sábado, 15 de dezembro de 2012

AS MASSAS E O ESTADO EM ORTEGA Y GASSET

Qual será a alternativa, meus senhores e minhas senhoras? Eu não sei. Sei apenas que, ficando como está, a humanidade transformará o Estado de instrumento de libertação em instrumento de escravidão e morte. Tudo contra o que Ortega y Gasset desesperadamente lutou.

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Quero cumprimentar os organizadores desse evento e, ao fazê-lo, a todos os presentes. É uma honra para mim estar aqui nesta Casa dedicada ao grande Miguel de Cervantes, para falar da obra de um outro grande espanhol, José Ortega y Gasset. Meu tema não poderia ser outro, eu que dediquei grande parte de minha atividade intelectual dos últimos tempos a estudar a obra de Ortega: o homem-massa e sua relação com o Estado na obra do filósofo celtibero. É o que pretendo comentar aqui.

No conjunto da obra de Ortega certamente esse tema é o mais difundido e é o maior triunfo científico de sua sociologia. Diante da sua filosofia não é o tema principal, todavia. O filósofo foi cirúrgico na sua análise e nas suas previsões nelas fundadas, daí ter encantado gerações de admiradores. Ao chamar a atenção do mundo para esse fenômeno – a emergência do homem-massa – Ortega o fez como um desesperado, que tinha em mira a sua querida Espanha, que via como invertebrada, isenta de homens egrégios. É na obra ESPANHA INVERTEBRADA, do início dos anos vinte, que poderemos enxergar por inteiro o que ele olhou e pensou. E previu com muita acuidade. O famoso REBELIÃO DAS MASSAS virá depois como um refinamento dessa sua obsessão com a vida de Espanha, seu discurso para os não espanhóis.

E por que me interessei pelo tema? Tomo aqui as palavras do próprio Ortega, escritas em 1934 no prólogo à quarta edição do ESPANHA INVERTEBRADA: “Alguém em pleno deserto se sente enfermo, desesperadamente enfermo. O que fará?” A imagem é primorosa, é como eu me sinto nesses tempos tormentosos. Por me sentir assim é que eu venho aqui falar a vocês. A minha alma sente o duplo efeito: a ameaça dos perigos dos tempos e a insuficiência de conhecimento alegada por Ortega, socraticamente, ele que era um grande mestre. Com mais rigor e propriedade faço minhas as suas palavras e lamento a minha própria ignorância.

O mundo hoje padece de crises e incertezas da maior envergadura, semelhantes àquelas vividas por Ortega no período em que escreveu o ESPANHA INVERTEBRADA e o A REBELIÃO DAS MASSAS. Novamente tempos de grandes perigos. “A história está novamente em movimento”, para usar a bela frase profética de Arnold Toynbee. Isso nos deveria fazer quedar, sem ter o que fazer diante do inevitável? De forma alguma. No mínimo, temos que imitar o filósofo e falar nem que seja às estátuas, como o fez em Paris. Ou às almas bondosas que aqui estão. Falar é sempre um grande remédio para a alma desesperada.

Por isso a atualidade de suas reflexões. Quero aqui me debruçar sobre três conceitos: homem-massa, Estado e o poder, ou seja, “quem manda no mundo”. Creio que estão contidas nessas expressões as preocupações do filósofo e a investigação para compreender esses três temas é que lhe deu as chaves para a compreensão da dinâmica política atual.

Não posso aqui deixar de me referir à recente eleição de Barack Obama para a Presidência dos Estados Unidos. Em tudo e por tudo sua eleição está carregada de significados. Quem ouviu o primeiro discurso do presidente eleito em Chicago, diante da multidão prostrada, não pôde deixar de se admirar e de se apavorar. “Change”, gritavam. E também: “Yes, we can”. Estamos aqui novamente diante de um líder de multidão que é ele mesmo a expressão do homem-massa tornado chefe de Estado. Sua característica principal, quando comparado com lideranças genuínas, é que chefes como Obama não lideram a multidão, são por elas liderados. Daí porque essas palavras-força hipnotizam e apavoram.

Obama só tem a oferecer às massas o poder de Estado posto a serviço de seus apetites e estes não são banais, são impossíveis de ser atendidos: suprimir a lei da escassez, eliminar a crise econômica por medida legislativa e unilateralmente impor a paz quando a guerra se faz necessária. E, a fracassar a paz, como no passado, fazer a guerra pela guerra, no ativismo bélico motivado por razões econômicas e ideológicas, e não pelos nobres e racionais motivos geopolíticos.

Em resumo, Obama é o exemplo mais completo e acabado de chefe de multidões erguido aos ombros pelos homens-massas desde que Hitler foi eleito, em 1933. Vimos como acabou aquela experiência histórica. Temos que decifrar o enigma atual e buscar o sentido das imorredouras palavras de Sófocles, na peça ÉDIPO REI:

“Naufraga a polis – pode conferi-lo -;

a cabeça já não é capaz de erguê-la

por sobre o rubro vórtice salino:

morre no solo – cálices de frutas;

morre no gado, morre na agonia

do aborto”.


Eu não encontraria palavras mais poéticas e mais trágicas para descrever o teor da grave crise econômica mundial instalada e a carência de um governante sensato na condução do Estado, em período tão critico. A ideologia por excelência dos homens-massa é o socialismo. E a causa da crise são as medidas socialistas tomadas no passado. E, quanto mais a crise se agrava, mais medidas socialistas são pedidas pela multidão ao governante, que é seu espelho. A causação circular gera uma espiral política infernal que há um século redundou na pira em que queimou o mundo e os homens na estupidez da guerra e na busca desesperada da solução existencial – a perfeição em vida – pela ação burocrática do Estado. O apogeu dessa loucura foram os fornos crematórios e a bomba atômica, de triste memória.

O que viu Ortega? O surgimento das multidões urbanas, átomos individualizados que herdaram o melhor da tradição ocidental, mas quais filhos pródigos de pais ricos, nada fizeram para dispor do que receberam. E entre os muitos bens herdados dois se destacam especialmente: a técnica, originada da filosofia e da ciência empírica, que deu às multidões luxos jamais imaginados pelos ricos de outrora; e o Estado, esse portento agigantado pelos modernos administradores, poder comprimido posto nas mãos desses filhos das massas, homens notavelmente despreparados para seu autogoverno.

A ausência dos “melhores”

A primeira grande desgraça que Ortega viu nos novos tempos foi o que ele chamou de “a ausência dos melhores”. Ortega entendia que há uma hierarquia natural, em que a minoria “egrégia”, em tempos sadios, é aceita como a liderança espontânea, cabendo às massas copiar-lhe o exemplo vital e obedecê-la. Quem é essa elite?

Ao ler a obra orteguiana fica sempre a pergunta impertinente. Seria o “nobre” assemelhado ao filósofo platônico? É possível que possamos ver aqui esse parentesco. No entanto, precisamos qualificar o sentido, pois essa minoria egrégia não deve ser confundida, para Ortega, com uma classe letrada ou de verniz sacerdotal, “filósofa”. Ortega repetidas vezes afirmou que é nobre aquele que dá mais de si, que se sacrifica, que supera as próprias restrições pessoais, pondo-se a serviço dos seus. É aquele que sabe das virtudes e as pratica. Não há, portanto, a idéia de uma aristocracia do conhecimento, mas do ser vital, que traz em si a história viva. Mesmo um homem simples pode ser um egrégio.

O homem nobre é o oposto do demagogo que vai à praça pública pregar facilidades para se tornar governante e que empresta sua oratória para dar voz aos vícios insaciáveis das massas.

Tampouco podemos falar de uma aristocracia de sangue. O filósofo desdenha dessa idéia e deixa claro que nobreza não pode ser transmitida geneticamente, como diríamos hoje. Nobreza de sangue é apenas uma caricatura jurídica da verdadeira nobreza, a repetição mecânica e um reconhecimento tardio do valor de um ser nobre que viveu no passado.

Então, o que é? Penso que para ele são aquelas pessoas que têm o sentido da história e da tradição. São aqueles que carregam o ônus das virtudes consagradas no Ocidente. São aqueles que fazem da história – mais das vezes a de tradição oral – o seu presente, fundando nela suas ações. Seu viver expressa essa atualidade do antigo. Fazem o dia a dia contemplando os milênios predecessores. Gente assim tinha ficado escassa no seu tempo, como escassa está atualmente. Os egrégios sumiram precisamente porque não há mais um passado vivo, mas a crença no presente eterno, que se perpetua.

Terá faltado a Ortega, por conta de seu agnosticismo, ligar esse “direito à continuidade” aos valores judaico-cristãos. Uma grande lacuna na sua produção teórica. A leitura atenta de sua obra, todavia, leva, de forma inescapável, a valorizar o cristianismo e colocá-lo, com o devido destaque, na coleção de requisitos para tornar alguém um ser egrégio. Tem sido, o cristianismo, o veículo pelo qual a atualidade histórica tem sido transmitida nos dois últimos milênios e não podemos deixar de creditar à Igreja Católica o mérito de reconhecer na filosofia clássica seu outro Testamento, conforme a análise lúcida do então jovem teólogo Joseph Ratzinger, no seu INTRODUÇÃO AO CRISTIANISMO, de 1967.


Essa consciência história é o impregnar-se com as virtudes da tradição, a temperança, o senso de justiça, a tolerância. Virtudes assim podem ser praticadas sem que haja a aquisição de cultura livresca, bastando que não seja quebrado o fio da tradição. Por isso que Ortega insistia que um dos direitos mais importantes da pessoa humana era o da “continuidade”, precisamente o de se ter um passado e de se viver o presente, construindo o futuro, sem perder de vista o legado precioso das gerações anteriores.

O império do Homem-massa

O homem-massa de Ortega é o oposto do ser egrégio como antes definido. É homogêneo, desprovido de passado. É o senhorito satisfeito. E reside aqui nessa constatação sua reprovação mais desabonadora: um ser sem passado é um ser sem história, recriado como que vindo do nada a cada geração. Junte-se a isso a confiança de quem domina as técnicas, capazes de grandes maravilhas, e aí teremos o personagem mais arrogante de todos os tempos.

