sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

UMA SOCIEDADE ADOLESCENTE

Em meu último artigo tratei do lado moral da crise que os países desenvolvidos enfrentam. Algumas pessoas podem estranhar o foco, pois sou economista. Gostaria de lembrar que Adam Smith, antes de escrever sobre a riqueza das nações, escreveu "Teoria dos Sentimentos Morais". Debater o crescimento de 1% ou 2% do PIB pode ter sua relevância; mas economia é muito mais que isso.


Eis porque retorno ao tema da crise de valores, desta vez priorizando o caso latino-americano. Se Japão, Estados Unidos e Europa passam por um declínio moral, parece que a América Latina, em especial o "eixo do mal" bolivariano, sequer experimentou uma fase de maturidade. Estamos estagnados na era do infantilismo.

É por isso que recomendo a leitura de "A sociedade que não quer crescer", do argentino Sergio Sinay. O livro disseca os perigos do fenômeno que podemos observar facilmente no Brasil também: adultos que se negam a ser adultos. São os "adultescentes".

Como a Argentina parece estar em estágio mais avançado da patologia, os alertas de Sinay tornam-se ainda mais importantes. A Argentina pode ser o Brasil amanhã, o que é uma visão assustadora. Não só porque a presidente exagera no botox, mas porque a volta ao passado populista se dá a passos largos.

O autor faz a ligação entre essa postura infantil de boa parte da população e a anomia em que vive seu país, cada vez mais bagunçado e autoritário. É o que acontece quando os adultos preferem agir como adolescentes, no afã de postergar ao máximo a velhice.

Maturidade exige renúncia, sacrifício, responsabilidade e compromisso. Tudo aquilo que muitos adultos modernos fogem como o diabo foge da cruz. Talvez para aplacar sua angústia existencial, esses adultos desejam permanecer jovens para sempre, e agem como tal. São colegas de seus filhos, e delegam a responsabilidade de educá-los a terceiros. Confundem seus caprichos com direitos. Nas palavras do autor:

"Uma sociedade empenhada em permanecer adolescente vive no imediatismo, na fugacidade, nas rebeliões arbitrárias que a nada conduzem, na confrontação com as regras – com qualquer regra, pelo simples fato de existirem – no risco absurdo e inconsciente, na fuga das responsabilidades, na ilusão de ideais tão imprevistos como insustentáveis, na absurda luta contra as leis da realidade que obstruem seus desejos volúveis e ilusórios, na rejeição ao compromisso e ao esforço fecundo, na busca do prazer imediato, ainda que se tenha que chegar a ele através de atalhos, na confusão intelectual, na criação e adoração de ídolos vaidosos colocados sobre pedestais sem alicerces".

Impossível não pensar em Chávez, Morales, Corrêa, Kirchner e Lula. Ou ainda nos artistas e atletas famosos que levam vidas altamente questionáveis do ponto de vista ético, mas ainda assim viram heróis nacionais. Eis o exemplo que Sinay usa do lado argentino:

"Uma sociedade é adolescente quando carece de critérios para distinguir entre as habilidades futebolísticas de seu maior ídolo esportivo, Diego Maradona, e suas condutas irresponsáveis, sua ética duvidosa, seus valores acomodatícios; quando acredita que aquelas habilidades justificam tais ‘desvalores’ e quando, assim como um adolescente, os vê como um tributo invejável".

Não podemos ridicularizar nossos "hermanos" nesse ponto. Basta pensar nos nossos próprios heróis. Para sair do futebol, que tal Oscar Niemeyer? Os brasileiros não souberam separar seu talento artístico do restante, e criaram a imagem de um grande humanista abnegado. Um humanista que, como já abordei nesse espaço, adorava o maior assassino de todos os tempos: Joseph Stalin.

Mas a simples constatação de que não se pode ser um grande humanista e um defensor de Stalin ou Fidel Castro ao mesmo tempo, bastou para gerar reações histéricas: "Quem você pensa que é para falar do grande mestre?"

O colunista Zuenir Ventura também reagiu: "Algumas críticas ideológicas a Oscar Niemeyer depois de morto revelam, de tão iradas, que no Brasil foi fácil acabar com o comunismo. O difícil é acabar com o anticomunismo". Resta perguntar: e devemos acabar com a oposição a esta utopia que trucidou dezenas de milhões de inocentes?

