). É importante frisar isso: no atual sistema bancário, todo o crédito é bancário. Trata-se de dígitos eletrônicos que são criados pelos bancos e acrescidos às contas dos tomadores de empréstimos. Nenhum dinheiro está sendo removido de uma conta para outra. Está havendo apenas a criação de dígitos eletrônicos.

E é essa capacidade de criar crédito bancário o que gera o contínuo aumento da quantidade de dinheiro eletrônico na economia, bem como suas inevitáveis consequências: inflação de preços e ciclos econômicos.

Para o leitor ter uma ideia da magnitude desta criação de crédito bancário no Brasil, o total de cédulas de papel e de moedas metálicas (ou seja, dinheiro físico) na economia brasileira foi, em julho, de aproximadamente R$ 153 bilhões. Deste valor, R$ 124 bilhões estavam nas mãos do público (isto é, na sua carteira, nos caixas dos estabelecimentos comerciais, nos cofres das empresas etc.) e o restante, R$ 29 bilhões, estava em posse da rede bancária (isto é, nos caixas eletrônicos e nos cofres das agências bancárias). Ao mesmo tempo, o saldo total do crédito bancário na economia, ou seja, a quantidade de dinheiro eletrônico que os bancos criaram e emprestaram, totalizava R$ 2,17 trilhões. Portanto, o total de dinheiro eletrônico criado é de 74 vezes a quantidade de papel-moeda em posse dos bancos e de 14 vezes a quantidade total de papel-moeda existente.

Todo este dinheiro eletrônico, uma vez criado, é espalhado por diversas contas e aplicações bancárias: contas-correntes, contas-poupança, depósitos a prazo, letras de câmbio, letras hipotecárias, letras de imobiliárias, e fundos de investimento, como fundos cambiais, de curto prazo, renda fixa, multimercado e referenciado.

Portanto, eis aqui a primeira e primordial constatação: todo o dinheiro que está hoje na forma de dígitos eletrônicos em contas e aplicações bancárias entrou na economia de uma única maneira: criação de crédito bancário. Não há nenhuma outra maneira de o dinheiro entrar na economia geral a não ser pela criação de crédito bancário. 

E agora a segunda constatação, derivada da primeira: a principal fonte de todos os depósitos bancários que hoje existem na economia não são os depositantes, mas sim os empréstimos que os bancos criam do nada. Os depósitos são a consequência destes empréstimos. Contas bancárias são produto da criação de crédito, e não o contrário.

Uma pessoa, uma empresa ou um funcionário do governo vai ao banco e pede um empréstimo. Ato contínuo, o banco cria, do nada, dígitos eletrônicos na conta desta pessoa. Nenhuma outra conta foi subtraída neste processo. A quantidade de dinheiro eletrônico na economia simplesmente aumentou. Ao ser gasto, este dinheiro recém-criado vai parar nas contas de outras pessoas e empresas. Dali, ele vai para o depósito ou aplicação que este recebedor final escolher.

Os bancos criam dinheiro eletrônico sempre que fazem qualquer tipo de empréstimo ou de investimento. Sem exceção. Se você vai ao banco e pede um empréstimo para comprar um imóvel, o banco vai criar dinheiro eletrônico na sua conta. Se você pedir um empréstimo para comprar um carro, o banco vai criar dinheiro eletrônico na sua conta. Quando o Tesouro faz um leilão de títulos, os bancos criam dinheiro eletrônico para comprar estes títulos. Se um empresário quer descontar uma duplicata, o banco compra o papel — a um valor descontado, é claro — criando dinheiro eletrônico na conta deste empresário. O mesmo ocorre quando uma empresa faz uma operação de vendor (quando a empresa vende um produto a prazo para um cliente, mas quer receber o pagamento à vista, ela leva a nota promissória ao banco, que a comprará a um preço de descontado. Desta forma, o banco está financiando o comprador).

Capital de giro, conta garantida, aquisição de bens, financiamento imobiliário, adiantamento sobre contratos de câmbio, cheque especial, crédito pessoal etc. — tudo é feito com a criação de dinheiro eletrônico. Sempre que um banco adquire um ativo, ele tem de criar um passivo. O ativo é o papel que ele comprou criando dinheiro eletrônico; o passivo são justamente os dígitos eletrônicos que ele acrescenta na conta da pessoa de quem ele comprou o ativo. Ao fazer isso, o banco aumenta a oferta monetária e pressiona os preços para cima.

