segunda-feira, 1 de outubro de 2012

ALEMANHA NO PÓS-GUERRA


Como se deu o milagre econômico alemão do pós-guerra

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Em 1945, o último bastião da resistência nazista na Alemanha entrou em colapso, o III Reich deixou de existir e o país ficou sob o controle militar dos Aliados. Mesmo antes desta rendição final, os Aliados já haviam se dado conta de que um de seus problemas mais graves seria o que fazer com a economia alemã. 

Durante a Segunda Conferência de Quebec, em setembro de 1944, tanto Franklin Roosevelt quanto Winston Churchill concordaram em criar um programa para "eliminar as indústrias bélicas do vale do Ruhr e do Sarre... visando a converter a Alemanha em um país primariamente agrícola e de caráter bucólico." Isso passou a ser conhecido como o Plano Morgenthau, em homenagem ao Secretário do Tesouro americano Henry Morgenthau, o mais fervoroso defensor de tal ideia.

A própria ideia de transformar um país altamente industrializado e densamente habitado como a Alemanha em uma nação de camponeses rústicos já era em si absurda. Mais tarde, o próprio Roosevelt viria a admitir que "ele não tinha ideia de como ele havia levado isso a sério; que ele evidentemente não havia pensado muito em tudo aquilo."

Infelizmente, mesmo após a rejeição do Plano Morgenthau, em decorrência de uma forte reação crítica do público e da imprensa, a ideia de se desindustrializar a Alemanha permaneceu fazendo parte da plataforma dos Aliados.

Na Conferência de Potsdam, em julho de 1945, a questão da economia da Alemanha surgiu novamente. Ficou decidido que a capacidade industrial alemã seria limitada a 50-55% do seu nível de 1938, ou a aproximadamente 65% daquele de 1936. Algum tempo depois, esse nível foi elevado para 100% do nível de 1936 nas zonas sob ocupação americana e britânica (Bizona); porém, enquanto isso, a capacidade produtiva alemã era de apenas 60% daquela de 1936, e a produção vigente era de apenas 39% daquela de 1936.

A inflação reprimida

A economia alemã continuou definhando ao longo de 1946 e 1947, incapaz de começar a apresentar qualquer sinal de recuperação. Pudera: os Aliados haviam mantido intacto praticamente todo o sistema de controle econômico dos nazistas. Isso porque eles não chegavam a nenhum acordo sobre o que fazer com a economia e, por conseguinte, optaram por manter o status quo até onde pudessem. No final, provou-se impossível conciliar os objetivos do Ocidente com os da União Soviética, o que resultou na divisão da Alemanha na Alemanha Ocidental e na Alemanha Oriental. 

Após esta divisão, a principal razão para manter os controles sobre a economia era a inflação monetária: a quantidade de dinheiro na economia, no sentido amplo, havia aumentado seis vezes entre 1936 e 1947, de menos de 50 bilhões de reichsmark para algo em torno de 300 bilhões (70 bilhões em cédulas, 100 bilhões em conta-corrente e 125 bilhões em contas de poupança). Em decorrência desta contínua inflação monetária, o marco havia se tornado virtualmente sem valor.

As autoridades ocidentais esperavam que, se os controles fossem mantidos, com preços e salários rigidamente congelados, a economia continuaria funcionando.

Este curioso fenômeno de controle direto sobre todos os preços e salários, em conjunto com uma rápida inflação monetária, passou a ser conhecido como inflação reprimida. Infelizmente, ao se combinar os efeitos nocivos tanto da inflação monetária quanto do planejamento estatal, o resultado final é muito pior do que seria com apenas um deles. Há uma distorção dupla sobre a oferta e a demanda: além das distorções normais provocadas pelo planejamento estatal e pela inflação monetária, a estrutura de preços deixa de refletir as mudanças no valor do dinheiro causadas pela inflação monetária. Isso leva a uma queda acentuada na produção; a escassez torna-se inevitável. O resultado final e inevitável é a regressão à economia de escambo. E foi exatamente isso o que ocorreu na Alemanha.

As empresas que desejassem continuar operando tinham de contratar especialistas chamados "compensadores". A função deles era conseguir trocar o que a empresa havia fabricado por aquilo de que ela necessitava. Consequentemente, tal processo era muito longo e confuso, dado que várias transações intermediárias tinham de ser feitas com grande frequência. O resultado era um enorme desperdício em tempo e gastos indiretos para se obter coisas que, antes, poderiam ser conseguidas quase que imediatamente.

Desnecessário dizer que isso deixou a já deprimida economia alemã terrivelmente emperrada. 

Não demorou muito para que os trabalhadores e empregados em geral também insistissem em ser pagos em mercadorias. Ato contínuo, eles trocavam as mercadorias que recebiam por aquelas coisas de que necessitavam. Uma consequência adicional era que os trabalhadores não mais tinham qualquer incentivo para trabalhar mais e ganhar mais dinheiro: como havia racionamento, todos trabalhavam apenas o necessário para comprar os poucos e racionados bens que podiam obter a cada semana a preços estipulados artificialmente. Por lei, era necessário ter um emprego para se obter as papeletas de racionamento; sendo assim, os trabalhadores adquiriram o hábito de ir trabalhar apenas três ou quatro dias por semana. Seu tempo livre adicional passou a ser gasto em trabalhos de jardinagem, na confecção de artigos para escambo ou atuando diretamente no mercado negro, bem mais lucrativo.

A reforma monetária

Finalmente este pseudomercado entrou em colapso. Como notou um observador, a economia alemã "estava organizada de tal forma que o interesse próprio dos indivíduos e das empresas era estritamente oposto ao interesse comum. Trabalhar em um emprego regular era a menos lucrativa das ocupações, e a mera sobrevivência dependia de se saber aproveitar as brechas da lei. Já em meados de 1948, a economia havia atingido um estado de total paralisia que resultou na quase inanição de uma grande fatia da população".

Mas, felizmente para a Alemanha, um cavalheiro chamado Ludwig Erhard, que havia sido discípulo de Wilhelm Roepke — sendo que este havia sido discípulo de Ludwig von Mises —, foi nomeado Diretor da Administração Econômica Bizonal. Erhard era um inflexível e vigoroso adepto do livre mercado, e estava disposto a dar a ele uma chance. No auge da crise, em junho de 1948, ele propôs um ousado e extenso plano para restaurar a economia, um plano que combinava uma radical reforma monetária em conjunto com uma completa abolição dos controles econômicos.

A reforma monetária estava marcada para ocorrer nas zonas britânicas e americanas no dia 20 de junho de 1948. O cerne deste programa seria uma redução da oferta monetária em incríveis 90% seguida da emissão de um novo marco alemão, o deutsche-mark, que manteria seu valor e que não mais seria inflacionado até perder totalmente seu valor. Os detalhes da reforma monetária são um tanto intrincados e estão fora do escopo deste artigo. Basta dizer que todos os reichsmark foram trocados por novos deutsche-marks a uma taxa de 10 para 1, sendo que a quantia máxima de deutsche-marks a ser impressa foi estipulada em 10 bilhões.

Adicionalmente, os depósitos bancários em nome de instituições públicas — do governo militar, dos estados e suas subdivisões, da empresa ferroviária estatizada, e dos Correios — foram invalidados sumariamente. Da mesma forma, todas as obrigações assumidas anteriormente pelo Reich, bem como todos os seus depósitos interbancários, também foram invalidados. Uma reserva em dinheiro e algum estoque de capital foram concedidos a todas as instituições financeiras, fornecendo desta forma os ativos necessários para lastrear os novos passivos destas instituições.

Além desta reforma monetária, o vasto emaranhado de controles estatais sobre a economia também tinha de ser abolido para que a reforma monetária pudesse funcionar. Nos bastidores, isso não era algo fácil de ser feito, pois a Alemanha ainda estava sob ocupação militar, e virtualmente tudo o que os alemães quisessem fazer tinha de ter a prévia aprovação dos Aliados. Uma dificuldade adicional estava no fato de que, na Grã-Bretanha, o primeiro governo socialista acabava de ser eleito e, como consequência, os britânicos já estavam tentando difundir suas políticas socialistas também para a zona de ocupação.

Os Aliados observaram a reforma econômica com grande ansiedade, dúvida e apreensão. Com efeito, o general Lucius D. Clay, nomeado pelos Aliados como diretor de política econômica, enviou um ríspido memorando para Ludwig Erhard alertando-o de que os controles econômicos do governo militar não poderiam ser alterados sem uma prévia permissão. A corajosa resposta do professor Erhard merece ser repetida continuamente até o fim dos tempos: "Eu não alterei seus controles; eu os aboli".

Como o próprio Erhard viria a dizer mais tarde: "Foi estritamente especificado pelas autoridades britânicas e americanas que seria necessário obter permissão para que qualquer mudança de preços pudesse ser feita. Parece que os Aliados jamais haviam imaginado que alguém pudesse ter a ideia não de alterar os controles de preços, mas de simplesmente removê-los".

E foi exatamente isso o que Erhard fez, e de uma só vez ele desatrelou toda a economia alemã. 

O livre mercado em ação

À medida que a data da implementação destas reformas se aproximava, o país ia se tornando mais apreensivo, e a crise econômica parecia piorar continuamente. Ao mesmo tempo, os críticos socialistas se animavam e elevavam os gritos de condenação ao plano.

No dia 19 de junho, um sábado, a maioria das lojas estava vazia. No dia 21 de junho, segunda-feira, como num passe de mágica, as lojas estavam novamente abastecidas. Dois franceses, Jacques Rueff e Andre Piettre, registraram de forma teatral este milagre da noite para o dia:

O mercado negro de repente desapareceu. As vitrines das lojas amanheceram cheias de bens, as chaminés das fábricas voltaram a soltar fumaça intensamente, e as ruas fervilhavam de caminhões de carga. Por todos os cantos, o barulho das construções substituiu o silêncio sombrio dos escombros. Se a recuperação foi uma surpresa grande, sua rapidez foi uma surpresa ainda maior. Em todos os setores da economia, a vida foi retomada assim que os relógios badalaram as primeiras horas do dia da reforma. Apenas uma testemunha ocular pode oferecer um relato acurado do súbito efeito que a reforma monetária teve sobre o tamanho dos estoques e sobre a variedade e riqueza dos bens à mostra. As lojas se encheram de bens da noite para o dia; as fábricas voltaram a trabalhar a toda. Na véspera da reforma monetária, os alemães perambulavam sem rumo pelas cidades à procura de alguns itens comestíveis adicionais. Um dia depois, eles não pensavam em mais nada a não ser em produzi-los. Num dia, a apatia era nítida em suas faces; no outro, toda a nação olhava esperançosa para o futuro.