O comunismo foi o sonho adolescente de intelectuais que pariu o pesadelo real de milhões de pessoas. Combatê-lo é um dever moral. Hoje ele se adaptou, mudou, mas ainda sobrevive como "socialismo bolivariano", com que muitos brasileiros flertam.

Até quando vamos viver em uma sociedade adolescente, que se recusa a amadurecer e deposita no "papai" governo uma fé messiânica? Por: Rodrigo Constantino, O GLOBO

FEIJÃO CAPITALISTA

Boa parcela da opinião pública acredita que a comida do povo vem do agricultor familiar, enquanto o agronegócio capitalista serve ao comércio exterior. Ledo engano. O equívoco nasce de uma ideia antiga, superada. Hoje manda a integração produtiva no campo.


A começar do ciclo açucareiro colonial, no Nordeste, a historiografia consagrou distintas funções, e certa oposição, entre a grande propriedade rural, dominante, e a agricultura de subsistência, que vivia em suas beiradas. Existia, realmente, um dualismo. Escritores famosos, como Caio Prado Jr., sempre descreveram a grande lavoura - o latifúndio ou a plantation - como aquela destinada à exportação, de açúcar, cacau ou borracha. Produzir alimento básico era coisa de pobre.

Quando chegou o ciclo da mineração, no século 18, o deslocamento da população - a maioria escrava - rumo ao Sudeste, exigiu fortalecer a produção de alimentos. Desde os pampas gaúchos, dedicado à pecuária e ao seu valioso charque de carne, por todo o Centro-Sul surgiram novos agricultores, animados por atenderem o consumo interno criado nas atividades auríferas das Minas Gerais.

Mais tarde, na economia cafeeira de São Paulo, já livre da escravidão, o colonato favoreceu o cultivo de gêneros alimentícios, seja entre as ruas do cafezal novo, seja em áreas destacadas da fazenda. Caminhava a economia livre. Mas a crescente demanda nas cidades brasileiras trouxe à tona a questão do abastecimento urbano. Em 1901, relatava Alberto Passos Guimarães - A Crise Agrária, 1978 -, quase 43% das importações brasileiras, em valor, representavam produtos básicos, incluindo feijão, fava, milho, arroz, banha e manteiga. Com escassez os preços elevaram-se, estimulando os pequenos agricultores. Plantar comida passava a oferecer lucro.

A partir da grande crise mundial, dos anos 1930, a diversificação da economia brasileira, na cidade e no campo, aprofundou-se. Décadas depois, com o forte êxodo rural alargando as metrópoles, a necessidade do abastecimento nas periferias transformou definitivamente a agricultura de subsistência em próspero negócio. Além do tradicional arroz com feijão, os moradores do asfalto exigiam ovos, carnes, verduras e legumes, frutas, leite; aos roceiros bastava produzir e vender. Daí surgiram os Ceasas, sacolões, varejões e, claro, os supermercados. Mudou a distribuição no varejo dos alimentos.

Mudou também, e muito, o caráter da produção rural. Ela ganhou escala e tecnologia, cresceu em produtividade, integrou-se às agroindústrias, aprendeu a comercializar, buscou financiamento. O raciocínio guarda lógica: as cidades brasileiras jamais teriam sido abastecidas - e bem ou mal o foram - sem uma grande transformação ocorrida no campo. Que prossegue acelerada.

Nesse processo histórico, as análises dualistas sobre a agricultura perderam razão. Sim, existem ainda os tradicionais agricultores de subsistência, a maioria empobrecida no semiárido nordestino. Enfraqueceu-se, porém, com a modernização agrária a antiga oposição entre a grande e a pequena produção. Ambas, com tecnologia, passaram a ser regidas pela lucratividade do mercado, seja interno, seja externo. Assim, tornaram-se complementares, e muitas vezes se confundiram. Vejam alguns exemplos.

Típica da velha família rural, a banha de porco acabou substituída na cozinha pelos óleos vegetais. O mais barato, de consumo popular, origina-se do esmagamento do grão da soja. Pois bem, no Paraná e no Rio Grande do Sul, grandes plantadores da oleaginosa, 90% da produção advém de agricultores familiares, ligados às grandes cooperativas exportadoras. Ou seja, a mesma agricultura que gera divisas garante a fritura na mesa. Sem distinção.