O mundo que se apresenta a partir da segunda metade do século XIX é o das multidões, apinhadas nas grandes cidades. O impacto dessas aglomerações não pode ser minimizado. O ser individual perde a identidade, torna-se uma mônada indiferenciada, uma gota perdida em um oceano de gentes. Em oposição, agiganta-se o grande organizador dessas massas, o Estado, cujo papel muda radicalmente desde então, como veremos a seguir.

Ortega estava preocupado com a Espanha e a Europa, mas acabou por se tornar um profeta dos graves problemas do nosso tempo. Um escritor para o século XXI, para usar a expressão empregada por Vargas Llosa ao falar da obra de Cervantes. Ortega mesmo frisou que os problemas políticos seriam epidérmicos se a sociedade estivesse sadia, se seu corpo (as massas) e sua cabeça (a elite egrégia) estivessem interagindo como deve ser. Os fenômenos políticos, no entanto, podem ser elevados a alto grau de ameaça, a ponto de colocar a própria sobrevivência da humanidade em risco, se os tomadores de decisões de Estado foram meros representantes das massas insaciáveis. Os problemas políticos então deixam de ser epidérmicos e passam a ser o fator determinante para que a própria vida humana tenha continuidade. Os fornos crematórios de Hitler ainda não perderam de todo o calor, naquela loucura completa que foi o exercício do poder por um legítimo representante do homem-massa. Bombas atômicas estão prontas para uso em várias partes do planeta neste exato momento.

É nesse contexto que devemos tomar a célebre advertência de Ortega: “Eu sou eu e minha circunstância e se não a salvo, não salvo a mim mesmo”. Sábias e imorredouras palavras. Salvar as circunstâncias em política passou a ser um imperativo de nosso tempo. E salvar essas circunstância é resgatar o poder de Estado das mãos dos demagogos, dos chefes de multidão.

Os genocídios comunistas também não devem ser jamais esquecidos. O comunismo, assim como o nazismo, o fascismo e o progressismo, são expressões da política executada diretamente pelos homens-massa, que transformam rufiões oriundos da multidão em mandatários das nações. Homens sem passado e sem escrúpulos, que pregam facilidade e fazem a apologia de um futuro perfeito, em delirante fuga da realidade. Não são apenas crimes que esses homens praticaram, eles transformaram o Estado, de ferramenta para o bem-comum, na máquina de matar gente em larga escala. Talvez não haja na língua um vocábulo capaz de traduzir a hediondez do que estamos a ver.

O que é o Estado?

Podemos olhar o Estado de muitos ângulos e o que menos nos interessa aqui é vê-lo pela ótica jurídica. Alguém já disse que o Estado é uma ficção. Mas ficção não mata, mas a loucura, sim. O Estado é uma realidade ou uma ferramenta, como definiu Ortega y Gasset. Essa ferramenta é muito importante e sempre foi perigosa, porque o Estado é, antes de tudo, violência concentrada, capacidade de matar, de tributar, de prender, de sujeitar os indivíduos.

O Estado, quando conduzido por gente moralmente inferior, torna-se o grande algoz da humanidade. É isso que temos visto desde então. A própria guerra, cuja natureza nobre sempre foi cultuada pelo melhores, nos tempos hodiernos muda de caráter, passando de instrumento para a recuperação do equilíbrio político e da afirmação da segurança coletiva para a ação de destruição pura e simples de comunidades diferentes. O homem-massa anseia pela homogeneidade. A guerra passou a matar à escala industrial apenas para satisfazer ideologias cegas, motivadas pela falsa capacidade que teria de aperfeiçoar a humanidade. A busca da igualdade irracional motiva muitos dos morticínios contemporâneos.

O Estado, enquanto ferramenta, nos tempos antigos permitiu ao homem criar uma ordem e, a partir dela, deixar frutificar os seus engenhos, a própria liberdade ela mesma. Sem o Estado não haveria como construir um espaço de liberdade, em que o homem em geral pudesse construir seu próprio destino. Ao contrário do que pensam aqueles de tendências anarquistas, a alternativa ao Estado não é haver mais liberdade, mas sim, o seu oposto, o caos, que é a escravidão da alma. Importa, pois, não substituir uma ilusão por outra, ou seja, o Estado gigante (ou Total, como costumo chamar), pela sua ausência, mas sim, domesticá-lo e trazê-lo para proporções humanas. Fazer novamente o criador dispor de sua criatura.

O Estado só pode ser benigno quando conduzido pela elite egrégia, que carrega a tradição e sabe da missão e das limitações do ente estatal. A elite sabedora de que o Estado precisa, necessariamente, ser “mínimo”, como defenderam os liberais clássicos. A maior das mentiras da modernidade foi recriar o antigo mito sofista da igualdade, sobrepondo-se à necessidade mais terrivelmente ameaçada de todos os tempos, a liberdade. O homem-massa, quando alçado ao poder – e até mesmo para ser alçado ao poder – quer tornar o Estado o instrumento para a implantação da igualdade. Esse terrível engano está na raiz dos monstruosos crimes cometidos pelos coletivistas de todos os calibres.

O resultado dessa visão errônea é a estatização progressiva e inexorável da vida cotidiana. Tudo passou a depender do ente estatal. A moeda é do Estado, os regulamentos se multiplicam, a vida espontânea tende ao desaparecimento. Os homens são “coisificados”, tratados com seres incapazes de uma vida adulta e responsável. É o Estado-mamãe, que tudo provê, mas que não permite o menor desvio de seus regulamentos. Afinal, as leis são inexoráveis e quando se legisla sobre a banalidade da vida torna-se a própria vida uma prisão infame.

Uma crítica à democracia

Trago aqui aos senhores essas reflexões finais, tomando o quadro político que se apresenta aos nossos olhos. Acompanhamos agora as campanhas eleitorais no Brasil e no nos EUA. Pudemos ter uma clareza muito grande como a política pode ser perigosa, um nefasto exercício de auto-engano. O homem-massa eleitor é agora cortejado não para eleger os melhores partidos e as melhores pessoas para governar. Ele agora é chamado a escolher quem vai colocar “mais” e “melhor” o Estado a serviço de seus apetites, de suas idiossincrasias, de suas ilusões. “Change” e “Yes, we can” são mantras de mobilização de alto poder destrutivo, grávidos que estão de violência irracional.

Temos, pois, a resposta à terrível pergunta de Ortega: “Quem manda no mundo?” Os piores, os moralmente inferiores, os cegos, os potencialmente genocidas, são esses os que mandam no mundo. São os socialistas que mandam no mundo. Essa laia tem hoje nas mãos as rédeas do poder.

O discurso político de todo postulante aos votos parte do suposto da estupidez factual da maioria dos eleitores, que não compreende o Estado e nem os movimentos políticos, mas que julga ser seu “direito” ter todas as benesses que as classes políticas lhes prometem em troca do seu voto. É crença estabelecida que o Estado tem a obrigação de prover as necessidades básicas, do emprego à escola, da saúde à aposentadoria. Essa crença decreta o fim da democracia, que supõe o indivíduo capaz de prover-se a si mesmo, mesmo que os sistemas eleitorais formais permaneçam funcionando. Estamos a ver o suicídio do sistema democrático e nada lembra mais um Estado policial do que a forma assumida pelos Estados contemporâneos, em todos os lugares.

Vimos nesses exemplos precisamente o esgotamento da experiência da democracia de massas, em que o voto universal não está condicionado por uma estrutura partidária que respeite e proteja a continuidade dos valores da democracia liberal. Do jeito que as instituições estão organizadas, tanto aqui como nos EUA ou em qualquer lugar do mundo, a demagogia da igualdade ou – o que é a mesma coisa – a demagogia de que o Estado teria uma função beneficente (para usar a deliciosa expressão empregada por Ortega em texto de 1953) triunfou. Posso dizer que é o triunfo do totalitarismo, do Estado Total.

Qual será a alternativa, meus senhores e minhas senhoras? Eu não sei. Sei apenas que, ficando como está, a humanidade transformará o Estado de instrumento de libertação em instrumento de escravidão e morte. Tudo contra o que Ortega y Gasset desesperadamente lutou, conforme o testemunho de sua obra. Tudo contra o que todos nós devemos lutar. Não podemos esquecer jamais que vivemos tempo de grandes perigos.


Por: POR NIVALDO CORDEIRO
Apresentação no Instituto Cervantes.
Colóquio sobre Ortega y Gasset.
12 de novembro 2008

NIEMEYER E A INTERNET

Que o homem mereça cadernos em sua homenagem na imprensa nacional, entende-se. Marcou o século com sua arquitetura. Daí a transformá-lo em santo vai uma grande distância. Não vamos negar-lhe talento. Mas como ser humano, Niemeyer era vil. E isto a imprensa não diz. Sempre acontece quando morrem ilustres canalhas. Aconteceu com Darcy Ribeiro, aconteceu com Jorge Amado.


Niemeyer morre em uma época interessante, das comunicações internéticas e das comunidades virtuais. O leitor deve lembra-se de que, há pouco, Chico Buarque dizia ter descoberto que era detestado por muita gente. Só descobriu graças à Internet, onde todo cidadão sem voz adquire voz. Não tivéssemos Internet, até hoje seria um ser angelical para a grande imprensa. O mesmo aconteceu com o arquiteto. Se os jornais insistem em mostrar o gênio, nas comunidades virtuais vemos o homem e sua miséria.

O arquiteto tem seus altos e baixos. Fez obras de alto valor estético e outras que só são louvadas por seu renome. O grande crime de Niemeyer é, a meu ver, Brasília. Verdade que não foi o único celerado a conceber Brasília. Mas sua mão está lá. Há uns vinte e mais anos, lembro que era heresia não gostar de Brasília. Bastava alguém dizer que não havia gostado e era fulminado por uma avalanche de insultos, que ia desde ignorante a reacionário. Esse culto está terminando – e tinha de terminar um dia – e hoje críticas a Brasília já são permissíveis.