Como o próprio Erhard viria a observar este fenômeno: "Antes da reforma monetária, nossa economia era como um campo de prisioneiros de guerra; os reclusos eram mantidos vivos em parte pelos Aliados.... Imediatamente após a reforma, as cercas, barreiras e muralhas desabaram com estonteante velocidade tão logo o campo de prisioneiros ganhou uma nova e confiável moeda".

Os resultados rapidamente comprovaram a sagacidade de ambas as reformas, a monetária e a de liberação geral dos preços e salários. A tabela a seguir, por exemplo, mostra que, entre junho e dezembro de 1948, houve um aumento de 53% da produção naquelas áreas contempladas pelas reformas:

Índice de Produção (1936 = 100)
Abril
53
Setembro
70
Maio
47
Outubro
74
Junho
51
Novembro
75
Julho
61
Dezembro
78
Agosto
65





Já em 1949, o índice de produção encerrou em 143% daquele de 1948. Ao longo das duas décadas seguintes, a Alemanha continuou a ter uma das maiores taxas de crescimento do mundo.

Economia keynesiana

É óbvio que, perante estes resultados, vários economistas rapidamente se apressaram em querer atribuir os créditos do sucesso às suas ideologias favoritas. Aqueles que não queriam dar nenhum crédito às políticas de livre mercado de Erhard prontamente começaram a oferecer suas próprias explicações para a fenomenal recuperação da Alemanha. Uma explicação que se tornou bastante popular foi a de que a Alemanha utilizou princípios keynesianos em sua recuperação. Essa proposição já foi completamente demolida em outras obras, mas continua sendo difundida porque economistas keynesianos são invejosos do fato de que nenhuma das notáveis recuperações ocorridas no pós-guerra realmente utilizou qualquer tipo de economia keynesiana. Ao contrário: todas se basearam universalmente nos princípios do livre mercado. Como observou o professor de Harvard, Gottfried von Haberler:

Em todos os países industriais desenvolvidos, as políticas de recuperação econômica, de estabilização e de crescimento foram muito mais bem-sucedidas após a Segunda Guerra Mundial do que após a primeira. Porém, é difícil atribuir este fenômeno à difusão do pensamento keynesiano. Nenhum dos economistas e nenhum dos estadistas que foram amplamente responsáveis pelos variados milagres econômicos do pós-guerra pode ser chamado de keynesiano: nem Camille Gutt na Bélgica, nem Luigi Einaudi na Itália, nem Ludwig Erhard na Alemanha, nem Reinhard Kamitz na Áustria, nem Jacques Rueff na França. O maior milagre econômico de todos, o japonês, parece ter sido realizado sob governantes e estadistas japoneses bastantes conservadores, com o auxílio de conselheiros americanos ultraconservadores. Aos numerosos keynesianos e marxo-keynesianos restou apenas observar o fenômeno, em impotente oposição.


O que podemos concluir do episódio alemão? 

Primeiro, é necessário entender que qualquer interferência realizada por burocratas e planejadores estatais sobre o sistema de preços irá inevitavelmente distorcer o sistema de produção, gerando um arranjo menos satisfatório do que aquele que existiria caso não houvesse nenhum interferência. 

Segundo, não há na história econômica nenhum exemplo mais pungente de uma "política de pleno emprego" que tenha funcionado melhor que a alemã — não houve nenhum planejamento federal, não houve política industrial, não houve modelos computadorizados para a economia, não havia um exército de burocratas dando palpites e ditando ordens, não houve inflação monetária com intuito de 'estimular a economia', e não houve políticas keynesianas. Foi justamente a ausência de todos estes componentes que infestam as economias intervencionistas atuais o que tornou possível o renascimento econômico alemão. 

Terceiro, o episódio alemão demonstra que uma deflação monetária, desde que ocorra em um ambiente com total liberdade de preços e salários, pode ser algo economicamente benéfico, sem necessariamente criar uma depressão — pelo menos no caso de uma economia que havia sido praticamente destruída pela imposição de controles de preços e salários. A deflação restaurou a fé na nova moeda, uma vez que ela foi acompanhada da volta dos preços flexíveis e da abolição de todos os controles sobre a economia. O processo de trocas indiretas intermediadas pelo uso do dinheiro pôde avançar firmemente, pondo um fim à economia baseada no escambo, à sua inerentemente baixa divisão do trabalho e aos seus mercados extremamente limitados e manietados.

As reformas de livre mercado de Ludwig Erhard restauraram a liberdade dos mercados na Alemanha e, com isso, libertaram as inexoráveis leis da ação humana. Foi a livre concorrência baseada na propriedade privada o que deu novas esperanças e permitiu o surgimento de um fenômeno econômico que surpreendeu o mundo e se tornou conhecido como "o milagre da recuperação alemã".

Infelizmente, Erhard tinha uma vantagem política que o mundo atual não mais usufrui. Ele teve a liberdade de abolir os controles que haviam sido impostos pelos Aliados; ao fazer isso, ele ganhou o apoio político da população alemã. No entanto, os controles haviam sido criados originalmente pelos nazistas; os Aliados apenas os estenderam por mais três anos após a Alemanha ter se rendido. É mais fácil abolir controles estatais criados por um exército de ocupação estrangeiro do que abolir todo um sistema de regulação que políticos nativos e eleitos democraticamente criaram em nome do "interesse público". É politicamente muito mais difícil efetuar ações econômicas corretas e sensatas quando, nas imortais palavras de Pogo Possum, "Conhecemos o inimigo e ele somos nós".

Hans F. Sennholz  (1922-2007) foi o primeiro aluno Ph.D de Mises nos Estados Unidos.  Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou.  Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997.  Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.

Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque

ALEMANHA NÃO É O PROBLEMA

A primeira fase do projeto de união europeia teve sucesso nos três eixos principais: fazer contraponto à predominância americana, consolidar uma zona única de comércio e usar a unificação econômica para evitar reincidência de conflitos históricos.


O problema começou na segunda fase, de união monetária. Ela estabeleceu limite de deficit nas contas nacionais logo desrespeitado pelas potências centrais, Alemanha e França. Isso abriu as portas ao desrespeito generalizado dos acordos, raiz dos problemas atuais.

Além disso, mercados e investidores cometeram o erro de ver a moeda comum como padronizadora de riscos macroeconômicos, pressupondo que o risco dos países do sul da Europa estava garantido pelos do norte. Os juros do sul europeu se aproximaram das taxas do norte, e aí começaram as diferenças.

Ao contrário de outros países do euro, a Alemanha fez reformas duras para elevar a competitividade e consolidar as finanças públicas, como o aumento das idades de aposentadoria e a redução de direitos trabalhistas.

Mas o problema de união monetária sem união fiscal, previdenciária, trabalhista, bancária e outras é que países de competitividade diferente passam a ter a mesma moeda.

Exemplo dos problemas decorrentes é comparar a inflação de Espanha e Alemanha. Com a mesma moeda, a inflação espanhola superou a alemã em todo o período, elevando os custos espanhóis em relação aos alemães e outros concorrentes. O deficit externo espanhol aumentou e foi financiado por empréstimos com a suposição de que as garantias seriam similares às alemãs. Não eram.

Quando chegou a hora da verdade, sem a possibilidade de seguir elevando a dívida, a Espanha entrou num círculo vicioso, com cortes de despesas e investimentos do governo e do setor privado seguidos de redução da atividade econômica, queda da receita pública e privada, diminuição do emprego.

Outros países que adotaram moedas de terceiros, como a Argentina com o dólar, saíram desse ciclo via desvalorização cambial, opção de custos econômicos e políticos imprevisíveis na zona do euro. A solução agora será mais difícil, o ajuste levará anos.

A solução "fácil", de ajuda da Alemanha sem as reformas estruturais, só aumentaria o problema, pois colocaria os alemães no mesmo caminho do endividamento excessivo.

O ponto positivo da união monetária é a existência de um banco central comum com poder de fogo para manter o sistema econômico funcional enquanto exige a adoção de reformas que aumentem a competitividade. É uma solução lenta e penosa, mas possível. Ou, parafraseando Churchill, é a pior das soluções, tirando todas as outras.

HENRIQUE MEIRELLES escreve aos domingos nesta coluna.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A ECONOMIA E OS PROBLEMAS ESSENCIAIS DA EXISTÊNCIA HUMANA


GrimSunset.jpgA ciência e a vida


Costuma-se censurar a ciência moderna por ela se abster de expressar juízos de valor. Essa neutralidade em relação ao valor (Wertfreiheit), dizem os críticos, de nada serve ao homem que vive e que age, pois o homem necessita de que lhe digam quais devem ser os seus objetivos. A ciência, se não puder responder a essa questão, é estéril.

Mas essa objeção não tem fundamento. A ciência não formula juízos de valor, mas provê o agente homem com informações necessárias para que ele faça a sua própria valoração. Ela só não pode ajudar o homem quando este pergunta se a vida vale ou não a pena ser vivida.

Essa questão, evidentemente, tem sido suscitada, e continuará sendo. Para que servem todos esses esforços e atividades humanas se, ao final de tudo, ninguém escapa da morte e da decomposição? O homem vive à sombra da morte. Quaisquer que tenham sido as suas realizações ao longo de sua peregrinação, um dia ela irá de morrer e abandonar tudo o que construiu. Cada momento pode ser o seu último momento. O futuro só contém uma certeza: a morte. Visto desse ângulo, todo esforço humano parece ter sido vão e fútil.

Além disso, a ação humana deveria ser considerada como algo inútil, mesmo quando julgada do ponto de vista dos objetivos que pretendia atingir. A ação humana jamais poderá produzir uma satisfação completa; serve apenas para reduzir parcial e temporariamente o desconforto. Logo que um desejo é satisfeito, surgem outros. A civilização, costuma-se dizer, torna as pessoas mais pobres porque multiplica as necessidades; desperta mais desejos do que os que consegue mitigar. Toda essa azáfama de homens diligentes e trabalhadores, toda essa pressa, esse dinamismo, esse alvoroço, não têm o menor sentido porque não traz felicidade e nem paz. Não se pode alcançar a paz de espírito e a serenidade pela ação e pela ambição temporal; a paz de espírito pode ser alcançada somente por meio da renúncia e da resignação. O único tipo de conduta adequada ao sábio é o recolhimento à inatividade de uma vida puramente contemplativa.

Entretanto, todos esses receios, dúvidas e escrúpulos são superados pela força irresistível da energia vital do homem. Certamente, o homem não poderá escapar da morte. Mas, no momento, está vivo; é a vida e não a morte que se apodera dele. Qualquer que seja o futuro que lhe tenha sido reservado, não pode fugir das necessidades da hora presente.

Enquanto tiver vida, o homem não pode deixar de obedecer ao seu impulso básico, o elã vital. É da natureza do homem procurar preservar e fortalecer a sua vida; procurar diminuir o seu desconforto; buscar o que possa ser chamado de felicidade. Em cada ser humano existe um id, um impulso instintivo inexplicável e não analisável, que é a fonte de todos os impulsos, a força que nos impele à vida e à ação, a ânsia original e permanente por uma existência mais plena e mais feliz. Existe enquanto o homem vive e só desaparece quando sua vida se extingue.