No café, a maior parte da safra brota das lavouras mineiras, grandemente ligadas às cooperativas. A Cooxupé, a maior delas, aglutina 12 mil cafeicultores, sendo 80% pequenos produtores rurais. Do embarque total de grãos nos pátios da cooperativa (2011), perto de 15% se destinou às torrefadoras do mercado interno; a grande parte seguiu exportada. Pequenos, juntos, ficam grandes.

Em cada ramo da agropecuária nacional se pode verificar essa junção entre o agronegócio capitalista e a produção familiar, sendo difícil separar, no destino, o mercado interno do externo. Na cultura da cana, em que preponderam os grandes usineiros, cerca de 70% do açúcar se exporta, mas o etanol, que enche o tanque dos veículos, dos pobres principalmente, fica aqui dentro.

Quem produz frango, o agricultor familiar ou o agronegócio? Resposta fácil: ambos. As empresas frigoríficas representam grandes negócios, privados ou cooperativados; já os avicultores, a elas integrados, são familiares. 

E o feijão? A maioria da produção, é verdade, advém de pequenos produtores. Estes, entretanto, não se configuram mais como de subsistência, vendendo apenas o excedente. Que nada. Espelham agricultores altamente tecnificados.

Nos Estados Unidos, sabe-se, a mecanização da agricultura provocou, ao mesmo tempo, o aumento da escala de produção e o fortalecimento da gestão familiar, preponderante por lá. Tal processo se caracteriza, por aqui, especialmente em Mato Grosso, onde enormes fazendas produzem soja e milho, nas lavouras tocadas pelos próprios produtores e seus filhos. Negócios gigantes, familiares.

Essas histórias mostram que ser familiar não necessariamente significa ser pequeno. E comprovam que pequeno agricultor pode, perfeitamente, participar do agronegócio, quer contribuindo para a exportação, quer alimentando o povo.

Pode acreditar: inexiste oposição entre agricultura familiar e agronegócio. O feijão virou capitalista.
Por: Xico Graziano O Estadão

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

FIGURAS

Façamos um teste — responda rápido: qual é o nomecompleto de sua empregada doméstica?


Vivemos de figuras de todo tipo, como a de inocentes e de criminosos. De poetas e políticos — uns mentem falando a verdade; os outros são viciados em tratar da verdade mentindo.

A palavra "figura" agasalha muitos sentidos. O mapa do Brasil é uma figura na forma de presunto como dizia Lima Barreto. Todo mundo sabe quem o come, mas "figura" que não sabe. Eis um outro sentido para essa imensa palavra: o fingir ou esquecer.

Todo ser imaginário é uma figura que é carta de baralho e configuração geométrica. A pirâmide serve como uma boa representação de um Brasil onde poucos governam ganhando muito e onde muitos são governados recebendo pouco.

"Figura" também significa aspecto, emblema, alegoria. Até ante ontem, a figura de uma pessoa negra etiquetava um escravo; hoje, uma consciência maior da nossa alergia à igualdade, faz o uniforme branco das babás virar um problema anunciado em pelo pelos duas colunas importantes: a do Ancelmo Gois e o da Miriam Leitão.

E, no entanto, o branco é uma representação do limpo e do transparente. Símbolo da paz não deixa de ser curioso como o branco se relaciona com os fantasmas envoltos em nevoa. Esse nevoeiro de um Brasil escravocrata que escondemos, no qual o branco figurava como uma personificação da propriedade pessoas.

Uniformizar, como disse Max Weber, faz parte do mundo moderno onde médicos, garçons, policiais, engenheiros, cientistas e operários estão uniformizados. A questão é o uso obrigatório e simbólico da roupa para distinguir as babás nesses clubes de elite. Ser de elite dispensa para cima; já o uso obrigatório do uniforme distingue para baixo. Uma presumida superioridade dada pela riqueza, pelo poder ou pela celebrização extingue a culpa, do mesmo modo que o emprego doméstico deve lembrar — pela roupa usada como cicatriz ou estigma — a origem escravocrata do serviço que promove a intimidade mas (e ai está o ponto) não pode conduzir a igualdade. Ora, uma intimidade (o dar a mão) sem igualdade (o não tomar o braço) tem sido o princípio estruturante de toda a nossa vida social.

Uma das babás diz ao jornal (O Globo) que elas não tem nome. São "babás": o papel social de anjos da guarda dos filhinhos amados de suas bem postas patroas, promove o sumiço de suas cidadanias. Sempre foi assim. Façamos um teste — responda rápido: qual é o nome completo de sua empregada doméstica?