Niemeyer foi o fiel intérprete dessa visão tacanha do brasileiro, que até hoje cultua o automóvel como símbolo de status. Tivesse Niemeyer uma visão do futuro, que já então se anunciava, teria começado com as fundações de um metrô. Não começou. Hoje, a cidade concebida para o automóvel tem congestionamentos monstruosos de automóveis. Poderia ter pensado na bicicleta. Brasília é plana e parece ter nascido para as bicicletas. Não pensou. 

Pior ainda sua concepção de cidade planejada. Setor residencial, hoteleiro, administrativo, de hospitais, de lazer. Isso não é cidade, mas insanidade. O lazer e o trabalho devem estar onde o ser humano reside. Madri também é uma cidade planejada. Mas foi planejada com inteligência, sem privar o cidadão urbano de seu conforto. Brasília não tem esquinas. Ora, esquinas são o melhor local para bares, restaurantes e outras casas de lazer. Brasília foi concebida não com prédios para viver, mas com máquinas de morar. 

Conheço não poucas cidades no mundo e não conheço nenhuma tão hostil ao ser humano como Brasília. Não por acaso Niemeyer era influenciado por Le Corbusier, que fez um projeto para Paris que destruía tudo que Paris tem de charme. No fundo, uma cidade que não difere muito dos monstruosos blocos residenciais de Moscou, construídos durante o regime comunista. Você vai morar não como você gosta ou gostaria de morar. Você vai morar no que o Estado acha que você gosta de morar.

E já que tocamos no assunto: costumo falar de duas espécies de inteligência, a inteligência inteligente e a inteligência burra. Inteligência burra, por exemplo, é a de um engenheiro que domina o cálculo infinitesimal mas mata a mulher por uma mesquinha crise de ciúmes. Pode ser um profissional competente, mas não soube gerir a própria vida. Niemeyer pertence a esta estirpe. Durante toda sua vida, foi cúmplice dos maiores criminosos do século passado.

Que tenha sido comunista, se entende. Quando os bolches tomaram o Palácio de Inverno, tinha dez anos. Criou-se sob a esperança da redenção do proletariado. Para um jovem idealista era difícil, nos primórdios da revolução, resistir aos apelos humanísticos do comunismo. Ocorre que o regime já desde o início mostrou ao que vinha. Lênin revelou-se tirano e assassino. Stalin ampliou sua obra. Até pode-se conceder que os crimes de Lênin permaneceram ocultos durante sua ditadura. Mas os de Stalin se tornaram conhecidos em 35. Foi quando comunistas como Ernesto Sábato, Camus, Koestler, abandonaram o barco. Niemeyer já era crescidinho, tinha 28 anos. Fosse honesto consigo mesmo, faria marcha à ré. Não fez.

O arquiteto burro atravessou o século e teve mais chances de abrir os olhos. Em 49 – quando tinha 42 anos – ocorreu em Paris a affaire Kravchenko. Há anos venho escrevendo sobre Kravchenko, personagem quase desconhecido no Brasil, e não por acaso.

Alto funcionário soviético que havia trocado a URSS pelos Estados Unidos, relatou esta opção em Eu escolhi a liberdade, livro em que denunciava a miséria generalizada e os gulags do regime stalinista. O livro foi traduzido ao francês em 1947 e teve um sucesso fulminante. A revista Les Lettres Françaises publicou três artigos difamando Kravchenko, apresentando-o como um pequeno funcionário russo recrutado pelos serviços secretos americanos. Kravchenko processou a revista, no que foi considerado, na época, o julgamento do século. No banco dos réus estava nada menos que a Revolução Comunista. Em seu testemunho, Kravchenko trouxe ao tribunal Margaret Buber-Neumann, esposa do dirigente comunistas alemão Heinz Neumann, como também o ex-guerrilheiro antifranquista El Campesino, ambos aprisionados por Stalin em campos de concentração. Kravchenko, que perdeu toda sua fortuna produzindo provas no processo, teve ganho de causa. Recebeu da revista francesa, como indenização por danos e perdas ... um franco simbólico.

A história de Kravchenko é fascinante, envolve diversos países, desde a finada União Soviética até Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha, e até hoje não houve cineasta que ousasse transpor sua odisséia para as telas. Seu livro rendeu-lhe boa fortuna. Levado à falência com os custos do processo, foi morar no Peru, onde investiu em minas de ouro e de novo enriqueceu. Acabou suicidando-se em um hotel em Nova York. A partir de seu processo ninguém mais podia negar o universo concentracionário soviético. 1949 é a data limite para um homem que se pretenda honesto abandonar o marxismo. Niemeyer persistiu, impertérrito, em seu stalinismo. 

Teve outra chance sete anos depois, em 1956, quando Nikita Kruschev denunciou os crimes do stalinismo, no XX Congresso do PCUS. Niemeyer fez que não ouviu. Depois da morte do Paizinho dos povos, o arquiteto não se pejou em afirmar:

— Stalin era fantástico. A Alemanha acabou por fazer dele uma imagem de que era um monstro, um bandido. Ele não mandou matar os militares soviéticos na guerra. Eles foram julgados, tinham lutado pelos alemães. Era preciso. Estava defendendo a revolução, que é mais importante. Os homens passam, a revolução está aí. Há 23 anos, quando tinha 82 anos e certamente já havia chegado à idade da razão, a história deu a Niemeyer mais uma chance. Com a queda do Muro de Berlim, o comunismo mostra toda sua indigência. Dois anos depois, a União Soviética se desintegrava. Em vão. O arquiteto morreu stalinista.

É óbvio que Niemeyer teve amplo conhecimento dos crimes do comunismo. Como o teve Jorge Amado. Mas ambos sabiam que, na época em que viviam, ser comunista era altamente rentável. Amado fez fortuna com sua adesão ao stalinismo. E Niemeyer, se não fez fortuna, fez fama. Brasília ou qualquer outra obra de Niemeyer estavam acima de qualquer crítica. E ainda estão. Os grandes jornais, salvo algum jornalista desgarrado cá e lá, silenciaram completamente sobre a adesão do arquiteto à mais formidável tirania do século. 

Ainda bem que nos resta a Internet. Por: Janer Cristaldo


sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

DURO CHOQUE DE REALIDADE

Após cinco trimestres consecutivos de queda no investimento, a expansão do PIB talvez não chegue a 1% este ano. Tendo em conta que, no ano passado, chegou a apenas 2,7%, a taxa média anual de crescimento no biênio deverá ser de pouco mais que 1,8%. A divulgação desse desempenho tão pífio, quando a presidente está prestes a completar a primeira metade de seu mandato, impõe duro choque de realidade ao governo. A dúvida é se tal choque dará lugar a uma reavaliação séria, no Planalto, da forma como vem sendo conduzida a política econômica.


O que mais preocupa é a queda persistente do investimento. O governo alimentava a fantasia de que bastaria reduzir os juros e depreciar o câmbio para que o investimento deslanchasse. Se tivesse feito só isso — e mantido uma política macroeconômica coerente —, os resultados não teriam sido tão medíocres. Mas fez muito mais que isso. E foi esse algo mais que deu lugar a um quadro pouco propício ao florescimento do investimento.

O governo começou por desmoralizar a política fiscal, não relutando em recorrer a truques contábeis de todo tipo para exibir um simulacro de austeridade. Tendo se permitido a extravagância de montar gigantesco orçamento paralelo no BNDES, bancado por endividamento do Tesouro, deu asas ao delírio de que qualquer projeto que lhe encantasse poderia ser viabilizado, desde que sobre ele se despejasse um volume suficientemente generoso de dinheiro público. Do trem-bala a frigoríficos campeões nacionais. Da produção de energia artificialmente barata na Amazônia à construção de sondas marítimas de alta tecnologia.

A possibilidade mais promissora de investimento de que dispunha o País — a exploração do pré-sal — foi transformada em verdadeira missão impossível. Sobrecarregou-se a Petrobras com a exigência de que fosse a única operadora do pré-sal e de que detivesse pelo menos 30% de qualquer consórcio que vier a explorá-lo. E, para culminar, passou-se a exigir que equipamentos utilizados no pré-sal tenham percentuais absurdamente altos de conteúdo nacional.

A exigência de conteúdo nacional acabou estendida a outros setores, como o automobilístico, que, em troca, foi agraciado com um nível de proteção equivalente ao que seria propiciado por alíquotas nominais de importação da ordem de 70%! Sob a bandeira do fechamento, já não há estímulo a investimentos que contemplem a integração do País às cadeias produtivas da economia mundial.

Some-se a tudo isso a perspectiva de todo um mandato presidencial com inflação bem acima da meta, gestão desastrosa do investimento público, carga tributária saltando de de 33,5% para 35,3% do PIB, em 2011, propensão desmedida ao intervencionismo, truculência regulatória, como agora se vê no setor elétrico, e o que se tem é um quadro claramente inóspito para investimentos.

Dentro de 15 meses Dilma Rousseff se verá na cabeceira da pista da eleição presidencial. Embora tenha tão pouco tempo pela frente, talvez ainda possa corrigir o rumo da política econômica. Mas, sem mudança drástica na equipe econômica do governo, tal correção pareceria pouco crível. Uma simples dança de cadeiras no eixo Fazenda-BNDES não resolveria. Seria preciso trazer gente de fora.

Mas mudar é difícil. Procrastinar mudanças é muito mais fácil. E não faltará quem assevere ao Planalto que a direção da política econômica está correta. Ou quem se disponha a reiterar que as dificuldades se devem, em grande medida, ao quadro adverso que enfrenta a economia mundial. Tampouco faltarão advertências sobre a inoportunidade da mudança.