A razão humana está a serviço desse impulso vital. A função biológica da razão é preservar e promover a vida e adiar a sua extinção tanto quanto possível. O pensamento e a ação não conflitam com a natureza; ao contrário, são o principal traço da natureza humana. O que mais apropriadamente distingue o homem dos demais seres vivos é o fato de conscientemente lutar contra as forças hostis à sua vida.

Portanto, tudo o que se tem dito sobre o primado dos elementos irracionais é vazio de significado. No universo, cuja existência a nossa razão não pode explicar, analisar ou conceber, há um pequeno setor nos limites do qual o homem pode, numa certa medida, diminuir o seu desconforto. Esse setor, reservado ao homem, é o domínio da razão e da racionalidade, da ciência e da ação propositada. A sua mera existência, por mais exígua que seja, por deficientes que sejam os seus resultados, não permite que o homem se entregue à resignação e à letargia. Nenhuma sutileza filosófica poderá jamais impedir um indivíduo sadio de recorrer às ações que ele mesmo considera adequadas para satisfazer as suas necessidades.

Pode ser que no recôndito da alma humana exista o desejo de uma existência vegetativa, inativa e pacífica. Mas, no ser humano, esses desejos, quaisquer que possam ser, são superados pelo afã de agir e de melhorar as condições de sua própria vida. Quando prevalece o espírito de renúncia, o homem morre; ele não se transforma num vegetal.

É claro que a praxeologia e a economia não informam ao homem se ele deve preservar ou renunciar à vida. A vida em si e todas as forças desconhecidas que a originam e que a mantêm é um dado irredutível, e, como tal, fora do âmbito da ciência. O tema central de que se ocupa a praxeologia é exclusivamente a ação — a mais típica manifestação da vida humana.

A ciência econômica e os juízos de valor

Embora haja muitas pessoas que condenam a ciência econômica por sua neutralidade em relação a julgamentos de valor, há também os que a condenam por sua suposta indulgência em relação aos mesmos. Uns dizem que a economia deve necessariamente expressar juízos de valor e que, portanto, não é realmente uma ciência, uma vez que a ciência tem que ser indiferente a valores. Outros sustentam que a verdadeira ciência econômica deve e pode ser imparcial e que só os maus economistas infringem esse postulado.

A confusão existente na discussão desses problemas é de natureza semântica e se deve à forma inadequada de muitos economistas empregarem certos termos. Suponhamos que um economista investigue se uma medida a pode produzir um resultado p para cuja realização foi recomendada; e que chegue à conclusão de que a não resultará em p, mas em g, um efeito que mesmo os que propõem a medida a consideram indesejável. Se esse economista enunciar o resultado de sua investigação dizendo que a é uma medida "má", não estará formulando um juízo de valor. Estará apenas dizendo que, do ponto de vista dos que desejam atingir o resultado p, a medida a é inadequada.

É nesse sentido que os economistas que defendem o livre comércio condenam o protecionismo. Eles demonstram que a proteção, ao contrário do que pensam os seus adeptos, diminui, em vez de aumentar, a quantidade total de produtos e que, portanto, é indesejável do ponto de vista dos que preferem que a oferta de produtos seja a maior possível. Os economistas criticam as políticas em função dos resultados que pretendem atingir. Quando, por exemplo, um economista diz que uma política de salários mínimos é má, o que está dizendo é que os seus efeitos contrariam os propósitos dos que a recomendam.

É sob esse mesmo prisma que a praxeologia e a economia consideram o princípio fundamental da existência humana e da evolução social, qual seja, que a cooperação sob a divisão social do trabalho é um modo de ação mais eficiente do que o isolamento autárquico dos indivíduos. A praxeologia e a economia não dizem que o homem deveria cooperar pacificamente no contexto da sociedade; dizem apenas que o homem deve agir dessa maneira se deseja atingir resultados que de outra forma não conseguiria. A obediência às regras morais necessárias ao estabelecimento, à preservação e à intensificação da cooperação social não é considerada um sacrifício a uma entidade mítica qualquer, mas o recurso ao meio mais eficiente, como se fosse um preço a ser pago para receber em troca algo a que se dá mais valor.

Todos os dogmatismos e todas as escolas antiliberais uniram as suas forças para impedir que as doutrinas heteronômicas do intuicionismo e dos mandamentos revelados fossem substituídas por uma ética autônoma, racionalista e voluntarista. Todas elas condenam a filosofia utilitarista pela impiedosa austeridade de sua descrição e análise da natureza humana e das motivações últimas da ação humana. Apenas um ponto precisa ser mencionado, porque, de um lado, representa a essência da doutrina de todos os mistificadores contemporâneos e, de outro, oferece ao intelectual comum uma bem-vinda desculpa para não ter que se submeter à incômoda disciplina dos estudos econômicos.

Dizem esses críticos que a economia, no seu apriorismo racionalista, pressupõe que os homens visem unicamente, ou pelo menos primordialmente, ao bem-estar material. Mas, na realidade, os homens preferem os objetivos irracionais aos objetivos racionais. São guiados mais pela necessidade de atender a mitos e a ideais do que pelo desejo de ter um melhor padrão de vida.

Em resposta, o que a economia tem a dizer é o seguinte:


1. A economia não pressupõe, e nem considera um postulado, que os homens visem unicamente, ou pelo menos primordialmente, ao que é denominado de bem-estar material. A economia, enquanto ramo da ciência geral que estuda a ação humana, lida com a ação humana, isto é, com a ação propositada do homem no sentido de atingir os objetivos escolhidos, quaisquer que sejam esses objetivos. Aplicar aos fins escolhidos o conceito de racional ou irracional não faz sentido. Podemos qualificar de irracional o dado irredutível, isto é, aquelas coisas que o nosso pensamento não pode analisar e nem decompor em outros dados irredutíveis. Nesse sentido, todos os objetivos escolhidos pelo homem são, no fundo, irracionais. Não é mais nem menos racional desejar a riqueza como o fez Creso ou aspirar à pobreza como o faz um monge budista.

2. O que os críticos têm em mente ao empregar o termo objetivos racionais é o desejo de maior bem-estar material e de melhor padrão de vida. Para saber se a sua afirmativa — de que os homens em geral e os nossos contemporâneos em particular estão mais interessados em mitos e sonhos do que em melhorar o seu padrão de vida — é ou não correta, basta verificar os fatos. Não há necessidade de muita inteligência para saber a resposta certa, e não precisamos aprofundar a discussão. Mesmo porque a economia nada tem a dizer a favor ou contra os mitos em geral; mantém a sua neutralidade em relação à doutrina sindical, à doutrina de expansão da oferta monetária, e a todas as outras doutrinas, na medida em que os seus partidários as considerem e as defendam como mitos. A economia só lida com essas doutrinas na medida em que sejam consideradas como um meio para atingir determinados fins. A economia não afirma que o sindicalismo trabalhista seja um mau mito; afirma apenas que é um meio inadequado para aumentar os salários dos que desejam ter salários maiores. Compete a cada indivíduo decidir se prefere seguir o mito ou se prefere evitar as consequências inevitáveis que advirão de sua realização.

Nesse sentido, podemos dizer que a economia é apolítica ou não política, embora seja a base de todo tipo de ação política. Podemos ainda dizer que a economia é perfeitamente neutra em relação a todos os julgamentos de valor, uma vez que ela se refere sempre aos meios e nunca à escolha dos objetivos últimos que o homem pretende atingir.

O conhecimento econômico e a ação humana

A liberdade de o homem escolher e agir sofre restrições de três tipos. Em primeiro lugar estão as leis físicas a cujas inexoráveis determinações o homem tem que se submeter se quiser permanecer vivo. Em segundo lugar estão as características e aptidões congênitas de cada indivíduo e sua interrelação com o meio ambiente; tais circunstâncias, indubitavelmente, influenciam tanto a escolha dos fins e a dos meios, embora nosso conhecimento de como isso se processa seja bastante impreciso. Finalmente, existe a regularidade das relações de causa e efeito entre os meios utilizados e os fins alcançados; ou seja, as leis praxeológicas, que são distintas das leis físicas e fisiológicas.

A elucidação e o exame formal dessa terceira categoria de leis do universo é o objeto de estudo da praxeologia e do seu ramo mais bem desenvolvido até o momento, a economia.

O conhecimento acumulado pela ciência econômica é um elemento essencial da civilização humana; é a base sobre a qual se assentam o industrialismo moderno, bem como todas as conquistas morais, intelectuais, tecnológicas e terapêuticas dos últimos séculos. Cabe aos homens decidirem se preferem usar adequadamente esse rico acervo de conhecimento que lhes foi legado ou se preferem deixá-lo de lado. Mas, se não conseguirem usá-lo da melhor maneira possível ou se menosprezarem os seus ensinamentos e as suas advertências, não estarão invalidando a ciência econômica; estarão aniquilando a sociedade e a raça humana.

Ludwig von Mises  foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".

A TEORIA POLÍTICA DA CORRUPÇÃO


Nos idos de 2005, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos formulou o discurso adotado pelo PT face ao escândalo do mensalão. O noticiário, ensinou, constituiria uma tentativa de “golpe das elites” contra o “governo popular” de Lula. Ano passado, o autor da tese assumiu a presidência da Casa de Rui Barbosa, cargo de confiança subordinado ao Ministério da Cultura. É nessa condição que, em entrevista ao jornal “Valor” (21/9), ele reativa sua linha de montagem de discursos “científicos” adaptados às conveniências do lulismo. Dessa vez, para crismar o julgamento do mensalão como “julgamento de exceção” conduzido por uma corte “pré-democrática”.

A entrevista diz alguma coisa sobre o jornalismo do “Valor”. As perguntas não são indagações, no sentido preciso do termo, mas introduções propícias à exposição da tese do entrevistado — como se (oh, não, impossível!) jornalista e intelectual engajado preparassem o texto a quatro mãos. Mas a peça diz uma coisa mais importante sobre o tema do compromisso entre os intelectuais e o poder: o discurso científico sucumbe no pântano da fraude quando é rebaixado ao estatuto de ferramenta política de ocasião. Os ministros do STF narraram uma história de apropriação criminosa de recursos públicos e de fabricação de empréstimos fraudulentos pela direção do PT, que se utilizou para tanto das prerrogativas de quem detém o poder de Estado. Wanderley Guilherme, contudo, transita em universo paralelo, circundando o tema da origem do dinheiro e repetindo a versão desmoralizada da defesa. “O que os ministros expuseram até agora é a intimidade do caixa 2 de campanhas eleitorais (...). Isso eles se recusam a discutir, como se o que eles estão julgando não fosse algo comum (...), como se fosse algum projeto maligno.”