Entre a escravidão na casa e o pseudomoderno emprego doméstico quase não há hiato. A continuidade foi feita abafando a igualdade mas mantendo a intimidade que humaniza a todos não liquidando, porém, as subordinações. No fundo, o problema não são somente das babás mas das patroas receosas de serem confundidas com suas "criadas" na medida em esses serviços se profissionalizam e trazem à tona esses dilemas.

Há aqui um sintoma da silenciosa mas permanente, revolução igualitária que se realiza hoje no Brasil. Ela surge na indignação com administradores públicos corruptos e ineficientes; com o populismo calhorda que aristocratiza roubando, e é profundamente anti-igualitário porque deseja a exceção e o retorno do poder como instrumento de aristocratização; e passa por essas barbaridades de assassinar em lugares públicos como ruas e restaurantes porque o "outro" não sabe com quem está falando. Ai temos crimes cometidos em nome de uma desavença pessoal interpretada como falta de respeito porque o se desconhecido se não se comportar como um inferior ele vira um inimigo.

Toda reação contra a regra da lei para todos revela esse nosso temor de uma impessoalidade que conduz ao igualitarismo contrário a boa e velha hierarquia que nos indicava com quem falávamos. É terrível ver sumir o mundo de exclusividades e testemunhar a raia miúda frequentando locais e usando roupas privativas dos grã-finos.

O surto de uniformizar para distinguir para baixo faz parte dessa reação a igualdade que chega para calibrar a liberdade excessiva dos que tem muito. Como distinguir para baixo se todo mundo está ficando muito parecido? Como saber com quem se está falando se não se sabe mais quem é a mãe ou a babá da criança?

Eu seria favorável ao uso compulsório do uniforme branco nos clubes se os bandidos também fossem obrigados a usar as mascaras típicas de suas figuras. Mas ai o (des)mascarar seria equivalente a revolução que tanto queremos e — eis a questão — não queremos. Senão não seriamos campeões mundiais de empregadas domésticas. Por: Roberto DaMatta O Globo

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

NAUFRÁGIO TRIBUTÁRIO

Considerar que a função das empresas é gerar receita tributária emperra o país. Dilma deve impor concepção desenvolvimentista à Receita

Talvez um dos principais fatores do fracasso econômico do governo Dilma Rousseff em seus dois primeiros anos -com alta inflação, baixo PIB, um dos últimos lugares em crescimento na América Latina, pouco investimento, perda de competitividade internacional e crescimento da esclerosada máquina burocrática- seja o confuso, arcaico e oneroso sistema tributário.

Mediante ciclópicos autos de infração, a produção de complexas normas auxilia a fragilizar as empresas.

Militando há 55 anos na área fiscal e tendo convivido com os pais do Direito Tributário brasileiro, à época em que as leis eram feitas por juristas e não por "regulamenteiros", tenho acompanhado a deterioração do sistema.

O cidadão, jamais consultado, vê-se de mais em mais envolvido num emaranhado de leis, portarias, instruções normativas, soluções de consulta. A única certeza que se apresenta é a insegurança jurídica.

Pretende a presidente Dilma atrair investimentos, mas a Receita Federal auxilia a afastá-los, considerando operações suspeitas fusões, incorporações e outras formas de agregação de sociedades. Isso tisna a agilidade competitiva das empresas brasileiras perante aquelas de outros países.

A famosa norma antielisão (LC 104/01), que ainda não foi regulamentada, é, sob disfarces diferentes, amplamente utilizada para inviabilizar tais operações, sob a alegação de que, ao escolher entre duas soluções rigorosamente legais, deve o contribuinte sempre adotar a que se apresentar tributariamente mais onerosa.

Não discuto a idoneidade dos agentes fiscais, mas, sim, a errônea filosofia de que a função da empresa é gerar receita tributária e não provocar o desenvolvimento econômico e social do país. Essa filosofia está emperrando, definitivamente, o governo da presidente Dilma, não só com medíocre performance econômica, mas também com a desestabilização do terceiro setor -que faz o que o governo deveria fazer com nossos tributos-, sendo perseguido pelo poder público como se fosse fonte de receita tributária e não de assistência social e educação.