Leonel Brizola, de quem Dilma foi correligionária até 2000, quando trocou o PDT pelo PT, talvez lhe lembrasse agora do preceito gaúcho que costumava repetir a torto e a direito: "Não se troca de cavalo no meio do banhado." A presidente pode até estar tentada a esperar momento mais propício. Mas é bem possível que, mais à frente, o banhado se mostre ainda mais fundo. E a verdade é que, com o cavalo que tem, não lhe vai ser fácil chegar ao outro lado. Por: Rogério F. Werneck, O GLOBO

QUANDO O RÉU É PADRINHO

A reação de Fux serve como vacina contra a crença ingênua nos discursos líricos do próprio Fux e como exposição involuntária do arcaísmo do Brasil oficial

Luiz Fux é o centro do mundo de Luiz Fux. Na momentosa entrevista que concedeu a Mônica Bergamo ("Folha de S.Paulo", 2/12), o ministro do STF revela suas peripécias rumo à meta obsessiva de ocupar uma das 11 cadeiras da mais alta Corte. Fux procurou fidalgos da nossa pobre república, como Delfim Netto, um signatário do AI-5, Antonio Palocci, o ministro que violou o sigilo bancário de uma testemunha, e João Pedro Stédile, líder de um movimento social pendurado no cabide do poder, além de "empresários" que prezam tanto o acesso aos palácios quanto o conforto do anonimato. O juiz não diz, apenas, que fez política, como sempre fazem os candidatos ao Supremo. Confessa — é essa a palavra! — que procurou padrinhos entre os poderosos réus do caso mais importante que julgaria, caso sua empreitada fosse exitosa. José Dirceu e João Paulo Cunha apadrinharam a candidatura de Fux — o magistrado que, no ano seguinte, ajudaria a condená-los a penas de prisão em regime fechado.

Não é uma confissão espontânea, longe disso. "Querem me sacanear", disse Fux a uma repórter na cerimônia de posse de Joaquim Barbosa. Dias depois, procurou o jornal para conceder a entrevista. A iniciativa é uma reação à ofensiva da quadrilha incrustada no PT que, desde a proclamação de seus votos sobre o núcleo político do mensalão, começou a vazar uma mistura de informações e lendas sobre a heterodoxa campanha do juiz pela indicação presidencial. "O pau vai cantar!", avisou Fux à repórter, ajustando sua linguagem aos costumes do meio político no qual habitualmente circula.

No mundo de Fux, jornais devem ser instrumentos a serviço dos interesses de Fux. Ele sabe escolher. A imprensa independente serve-lhe, hoje, para apresentar sua versão das conversas perigosas que manteve com os réus. A imprensa chapa-branca serviu-lhe, anteontem, para cristalizar relações com os padrinhos, que já eram réus. O jornal "Brasil Econômico" pertence à Ejesa/Ongoing, que tem Evanise Santos, namorada de José Dirceu, como diretora de marketing institucional. Em 2010, o juiz em campanha combinou com Evanise uma entrevista "de cinco páginas" à publicação. Comenta-se no mercado de mídia que a entrada do grupo português Ongoing no Brasil teria sido intermediada por Dirceu e obedeceria à estratégia de montagem de uma rede de veículos de comunicação alinhados ao governo.

O enigma de Capitu pertence ao domínio da grande arte; o de Fux, ao da baixa política. Mas, assim como nunca saberemos se Capitu traiu Bentinho em "Dom Casmurro", não se esclarecerá jamais se o magistrado traiu os padrinhos quando proferiu suas sentenças no caso do mensalão. Naturalmente, Fux nega ter discutido o processo nas conversas de apadrinhamento, mas admite a hipótese do intercâmbio de frases de duplo sentido num encontro com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Sobre o fato incontroverso de que se reuniu com o réu José Dirceu para solicitar apoio, suas explicações oscilam, contraditoriamente, entre os excessos da implausibilidade ("naquele momento, eu não me lembrei" da situação jurídica do interlocutor) e os da candura ("a pessoa, até ser julgada, é inocente").

Durante o julgamento do mensalão, o Planalto e a cúpula petista fizeram chegar à imprensa os sinais de sua fúria com os votos de ministros que, na tóxica visão do governo, seriam devedores do favor da indicação. No caso de Joaquim Barbosa, insinuou-se que haveria favor associado à cor da pele, uma sugestão asquerosa que emana da natureza das políticas de preferências raciais consagradas pelo mesmo Barbosa. No caso de Fux, que o juiz-candidato assumira um compromisso informal de "matar no peito" o espectro da condenação do núcleo político da quadrilha. Agora, pela boca de Cândido Vacarezza, ex-líder do governo na Câmara, interlocutor do juiz e de João Paulo numa "reunião que me parecia fechada", a insinuação contra Fux roça a fronteira da acusação.

Combinam-se, na operação difamatória, o impulso cego da vingança e um cálculo político racional. A quadrilha e sua esfera de influência pretendem manchar a reputação do juiz, mas também contestar a legitimidade do Supremo na arena da opinião pública. Os condenados e seus porta-bandeiras estão seguros de que o vício é idêntico à virtude. Por isso, não se preocupam com os estilhaços lógicos desprendidos por seu bombardeio: segundo a versão que semeiam, o governo Dilma Rousseff trocou a indicação de Fux pela promessa de um voto favorável a réus do alto círculo do lulopetismo, algo que configuraria crime de responsabilidade.

No Antropologia, Immanuel Kant define a virtude como "a força moral da determinação de um ser humano no cumprimento de seu dever", e o vício como transgressão dos princípios da lei moral. A trajetória de Fux, das reuniões com os padrinhos que eram réus até as sessões de julgamento do mensalão, esclarece os dois conceitos kantianos. Na campanha promíscua de candidato ao Supremo, o juiz pode até não ter violado nenhuma lei, mas transgrediu a "lei moral" que manda separar os interesses privados do poder associado a uma posição pública ocupada ou almejada. Nos votos sobre o núcleo político da quadrilha, os melhores proferidos no STF, o magistrado não se limitou a aplicar a lei com competência e brilhantismo: ele revelou, junto com a maioria de seus pares, a "força moral" incomum de cumprir o dever fundamental dos juízes, que é o de submeter os poderosos à ordem jurídica geral.

A ofensiva difamatória da quadrilha é uma nova, repetitiva, descarga do lixo produzido por figuras deploráveis que, sem corar, exibem-se como arautos de sacrossantas causas políticas e sociais. A reação de Fux tem suas utilidades. Serve como vacina contra a crença ingênua nos discursos líricos do próprio Fux e como exposição involuntária do arcaísmo do Brasil oficial, que ainda não sabe o significado de "coisa pública".
Por: Demétrio Magnoli  O Globo



quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

JOSÉ DIRCEU: "SOU UM CUBANO-BRASILEIRO"



O Mídia Sem Máscara republica hoje artigo do historiador Carlos Azambujasobre a trajetória de José Dirceu, um dos delinqüentes maiores da máfia petista, que posa de vítima no caso do Mensalão, do qual foi o grande operador (tendo Lula como chefão) e que agora tem a cara de pau de afirmar que o Caso Rosemary Noronha, no qual seu nome já está envolvido, não é nada mais que uma nova armação de setores conservadores. Enfim, a velha inversão revolucionária de sempre.

Uma análise de “O Último Comboio”, capítulo do livro “A Revolução Impossível”, onde o papel de José Dirceu no terrorismo financiado por Cuba é abordado.

José Dirceu, em setembro de 1988, afirmou: “Nunca fui foquista. Participei da luta armada, apoiei, achava que era necessária, mas na verdade nunca acreditei nela como forma de luta” (página 110 do livro “Abaixo a Ditadura”, escrito por ele e por Vladimir Palmeira).

José Dirceu, em um seminário do Partido dos Trabalhadores, realizado dias 15 e 16 Abr 89, às vésperas da eleição presidencial, já vislumbrando uma provável vitória de LULA, e recordando-se do treinamento militar que recebeu em Cuba, com o nome de “Cmt Daniel”, disse: “Em vez de comandar uma coluna guerrilheira, o grande sonho de minha vida, vou ter que comandar uma coluna de carros oficiais em Brasília”.

No capítulo “O Último Comboio” do livro “A Revolução Impossível”, de autoria de Luis Mir, editado em 1994 pela Editora Best-Seller, 755 páginas, há as seguintes referências a José Dirceu de Oliveira e Silva, o kamarada “Daniel”, que foi militante do PCB, depois da Ala Marighela, depois da Ação Libertadora Nacional, depois do Molipo, e hoje do Partido dos Trabalhadores.

Na página 613: “Se radicara em Cuba depois de sua saída da prisão na lista dos 15 presos libertados em troca do embaixador norte-americano. Amargou um veto logo na chegada quando pediu o ingresso no treinamento militar e na ALN. O responsável pela organização em Havana, Agostinho Fiordelísio, lhe disse que deveria se integrar ao processo com vagar e não de imediato. Havia restrições de parte da ALN à sua figura desde seu tempo como presidente da União Estadual de Estudantes de São Paulo e candidato a presidente da União Nacional de Estudantes: carreirista e pouco confiável politicamente. Era, o que se chamava na época, de um quadro adormecido, ou seja, à espera do que fazer. Quando foi escolhido para a tarefa, estava inscrito no treinamento militar em Pinar Del Río, num grupo de militantes de várias organizações. É isolado para se dedicar exclusivamente a isso. Apresentado por Alfredo Guevara ao ministro da Defesa, Raúl Castro durante uma solenidade, os dois conversaram muito e marcaram um novo encontro. Começou a relação política e militar entre os dois. José Dirceu teve o acesso franqueado por Raúl Castro a documentos importantes sobre estratégia militar, informação e contra-informação, segurança militar. Finalmente, faz um curso e se torna especialista em questões militares. É essa especialização (e mais o treinamento militar) que o torna habilitado, segundo os internacionalistas cubanos, a viabilizar a entrada do contingente guerrilheiro que retomaria a luta. A transformação em quadro político-militar no aparelho internacionalista cubano surpreende a todos. Nos encontros políticos dos brasileiros, na capital cubana, para discutir a realidade brasileira e a caminhada revolucionária, suas opiniões eram vistas com desdém e as propostas que fazia, todas, eram invariavelmente derrotadas”.