Wanderley Guilherme não parece incomodado com a condenação dos operadores financeiros do esquema, mas interpreta os veredictos dos ministros contra os operadores políticos (ou seja: os dirigentes do PT) como frutos de um “desprezo aristocrático” à “política profissional”. O dinheiro desviado serviu para construir uma coalizão governista destituída de um mínimo de consenso político, explicou a maioria do STF. O cientista político, porém, atribui o diagnóstico a uma natureza “pré-democrática” de juízes incapazes de compreender tanto os defeitos da legislação eleitoral brasileira quanto o funcionamento dos “sistemas de representação proporcional”, que “são governados por coalizões das mais variadas”.

O núcleo do argumento serviria para a defesa de todo e qualquer “mensalão”. Os acusados tucanos do “mensalão mineiro” e os acusados do DEM do “mensalão de Brasília” estão tão amparados quanto os petistas por uma concepção da “política profissional” que invoca a democracia para justificar a fraude do sistema de representação popular e qualifica como aristocráticos os esforços para separar a esfera pública da esfera privada. A teoria política da corrupção formulada pelo intelectual deve ser lida como um manifesto em defesa de privilégios de impunidade judicial do conjunto da elite política brasileira.

Mas, obviamente, o argumento perde a força persuasiva se for lido como aquilo que, de fato, é. Para ocultar seu sentido, conferindo à obra uma coloração “progressista”, Wanderley Guilherme acrescenta-lhe uma camada de tinta fresca. A insurreição “aristocrática” do STF contra a “política democrática” derivaria da rejeição a uma novidade histórica: a irrupção da “política popular de mobilização”, representada pelo PT. A corte suprema estaria “reagindo à democracia em ação” por meio de um “julgamento de exceção”, um evento singular que “jamais vai acontecer de novo”.

É nesse ponto do raciocínio que a teoria política da corrupção se transforma na corrupção da teoria política. Uma regra inviolável do discurso científico, explicou Karl Popper, é a exigência de consistência interna. Um discurso só tem estatuto científico se está aberto a argumentos racionais contrários.

Quando apela à profecia de que os tribunais não julgarão outros casos com base na jurisprudência estabelecida nos veredictos do mensalão, Wanderley Guilherme embrenha-se pela vereda da fraude científica. A sua hipótese sobre o futuro — que, logicamente, não pode ser confirmada ou falseada — impede a aplicação do teste de Popper.

Há duas leituras contrastantes, ambas coerentes, sobre o “mensalão do PT”. A primeira acusa o partido de agir “como os outros”, entregando-se às práticas convencionais da tradição patrimonial brasileira e levando-as a consequências extremas. O diagnóstico, uma “crítica pela esquerda”, interpreta o extenso arco de alianças organizado pelo lulismo como fonte de corrupção e atestado da falência da natureza transformadora do PT. A segunda acusa o partido de operar, sob o impulso de um projeto de poder autoritário, com a finalidade de quebrar os contrapesos parlamentares ao Executivo e perpetuar-se no governo. A “crítica pela direita” distingue o “mensalão do PT” de outros casos de corrupção política, enfatizando o caráter centralizado e as metas de longo prazo do conjunto da operação.

A leitura corrompida de Wanderley Guilherme forma uma curiosa alternativa às duas interpretações. Seu núcleo é uma celebração da corrupção inerente à política patrimonial tradicional, que seria a “política profissional” nos “sistemas de representação proporcional”. Seu verniz aparente, por outro lado, é um elogio exclusivo da corrupção petista, que expressaria a “irrupção da política de mobilização popular” e a “democracia em ação”. Na fronteira onde o pensamento acadêmico se conecta com a empulhação militante, o paradoxo pode até ser batizado como dialética. Contudo, mais apropriado é reconhecê-lo como um reflexo especular da fotografia na qual Paulo Maluf e Lula da Silva reelaboram os significados dos termos “direita” e “esquerda”.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo


O PENSAMENTO ECONÔMICO NA GRÉCIA ANTIGA


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A odisséia intelectual que gerou as bases para a civilização ocidental começou na Grécia Antiga. Infelizmente, os pensadores gregos não foram capazes de compreender corretamente os princípios essenciais sobre o que é uma ordem espontânea de mercado e nem o processo dinâmico de cooperação social que abrange esses princípios. Ao passo que devemos reconhecer as importantes contribuições gregas para as áreas da epistemologia, da lógica, da ética e até mesmo da concepção do direito natural, é necessário também reconhecermos que os gregos fracassaram miseravelmente ao não verem a necessidade do desenvolvimento de uma disciplina, a ciência econômica, dedicada ao estudo do processo espontâneo de cooperação social que forma o mercado.

O que é ainda pior é que, quando os primeiros intelectuais surgiram, surgiram também a simbiose e a cumplicidade entre pensadores e governantes. Desde o início, a grande maioria dos intelectuais abraçou o estatismo e sistematicamente subestimou, e até mesmo criticou e denegriu, a sociedade do comércio, das trocas voluntárias e do trabalho qualificado que prosperava ao redor deles.

Sei que pode ser muito exagerado querer que, desde o nascimento do conhecimento filosófico e científico, os gregos compreendessem o básico da economia política, uma disciplina que ainda está entre as mais novas dentre todas as ciências e que busca estudar uma realidade tão abstrata e difícil de entender quanto a ordem espontânea do mercado. No entanto, é válido observar que os filósofos gregos, como os intelectuais de hoje, não puderam evitar a vaidade pseudocientífica de se acreditarem plenamente qualificados para impor seus pontos de vista sobre seus conterrâneos por meio da sistemática coerção governamental. A história se repete continuamente, e até hoje não houve grandes progressos nesse quesito.

O contexto político-histórico

Existe um paralelo não somente no que diz respeito às simpatias estatistas dos pensadores, mas também no que diz respeito à rivalidade entre duas noções radicalmente opostas sobre governo e liberdade individual. Com efeito, ao longo de grande parte do século XX, o mundo e as sociedades em geral estavam divididos: de um lado, havia a visão liberal-clássica, defensora do governo limitado, do respeito à sociedade civil, da liberdade individual e da responsabilidade (visão esta representada, ao menos em termos relativos, pela sociedade americana); e, de outro lado, havia o socialismo vigente, baseado na crença de que o estado deveria impor as mais variadas utopias sobre a sociedade civil por meio da força (visão esta representada durante grande parte do século XX pela antiga União Soviética). Na Grécia Antiga, podemos também identificar dois pólos igualmente opostos.

Havia a relativamente mais liberal e democrática cidade de Atenas, a qual foi capaz de acomodar um próspero conjunto de empreendimentos e trabalhos qualificados dentro de uma ordem espontânea de cooperação social baseada no respeito pelas leis e na igualdade perante elas. Em contraste, havia a cidade de Esparta, a qual era profundamente militarista e na qual a liberdade individual praticamente não existia devido à crença de que todos os recursos deveriam estar subordinados ao estado.

É incrível que os mais eminentes e distintos pensadores e filósofos atenienses tenham impiedosamente atacado e depreciado a ordem comercial que os rodeava e os sustentava ao mesmo tempo em que não se furtavam a enaltecer o totalitarismo estatista que Esparta representava. É como se os intelectuais daquela época, assim como os de hoje, não suportassem o fato de que, embora considerados sábios, fossem incapazes de colher em termos econômicos os frutos daquilo que consideravam ser sua própria importância. Igualmente, eles foram incapazes de resistir à tentação de impor suas próprias ideias acerca do bem e do mal sobre seus conterrâneos, e eles continuamente almejavam fazer isso por meio do poder coercivo do estado.

O reconhecimento desta verdade não deve nos levar à errônea crença de que a relativamente mais livres pólisnão eram também vítimas do estatismo. Por exemplo, vários políticos não hesitavam em corroborar as políticas imperialistas atenienses e até mesmo, como fez Péricles no século V a.C., em se apropriar indevidamente de fundos públicos para empreender obras colossais.[1] Vários políticos também se esforçavam incansavelmente em tentar convencer os cidadãos de que o importante era se subjugar aos desejos do estado; de que o importante era perguntar não o que Atenas poderia fazer por eles, mas sim o que eles poderiam fazer por Atenas.

No que mais, as pólis relativamente mais livres ainda estavam sujeitas a um ciclo político que, por mais estranho e paradoxal que pareça, continua a afetar as sociedades atuais. Com efeito, períodos de grandes liberdades civis baseadas no cumprimento de leis substanciais eram invariavelmente seguidos por crises: as cidades quedavam vítimas da demagogia e das inquietações incitadas por pequenos grupos que tinham a intenção de explorar determinados grupos sociais em favor de outros supostamente maiores e menos privilegiados. Consideráveis tensões sociais, econômicas e políticas eram o resultado, e no final levavam a severos conflitos e distúrbios civis, os quais, por sua vez, eram utilizados para justificar novos aumentos no poder do estado, personificado em cada circunstância histórica por inescrupulosos líderes populistas que inevitavelmente insistiam em serem chamados de "salvadores da pátria".

Algumas tentativas embrionárias de análise econômica

É muito difícil saber os pensamentos exatos dos primeiros filósofos gregos, pois os documentos remanescentes são poucos e muito fragmentados. Não obstante, há evidências de alguns primórdios muito animadores, os quais, caso tivessem sido continuados, poderiam abrir caminho para uma incipiente formulação da teoria da ordem espontânea do mercado.

Por exemplo, ainda no século VIII a.C., Hesíodo indica em seus poemas que a escassez está sempre presente nas ações humanas, sendo ela o motivo por que devemos alocar de maneira eficiente os recursos disponíveis. Adicionalmente, ele menciona o tipo de concorrência que a emulação desencadeia, a qual ele chama de "bom conflito", considerando-a como uma vital força empreendedorial que frequentemente permite a superação dos grandes problemas trazidos pela escassez de recursos. No que mais, Hesíodo afirmava que a concorrência só era possível onde houvesse respeito pela justiça e pelas leis, o que estimula a ordem e a harmonia na sociedade. Neste sentido, Hesíodo — e até certo ponto, Demócrito de Abdera — estava muito mais próximo da correta noção da ordem espontânea do mercado de que Sócrates, Platão e até mesmo do que o próprio Aristóteles mais tarde alcançaria.

Após Hesíodo, temos de nos concentrar um pouco nos filósofos sofistas. Apesar da má reputação que usufruem atualmente, eles certamente eram muito mais libertários, ao menos em termos relativos, do que os grandes filósofos que vieram depois. Com efeito, os sofistas eram simpáticos ao comércio, à busca pelo lucro e ao espírito empreendedorial, e receavam o poder absoluto e centralizado dos governos das cidades-estados. Embora tenhamos de admitir que eles ocasionalmente se entregavam a um relativismo similar àquele que os pós-modernistas de hoje endossam, os sofistas foram, de longe, superiores aos pensadores socráticos que surgiriam mais tarde no que concerne à defesa da liberdade individual contra o governo. Finalmente, temos de observar a maneira na qual a vaidade pseudocientífica tipicamente demonstrada pela maioria dos intelectuais atuais em favor do estatismo levou ao sistemático descrédito dos sofistas. Sempre considerados politicamente "incorretos", eles são rotulados como pensadores ilógicos e desonestos.