Participei da comissão de especialistas nomeada pelo Senado para propor uma reformulação do pacto federativo e do sistema tributário. Éramos 13 e, após seis meses de intensos trabalhos, apresentamos 12 propostas de emendas constitucionais, leis complementares, resoluções do Senado e leis ordinárias. Entregues em 30/10/2012 ao presidente do Senado, elas continham soluções para o equacionamento da guerra fiscal, novos critérios para os fundos de participação dos Estados e municípios, para os royalties do petróleo e para a reformulação da partilha tributária.

Apenas no que concerne à guerra fiscal, o governo federal aproveitou as sugestões.

Como o mandato não foi renovado, não pudemos continuar o trabalho para uma reforma tributária completa. Enquanto isso, o país naufraga num sistema que o próprio governo reconhece de há muito ultrapassado.

Na década de 60, no Canadá, a "Royal Comission of Taxation" se voltou a promover justiça social e desenvolvimento por meio de uma política tributária correta, que privilegia esses objetivos em lugar da mera arrecadação. Seu incremento decorre, necessariamente, do atingimento de ambos.

Creio que, se a presidente Dilma não impuser uma filosofia desenvolvimentista à Receita Federal, baseada no modelo canadense, dificilmente sairemos dos últimos lugares de desenvolvimento e seu governo continuará a ostentar um dos piores índices da América Latina, com baixo crescimento e alta inflação.
Por:Ives Gandra Martins  Folha de SP

UM CIDADÃO ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA

São abundantes os indícios que ligam Lula a um conjunto de escândalos. O que está faltando é o passo inicial que tem de ser dado pelo Ministério Público: a investigação das denúncias

Luís Inácio Lula da Silva se considera um cidadão acima de qualquer suspeita. Mais ainda: acha que paira sobre as leis e a Constituição. Presume que pode fazer qualquer ato, sem ter que responder por suas consequências. Simula ignorar as graves acusações que pesam sobre sua longa passagem pela Presidência da República. Não gosta de perguntas que considera incômodas. Conhecedor da política brasileira, sabe que os limites do poder são muito elásticos. E espera que logo tudo caia no esquecimento.

Como um moderno Pedro Malasartes vai se desviando dos escândalos. Finge ser vítima dos seus opositores e, como um sujeito safo, nas sábias palavras do ministro Marco Aurélio, ignora as gravíssimas acusações de corrupção que pesam sobre o seu governo e que teriam contado, algumas delas, com seu envolvimento direto. Exigindo impunidade para seus atos, o ex-presidente ainda ameaça aqueles que apontam seus desvios éticos e as improbidades administrativas. Não faltam acólitos para secundá-lo. Afinal, a burra governamental parece infinita e sem qualquer controle.

Indiferente às turbulências, como numa comédia pastelão, Lula continua representando o papel de guia genial dos povos. Recentemente, teve a desfaçatez de ditar publicamente ordens ao prefeito paulistano Fernando Haddad, que considerou a humilhação, por incrível que pareça, uma homenagem.

Contudo, um espectro passou a rondar os dias e noites de Luís Inácio Lula da Silva, o espectro da justiça. Quem confundiu impunidade com licença eterna para cometer atos ilícitos, está, agora, numa sinuca de bico. O vazamento do depoimento de Marcos Valério – sentenciado no processo do mensalão a 40 anos de prisão - e as denúncias que pesam sobre a ex-chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha, deixam Lula contra a parede. O figurino de presidente que nada sabe, o Forrest Gump tupiniquim, está desgastado.

No processo do mensalão Lula representou o papel do traído, que desconhecia tratativas realizadas inclusive no Palácio do Planalto – o relator Joaquim Barbosa chamou de "reuniões clandestinas" -; do mesmo modo, nada viu de estranho quando, em 2002, o então Partido Liberal foi comprado por 10 milhões, em uma reunião que contou com sua presença. Não percebeu a relação entre o favorecimento na concessão para efetuar operações de crédito consignado ao BMG, a posterior venda da carteira para a Caixa Econômica Federal e o lucro milionário obtido pelo banco. Também pressionou de todas as formas, para que, em abril de 2006, não constasse do relatório final da CPMI dos Correios, as nebulosas relações do seu filho, Fábio Luís da Silva, conhecido como Lulinha, e uma empresa de telefonia.