Portanto, bancos não são — como muitos acreditam — mediadores de crédito. Eles são criadores de crédito.

Como os bancos expandem o crédito muito além do controle do Banco Central

Uma vez entendido que os bancos criam dinheiro do nada, vem a pergunta: o que os restringe? Como garantir que eles não abusem deste invejável poder? 

A resposta é clara: se os bancos saírem criando crédito bancário em demasia, a inflação de preços subirá. Com o aumento dos preços, os bancos terão de aumentar os juros que cobram, caso contrário receberão de volta um dinheiro com menos poder de compra do que aquele que emprestaram. Esta subida dos juros arrefecerá o ímpeto das pessoas e empresas em contraírem empréstimos, o que irá colocar um fim temporário à farra expansionista.

Além desta prudência voluntária dos bancos, há também o controle do Banco Central por meio do depósito compulsório. O depósito compulsório é, como o nome diz, um depósito que os bancos são obrigados a fazer no Banco Central. Todos os bancos têm de manter depositado no Banco Central uma determinada porcentagem do valor total de seus depósitos. Por exemplo, se um banco tem $1.000 em conta-corrente, e o compulsório é de 40%, os bancos têm de manter $400 parados no Banco Central. Estes $400 são suas reservas bancárias. 

(Este sistema em que os bancos são legalmente autorizados a manter como reservas apenas uma fração de seus depósitos é chamado de sistema bancário de reservas fracionárias. Ele difere enormemente daquele sistema descrito no início deste texto, no qual um banco atua como intermediador financeiro. Naquele esquema, o correntista que quiser auferir juros vai emprestar seu dinheiro, ficando sem ter acesso a ele durante o período do empréstimo. No esquema atual, várias pessoas são as donas de um mesmo dinheiro físico — no caso, os $400 que estão nas reservas. Todo o resto é dinheiro eletrônico. Se houver uma corrida bancária para sacar dinheiro, quem chegar por último ficará sem nada. Ele finalmente descobrirá que os dígitos eletrônicos em sua conta eram apenas aquilo: dígitos eletrônicos. Não havia nada físico lastreando aqueles dígitos.)

Neste exemplo numérico dos $1.000 em conta-corrente, se um correntista transferir, digamos, $50 deste banco para um banco de outra marca (do Itaú para o Bradesco, por exemplo), as reservas cairão para $350 e o valor total da conta-corrente será de $950. Neste caso, o banco estará violando a regra de 40% do compulsório. Tendo $950 de conta-corrente, ele tem de ter $380 de reservas bancárias. Logo, o banco terá de arranjar mais $30 para cobrir este "rombo". 

No sistema bancário atual, esta "cobertura de rombo" acontece diariamente no final do expediente bancário, que é quando ocorrem as compensações. Normalmente, o dinheiro que é transferido dos clientes do Itaú para os clientes do BB, da CEF, do Bradesco e do Santander é compensado pelo dinheiro que os clientes destes transferem para o Itaú. No entanto, caso algum banco chegue ao final do dia tendo de arrecadar dinheiro para cobrir o rombo em seu compulsório, ele irá recorrer ao mercado interbancário, no qual aqueles bancos com reservas em excesso emprestam dinheiro para aqueles com reservas insuficientes. Os juros que eles cobram nesta operação é exatamente a taxa SELIC.

O funcionamento do mercado interbancário foi explicado detalhadamente neste artigo, de modo que não irei aqui me aprofundar neste assunto novamente. A intenção de falar sobre o compulsório é mostrar que ele é um mecanismo de controle da expansão monetária. Quanto menor for a porcentagem do compulsório, maior será a quantidade de dinheiro que os bancos podem criar via empréstimos. 

Mas há dois problemas. O primeiro, certamente o leitor mais atento já conseguiu visualizar: quanto maior a concentração bancária, mais tranquilamente os bancos podem expandir o crédito. Se os cinco maiores bancos brasileiros decidem expandir o crédito no mesmo ritmo, o dinheiro que um cria vai parar na conta do outro, e vice-versa. No final do dia, a necessidade de eles recorrerem ao mercado interbancário para obter quantias volumosas para satisfazer a determinação do compulsório é muito pequena. Só terá esta necessidade aquele banco que expandir muito mais do que os concorrentes. Em se tratando de um sistema bancário com poucos bancos e totalmente cartelizado e controlado pelo Banco Central, como o brasileiro, tal coordenação é fácil de ser feita. Aliás, ela é justamente uma das funções do Banco Central. Portanto, este é o primeiro detalhe estrutural que arrefece bastante a capacidade do Banco Central de restringir a expansão creditícia feita pelos bancos.