Subsequentemente, outros pensadores mais modernos, como Protágoras de Abdera — da mesma época de Péricles—, teorizaram sobre a importância da cooperação social, e insistiram que "o homem é a medida de todas as coisas". Levada à sua conclusão lógica, filosoficamente falando, esta noção pode ter dado origem ao surgimento natural do subjetivismo e do individualismo metodológico, os quais são pontos de partida essenciais a qualquer análise econômica de processos sociais. Da mesma maneira, o mestre historiador Tucídides aparentava possuir uma concepção da natureza espontânea e evolucionária da ordem social muito mais acurada do que muitos de seus contemporâneos. Em seu registro da Oração Fúnebre de Péricles, Tucídides enfatizou melhor do que qualquer outro pensador as qualidades relativamente mais liberais-clássicas[2] da sociedade ateniense.

Finalmente, devemos mencionar Demóstenes, o grande defensor mundial da liberdade contra o despotismo do tirano Filipe II da Macedônia. Não é nenhuma coincidência que Demóstenes tenha compreendido a essência consuetudinária e evolucionária das leis, e que, por isso, tenha sido capaz de superar a dicotomia reducionista que os gregos haviam estabelecido entre o mundo físico (natural) e o mundo supostamente artificial de leis e convenções. Com efeito, no geral, os gregos foram incapazes de entender que o cosmo natural deve incluir a ordem espontânea do mercado e as relações sociais que são o objeto de estudo da economia; os gregos acreditavam que qualquer coisa relacionada à sociedade sempre era artificial e deliberadamente criada por seus organizadores (os quais eles esperavam que fossem ditadores-filósofos como aqueles imaginados por Platão).

O ponto de vista subjetivista, em torno do qual gira toda a moderna ciência econômica, pode ser encontrado, por exemplo, na definição de riqueza oferecida por Xenofonte em sua obra Oeconomicus, na qual ele define propriedade como sendo "aquelas coisas que o detentor deve considerar vantajosas para os propósitos de sua vida". Além disso, Xenofonte pode ser considerado o primeiro erudito a introduzir o conceito da eficiência dinâmica — mais especificamente, o aumento do patrimônio de uma pessoa por meio da criatividade empreendedorial (junto com o conceito de eficiência estática, o qual se baseia em se evitar o desperdício de recursos e o qual Xenofonte acredita poder ser alcançado ao se manter o patrimônio da família em perfeito estado).

De qualquer forma, apesar deste início promissor e apesar das grandes contribuições em outras áreas do pensamento filosófico e científico (e talvez exatamente por causa destas contribuições), os filósofos gregos no geral caíram na arrogância fatal da pseudociência intelectual. Assim, eles se mostraram completamente alheios quando se tratava de reconhecer o mercado e a ordem social evolucionária; consequentemente, se entregaram ao estatismo; tornou-se "politicamente correto" desdenhar a atividade comercial e mercantil de seus contemporâneos e criticar impiedosamente os pensadores relativamente mais liberais-clássicos (fossem eles sofistas ou não).

Os exemplos particularmente alarmantes de Sócrates, Platão e até mesmo Aristóteles

Da perspectiva do nosso tema, a principal característica compartilhada por Sócrates, Platão e Aristóteles — os três maiores filósofos da Grécia antiga — era sua incapacidade de compreender a natureza do próspero e vigoroso processo mercantil e comercial que estava ocorrendo entre as diferentes cidades ou pólis (tanto na própria Grécia quanto na Ásia Menor e no resto do Mediterrâneo). Quando falavam sobre a economia, estes filósofos se baseavam em seus instintos, e não na observação e na razão. Eles escarneciam o trabalho dos artífices e comerciantes, e menosprezavam a importância de seus disciplinados esforços diários. 

Por conseguinte, foi por meio destes filósofos que a tradicional oposição dos intelectuais a qualquer coisa que envolva comércio, indústria e lucro empreendedorial começou. Esta "mentalidade anticapitalista" viria a se tornar um tema constante entre os pensadores "iluminados" ao longo da história intelectual da humanidade, desde aquela época até hoje.

O filósofo Sócrates serve de ilustração paradigmática desta oposição intelectual a qualquer coisa que envolva o lucro empreendedorial, a indústria ou o mercado. Vale observar o tom arrogante e a falsa modéstia demonstrada por Sócrates em seu discurso de defesa perante o júri que o condenava, um discurso registrado por Platão. Não há nenhuma dúvida de que Sócrates exerceu uma influência negativa sobre a juventude da cidade de Atenas, quem ele atraiu ao ridicularizar o trabalho de toda uma vida de seus pais, que abnegadamente dedicaram seus esforços diários e honestos às áreas do comércio, do artesanato e do mercado em geral.

Sócrates acreditava que o objetivo ideal da vida estava na busca pela "virtude", entendida como um desdém pela riqueza material e, especificamente, pelo lucro empreendedorial. Sócrates aproveitava todas as oportunidades para ostentar a sua pobreza e idealizar as supostas virtudes do estado totalitário de Esparta, o qual, àquela época, representava ideais opostos àqueles de Atenas. Com efeito, em seu discurso de defesa, ele ultrajou o júri ao proclamar que seus serviços prestados ao estado de Atenas eram tantos que, em vez de ser julgado, ele deveria receber uma pensão vitalícia paga por todos (na forma de alimentos financiados pela cidade, e pela duração de toda a sua vida!).

O que é ainda pior é que a estatolatria de Sócrates era tão obsessiva que o levou a confundir as leis oficiais instituídas pela cidade-estado com as leis naturais. Ele acreditava que as pessoas deveriam obedecer a todas as leis oficiais estatuídas pelo governo, mesmo que elas fossem contra naturam. E foi assim que ele criou as fundações filosóficas para o positivismo jurídico. Todos os tipos de tirania surgidas na história após Sócrates se basearam no positivismo jurídico.

Em suma, do ponto de vista da teoria científica dos processos de mercado, a influência de Sócrates foi definitivamente desastrosa. Foi ele quem iniciou e promoveu a tradição anticapitalista dos intelectuais. Ele demonstrou ter uma total falta de compreensão a respeito da ordem espontânea do mercado, a qual era exatamente a fonte da prosperidade ateniense que permitia a Sócrates e ao resto dos filósofos de sua escola o luxo de não ter de trabalhar e, consequentemente, de poder se dedicar integralmente à filosofia. E em troca deste ambiente de relativa liberdade e prosperidade, Atenas recebia de Sócrates apenas desprezo e incompreensão.

Finalmente, vale mencionar a mais do que egocêntrica auto-imolação deste filósofo. Ele próprio reconheceu que, dadas a sua idade e suas doenças, ele pouco poderia ter feito nos poucos anos que lhe restariam caso tivesse aceitado o exílio que seus juízes e carrascos lhe haviam oferecido de bandeja. Assim, ele decidiu entrar para os anais da história fazendo-se de vítima de um sistema supostamente opressivo, sendo que sua morte foi na realidade um suicídio oportuno e interesseiro concebido por uma mente privilegiada e arrogante. Com efeito, ele também procurou utilizar sua morte para dar legitimidade à veneração de um estatismo opressivo e, ao mesmo tempo, levar má reputação ao individualismo liberal-clássico.

Com um professor como Sócrates, não é surpresa alguma que Platão tenha intensificado os erros de seu mestre. Platão forneceu uma extremamente perigosa justificativa filosófica para o mais desumano estatismo, a qual foi direta ou indiretamente absorvida por todos os tiranos que vieram a oprimir a humanidade desde então. Platão foi a mais pura personificação do mais grave pecado intelectual que um cientista pode cometer: ter a "arrogância fatal" de se crer mais sábio e mais esperto do que seus conterrâneos e, com isso, autorizar que suas ideias sejam impostas a eles por meio da força.

Típicos de Platão eram seus ataques à propriedade privada, sua louvação à propriedade comunal, seu desprezo pela instituição da família tradicional, seu pervertido conceito de justiça, sua estatista e nominalista teoria do dinheiro e, em suma, sua exortação dos ideais do estado totalitário de Esparta. Todas estas são características típicas do intelectual que se acredita superior e mais sábio do que todo o resto da humanidade, mas que, não obstante, é ignorante em relação a até mesmo os mais essenciais princípios da ordem espontânea do mercado, a qual torna possível a civilização.

No que mais, Platão defendia os interesses do estado contra os interesses dos indivíduos, e chegou até mesmo a ir ao extremo de tentar colocar em prática seus ideais utópicos acerca do estado. Inevitavelmente, ele e seus discípulos fracassaram em todas as suas tentativas em Siracusa e no resto da Grécia.

Finalmente, mesmo no campo da epistemologia, as contribuições de Platão foram letais no longo prazo. Seu suposto essencialismo gerou, sorrateiramente, a forma mais crua de historicismo positivista: na esfera social, ele tentou deduzir quais seriam as 'essências conceituais' do estudo da história, desta forma criando as bases para a filosofia histórico-positivista que tantos danos causou à humanidade ao atravancar o desenvolvimento das ciências sociais até o presente momento.

Em suma, com Platão, aquele ideal intelectual do cientista arrogante que tenta se tornar um "engenheiro social" para moldar a sociedade a seu bel-prazer ganhou aceitação. Esta abordagem foi ainda mais reforçada pela escola do matemático Pitágoras, que acreditava que a virtude podia ser encontrada na "igualdade" e no "equilíbrio" que ele continuamente observava em suas fórmulas e em seus princípios matemáticos, os quais ele sentia que deveriam ser extrapolados para toda a sociedade.

Embora Aristóteles não tenha ido aos extremos socialistas visitados por Platão, ele também foi incapaz — e desanimadoramente — de entender em termos científicos a ordem espontânea do mercado. Um filósofo a serviço do pior ditador de sua época (Filipe II da Macedônia, que colocou um fim à sutil rede de cidades-estados independentes que formavam o antigo mundo grego), Aristóteles foi o tutor particular do tirano e temerário déspota Alexandre, o Grande — filho de Filipe II. Não é surpresa nenhuma que Aristóteles não tenha conseguido escapar do mesmo pecado da arrogância intelectual que havia acometido Sócrates e, especialmente, Platão: Aristóteles também sentia nostalgia pelo estatismo de Esparta e por tudo que o totalitarismo daquela cidade-estado representava.