No ano passado, ameaçou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Fez chantagem. Foi repelido. Temia o resultado do julgamento do mensalão, pois sabia de tudo. Tinha sido, não custa lembrar, o grande favorecido pelo esquema de assalto ao poder, verdadeira tentativa de golpe de Estado. A resposta dos ministros do STF foi efetuar um julgamento limpo, transparente, e a condenação do núcleo político do esquema do mensalão, inclusive do chefe da quadrilha – denominação dada pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel – sentenciado também por corrupção ativa, o ex-ministro (e todo poderoso) José Dirceu, a 10 anos e 10 meses de prisão. Para meio entendedor, meia palavra basta.

As últimas denúncias reforçam seu desprezo pelo respeito as leis. Uma delas demonstra como sempre agiu. Nomeou Rosemary Noronha para um cargo de responsabilidade. Como é sabido, não havia nenhum interesse público na designação. Segundo revelações divulgadas na imprensa, desde 1993 tinham um "relacionamento íntimo" (para os simples mortais a denominação é bem distinta). Levou-a a mais de duas dúzias de viagens internacionais – algumas vezes de forma clandestina - , sem que ela tenha tido qualquer atribuição administrativa. Nem vale a pena revelar os detalhes sórdidos descritos por aqueles que acompanharam estas viagens. Tudo foi pago pelo contribuinte. E a decoração stalinista do escritório da presidência em São Paulo? Também foi efetuada com recursos públicos. E, principalmente, as ações criminosas dos nomeados por Lula - para agradar Rosemary – que produziram prejuízos ao Erário, além de outros danos? Ele não é o principal responsável? Afinal, ao menos, não perguntou as razões para tais nomeações?

Se isto é motivo de júbilo, ele pode se orgulhar de ter sido o primeiro presidente que, sem nenhum pudor, misturou assuntos pessoais com os negócios de Estado em escala nunca vista no Brasil. E o mais grave é que ele está ofendido com as revelações (parte delas, registre-se: e os 120 telefonemas trocados entre ele e Rosemary?). Lula sequer veio a público para apresentar alguma justificativa. Como se nós, os cidadãos que pagamos com os impostos todas as mazelas realizadas pelo ex-presidente, fossemos uns intrusos e ingratos, por estarmos "invadindo a sua vida pessoal."

Hoje, são abundantes os indícios que ligam Lula a um conjunto de escândalos. O que está faltando é o passo inicial que tem de ser dado pelo Ministério Público Federal: a investigação das denúncias, cumprindo sua atribuição constitucional. Ex-presidente, é bom que se registre, não tem prerrogativa de estar acima da lei. Em um Estado Democrático de Direito ninguém tem este privilégio, obviamente. Portanto, a palavra agora está com o Ministério Público Federal.
Marco Antonio Villa é historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

NOSSO AMIGO, O USURPADOR

A Venezuela já não tem um governo constitucional. Desde o 10 de janeiro, data do autogolpe do chavismo, o país encontra-se sob regime de exceção. A chefia de Estado é exercida por um usurpador, Nicolás Maduro, que não representa o povo, mas apenas o desejo do caudilho enfermo, tal como interpretado pelos altos círculos “bolivarianos”. O próprio Hugo Chávez, internado em Havana, está sob os cuidados e o controle da ditadura cubana, que gerencia segundo seus critérios as informações sobre a saúde do paciente. Os venezuelanos, inclusive os eleitores do caudilho, não apenas perderam os meios para influir sobre o governo de seu país como também assistem à cassação de seu direito a saber o que se passa com o presidente reeleito. Quando usa a palavra “democracia” para fazer referência à Venezuela atual, Dilma Rousseff trai os valores que jurou preservar ao assumir a Presidência do Brasil.


Na democracia, a instituição da Presidência da República distingue-se da figura do presidente da República, que é o ocupante eventual do cargo. Nos regimes de caudilho, a distinção conceitual inexiste e, quando imposta por circunstâncias incontroláveis, torna-se fonte de crises dilacerantes. Chávez iludiu o povo ao apresentar sua candidatura à reeleição garantindo, mentirosamente, estar curado de um câncer cujas características jamais foram expostas aos eleitores. Em tese, um candidato chavista alternativo poderia disputar as eleições com chances de vitória, mas a hipótese não foi nem sequer considerada, pois a estabilidade do regime repousa sobre a figura do caudilho.