Na página 615, um depoimento do também banido, militante da ALN, Agonalto Pacheco:

“O planejador do novo dispositivo político-militar dentro do Brasil foi José Dirceu, que fez tudo sem a menor base na realidade e a partir de Havana. A organização não tinha condições de receber ninguém, não havia a menor segurança. Tentamos discutir isso com Piñero, Valdes, Herrera (obs: respectivamente, chefe e membros da Inteligência cubana). Não pude falar com Dirceu, que vivia isolado. Todos nós que participamos, cubanos e brasileiros, temos que ter uma visão crítica desse processo, humildade revolucionária para assumir nosso papel e nossos erros”.

Na página 617, prossegue Luis Mir:

“O Grupo dos 28” (obs: ou Grupo Primavera ou Molipo-Movimento de Libertação Popular) “como ficou conhecido, eram 32. Destes, morreram 18 (...). Os sobreviventes são Itobi Alves Corrêa, que segundo Agostinho Fiordelísio estava em pânico quando lhe pede para livrá-lo da viagem ao Brasil (vai para o Chile e depois do golpe militar naquele país se radica em Paris); Vinicius Medeiros Caldevilla, que se recusa a embarcar e consegue permanecer em Cuba trabalhando na Rádio Havana; Luiz Araújo, que inicia a viagem de regresso mas deserta em Argel; Ana Corbisier, que entrou no Brasil e com o massacre que se dá, se refugia num convento de Freiras em Salvador, Bahia, trabalhando num revista católica e submergida na mais absoluta clandestinidade por cinco anos; José Dirceu, que retornou para Cuba, onde viveria longos anos trabalhando como quadro internacionalista para o governo cubano; um camponês conhecido como Brechu e Natanael de Moura Giraldi”.

Na página 618:

“Agostinho Fiordelísio confirma que o grupo de estudantes paulistas despertou nos dirigentes cubanos algo próximo da euforia: ‘O contingente militar do PCB era, efetivamente, o melhor que a ALN tinha trazido para Cuba. O esquema foi preparado por José Dirceu em menos de seis meses. O planejamento: o grupo entraria no Brasil e começaria a agir imediatamente. Resgataria os quadros que estavam detidos, se necessário com um grande seqüestro e, com a unidade revolucionária consolidada, se iria para o campo’. O Chile de Allende, o primeiro presidente socialista do continente, eleito em setembro de 70, daria a retaguarda política do novo projeto (...)”.

Prossegue Luis Mir: “José Dirceu desembarca no Rio no final de abril de 1971, no exato momento em que o fuzilamento de Marcio Leite Toledo demole a estrutura da ALN” (obs: Marcio Leite Toledo, um quadro da ALN, cursado em Cuba, foi “justiçado” na rua, em São Paulo, em 23 de março de 1971, por seus companh eiros).Aproveita a crise pessoal e política dos contrários à execução para convencê-los de que uma retomada, com novos dirigentes e práticas, estava em curso. Hiroaki Torigoi e Silvia Peroba Carneiro Pontes engajam-se na nova travessia. A primeira tarefa encomendada por Dirceu: assaltar um cartório para conseguirem certidões de nascimento e casamento para os militantes que estavam voltando. O assalto, num cartório de Santo André, periferia de São Paulo, foi bem sucedido. José Dirceu retorna a Cuba depois de diversas viagens pelo Brasil para verificar o que sobrara depois da morte de Câmara Ferreira” (obs: dirigente da ALN, morto em dezembro de 1970): “algumas poucas pessoas, aterrorizadas, e um pequeno núcleo de dez militantes comandados por Carlos Eugênio”(Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, um dos matadores de Marcio Leite Toledo, o último dos comandantes da ALN, que logo depois, em dezembro de 1972, abandonou seus comandados e viajou para Cuba, onde recebeu treinamento armado e, na hora de voltar para o Brasil, desertou, indo viver em Paris até a Anistia), “isolados e sem capacidade militar ou operacional. Apesar disso, seu relatório, feito em Havana, é otimista: a entrada do grupo teria boas condições de segurança. O momento em que os encarregados de reorganizar o movimento revolucionário voltam ao Brasil era o pior possível, segundo Carlos Eugênio: ‘Vivíamos acesos 24 horas por dia. Não tínhamos tempo de pensar em nada mais que não fosse a sobrevivência. Os militantes da ALN descobriram que havia uma nova organização revolucionária durante o assalto à Ericsson. Numa ação conjunta do GTA (Grupo Tático Armado) e do grupo Frente de Massas, dois grupos chegam quase que simultaneamente. Todos velhos conhecidos. Os “outros” eram os recém-chegados do Molipo”.

“Lídia Guerlanda rememora o espanto com os recém-chegados e seus planos: ‘O Molipo chegou como se nada tivesse acontecido. Já tinha acontecido, sim, a tragédia. Estávamos assaltando para comer, para sobreviver’”.

“No Presídio Tiradentes, a criação do Molipo provoca reações desencontradas e uma certeza sinistra: seria um grande massacre em curtíssimo prazo (...) De fevereiro a julho de 1971, forma-se um corredor de entrada dos militantes do Molipo através do Chile (...) Outro objetivo: o recrutamento de novos quadros entre os quatro mil exilados brasileiros no Chile, um grande celeiro de quadros (...) Em julho de 1971 Reinaldo Morano faz um balanço estatístico de tempo de sobrevivência na clandestinidade: seis meses”.

Por tudo isso, pode ser dito que o kamarada “Daniel”, embora tenha recebido treinamento armado em Pinar Del Rio e acesso a documentos importantes sobre estratégia militar, informação e contra-informação e segurança militar – facilitados por Raúl Castro -, o que, teoricamente, - contrariamente ao julgamento de seus próprios companheiros - o transformou em um especialista em questões militares, foi o grande responsável pela morte de todos os seus companheiros do Molipo que, seguindo suas ordens, voltaram clandestinamente ao Brasil.

Finalmente, (página 629) “Em 18 de agosto de 1971, viria à luz, em Milão, redigido por Ricardo Zaratini e Rolando Frati, a segunda parte do documento ‘Por uma Autocrítica Necessária’. Uma análise crítica devastadora sobre a luta armada, guevarismo, debraysmo, guerrilha rural e a derrota. Esse debate duraria cerca de dois anos, a partir de uma premissa básica: retornar ao PCB ou formar um novo partido comunista”.

Muitos retornaram ao PCB e outros tantos, como o kamarada “Daniel”, formaram – ou ajudaram a formar – um novo partido: o Partido dos Trabalhadores.

Recordemos que quando de sua posse como ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu depois de elogiar o ditador de Cuba, Fidel Castro, agradeceu seu apoio nos anos 70, quando o comandante o abrigou.Dirceu dedicou parte de seu pronunciamento para lembrar episódios da sua geração. Em tom nostálgico, disse que suas primeiras palavras seriam para aqueles que lutaram com ele e não puderam ver a posse de Lula.

No início de Abril de 2003, José Dirceu voltaria ao assunto, declarando que a geração que chegou ao poder com o presidente Lula deve muito a Cuba. Lembrou que nos anos do regime militar a esquerda teve a solidariedade de Cuba com “sua mão amiga e seu braço forte”. “A geração que chegou ao poder com Lula é devedora de Cuba. E me considero um brasileiro-cubano e um cubano-brasileiro”.
Carlos I. S. Azambuja é historiador.

MUDANÇAS DE POSIÇÕES NO EQUILÍBRIO ENERGÉTICO MUNDIAL

Grandes mudanças já estão a caminho no setor global de energia. Algumas dessas mudanças são contrárias às expectativas anteriores. O que nós percebemos agora, novamente, é que o capitalismo funciona. O capitalismo sempre resolveu nossos problemas básicos. Mesmo agora ele está resolvendo nosso problema energético.


Quatro anos atrás a Rússia era a potência crescente da produção de energia global. No livro de 2008 sobre a Rússia, intitulado Petrostate: Putin, Power and the New Russia, Marshall I. Goodman explica que “a Rússia [...] encontra-se em uma nova posição assertiva, e até mesmo dominante, no cenário internacional. Sua emersão como uma nova superpotência energética acontece simultaneamente ao enfraquecimento dos Estados Unidos que desperdiçou nossos [...] recursos no Iraque”. Mas o setor energético russo sempre foi um gigante manipulado pelo estado com seus próprios problemas.

Alguns na Rússia estão preocupados com o declínio da produção russa e com o aumento da produção energética norte americana, que também cresce em eficiência. Em uma matéria no dia 21 de novembro do Moscow Times, intitulada “What the U.S. Oil Revolution Means for Russia” (NT: O que a revolução petrolífera dos EUA significa para a Rússia, tradução livre), Chris Weafer escreveu: “O crescimento esperado nos estoques americanos de petróleo e gás é a mais séria preocupação para a Rússia e outros líderes de exportação”. De acordo com Weafer, a demanda americana de petróleo importado está para cair, além de ser esperada uma queda de 10 milhões de barris por dia até o fim do próximo ano. Ele também faz referência a um relatório da Agência Internacional de Energia, o World Energy Outlook 2012 (NT: Perspectiva Energética Mundial para 2012, tradução livre).

Em uma recapitulação do relatório no site da Agência Internacional de Energia, podemos ler: “O mapa energético global está mudando dramaticamente...”. De acordo com a diretora executiva da AIE, Maria van der Hoeven, “A América do Norte encabeça uma vasta transformação na produção de petróleo e gás que afetará todas as regiões do mundo...” O relatório World Energy Outlook “constata que o extraordinário crescimento na produção de petróleo e gás nos Estados Unidos significará uma gigantesca mudança nos fluxos de energia global”.