É verdade que ele não foi aos extremos de Platão, que ele defendia a propriedade privada e que ele até mesmo havia intuído a teoria do valor subjetivo ao fazer sua distinção entre o "valor de uso" e o "valor de troca" — ou o preço das coisas. No entanto, ele condenava a usura e jamais entendeu a crucial importância dos juros como sendo um preço de mercado que coordena o comportamento dos consumidores, dos poupadores e dos investidores. Sua teoria sobre a justiça é extremamente confusa, pois faz uma distinção entre duas formas, a justiça "distributiva" e a justiça "comutativa", as quais têm pouco ou nada a ver com a adaptação do comportamento humano aos princípios gerais morais e legais. Dado que elas se baseiam em pretensas equivalências, estas duas formas de justiça imaginadas por Aristóteles serviram apenar para confundir o pensamento humano acerca de um tópico extremamente importante, confusão essa que perdura até os dias atuais.

No que mais, uma ilustração quase que perfeita de sua incapacidade de compreender a ordem espontânea e evolucionária do mercado pode ser encontrada em sua convicção de que uma pólis com mais de 100.000 habitantes jamais poderia sobreviver, pois seu governo seria incapaz de organizá-la. Aristóteles via a pólisunicamente como um órgão auto-suficiente organizado desde cima (autarkia), e não como uma manifestação histórica do processo espontâneo de cooperação social conduzido por seres humanos de carne e osso dotados de uma inata capacidade empreendedorial. Finalmente, Aristóteles seguiu a tradição socrática de menosprezar o trabalho e o lucro empreendedorial, os quais, de maneira descentralizada e anônima, sustentavam o avançado estágio de civilização que era exatamente o que permitia que ele e o resto dos filósofos sobrevivessem.

Aristóteles também foi incapaz de explicar os motivos por que existiam as trocas comerciais. Ele erroneamente concluiu que, quando elas ocorrem, é porque há uma "reciprocidade proporcional" (uma ideia errada que Marx viria a utilizar mais tarde para formar as bases da falsa teoria do valor-trabalho e de seu corolário, a teoria marxista de exploração). Aristóteles desconfiava da riqueza (ploutos), era expressamente crítico quanto ao lucro empreendedorial[3], e desprezava e repudiava completamente os comerciantes.[4] Ele também condenava os juros (tokos), os quais ele considerava ser uma injustificada geração de dinheiro por meio do próprio dinheiro.

Adicionalmente, sua incapacidade de compreender o surgimento espontâneo das instituições o levou a afirmar que o dinheiro era uma deliberada invenção humana — e não, como é o fato, o resultado de um processo evolucionário. Aristóteles também não conseguiu entender por que a demanda por dinheiro nunca é ilimitada. Particularmente, quando levamos em conta o brilhantismo intelectual de Aristóteles, todos estes erros que ele cometeu contrastam acentuadamente com suas grandes contribuições para as outras ciências, especialmente para o campo da epistemoglogia.

É verdade que Aristóteles compartilhou os erros cometidos por Sócrates e Platão, uma vez que ele não entendeu o direito consuetudinário, nem o mercado, e nem o resto das instituições sociais como sendo ordens espontâneas. Tampouco foi ele capaz de distinguir entre sociedade civil e estado (uma distinção que os Estóicos Romanos entenderiam perfeitamente dois séculos depois). Ainda assim, no campo da epistemologia, suas contribuições foram grandiosas. Sua distinção entre potencialidade e realidade (a enteléquia) viria a ser aplicada séculos depois para explicar a evolução da natureza humana. Seu conceito de essências formais e suas concretizações especificamente materiais viria a servir de base para a distinção epistemológica entre teoria e história, permitindo sua adequada incorporação.

Mais perto do campo da ciência econômica, temos de reconhecer a introdução aristotélica ao conceito subjetivo de valor, especificamente sua distinção entre o conceito de valor de uso (subjetivo) e o conceito de valor de troca (o preço de mercado em unidades monetárias). Isso, até certo ponto, forneceu as bases para o elo entre o mundo interior e subjetivo das valorações e o mundo exterior e objetivo dos cálculos numéricos, que é o que torna possível o cálculo econômico. 

Finalmente, em contraste ao estatismo socialista de Sócrates, e particularmente ao de Platão, Aristóteles construiu uma defesa racional da propriedade privada, uma defesa que, embora tépida e incompleta, viria a constituir, durante muitos séculos, a mais bem conhecida base filosófica para a propriedade privada.

Por último, é muito interessante observar que, durante a mesma era em que o pensamento clássico grego estava sendo forjado (do século VI ao século IV a.C.), a China antiga vivenciou o surgimento de três grandes correntes de pensamento: a dos chamados "legalistas" (que defendiam o estado centralizado), a dos confucionistas (que o toleravam) e a dos taoístas, que possuía inclinações bastante liberais e que é de extremo interesse para os historiadores do pensamento econômico. Veja mais detalhes neste artigo.

Em profundo contraste às visões dos filósofos gregos e àquelas do resto dos intelectuais ocidentais até os dias de hoje, os taoístas chineses sempre defenderam a liberdade individual e o laissez-faire ao mesmo tempo em que atacavam o uso sistemático e coercivo da violência estatal. No que tange à liberdade, os chineses foram muito mais importantes do que os gregos.

[1] Dentre elas o Partenon, que foi construído utilizando recursos que haviam sido penosamente acumulados por diferentes pólis para fins defensivos. 
[2] Aqui, "liberal-clássico" significa a filosofia da liberdade como os liberais clássicos a entenderiam.
[3] Política, Livro 7.
[4] Política, Livros 3 e 4.

Jesús Huerta de Soto 
professor de economia da Universidade Rey Juan Carlos, em Madri, é o principal economista austríaco da Espanha. Autor, tradutor, editor e professor, ele também é um dos mais ativos embaixadores do capitalismo libertário ao redor do mundo. Ele é o autor da monumental obra Money, Bank Credit, and Economic Cycles.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

SACRIFICANDO OS CONSUMIDORES


“Quando um produto chega até nós a partir do estrangeiro, e quando podemos adquiri-lo por menos trabalho do que se produzíssemos nós mesmos, a diferença é um presente gratuito que é conferido a nós.” (Bastiat)

Em Economic Sophisms, o francês Frédéric Bastiat (1801-1850) expõe as incoerências do protecionismo comercial. As barreiras protecionistas sempre representam um privilégio a poucos produtores à custa dos consumidores. Selecionei três casos analisdos pelo economista.

No primeiro caso, Bastiat simula uma petição dos fabricantes de velas, lanternas e lâmpadas, assim como dos produtores de petróleo, resina e álcool, em defesa do protecionismo de seus mercados. Eles alegam que estão sofrendo uma competição injusta, já que seu rival pode trabalhar sob circunstâncias bem superiores que as deles, inundando assim o mercado doméstico com um produto concorrente de preço inacreditavelmente mais baixo.

O rival estrangeiro é o sol, que declarou guerra sem misericórdia aos fabricantes domésticos de substitutos de iluminação natural. A petição pede que o governo bloqueie o máximo possível o acesso à luz natural, criando uma necessidade por iluminação artificial, estimulando a indústria doméstica.

Ora, a justificativa para não seguir tal pedido seria o custo que os consumidores teriam que arcar? Mas sempre que o governo cria barreiras que dificultam o acesso aos bens importados mais baratos, não ocorre o mesmo tipo de sacrifício dos consumidores, para beneficiar alguns poucos produtores? A desculpa de que o protecionismo visa ao encorajamento da indústria nacional e aumento do emprego não se aplica da mesma forma nesse caso? Não alegam que o consumidor e o produtor são a mesma pessoa, e que se um fabricante local lucra com o protecionismo, isso terá uma contrapartida no consumo maior de outros produtos, beneficiando os demais setores? E o mesmo “argumento” não é válido no caso da iluminação artificial?

Não condenam a competição como injusta quando recursos naturais favorecem os produtores estrangeiros, justificando assim a proteção? E qual seria a diferença de parte do custo de proteção do importado ser de graça devido a natureza, e seu custo total ser nulo, como no caso do sol? Como pode fazer sentido proteger produtores domésticos quando uma parte dos custos dos importados tem vantagem natural, e não proteger quando sua totalidade possui esta vantagem?

No segundo caso, Bastiat diz ter chegado a uma imensa descoberta, de como reduzir a diferença entre o preço dos produtos nos locais onde são produzidos e onde são consumidos. Apesar de empresários quebrarem a cabeça pensando nisso, buscando a redução dos custos de transporte, principal barreira natural para a importação ao mesmo preço, o governo, em contrapartida, cria barreiras artificiais do outro lado, muitas vezes anulando o efeito das inovações no transporte.

A solução “mágica” de Bastiat: redução das tarifas! O economista questiona como pode ter sido possível pensarem em algo tão fantástico como se gastar milhões com o propósito de remoção dos obstáculos naturais entre os países, como a construção de pontes e ferrovias, ao mesmo tempo que se gasta outros tantos milhões com o propósito de substituição dos obstáculos artificiais que possuem exatamente o mesmo efeito. O resultado é que o obstáculo criado – as tarifas protecionistas – neutraliza o obstáculo removido, e as coisas continuam como antes, sendo a única diferença uma despesa dobrada pela operação toda.

O terceiro e último caso trata da reciprocidade. Muitos alegam que o livre comércio tem que ser recíproco para ser benéfico. Bastiat afirma que pessoas com tal mentalidade são protecionistas em princípio, mesmo que não reconheçam, e são apenas mais inconsistentes que os protecionistas puros, que são por sua vez mais inconsistentes que os defensores da abolição completa de produtos estrangeiros.

Para provar seu argumento, ele utiliza uma fábula de duas cidades, Stulta e Puera, que construíram uma grande estrada as conectando. Após o término da construção, Stulta teria reclamado que os produtos de Puera estavam inundando o seu mercado, e criou o cargo assalariado de encarregados pela obstrução do tráfego dos importados. Logo em seguida, Puera fez o mesmo, e o resultado era mutuamente perverso.

Até que um homem velho de Puera, suspeito até de receber pagamento secreto de Stulta, disse que os obstáculos criados por Stulta eram maléficos a Puera, o que era uma pena. E que os obstáculos criados pela própria Puera também eram maléficos, novamente uma pena. Completou que não havia nada que pudessem fazer quanto ao primeiro problema, mas que poderiam solucionar a outra parte, criada por eles mesmos.

Logo houve forte reação, e o acusaram de sonhador, utópico e até “entreguista”. Alegaram que seria mais difícil ir que vir pela estrada, ou seja, exportar que importar. Isso colocaria Puera em desvantagem em relação à Stulta, como as cidades na beira dos rios estão em desvantagem frente às montanhosas, já que é mais complicado subir que descer. Só que uma voz disse que as cidades na beira dos rios prosperaram mais que as montanhosas, causando alvoroço.