O segundo problema, que é justamente o ponto deste artigo, é um pouco mais complexo: os bancos podemlegalmente escapar do compulsório imposto pelo Banco Central, o que significa, mais uma vez, que a capacidade de criação de crédito bancário está muito aquém do controle do Banco Central.

A seguir, recorro a um balancete bem simplificado para ilustrar como os bancos podem expandir o crédito para muito além do permitido pelo compulsório. O balancete representa o sistema bancário consolidado de uma determinada economia. De início, o sistema bancário trabalha apenas com depósitos em conta-corrente. O compulsório é de 40%. Os bancos criaram um crédito bancário total de $15.000. Deste valor, $10.000 foram parar nas contas-correntes de todo o sistema bancário, e o restante está disperso pela economia na forma de papel-moeda em posse das pessoas e na forma de passivos de longo prazo do sistema bancário. Observe que há $4.000 na forma de reservas bancárias, satisfazendo o compulsório de 40%. (Tecnicamente, tais reservas podem ser tanto na forma de dinheiro físico no cofre dos bancos, quanto na forma de dinheiro eletrônico depositado junto ao Banco Central).
Balancete consolidado do sistema bancário
Ativos
Passivos + Patrimônio Líquido
Reservas: $4.000
Crédito: $15.000
Depósitos em conta-corrente: $10.000
Passivos de longo prazo: $3.000

Capital: $6.000
Total dos ativos: $19.000
Total dos passivos: $19.000


Observe que, neste ponto, os bancos não mais podem expandir o crédito. Qualquer expansão do crédito levará a um aumento nos depósitos em conta-corrente, o que, consequentemente, imporá a necessidade de se elevar a quantidade de reservas. E, para aumentar suas reservas, os bancos teriam de induzir algumas pessoas a depositar dinheiro em espécie nos bancos. Para tal, eles teriam de oferecer incentivos, como emitir papeis que paguem juros altos. Isso pode afetar seus lucros. 

Outro problema é que mais criação de crédito implica maior probabilidade de saques em espécie, o que reduziria as reservas dos bancos. 

Caso as coisas continuassem assim e — muito importante —, caso o Banco Central não interviesse imprimindo dinheiro e criando mais reservas bancárias, a expansão do crédito estaria estagnada.

No entanto, há outros truques legais que permitem contornar esta situação. Os bancos podem, por exemplo, convencer seus correntistas a migrarem seus depósitos em conta-corrente para uma nova modalidade criada, os depósitos a prazo. Estes depósitos, em nosso exemplo, não possuem regras para compulsório. Quais as consequências?

Suponha que os bancos conseguiram convencer alguns clientes a fazer tal migração de conta, totalizando uma transferência de $5.000 das contas-correntes para os depósitos a prazo. Imediatamente após a transferência, este seria o balancete do sistema bancário:
Balancete consolidado do sistema bancário
Ativos
Passivos + Patrimônio Líquido
Reservas: $4.000
Crédito: $15.000
Depósitos em conta-corrente: $5.000
Depósitos a prazo: $5.000
Passivos de longo prazo: $3.000

Capital: $6.000
Total dos ativos: $19.000
Total dos passivos: $19.000

Observe que agora as reservas estão em excesso em relação ao volume das contas-correntes. A transferência de $5.000 das contas-correntes para depósitos a prazo liberou mais $5.000 para os bancos criarem crédito bancário. 

Após esta nova expansão do crédito bancário, veja o novo balancete do sistema bancário:
Balancete consolidado do sistema bancário
Ativos
Passivos + Patrimônio Líquido
Reservas: $4.000
Crédito: $20.000
Depósitos em conta-corrente: $10.000
Depósitos a prazo: $5.000
Passivos de longo prazo: $3.000

Capital: $6.000
Total dos ativos: $24.000
Total dos passivos: $24.000

Observe que está tudo de acordo com as leis estipuladas pelo Banco Central. O crédito foi expandido em mais $5.000 e este valor foi parar integralmente nas contas-correntes dos bancos. (Haveria o risco de os correntistas sacarem parte deste dinheiro digital que foi criado, o que faria com que os valores das reservas e das contas-correntes fossem menores. Mas isso apenas faria com que a nova expansão do crédito fosse menor; tal ato não seria um empecilho para a expansão do crédito. Pelo bem da brevidade, vamos supor que não houve nenhuma alteração na propensão dos cidadãos a portar um volume maior de dinheiro, o que, aliás, é um argumento bastante realista). As reservas de $4.000 continuam respeitando o compulsório de 40% para o valor total das contas-correntes.