Ainda de acordo com o relatório da AIE, os Estados Unidos tornar-se-ão “quase autossuficientes energeticamente” em 2020 de modo que passarão a ser um fluente exportador de gás natural. Ainda mais surpreendente, diz-se que a América do Norte irá emergir como um fluente exportador de petróleo, “acelerando uma mudança na direção do comércio internacional de petróleo, dado que quase 90% das exportações de petróleo do Oriente Médio estarão direcionadas para a Ásia em 2035.”

Uma dúvida pode ser levantada: essas projeções são parte de alguma fantasia bizarra? Damian Carrington do britânico Guardian recentemente disse que o relatório da AIE é um lembrete de que “a ideia de que estamos no auge do petróleo virou cinzas”. Em uma manchete do Financial Times, diz-se que “EUA será o maior produtor mundial de energia”. Em uma matéria do dia 13 novembro para a Forbes, Mark P. Mills escreveu que “A Agência Internacional de Energia entra em harmonia com os produtores americanos de petróleo” começando com o seguinte comentário: “Recebemos de braços aberto a AIE na comunidade dos experts ao perceber que o mundo energético mudou. Leva algum tempo para os analistas e especialistas entrarem em consonância com os produtores.”

Enquanto o boom do gás natural atraiu muita atenção no ano passado, o boom petrolífero “tem agora a atenção de todos” comentou Mills. “O prognóstico da AIE sobre os EUA tornarem-se os maiores produtores de petróleo antes de 2020 tem enormes implicações econômicas e geopolíticas para todos”. E de fato tem.

Certamente o grande papai governista poderia colocar um fim no glorioso futuro energético da América. Burocratas que temem “mudanças climáticas globais” podem facilmente evocar regras e regulamentos que podem matar nossas melhores esperanças econômicas dos próximos anos. Deveríamos lembrar que os milagres criativos do capitalismo dependem da liberdade econômica, e esta está seriamente ameaçada nos dias de hoje. Lembro do ácido vídeo “If I wanted America to Fail”. Os leitores deveriam visitar o siteFreeMarketAmerica.org e ver outros vídeos educacionais sobre o ataque à liberdade econômica e o “milagre do livre mercado”. POR JEFFREY NYQUIST Publicado no Financial Sense.

O BRASIL TEM DONO?

Como os carros, os sapatos e os cachorros, países também podem ter donos. As antigas aristocracias, feitas de reis, rainhas, papas, prín­cipes encantados, bispos e barões – esses aparen­tados dos deuses cujo sangue deveria ser azul -, eram donas de seus países. Quando um rei era bom, tudo ia bem; quando era mau, esperava-se sua morte. Tudo estava plenamente estabelecido e era impossível trocar de lugar. Você não virava rei, você nascia e morria nobre, lacaio ou escravo; e, se fosse muito azarado, negro.


O regime aristocrático foi rompido, na Ingla­terra, pelo republicanismo da Revolução Gloriosa (em 1688) e, com muito mais radicalismo, pela Francesa (em 1789). Mas um outro tipo de gover­no restritivo da liberdade e de igualdade foi esta­belecido na era moderna pelos nazifascismos de Franco, Salazar, Mussolini e Hitler, a oeste; e pelo coletivismo comunista de Lênin e Stálin, a leste. Depois de 1945, o comunismo foi dono de China e Coreia do Norte, onde continua mandando até hoje. A partir do início de 1960, fidelizou Cuba. No comunismo, o domínio não era mais exercido por dinastias ou casas, como acontecia nas antigas aristocracias, mas por um partido político com sua implacável lógica de decidir em assembleias algo que já estava resolvido por seu micro comité cen­tral- que, como estamos testemunhando no caso chinês, pode incluir famílias e amigos.

O antídoto contra esse tipo de mandonismo tem sido, como ensina pioneiramente Alexis de Tocqueville em seu clássico “A democracia na Amé­rica”, aquilo que mais o espantou quando ele, em 1831, chegou aos Estados Unidos: a igualdade de condições de seus habitantes. Nesse caso, o país não é propriedade de nenhuma classe, família, pessoa ou partido, mas de seus cidadãos, que se ordenam por meio da liberdade e da igualdade. A liberdade inventa o jornal e a opinião pública. A igualdade reinventa uma justiça voltada para todos.

Se fizermos um inquérito, meu palpite é que uma grande maioria dirá, sem hesitações, que o Brasil tem dono. Seu dono é o governo. O go­verno de Fulano ou Sicrano, pois todo mundo sabe que é o governo quem – como um patrão ou dono – manda, ordena, decide, faz, dá, vende, desmancha, desperdiça ou destrói. Se o mundo é uma bola, como diz o ditado, essa bola tem dono. Temos dificuldade de lidar com aquilo que, sendo público, é de todos.


Talvez essas entregas sejam resultado incons­ciente do abandono que o Brasil sofreu após sua “descoberta”, em 1500. Um abandono de quase 100 anos, só retomado depois de ter sido quase perdido pelos namoros um tanto violentos – há quem fale em estupro ou violação – com os ho­landeses, em Pernambuco, e os franceses, que conquistaram O Rio de Janeiro sem romantis­mo nem etiqueta. Finalmente assumido por Portugal, o Bra­sil teve seus primeiros patrões na forma de uma alta centra­lização personificada nos go­vernadores gerais.O Brasil sempre se viu como possuído por alguém de um modo pessoal, e até mesmo apaixonado e amoroso. JK amou o Brasil como um homem ama uma mulher. Jânio Quadros o rene­gou, divorciando-se dele sem motivos. A ditadu­ra personalista de Vargas é vista como um longo casamento, como foi o de Dom Pedro II, nosso último Imperador. Mesmo na ditadura militar e no mais recente péríodo democrático, alguns pre­sidentes são vistos como mais ou menos apaixo­nados e donos do país.

Nosso momento mais glorioso e feliz ocorreu em 1808, quando a Família Real e a Corte vieram para o Brasil. Tínhamos agora um Rei que dava, em pessoa, as bênçãos e a mão delicada e branca para os beijinhos e as genuflexões de puxa-saquis­mo que tanto apreciamos. Ríamos quando ele ria. Ficávamos tristes quando ele chorava. Latíamos e rosnávamos quando ele ficava enfezado. Uivá­vamos quando ele ficava deprimido ou sofria de acessos de fúria. O dono do Brasil era um ser humano como outro qualquer – mas, por ter um lado Divino, era o dono sacrossanto do Brasil. Como o Brasil é abençoado por Deus e Deus é brasileiro, esse patrão era a fonte de todo bem. Pois para nós, brasileiros, o Rei, o Dono e o Patrão – o Cara – não têm culpa de nada e sempre desejam nosso bem-estar. De tal modo que, quando algo mau acontece, não é sua culpa. Pois é inconcebível que ele, em sua bondade ou com sua imensa vontade de cuidar do Brasil, possa ter culpa ou responsa­bilidade por alguma falcatrua ou malandragem. O mandão, por pior e mais demagógico que possa ser, é, por definição, um inocente de tudo o que ocorre a seu redor. Ele é dono do mundo, mas nada tem a ver com o que dá errado nele.

Aos poucos, um modelo de democracia basea­do na competição eleitoral e na opinião se estabe­leceu entre nós. Aos poucos, ficamos intolerantes com partidos políticos donos da verdade que se­riam, por tabela, donos do Brasil. Nossa intolerância se estende a ministros e políticos que compravam seus pares com o objetivo de permanecer para sempre no poder. Hoje, está mais claro que todos devem se submeter à lei e que não se pode mais usar a desculpa da ficção biográfica para justificar crimes cometidos contra as instituições republicanas que são de todos. Na economia, a era FHC fixou um padrão, com o Plano Real, e o STF julgou o mensalão de­baixo do crivo impecável dessa igualdade.

O resultado é que a pergunta “O Brasil tem dono?” pode ter muitas respostas. Sim, seu dono é o governo. Sim, seu dono é o grande capitalis­mo global. Sim, seu dono é o agronegócio. Sim, seu dono é o partido do governo. Mas o Brasil é também seu e meu, leitor. Ele é também do povo, esse novo patrão que veio para ficar. Por: Roberto DaMatta Fonte: revista “Época”

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O MITO DA AUSTERIDADE EUROPEIA


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Vários políticos e comentaristas, como Paul Krugman, alegam que o problema atual da Europa é a austeridade. Mais especificamente, alegam que os gastos dos governos europeus estão insuficientes. 

O argumento padrão é o seguinte: em decorrência das reduções nos gastos governamentais, a demanda na economia torna-se insuficiente. Isso leva a um aumento no desemprego. O desemprego piora a situação porque gera uma queda ainda maior na demanda agregada, o que por sua vez provoca uma queda nas receitas governamentais e um consequente aumento em seus déficits orçamentários. Ato contínuo, os governos europeus, pressionados pela infatigável Alemanha, aprofundam seus cortes de gastos, reduzindo novamente a demanda agregada da economia ao demitir funcionários públicos e cortar gastos assistencialistas. Isso, por sua vez, reduz ainda mais a demanda agregada, gerando uma infindável espiral baixista de desemprego e miséria. 

O que pode ser feito para se sair desta espiral? A resposta dada pelos comentaristas é simplesmente a de acabar com a austeridade, turbinando os gastos governamentais para elevar a demanda agregada. Paul Krugman chegou até mesmo a argumentar em prol de uma organização planetária contra uma invasão de alienígenas, o que induziria os governos a gastarem mais. E por aí vão as bizarrices. Mas esse raciocínio procede?

Em primeiro lugar, será que há realmente alguma austeridade na zona do euro? Um indivíduo só pode ser considerado austero se ele poupa, isto é, se ele gasta menos do que ganha. E a realidade é que não existe absolutamente nenhum país na zona do euro que seja austero. Todos eles gastam mais do que arrecadam de receitas.