No entanto, era um fato! Infelizmente para o povo de Puera, decidiram que tais cidades tinham prosperado contra as regras, e optaram pela manutenção dos obstáculos, em nome da “independência nacional”, da honra, da proteção da indústria doméstica contra a competição selvagem, etc. E os consumidores continuaram sendo sacrificados para o benefício de alguns produtores privilegiados, como sempre ocorre nas medidas protecionistas. 
Por: Rodrigo Constantino (2006)

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

CELSO RUSSOMANNO: "EU SOU VOCÊ NO PODER"


Não há dúvidas de que a capacidade de promover engajamento e mobilização da Igreja Universal é enorme. Mas não pode ser tão maior que o poder de “padrinho” Lula, o ex-presidente-operário com maior exposição na mídia que o país já viu, e seus altíssimos níveis de aprovação. Da mesma forma, o poder de popularização de um programa diário na TV é imenso. Mas não tão maior que o recall proporcionado por duas campanhas presidenciais como as que José Serra traz na bagagem. 

O que explica o sucesso de Celso Russomanno é menos simples, embora constrangedoramente óbvio. Passa menos pelo poder de capilaridade dos obreiros da igreja e mais, bem mais, por uma construção discursiva que apela ao senso comum. E o faz com tamanha competência que dificilmente poderá haver alguma mudança drástica no quadro eleitoral de São Paulo. Ao contrário: no segundo turno, com mais tempo de TV, é bem provável que o sucesso deste discurso se consolide de forma irreversível já na primeira semana. 

Não é difícil perceber como as coisas chegaram a este ponto. Basta se despir da arrogância que costuma pairar sobre os QGs de campanha e lembrar que não háfocus melhor do que o ibope da TV aberta. Basta se desfazer dos muitos vícios adquiridos por quem é ou foi governo – os vícios advindos do profundo conhecimento da máquina e seus entraves – e reaprender a arte de fazer promessas. O sucesso de Russomanno pode, sim, ser um pouco humilhante para os experts de plantão. Mas nada tem de misterioso.

O que temos no primeiro ato? Russomanno na televisão, em defesa do consumidor. Ali, desde a época do SBT, ele construiu um capital simbólico poderoso porque palatável ao senso comum: o do homem simples que, uma vez que tem em mãos o poder de denúncia de uma câmera de TV, aponta injustiças e erros clamando por solução. As vítimas pertencem, é claro, a camadas populares da população. As soluções são simples: Russomanno não faz nada diferente do que qualquer um de seus telespectadores faria se estivesse em seu lugar. Bate pé, diz que o problema precisa ser resolvido de uma vez por todas e, se preciso, chama a polícia.

No segundo ato, temos Russomanno candidato a prefeito, diante de uma câmera de TV, apontando problemas e apresentando soluções. O modelo é o mesmo do ato um. O que Celso Russomanno faz como candidato é exatamente o mesmo que fazia como jornalista. Não houve a necessidade, e nem o risco, de que sua audiência tivesse que se adaptar a um novo Celso Russomanno, investido do papel de prefeito. Neste papel, ele segue fazendo o que qualquer um de seus telespectadores faria se estivesse em seu lugar: apresenta soluções simples, de fácil entendimento, ainda que de execução duvidosa.

Enquanto seus adversários se enroscam em explicações complicadas para resolver os muitos problemas de São Paulo – e ficam parecendo, aos olhos do povo, criaturas de má vontade -, Russomanno diz ao homem comum: “eu sou você no poder”.

O exemplo mais acabado desta estratégia discursiva é a promessa de aumentar o efetivo da Guarda Civil Metropolitana para 20 mil homens. Enquanto seus adversários fazem contas para provar a inviabilidade da coisa, o homem comum se regozija com Russomanno porque, finalmente, alguém está prometendo fazer o que ele faria se fosse prefeito: colocar mais polícia na rua.

É simples, direto e palatável - como, ao fim e ao cabo, são todas as coisas nascidas do senso comum. É impossível? Pode ser. Mas ganha eleição.
Por Nariz Gelado

SÓ COM CENSURA


Para o seu próprio sossego pessoal, o ex-pre-sidente Lula, seus fãs mais extremados e os chefes do PT deveriam pôr na cabeça, o mais rápido possível, um fato que está acima de qualquer discussão: só existe um meio que realmente funciona, não mais que um, para governos mandarem na imprensa, e esse meio se chama censura. Infelizmente para todos eles, essa é uma arma de uso privativo das ditaduras — e nem Lula, nem o PT, nem os “movimentos sociais” que imaginam comandar têm qualquer possibilidade concreta de criar uma ditadura no Brasil de hoje. Podem, no fundo da alma, namorar a ideia. Mas não podem, na vida real, casar com ela. Só perdem seu tempo, portanto, e se estressam à toa, quando ficam falando que a mídia brasileira é um lixo a serviço das “elites”; há dez anos não mudam de ideia e não mudam de assunto. Bobagem. O que querem mesmo é impedir que esta revista, por exemplo, publique reportagens como a matéria de capa de sua última edição, com as declarações de Marcos Valério sobre o envolvimento direto de Lula no mensalão. Ficam quietos, porque têm medo de que sejam publicadas as fitas gravadas com tudo aquilo que ele disse, e as coisas piorem ainda mais. Mas o seu único objetivo real é este: eliminar as informações que desejam esconder.

Até agora, o plano mais ambicioso que lhes ocorreu para chegar aonde querem foi propor algo que chamam de “controle social” da mídia; não conseguem explicar bem o que seria isso na prática, mas nem é preciso que expliquem. O problema do PT, nessa história toda, é simples: “controle social” é algo que não existe no mundo dos fatos. Na vida como ela é, só têm controle verdadeiro sobre um órgão de imprensa os seus proprietários ou, então, o departamento de censura. Todo o resto é pura tapeação. Mas é isso, exatamente, que o PT propõe. Já foi feita, de 2003 para cá, uma boa meia dúzia de tentativas para armar o tal controle, primeiro com projetos de lei que morreram antes de nascer, depois com “audiências públicas” e outras esquisitices. Não saiu, até agora, um único coelho desse mato. Falou-se também da “mobilização de setores populares” para pressionar a mídia, mas não se conseguiu mobilizar ninguém. Manifestações de massa, para o PT de hoje, exigem ônibus fretados, lanches grátis, patrocínio de alguma estatal — e, francamente, não é assim que se faz uma revolução. Muito dinheiro do Erário tem sido gasto na compra do apoio de uma parte da imprensa, através de verbas publicitárias e outros tipos de ajuda; o problema, aí, é que o governo não consegue comprar os veículos que têm mais público. Foram criadas, também, brigadas de “blogueiros” que recebem uma espécie de “mensalinho” para falar a favor do governo e contra quem faz críticas a ele; ninguém parece prestar atenção no que dizem. Inventou-se, ainda, uma “TV Brasil”, emissora que serve para apoiar as autoridades e é sustentada com dinheiro público em estado puro. Em cinco anos de funcionamento, sua audiência continua vizinha do zero; a esta altura, talvez tenha mais funcionários do que telespectadores. A questão, em todos esses casos, é que imprensa a favor não adianta nada — o que interessa a quem manda é não ter imprensa contra. Elogios não salvaram uma única cabeça, entre os doze ministros que a presidente Dilma Rousseff botou na rua até agora, nos casos em que foram denunciados por corrupção no noticiário. Não têm resolvido nada no julgamento do mensalão, também revelado integralmente pelo trabalho da imprensa; o STF vem sendo o flagelo de Deus para os réus, triturados um após o outro com sentenças de condenação.

Ditaduras entendem muito bem como se controla a imprensa. Não desejam aplausos: a única coisa que lhes importa é cortar tudo aquilo que não querem que seja publicado. Não podendo fazer isso, o PT fica na gritaria. Ainda há pouco, o presidente nacional do partido, deputado Rui Falcão, disse que a “mídia conservadora” é instrumento de uma “elite suja e reacionária”, e fez uma ameaça: “Não mexam com o PT”. E se mexerem — ele vai fazer o quê? As coisas que o deputado diz não chegam a obter a nota mínima necessária para ser levadas a sério: não há exemplo na história de situações em que a imprensa tenha mudado de linha por causa de dis-curseira desse tipo, ameaças vazias ou “pressões da sociedade”. Veículos independentes não têm medo de insultos, “setores populares” ou líderes políticos com popularidade de 80%; o que lhes quebra a espinha é a força armada, e só ela. É melhor, então, o PT segurar a ansiedade.
Por:  J.R. GUZZO  REVISTA VEJA

OUTUBRO AMARGO?



Mas eis que quando o outubro amargo se aproxima, se evanesce a ilusão. Não há compadres em número suficiente no plenário do Supremo.

Lula tinha três projetos importantes para 2012. O primeiro era alcançar um crescimento robusto da economia. Quando o ano começou, Dilma, no melhor estilo lulista, desfilava arrogância dando conselhos a chefes de Estado sobre como superar a crise. Mas eis que quando se aproxima o outubro amargo, depois de uma dúzia de pacotes para soprar as brasas da economia através do endividamento do povo, o PIB dá sinais de esgotamento e impotência. Parece não haver pílula azul que faça a economia adotar uma postura ascendente.

O segundo projeto lulista era eleger Haddad. Entendamos nosso ex-presidente. Ele estava nem aí para uma vitória do PT em São Paulo. Ele queria eleger o Haddad. Aliás, não era bem isso. Corrijo-me. Lula estava nem aí para o Haddad. Ele queria ser o cara que conseguiu fazer prefeito de São Paulo um desconhecido incompetente como o Haddad. Acontece que Marta Suplicy não apenas era candidata. Ela ponteava as primeiras pesquisas de opinião! Em setembro de 2011, Marta tinha 29% das intenções de voto contra 18% de José Serra. Num segundo cenário, trocando Marta por Haddad, este aparecia com 2% das intenções de voto. Voilá! Lula tinha em Haddad uma versão masculina para reproduzir o prodígio que fizera com Dilma. Certo de sua onipotência, exercendo aquela autoridade absoluta, mista de cacique e pajé (que só não funcionou na época do Mensalão), exigiu que a senadora renunciasse à candidatura em favor do seu pupilo. À medida que se aproximava o amargo outubro, Lula entrou em desespero: foi beijar a mão de Maluf nos jardins da casa dele e mandou a doublé de presidente desbancar do ministério a irmã do Chico Buarque. Ato contínuo, ofereceu a poltrona da Cultura para Marta que aceitou, subiu no palanque e tirou retrato com Haddad. No momento em que escrevo este artigo parece não haver mais tempo para que o quadro político proporcione alguma alegria a Lula.