E se os bancos gostarem e quiserem repetir a dose? É perfeitamente possível. Basta eles continuarem incitando os correntistas a migrarem suas contas para depósitos a prazo. Repetindo idêntico procedimento acima, mais $5.000 são transferidos das contas-correntes para os depósitos a prazo. Lembre-se: são apenas dígitos eletrônicos. Não há nenhum obstáculo a esta manipulação.

Eis o balancete do sistema bancário imediatamente após esta nova transferência:
Balancete consolidado do sistema bancário
Ativos
Passivos + Patrimônio Líquido
Reservas: $4.000
Crédito: $20.000
Depósitos em conta-corrente: $5.000
Depósitos a prazo: $10.000
Passivos de longo prazo: $3.000

Capital: $6.000
Total dos ativos: $24.000
Total dos passivos: $24.000

Com reservas em excesso, os bancos podem novamente expandir o crédito em mais $5.000. Eis o balancete dos bancos após esta expansão creditícia:
Balancete consolidado do sistema bancário
Ativos
Passivos + Patrimônio Líquido
Reservas: $4.000
Crédito: $25.000
Depósitos em conta-corrente: $10.000
Depósitos a prazo: $10.000
Passivos de longo prazo: $3.000

Capital: $6.000
Total dos ativos: $29.000
Total dos passivos: $29.000

Com apenas duas rodadas de migração de contas, foi possível ampliar o crédito em $10.000. Mais importante: não houve injeção de dinheiro do banco central; nenhuma moeda física foi criada para permitir este aumento. O único fenômeno ocorrido foram bancos migrando contas e criando dígitos eletrônicos do nada. 

Tal prática pode continuar perpetuamente? Em um ambiente sem um Banco Central, muito difícil, pois, como dito, sempre há o risco de os correntistas decidirem sacar dinheiro. Porém, normalmente, o dinheiro que é sacado acaba sendo gasto; ao ser gasto, ele volta a ser depositado em outra conta-corrente, de modo que a alteração final tende a ser nula. Mas vale a pena enfatizar: sacar dinheiro dos bancos e não depositá-lo novamente é um instrumento poderosíssimo para abalar um sistema bancário de reservas fracionárias. E é exatamente aí que entra o Banco Central, garantindo contínuas injeções de reservas bancárias e impressões de dinheiro (via Casa da Moeda) de modo a não abalar a continuidade deste processo.

Em termos práticos, vale ressaltar que foi exatamente este processo de migração de contas e consequente expansão do crédito que aconteceu durante a década de 1920 nos EUA, quando os bancos expandiram o crédito muito além daquilo que imaginava ser possível o Federal Reserve. Um excelente livro a respeito, que transcreve vários relatórios emitidos pelo Fed à época mostrando enorme surpresa dos burocratas com a evolução do crédito para muito além do que julgavam ser possível, é este (há versões gratuitas para iPad e iPhone, bem como .pdfs.). 

Esta mesma prática é hoje corriqueira em todo o mundo, inclusive no Brasil, cujos dados ilustrados ao final deste artigo irão comprová-la. Nos EUA e na Europa, o sistema bancário, com a anuência de seus respectivos bancos centrais e pelo simples truque da migração de contas (tanto nos EUA quanto na Europa, não há regra de compulsório para depósitos a prazo), expandiu enormemente a oferta de crédito durante a década de 2000, gerando a bolha imobiliária e a subsequente crise financeira, com os resultados que estamos vivenciando hoje.