Com efeito, os déficits orçamentários dos governos da zona do euro estão extremamente altos, em níveis insustentáveis, como pode ser visto no gráfico abaixo, o qual retrata os déficits de cada governo em porcentagem de seu PIB. Note que os números para 2012 são aqueles desejados por cada governo.
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Os números absolutos para os déficits — em bilhões de euros — são ainda mais impressionantes.
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Outro bom retrato da austeridade é comparar os gastos dos governos às suas respectivas receitas (o quão maior é o gasto público em relação à receita, em termos percentuais).
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Imagine que um conhecido seu tenha gastado, em 2008, 12% a mais do ganhou; em 2009, 31% a mais; em 2010, 25% a mais; e, em 2011, 26% a mais. Você diria que essa pessoa é austera? Você diria que esse comportamento é sustentável? Pois é exatamente isso o que o governo da Espanha tem feito. E ele vem se mostrando incapaz de mudar de postura. Perversamente, os comentaristas da mídia estão dizendo que é justamente essa "austeridade" a responsável pelo encolhimento da economia espanhola e pelo seu alto desemprego.

Infelizmente, austeridade é uma condição necessária para a recuperação da Espanha, da zona do euro, e de qualquer outra economia em recessão. A redução dos gastos do governo faz com que recursos reais — que até então haviam sido absorvidos pelo estado — sejam liberados e consequentemente disponibilizados para o setor privado. A redução dos gastos do governo faz com que novos projetos de investimento se tornem lucrativos e impede os antigos de irem à falência.

Considere o seguinte exemplo. João quer abrir um restaurante. Ele faz alguns cálculos. Ele estima que as receitas do restaurante serão de $10.000 por mês. Já os custos estimados são os seguintes: $4.000 de aluguel do espaço; $1.000 de conta de luz, água, gás e telefone; $2.000 pela comida; e $4.000 para os salários. Com as receitas estimadas em $10.000 e os custos estimados em 11.000, João não irá começar seu empreendimento.

Agora, suponhamos que o governo se torne mais austero, ou seja, ele efetivamente reduza seus gastos. Suponhamos que o governo extinga algumas agências reguladoras e alguns ministérios, e venda os prédios dessas burocracias no mercado. Como consequência, haverá uma tendência de queda nos preços dos imóveis e dos alugueis. O mesmo ocorrerá com os salários. Os burocratas demitidos sairão à procura de empregos no setor privado, e essa maior oferta de mão-de-obra exercerá uma pressão baixista sobre os salários. Adicionalmente, as agências e os ministérios abolidos não mais estarão consumindo energia e demais serviços de utilidade pública, o que gerará uma tendência de queda no preço destes serviços. João poderá agora alugar um espaço para seu restaurante no local onde funcionava uma destas burocracias por $3.000, dado que os alugueis estão barateando. Suas contas de luz, água, telefone, gás etc. caem para $500, e os burocratas demitidos poderão ser contratados para lavar pratos e servir mesas por $3.000. Agora, com as receitas estimadas em $10.000 e os custos em $8.500, o lucro esperado será de $1.500, e João poderá iniciar seu empreendimento.

Dado que o governo reduziu seus gastos, ele poderá reduzir também seus impostos, medida essa que poderá elevar o lucro líquido final de João (que agora tem de pagar um imposto de renda menor). Graças à austeridade, o governo foi capaz também de reduzir seu déficit. Aquele dinheiro que até então era emprestado ao governo para financiar seu déficit poderá agora ser emprestado para João para que ele faça seu investimento inicial: transformar as antigas instalações burocráticas em um restaurante. Com efeito, um dos principais problemas de países como a Espanha é que a poupança real dos cidadãos está sendo utilizada pelo sistema bancário não para financiar empreendimentos privados, mas sim para financiar o governo. Empréstimos estão praticamente indisponíveis para empresas privadas porque os bancos utilizam seus fundos para comprar títulos do governo a fim de financiar o déficit público.

No final, tudo se resume à seguinte questão: quem deve determinar o que deve ser produzido e como? O governo, que usa recursos alheios para proveito próprio (como expandir a burocracia por meio de agências reguladoras, ministérios, programas assistencialistas, guerras etc.), ou empreendedores em um ambiente concorrencial, batalhando entre si para satisfazer os desejos dos consumidores com produtos cada vez melhores e mais baratos (como João, que agora utiliza em seu restaurante parte dos recursos anteriormente imobilizados no aparato estatal)?

Se você crê que a segunda opção é a melhor, então a austeridade é o caminho certo. Mais austeridade e menos gastos governamentais significam menos recursos para o setor público (menos burocracia, menos agências reguladoras, menos ministérios) e mais recursos para o setor privado, que os utiliza para satisfazer os desejos dos consumidores (mais restaurantes). Austeridade é a solução para os problemas da Europa e dos EUA, uma vez que ela estimula o crescimento sólido e reduz os déficits governamentais.

Um PIB menor?

Mas não seria verdade que, ao menos temporariamente, a austeridade reduz o PIB e joga a atividade econômica em uma espiral descendente?

Infelizmente, o PIB é um número bastante enganador. O PIB nada mais é do que o valor de mercado de todos os bens finais e serviços produzidos em um país dentro de um dado período. 

Há dois motivos por que um PIB menor nem sempre é um mau sinal.

O primeiro motivo está relacionado à questão dos gastos governamentais. Imagine um burocrata do governo que emite alvarás de funcionamento. Quando ele nega a autorização para um determinado empreendimento, quanta riqueza foi destruída? Como calcular? Seria por meio das receitas esperadas desse empreendimento ou por meio de seus lucros esperados? E se o burocrata involuntariamente tiver impedido o surgimento de uma inovação que poderia evitar o desperdício de inúmeros recursos escassos para a economia? É difícil dizer qual o tamanho da destruição de riqueza provocada pelo burocrata. Poderíamos simplesmente, e arbitrariamente, pegar seu salário anual de $120.000 e subtraí-lo da produção privada da economia. O PIB seria menor.

No entanto — está sentado? —, o exato oposto ocorre na prática. Os gastos governamentais contam positivamente para o PIB. O salário do burocrata — e sua atividade destruidora de riqueza — eleva o PIB em $120.000. Isso significa que, se a agência reguladora desse burocrata for fechada e ele for demitido, então o imediato efeito dessa austeridade será uma redução de $120.000 no PIB. No entanto, essa redução no PIB é um ótimo sinal para a produção privada e para a satisfação dos desejos dos consumidores.

Segundo, se a estrutura de produção se encontra distorcida após um período de crescimento econômico aditivado pela expansão artificial do crédito, a reestruturação da economia também irá gerar uma queda temporária no PIB. Com efeito, o PIB só poderia ser mantido se a estrutura de produção permanecesse inalterada. Mas a permanência dessa estrutura distorcida e artificial representaria um consumo de riqueza, e não uma produção.

Se a Espanha ou os EUA tivessem continuado utilizando a mesma estrutura de produção vigente durante seus anos de crescimento, eles teriam continuado construindo a quantidade de imóveis que construíram em 2007. Vários recursos escassos teriam sido desperdiçados nesses projetos, mais empresas estariam falidas no futuro e haveria menos capital disponível na economia. A reestruturação de uma economia que foi artificialmente distorcida pelo crédito farto e barato direcionado ao setor imobiliário requer justamente um período de encolhimento do setor imobiliário. Mais especificamente, tal setor terá de fazer um menor uso dos fatores de produção, liberando mão-de-obra e capital para outros setores. E estes fatores de produção devem ser transferidos para aqueles setores onde eles estão sendo demandados com mais urgência pelos consumidores. 

A reestruturação não é instantânea; ela é organizada e conduzida por empreendedores em um processo dinâmico e competitivo que é incômodo, fatigante e que leva tempo. Durante esse período de transição, quando os empregos naqueles setores artificialmente inchados da economia estão sendo destruídos, o PIB tende a cair. Essa queda no PIB é apenas um sinal de que a necessária reestruturação da economia já está ocorrendo. A alternativa seria continuar produzindo a mesma quantidade de imóveis produzida em 2007. Se o PIB não caísse acentuadamente, isso significaria que a expansão econômica destruidora de riqueza estaria continuando exatamente como estava nos anos 2005—2007.

Conclusão

A austeridade do governo é uma condição necessária para a prosperidade privada e para uma rápida recuperação econômica. O problema da Europa (e dos EUA) não é o excesso, mas sim a escassez de austeridade — ou melhor, a sua completa ausência. Uma queda no PIB pode ser um indicador de que a necessária e saudável reestruturação da economia já está ocorrendo.

Philipp Bagus 
é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.  É o autor do livro A Tragédia do Euro.  Veja seuwebsite.

Tradução de Leandro Roque

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O HUMANISTA QUE AMAVA STALIN