O terceiro projeto lulista para 2012 era acabar com o processo do Mensalão. Tal missão foi enfaticamente assumida ao deixar a presidência. "Xacomigo!", terá dito Lula. Com efeito, mesmo no mais diluído senso moral, os fatos do Mensalão enodoavam sua biografia. Ora, Lula se vê como Deon, o semideus da mitologia grega que tinha o poder de submeter os demais aos seus comandos de voz. Portanto, era só falar com um, falar com outro, dar algumas entrevistas e a maior parte dos ministros do STF, obedientes aos desígnios de quem os indicou, não se recusariam a lhe entregar a própria honra. Mas eis que quando o outubro amargo se aproxima, se evanesce a ilusão. Não há compadres em número suficiente no plenário do Supremo. Lula cruza as mãos sobre as próprias vergonhas e pede que o ano termine logo.
Por: PERCIVAL PUGGINA


QUARTA LIÇÃO

Dez lições de economia - Quarta lição: o que são os mercados e como são determinados os preços
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Para definir os mercados, vamos utilizar as palavras do Prof. Ludwig von Mises, uma definição simples, completa, abrangente e magistral, como praticamente tudo o que Mises escreveu e ensinou. A grandeza dessa definição está em sua simplicidade, o que mostra que a economia é algo simples, quando temos a humildade para reconhecer isso, atributo que só gigantes como Mises costumam possuir.


A economia de mercado é o sistema social baseado na divisão do trabalho e na propriedade privada dos meios de produção. Todos agem por conta própria; mas as ações de cada um procuram satisfazer tanto as suas próprias necessidades como também as necessidades de outras pessoas. Ao agir, todos servem seus concidadãos. Por outro lado, todos são por eles servidos. Cada um é ao mesmo tempo um meio e um fim; um fim último em si mesmo e um meio para que outras pessoas possam atingir seus próprios fins.

Este sistema é guiado pelo mercado. O mercado orienta as atividades dos indivíduos por caminhos que possibilitam melhor servir as necessidades de seus semelhantes. Não há, no funcionamento do mercado, nem compulsão nem coerção. O estado, o aparato social de coerção e compulsão, não interfere nas atividades dos cidadãos, as quais são dirigidas pelo mercado. O estado utiliza o seu poder exclusivamente com o propósito de evitar que as pessoas empreendam ações lesivas à preservação e ao funcionamento da economia de mercado. Protege a vida, a saúde e a propriedade do indivíduo contra a agressão violenta ou fraudulenta por parte de malfeitores internos e de inimigos externos. Assim, o estado se limita a criar e a preservar o ambiente onde a economia de mercado pode funcionar em segurança.

Prossegue o Professor Mises:

O mercado não é um local, uma coisa, uma entidade coletiva. O mercado é um processo, impulsionado pela interação das ações dos vários indivíduos que cooperam sob o regime da divisão do trabalho. As forças que determinam a — sempre variável — situação do mercado são os julgamentos de valor dos indivíduos e suas ações baseadas nesses julgamentos de valor. A situação do mercado em um determinado momento é a estrutura de preços, isto é, o conjunto de relações de troca estabelecido pela interação daqueles que estão desejosos de vender com aqueles que estão desejosos de comprar. Não há nada, em relação ao mercado, que não seja humano, que seja místico. O processo de mercado resulta exclusivamente das ações humanas. Todo fenômeno de mercado pode ser rastreado até as escolhas específicas feitas pelos membros da sociedade de mercado.


O processo de mercado é o ajustamento das ações individuais dos vários membros da sociedade aos requisitos da cooperação mútua. Os preços de mercado informam aos produtores o que produzir como produzir e em que quantidade. O mercado é o ponto focal para onde convergem e de onde se irradiam as atividades dos indivíduos.


Se você, depois desses quatro parágrafos, ainda não entendeu o que são os mercados, então é porque não os leu com atenção. Nesse caso, releia antes de prosseguir.

Bem, você está agora preparado para tentar responder a uma importante questão: o que determina o valor de um bem ou serviço no mercado?

Serão os custos para produzir esse bem ou serviço? Não, porque uma pessoa pode ter que incorrer em altíssimos custos para produzir alguma coisa, mas se os consumidores não quiserem comprar essa coisa (na linguagem dos economistas, se eles não demandarem essa coisa), seu preço e seu valor será zero.

Bom, se não são os custos, então não serão as horas de trabalho gastas para produzir o bem ou serviço? Também não, pelo mesmo motivo! Você pode ter um trabalho incrível para produzir algum bem, mas se ninguém quiser comprar esse bem, ele não terá valor.

Puxa vida, se não são os custos e nem o trabalho, então será o valor moral? É claro que não, basta observar que há bens e serviços que nada têm de morais e que têm valores muito altos no mercado, porque sua demanda é grande.

Então é o valor estético? Também não e pelo mesmíssimo motivo! Um ingresso para uma partida de futebol pode custar mais caro do que uma entrada para assistir a um concerto para fagote, oboé e flauta de Vivaldi, por exemplo.

Ai, ai, ai, então é o valor técnico? Nada disso, Mané, muitos inventores não ganharam um centavo com suas invenções, mas elas deixaram muitas pessoas ricas.

Será então a escassez? Pode parecer que sim, mas também não é. A escassez depende da demanda, ela não é uma quantidade aritmética específica do bem. Em minha casa tenho um desenho, um só, que fiz há alguns anos e, no entanto, ele não tem valor, porque ninguém vai querer comprar um desenho feito por mim.

Se não é a escassez, então é a utilidade? Você está chegando lá, mas ainda não é essa a resposta! A utilidade não significa nada no mercado se não estiver relacionada com a demanda. Há coisas muito úteis, mas que não têm valor, como o ar que respiramos; um velho livro de Economia pode ter um valor muito elevado para mim, mas para outras pessoas ele pode não valer nada. Como você já pode notar, do ponto de vista do mercado, o que importa não é a utilidade objetiva, mas sim a utilidade subjetiva, aquela que é estimada pessoalmente, por cada indivíduo.

Valorar algum bem ou serviço no mercado significa escolher entre esse bem ou serviço e bens e serviços alternativos. Quando fazemos as escolhas, isto é, quando agimos, o fazemos achando que aquela escolha, ou aquela ação vai nos proporcionar satisfação maior do que a satisfação que os outros bens e serviços proporcionariam. Mas, como nossas escolhas são individuais e subjetivas, como o nosso conhecimento não é perfeito e, ainda, como nossas ações se dão no decorrer do tempo e este tende a incorporar novos conhecimentos, corrermos sempre o risco de cometer erros.

Chegamos, então, à resposta que procurávamos: o valor depende de uma combinação da utilidade com a escassez, ou, na linguagem dos economistas, ele depende da utilidade marginal, entendida como a satisfação proporcionada pela última unidade de um dado bem, em um dado momento do tempo.

Por exemplo, se você oferecer, às três horas da tarde, uma bandeja cheia de copos com água para alguém que está morrendo de sede, essa pessoa vai dar ao primeiro copo um valor maior do que ao segundo, a este um valor maior do que ao terceiro, a este um valor maior do que ao quarto e assim sucessivamente. Supondo que essa pessoa beba, às três horas da tarde, seis copos seguidos e rejeite o sétimo, podemos dizer que o valor do sétimo copo, às três da tarde, era zero. Mas se perguntarmos à mesma pessoa, cinco horas depois, diante da mesma bandeja, se ela quer beber água e ela responder afirmativamente, então o valor daquele sétimo copo (que agora será o primeiro) já será positivo e maior do que o valor do oitavo (que, agora, passa a ser o segundo), o valor do oitavo será maior do que o do nono (que, agora, será o terceiro) e assim sucessivamente.

Vemos, assim, que o valor depende de uma combinação entre utilidade e escassez, combinação sintetizada pelo conceito de utilidade marginal, que foi descoberto em 1871 por Carl Menger, o fundador da Escola Austríaca e por William Stanley Jevons e Leon Walras. Por que aquele primeiro copo com água tinha um valor maior do que os valores dos copos seguintes naquele momento do tempo (três da tarde)? Ora, porque era escasso, já que aquela pessoa estava morrendo de sede, e também porque tinha muita utilidade. Mas, naquele ponto do tempo, cada copo a mais que era bebido tinha uma utilidade (marginal, na margem, daquela unidade adicional) menor do que a do anterior. Percebeu agora?

E o que dizer dos preços? Há certos conceitos — como o de preço — que pensamos dominar, mas que, a rigor, conhecemos apenas superficialmente. O que vêm a ser preços? Em sua essência, são o resultado da ação de indivíduos e de grupos de indivíduos que, agindo intuitivamente em seu próprio interesse, fazem suas escolhas econômicas, como já observamos, na suposição de que sejam, a priori, as melhores dentre todas as possíveis, dados seu estado de conhecimento e suas motivações em cada momento específico do tempo. Por isso, todos os preços que conhecemos são preços passados, meros fatos da história econômica. Ao falarmos de preços atuais, está implícito que estamos supondo — mesmo inconscientemente — que os preços do futuro imediato não serão diferentes daqueles do passado recente. E tudo o que dizemos sobre preços futuros não passa de simples inferência, de nossa visão particular sobre eventos que ainda são incertos. Preços, portanto, resultam da ação humana, das escolhas interativas de milhões de indivíduos no mercado, ao longo do tempo e em condições de incerteza e, por isso, só podemos concebê-los como tal quando são determinados livremente por essa interação.

Quando o governo intervém no processo de mercado determinando qualquer preço, na verdade o que está fixando não é um preço genuíno, mas um pseudopreço, que não espelha o valor verdadeiro do respectivo bem ou serviço. Isso ocorre com o Fed controlando a taxa de juros americana, com o Partido Comunista impondo por mais de setenta anos a mesma tarifa para o metrô de Moscou, com os congelamentos dos anos 80 e início dos anos 90 no Brasil ou com a Petrobras fixando artificialmente o preço da gasolina e outros derivados de petróleo. Cedo ou tarde, a realidade acaba vindo à tona e punindo a mentira, o castigo se dando sob a forma de ausência de coordenação econômica, inflação, desemprego e ciclos econômicos. Estes ensinamentos dos economistasaustríacos, simples e de uma lógica irrepreensível, têm sido negligenciados exatamente porque são simples e conduzem os economistas a uma postura humilde em relação ao seu próprio conhecimento, o que os leva a ver o intervencionismo como uma prática de "engenharia social", sempre equivocada e perniciosa.

Sugestões de leitura:

Iorio, Ubiratan J. Ação, tempo e conhecimento: a Escola Austríaca de Economia, Instituto Mises Brasil, 2011, São Paulo, cap. 2
Mises. L., Ação humana, caps. XV e XVI
Mises, L., O que realmente é o mercado
Rockwell, Lew, O prodígio que é o mercado
Block, Walter., Mercado versus estado

Sugestões para reflexão e debate:
1. Por que dizemos que os mercados orientam as pessoas a melhor atenderem as necessidades de seus semelhantes?
2. O que vem a ser o processo de mercado?
3. Comente: "o valor depende da utilidade marginal, uma combinação da utilidade com a escassez".
4. Por que o valor subjetivo se altera conforme o tempo passa?
5. Por que todos os preços que conhecemos são preços passados?

Ubiratan Jorge Iorio é economista, Diretor Acadêmico do IMB e Professor Associado de Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).