Aqui no Brasil, o compulsório para depósitos em conta-corrente é talvez o maior do mundo, de 43%. Mas isso é pouco efetivo, pois a migração para contas-poupança, para depósitos a prazo e para fundos de investimento é maciça. O compulsório sobre depósitos a prazo é de 20%. O mesmo valor se aplica aos depósitos de poupança. Qualquer aplicação dos bancos em fundos de investimento está isenta de compulsório. E há mais detalhes: o compulsório sobre depósitos a prazo vigorou apenas durante um determinado período da primeira fase do Plano Real (1996 a 1998). Depois, foi abolido (ficando em seu lugar a necessidade de depositar títulos do Tesouro junto ao Banco Central). Só voltou a vigorar em abril de 2010, e sua taxa é constantemente alterada, variando de 15% a 20%. Ou seja, durante a maior parte da história recente não havia tal instrumento. O espaço que tais alterações de compulsório abre para a expansão do crédito bancário é enorme.

Os números do Brasil

Para se ter uma ideia prática do volume deste fenômeno da migração de contas, veja os dois gráficos abaixo. O primeiro gráfico mostra a evolução nominal da conta-corrente (linha vermelha), dos depósitos em poupança (linha azul) e dos depósitos a prazo (linha verde). Observe que, com a instituição do compulsório sobre depósitos a prazo a partir de 1996, os depósitos em poupança ganham mais captação. Óbvio, pois depósitos a prazo normalmente pagam juros maiores do que depósitos em poupança. Mesmo com a abolição do compulsório ao final de 1998, os depósitos a prazo ainda demoram um pouco para ganhar atratividade, o que só começa a acontecer em definitivo a partir de 2001.
cewolf1.png

O volume de depósitos a prazo é 6 vezes (ou 500%) maior do que o de depósitos em conta-corrente. O volume de depósitos em poupança é 3 vezes maior, ou 200%.

Se construirmos um gráfico mostrando a taxa de crescimento anual das três variáveis, algumas observações se tornam mais óbvias:
variacoes1.png

Em 2003, a estagnação do crédito foi geral, de modo que o crescimento das três contas desacelerou fortemente. Apenas os depósitos a prazo aumentaram em relação a 2002 (5%, como mostra o gráfico ao final de 2003). Nenhuma surpresa. Em 2004, o crédito voltou a se expandir, e os depósitos a prazo, também sem surpresa, foram os que mais cresceram. A partir de 2006, quando o Banco Central começou o ciclo de redução da SELIC, o qual duraria até março de 2008, a taxa de crescimento dos depósitos a prazo começou a desacelerar, ao passo que conta-corrente e conta-poupança passaram a aumentar. A partir de 2007, a relação inversa entre as variáveis se torna explícita: quando a SELIC sobe (2008, segundo semestre de 2010, primeiro semestre de 2011), há uma migração para os depósitos a prazo; quando a SELIC cai (2009 e segundo semestre de 2011 até hoje), há uma migração para a poupança e para a conta-corrente. 

A forte migração para os depósitos a prazo ocorrida em 2008 pode ser explicada tanto pela elevação da SELIC quanto pelo fato de, ainda àquela época, não haver compulsório para os depósitos a prazo. Finalmente, a partir de meados de 2011, com o atual ciclo de redução da SELIC, a taxa de crescimento dos depósitos a prazo voltou a cair, embora seu crescimento ainda esteja maior do que o crescimento dos outros dois depósitos.

Vale notar também que os depósitos em conta-corrente são os primeiros a reagirem a uma alteração na SELIC. Óbvio, pois eles são o primeiro destino de todos os dígitos eletrônicos que foram criados e gastos. A poupança varia simultaneamente, mas com uma pequena defasagem. Já os depósitos a prazo variam inversamente.

Por fim, contemple o gráfico da expansão total do crédito. Ao olhar o gráfico, pense que estes R$2,17 trilhões são meros dígitos eletrônicos criados por bancos.
credit.png


Enquanto isso, o valor total da base monetária em julho — aquela variável que está totalmente sob controle do Banco Central — foi de R$192,5 bilhões. Quem ainda imagina que, em um sistema bancário de reservas fracionárias, o Banco Central pode exercer algum controle benéfico sobre o sistema está seriamente iludido. 

A função do Banco Central em todo este esquema é propiciar seguidas injeções de reservas bancárias para permitir que a expansão do crédito bancário prossiga incólume. Afinal, sempre que ele pára de injetar reservas, a SELIC sobe e o povo reclama

E um detalhe final: mesmo que o BC pare de injetar reservas com o intuito de restringir a expansão do crédito, é perfeitamente possível os bancos continuarem expandindo o crédito bancário ainda por um bom tempo: basta eles coordenarem uma expansão creditícia simultânea ao mesmo tempo em que fazem migrações de contas bancárias. Em um sistema bancário extremamente concentrado como o brasileiro, tal coordenação não é nada difícil.