Oscar Niemeyer era quase uma unanimidade. A reação à sua morte comprova isso. Mas será que tanta reverência se deve somente às suas qualidades artísticas? Muitos consideram que Niemeyer foi um gênio. Não sou da área, não me cabe julgar. Ainda assim, não creio que tanta idolatria seja fruto apenas de suas curvas.
Tenho dificuldade de entender por que o responsável pelo caríssimo projeto da construção de Brasília, o oásis dos políticos corruptos afastados do escrutínio popular, mereceria um prêmio em vez de um castigo. Por acaso as pirâmides do Faraó eram boas para o povo? Mas divago.
Eis a questão: por que Niemeyer foi praticamente canonizado? Minha tese é que ele representava o ícone perfeito da CHEC (Comunistas Hipócritas da Esquerda Caviar). No Brasil, você pode ser podre de rico, viver no maior conforto de frente para o mar, mamar nas tetas do governo, desde que adote a retórica socialista.
Falar em “justiça social” enquanto enche o bolso de dinheiro público, isso merece aplausos por aqui. Já o empresário que defende o capitalismo, produz bens demandados pelo povo e não depende do governo é visto como o vilão. Os discursos sensacionalistas valem mais do que as ações concretas. Imagem é tudo!
As curvas traçadas pelo “poeta do concreto”, que considerava o dinheiro algo “sórdido”, custavam caro. Quase sempre eram pagas pelos nossos impostos. Foram dezenas de milhões de reais só do governo federal. Muito adequado o velório ter sido no Palácio do Planalto, o maior cliente do arquiteto. Licitação e concorrência? Isso é coisa de liberal chato.
Niemeyer virou um ícone contra o excesso de razão nas construções, mas acabou com extrema escassez de razão em suas ideias políticas. Sempre esteve do lado errado, alimentado por um antiamericanismo patológico. Defendeu os terroristas das Farc, os invasores do MST e o execrável regime comunista, mesmo depois de cem milhões de vidas inocentes sacrificadas no altar dessa ideologia.
Ele admirava os tiranos assassinos Fidel Castro e Stalin, e chegou a justificar seus fuzilamentos. Até o fim de sua longa vida, usou sua fama para disseminar essa utopia perversa, envenenando a cabeça de jovens enquanto desfrutava do conforto capitalista.
No meu Aurélio, há uma palavra boa para definir pessoas assim, que curiosamente vem antes de “craque” e depois de “crânio”. Talvez Niemeyer fosse as três coisas ao mesmo tempo.
Roberto Campos certa vez disse: “No meu dicionário, ‘socialista’ é o cara que alardeia intenções e dispensa resultados, adora ser generoso com o dinheiro alheio, e prega igualdade social, mas se considera mais igual que os outros.” Bingo!
Para quem ainda não está convencido de que toda essa comoção tem ligação com sua pregação política, pergunto: seria a mesma coisa se ele defendesse com tanta paixão Pinochet em vez de Fidel Castro? A tolerância seria a mesma se, em vez de Stalin, fosse Hitler o seu guru?
E não me venham dizer que são coisas diferentes! Tanto Stalin como Hitler eram monstros, da mesma forma que o comunismo e o nacional-socialismo são igualmente nefastos. Que grande humanista foi esse homem que defendeu até seu último suspiro algo tão desumano assim?
Acho compreensível o respeito pela obra de Niemeyer, ainda que gosto seja algo subjetivo e que a simbiose com o governo mereça críticas. Entendo o complexo de vira-lata que faz o povo babar com os poucos brasileiros famosos mundialmente. Mas acho inaceitável misturarem as coisas e o colocarem como um ícone do humanismo. Não faz o menor sentido.
Seu brilhantismo como artista não lhe dá um salvo-conduto para a defesa de atrocidades. É preciso saber separar as coisas, o gênio artístico do homem e suas ideias. E tenho certeza de que não é apenas sua arquitetura que gera essa idolatria toda. Basta ver a reação quando questionamos a pessoa, não o arquiteto.
Sua neta Ana Lúcia deixou clara a confusão: “As ideias que ele tentou passar de humanismo, justiça social, isso é tão importante quanto as obras dele. Acho que a gente tem que preservar e difundir o pensamento dele.” Como assim?
Aproveito para avisar que sou sensível ao sofrimento das vítimas do comunismo, mas sou imune à patrulha ideológica da CHEC. A afetação seletiva da turma “humanista” não me sensibiliza. É até cômico ser rotulado de radical por stalinistas.
Por fim, espero que Niemeyer chame logo seu camarada Fidel Castro para um bate-papo onde ele estiver, e que lá seja tão “paradisíaco” como Cuba é para os cubanos comuns. Talvez isso o faça finalmente mudar de ideologia...
Rodrigo Constantino, O GLOBO

A DERROTA DO SUPEREGO

"O Superego, que é gradualmente formado no "Ego", se comporta como um vigilante moral. Contém os valores morais e atua como juiz moral. Inconscientemente, o Superego faz a censura dos impulsos que a sociedade e a cultura proíbem ao Id, impedindo o indivíduo de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É o órgão da repressão, particularmente a repressão sexual. Manifesta-se na consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres." 

Sigmund Freud, em "O Ego e o Id" de 1923.

O que um texto tão antigo de psicologia tem a ver com a economia? Partindo do pressuposto que a economia é a soma das ações e desejos de indivíduos (nem sempre racionais), eu diria que tem tudo a ver.

Para entender melhor a profunda transformação que o mundo passa, é necessário analisar a profunda transformação (para pior) que os valores das sociedades ocidentais vêm sendo submetidos. Começando pelo sintoma em si, a dívida. O mundo ocidental vive hoje sob o peso de uma dívida impagável. Parte no setor privado, parte no setor público, ambas igualmente impagáveis. O que levou a este crescimento brutal do endividamento? Simples. O crescimento dos gastos de pessoas e governos ter sido bem superior ao incremento das receitas.

O gráfico ao lado, das despesas do governo americano (poderia ser de qualquer país ocidental) desde o pós-guerra, ilustra bem o crescimento contínuo ao longo dos anos das despesas públicas. O fato é que, nos últimos 60 anos, nos tornarmos cada vez mais mimados e gastões enquanto sociedade. Os valores tradicionais de poupança, sacrifício e estoicismo definitivamente não fazem parte do nosso repertório. O mantra dos dias atuais é: "o importante é ser feliz, deu vontade? Então faça". Vivemos a ausência do superego como um freio aos nossos impulsos. Deu vontade de comprar aquele carro novo? Que se danem as 72 parcelas com juros gordinhos. O verão está chegando e você não vai fazer aquele cruzeiro com o Rei Roberto Carlos? O cartão de crédito está aí para isso mesmo; depois se dá um jeito de pagar. Ou não.


Será que virei um “socialista chatinho”? Não! Tudo a favor do capitalismo, da inovação e do livre mercado, mas me parece que há algo errado nas longas filas de pessoas trocando o seu Iphone X (comprado há meses) pelo novíssimo Iphone X+1. Não vejo problema com o consumo, quem sou eu para julgar se é excessivo ou não? O problema está quando quem financia esse consumo é a dívida e não um eventual incremento de receita.

Esta geração de superego castrado parece não entender que a conta chega. Pode demorar, mas chega. Por hora, essa gente se enamorou do estado super provedor que está em alta por toda parte. Ou seja, a responsabilidade por gastar menos do que ganho não é minha. Quem equilibra as minhas contas no fim do dia é o estado babá. É bolsa disso, cota daquilo, subsídio aqui e financiamento barato acolá. Até nos Estados Unidos, o maior sucesso da liberal democracia mundial, parece que a demografia transformou essas pessoas estado-dependentes em maioria. 

Este declínio de valores está destruindo o mundo ocidental (que um dia teve valores judaico-cristãos). Em algum tempo, a China ultrapassará os Estados Unidos como a maior economia do mundo. Estudos apontam que a Rússia, por volta de 2020, passará a Alemanha. 

Receio que a hegemonia econômica acabará nas mãos de povos com valores muito distintos dos nossos. Pior do que perder uma partida disputada é entregar o jogo de bandeja. E através desta inversão, vamos assistindo o mundo ocidental abrir mão de seus valores e adotar valores estranhos em nome de conceitos absurdos como o multiculturalismo. 

Vejamos o caso europeu. O casal moderno mal tem um filho, que será educado e após ingressar no mercado de trabalho será taxado entre 50% e 70% de sua renda. Esses impostos irão sustentar os quatro (ou mais) filhos do casal muçulmano (que sabemos, mal irão trabalhar). Não há economia que resista a isso. A conta não fecha. Alguns moderninhos irão dizer que este pensamento é xenófobo. Se uma família de imigrantes paraguaios se instala na casa de um brasileiro e essa pessoa concorda em sustentá-los, é simplesmente burrice e não multiculturalismo, em minha opinião.

Está claro que o ocidente está descendo a ladeira, e não por conta da crise de 2008. Trata-se um longo processo em curso. E neste ambiente de desconstrução como ficam os nossos investimentos?

Começando pelas moedas, que são, ou deveriam ser, nossa reserva de valor. A supremacia de uma moeda não ocorre da noite para o dia e nem é fruto da vontade de alguém. Trata-se de um processo que reflete um domínio econômico, tecnológico e mercantil. Que por sua vez teve como base uma cultura e valores sólidos. O que está em curso é a redução da relevância do dólar e do euro. E notem que a recente desvalorização, por conta da impressão desenfreada de numerário, não é a causa e sim o sintoma de algo maior em curso. 

Sabemos quem está perdendo relevância, mas ainda não está claro quem ocupará esses espaços. A moeda chinesa é um candidato provável, mas é um processo muito longo e com muita volatilidade no meio do caminho. Nestes tempos de grandes mudanças nada melhor que um bom consultor de investimentos, que pode lhe ajudar até na escolha de ativos não financeiros. O que nos parece prudente é que o investidor, neste desarranjo de referências de reserva de valor, comece a considerar uma parcela cada vez maior de ativos reais em sua carteira. Afinal, em tempos de incerteza, para onde flui o dinheiro? Porém, deve-se notar que esse processo deve ser feito com sabedoria pois não faltam ativos reais caros por aí.

Quando se analisa os títulos governamentais de países como Estados Unidos, França e até mesmo Alemanha, causa espanto ver que investidores aceitem juros reais negativos para carregar papéis de países bem endividados. Já falamos aqui que essa conta será paga preferencialmente via uma maior inflação global. Quando isto ocorrer, os títulos de renda fixa (governamentais e corporativos) irão sofrer bastante em termos de preço para que se ajustem aos novos patamares de taxa de juros.

Alguns olham para a bolsa como ativo real. Embora eu ache as ações, como classe de ativo, mais atrativas que os títulos de renda fixa, devemos lembrar que uma ação nada mais é que um fluxo de caixa descontado a uma taxa. Tendo isso em mente, vemos um fluxo de caixa que tende a piorar, tanto pelo aumento de taxação pelo mundo (começando com o Obama), quanto pela menor atividade (lembre-se, o mundo ainda está desalavancando). E teremos também uma maior taxa de desconto, afinal os juros não ficarão no chão para sempre. Nesta classe de ativos a seleção também será importante.

Nesta carta falamos dos ativos e da economia em termos globais, deixaremos as desventuras de Dilma e seus meninos para depois. Por hora é bom saber que estamos no meio de uma complexa transformação que não deixará o mundo como nós o concebemos.