Os líderes chavistas justificaram a violação da norma invocando o respeito à “soberania popular”, isto é, ao voto do eleitorado que conferiu o novo mandato a Chávez. Efetivamente, porém, entregaram a presidência a alguém que não foi eleito por ninguém: Maduro, o vice-presidente nomeado por Chávez no mandato que se encerrou a 9 de janeiro. Na Venezuela, vices-presidentes não são eleitos, mas nomeados e demitidos pelo presidente como qualquer ministro. O usurpador instalado no palácio presidencial de Caracas não tem a legitimidade de Chávez nem a de Cabello, que representa o parlamento. Justamente por esse motivo, foi alçado ao exercício da presidência: Maduro é o reflexo espectral do caudilho, cumprindo a missão de ocupar o vazio político no lugar de um detentor de legitimidade popular — mesmo se esse personagem é um chavista histórico como Cabello.Segundo a Constituição venezuelana, na ausência do presidente eleito, o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, deveria assumir provisoriamente a presidência. O governo provisório nomearia então uma junta médica para determinar se a ausência é temporária ou definitiva, caso em que seriam convocadas novas eleições. Mas, em Havana, a cúpula chavista reunida com Raúl Castro decidiu-se pela declaração da “continuidade” do governo de Chávez, violando duplamente a norma constitucional. A rejeição da instalação do governo provisório destinou-se a evitar a separação entre a instituição da presidência e a figura do caudilho. A rejeição da nomeação da junta médica destinou-se a preservar o sigilo sobre a situação médica do caudilho — ou seja, de fato, a consolidar a transferência para o regime castrista da palavra decisiva sobre a política venezuelana.

Não se sustenta o paralelo sucessório com o Brasil do ocaso da ditadura militar. Em março de 1985, hospitalizado às pressas, o presidente eleito, Tancredo Neves, faltou à própria posse. O vice-presidente eleito, José Sarney, assumiu a Presidência por força de um acordo inconstitucional entre líderes civis e militares, que evitou a entrega da chefia de Estado ao presidente da Câmara, o oposicionista Ulysses Guimarães. Apesar de tudo, o compromisso apoiou-se nos andrajos de legitimidade de Sarney — que, na condição de companheiro de chapa de Tancredo, triunfara no Colégio Eleitoral. Na Venezuela, em contraste, o cargo de presidente é exercido por um personagem carente de legitimidade democrática: Maduro só ocupa a cadeira presidencial pois, desde que Chávez o sagrou como “sucessor”, converteu-se no “corpo substituto” do caudilho.

Regimes revolucionários não admitem os limites impostos pelas leis. Entretanto, até hoje, o chavismo moveu-se na esfera de uma legalidade relativa, sempre ampliada e continuamente reinterpretada. Agora, uma corte suprema dominada por juízes chavistas bem que tentou preservar as aparências legais, mas só conseguiu cobrir-se de ridículo. O tribunal não podia prorrogar o mandato de Chávez, algo flagrantemente arbitrário, nem proclamar que um novo mandato teve início sem a posse do presidente, pois isso implicaria a vacância da vice-presidência e dos demais cargos ministeriais. Os juízes “solucionaram” o dilema pela declaração onírica de que, sob o “princípio da continuidade administrativa”, o antigo mandato prossegue como um mandato novo. O vulgar truque circense serve para conferir um verniz legal à permanência do vice-presidente e dos outros ministros nos cargos que ocuparam no mandato presidencial encerrado.

O dirigente chavista Elías Jaua definiu o autogolpe chavista como “um marco na construção da democracia”: a comprovação de que “o povo manda por cima dos formalismos da democracia burguesa”. O Paraguai foi corretamente suspenso do Mercosul após um processo parlamentar de impeachment que respeitou a letra da Constituição, mas violou seu espírito, ao negar ao presidente o direito à ampla defesa. A Venezuela é um caso muito mais grave, pois o autogolpe viola tanto a letra quanto o espírito da Constituição. O governo brasileiro, contudo, indiferente aos imperativos básicos de coerência, abraça-se ao usurpador e sacrifica a cláusula democrática do Mercosul às taras ideológicas do PT. O nome disso é corrupção moral. Por: Demétrio Magnoli Fonte: O Estado de S. Paulo


segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

DERRUBANDO O PODER MONETÁRIO

Um ex-espião da CIA afirma que o Irã construiu uma bomba nuclear com ajuda russa e norte-coreana.