Conclusão

No sistema monetário atual, o processo de criação de crédito é totalmente artificial. Ao contrário do que imaginam alguns românticos, bancos não são meros intermediadores financeiros entre poupadores e investidores. Bancos são criadores de crédito artificial na forma de meros dígitos eletrônicos. Sendo assim, o sistema bancário de reservas fracionárias, em conjunto com o Banco Central, realiza uma tarefa extremamente importante para a popularidade de políticos: ele aumenta artificialmente a renda das pessoas de forma quase imediata. 

Se a expansão do crédito for alta e, por algum motivo estrutural (alta abertura da economia e aumento da produtividade), o aumento de preços demorar a aparecer, o bem-estar das pessoas irá aumentar (temporariamente, até os preços finalmente começarem a subir), e os políticos da situação ganharão com isso. Tal fenômeno foi evidente na primeira metade da década passada nos EUA e na Europa, quando a expansão do crédito bancário levou a um grande aumento da renda ao mesmo tempo em que a inflação de preços se manteve contida durante algum tempo, exceto no setor imobiliário, o que fez a festa de vários especuladores.

Um país como os EUA, que possui uma economia aberta, consegue manter uma expansão creditícia por um longo período de tempo porque, como sua economia é aberta, as importações ajudam a arrefecer as pressões inflacionistas geradas pela expansão do crédito. Sendo assim, aquele aumento dos juros que põe fim à expansão de crédito (e que dá início à recessão) só irá ocorrer um bom tempo após o ciclo expansionista ter começado. Por exemplo, a última expansão creditícia americana, aquela que gerou a bolha imobiliária, começou em meados de 2001 e só foi acabar em 2006. Neste ínterim, a inflação de preços ficou relativamente contida.

Em um arranjo democrático, a facilidade da expansão do crédito bancário é um mecanismo extremamente tentador. Isso explica por que Guido Mantega vem suplicando de joelhos para os bancos brasileiros expandirem o crédito a juros baixos. Ele sabe que, no curto prazo, tal medida de fato é bastante eficaz politicamente. O problema vem depois, com os ciclos econômicos. Nenhuma economia é capaz de expandir o crédito bancário indefinidamente. Toda expansão sempre termina em recessão. Mas é sim possível postergar recessões com novas rodadas de expansão de crédito, as quais têm de ocorrer em doses cada vez maiores para manter a economia artificialmente aquecida.

Adicionalmente, como no Brasil a economia é bastante fechada, qualquer expansão do crédito bancário rapidamente se transforma em inflação de preços, o que faz com que o Banco Central rapidamente volte a aumentar os juros — leia-se "diminuir as injeções de reservas bancárias". Ao passo que um ciclo expansionista dura de 4 a 5 anos nos EUA, aqui no Brasil ele mal chega a dois. 

O que nos leva à última pergunta remanescente: é possível os bancos atenderem ao apelo do animador de circo e saírem concedendo crédito a rodo? Sim, nada os impede. Exceto o bom senso. Bancos podem expandir o crédito quando quiserem, especialmente se eles operarem sob os auspícios de um Banco Central indulgente, que injete reservas continuamente no sistema. Na nossa atual situação, a única coisa que vem impedindo os bancos de saírem expandindo o crédito de maneira orquestrada é o temor de calotes em decorrência de alto endividamento das famílias e da inadimplência em níveis incômodos.

Nossa situação é curiosa, para não dizer desesperadora: temos de ficar na torcida para que os bancos, contra os interesses do governo, se contenham e evitem a expansão de sua carteira de crédito, algo que também vai contra seus imediatos interesses lucrativos. Ao mesmo tempo, temos um governo que praticamente os obriga a ser mais temerários, a saírem emprestando para qualquer pessoa, sem nenhuma consideração para com risco ou histórico de crédito. E tudo isso apenas para garantir uns décimos a mais no PIB.

Quando a solidez da economia de um país passa a depender de os bancos terem de se conter para não mais aumentarem seus empréstimos, mesmo sendo incitados a isso por um lunático com amplos poderes, apenas uma deidade infinitamente poderosa pode nos salvar da catástrofe.

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.