China continua a fazer pressão em prol do domínio dos Mares do Sul e do Leste chinês por meio da sua retórica belicista contra o governo de Tóquio.

Oswald Spengler uma vez escreveu que "um poder só pode ser derrubado por outro poder, e não por um princípio – e nenhum poder capaz de defrontar o dinheiro resta, a não ser este. O dinheiro só é derrubado e abolido pelo sangue." É o caso de perguntar o que Spengler quis dizer com isso. A quê ele estava se referindo? Onde está representado o poder monetário que só pode ser defrontado pelo poder do sangue? Segundo Spengler, "por meio do dinheiro, a democracia torna-se destruidora de si mesma após o dinheiro ter destruído o intelecto." Em seguida vem a regra da força bruta — o poder do sangue e os meios de guerra. No final das contas, era isso que Spengler via derrubando o poder monetário. Se olharmos com perspicácia, não veremos o "fim da história" de Francis Fukuyama ou o triunfo final da democracia. Algo completamente diferente acontece nos dias de hoje.

Há uma notícia recente que é sintomática: um ex-espião da CIA afirma que o Irã construiu uma bomba nuclear com ajuda russa e norte-coreana. Colunista do WorldNetDaily, o ex-agente da CIA Reza Kahlili publicou um artigo baseado em "uma fonte na unidade de inteligência da Guarda Revolucionária" com "acesso ao programa nuclear iraniano". A fonte afirma que o Irã obteve urânio e plutônio enriquecidos das mãos do governo norte-coreano para usar como armas; a fabricação do artefato foi em uma instalação "subterrânea desconhecida" que o ex-analista da CIA Peter Vincent Pry diz ser "a prova que os EUA provavelmente está subestimando o avanço e sofisticação do programa de armas nucleares do Irã". Alega-se que técnicos russos e norte-coreanos estão dando assistência aos iranianos nessas instalações. (Veja o artigo do WND intitulado Iran’s Nuclear Bomb Program Complete.)

Enquanto isso, como se não bastasse o programa armamentista nuclear iraniano, a China continua a fazer pressão em prol do domínio dos Mares do Sul e do Leste chinês por meio da sua retórica belicista contra o governo de Tóquio. Ainda assim a coisa vai além da retórica, pois Japão e China enviaram o maquinário militar aéreo para as ilhas Senkaku, ricas em petróleo (veja China e Japão mais próximos da guerra). Alguns observadores sentem que um conflito militar é plausível e suas consequências financeiras e políticas são incalculáveis. Enquanto os EUA não apóiam seu aliado japonês, uma entusiasmada China reforça o clima de tensão. As forças defensivas do Japão, evidentemente, não devem ser subestimadas, embora o Japão não tenha armas nucleares. Como então o Japão se sustentará ante a China sem a promessa de apoio nuclear americano? 

O repórter Bill Gertz, especialista em segurança nacional, publicou um artigo na última sexta-feira intitulado “Indicador de preparação bélica: Beijing reforça os metrôs contra ataques nucleares e de gás”. Aparentemente, o sistema de metrô de Pequim funciona como um abrigo contra explosões nucleares e faz parte de um programa muito maior de modernização nuclear levada a cabo pelos chineses. Na verdade, a China vem “construindo túneis e escondendo seu armamento nuclear desde a década de 1950” e apenas em 2010 revelou a extensão do seu programa preparativo de longo prazo. Ao mesmo tempo, diz Gertz, a Rússia também está “expandindo seu arsenal nuclear (…) Moscou anunciou no ano passado que também está construindo mais de cinco mil abrigos antibomba subterrâneos na capital russa como antecipação de um possível conflito nuclear no futuro”.

Dados esses fatos, qual inimigo nuclear Rússia e China preparam-se para enfrentar?

Segundo um artigo de Pavel Felgenhauer intitulado Putin dá início à campanha pública antiamericana, “o antiamericanismo é uma tendência forte na Rússia...”. Assim como o anti-capitalismo. De acordo com uma matéria do dia 10 de janeiro no Barents Observer, “A retórica da Guerra-Fria preocupa o Ministro do Exterior norueguês”, o vice-premiê da Rússia e ex-embaixador da OTAN postou em seu Twitter repercutindo o comissionamento de um novo submarino, o Yury Dolgoruky. No Twitter do vice-premiê Dmitry Rogozin foi postada a mensagem “Tremei, burgueses! Vocês estão acabados!”. Diante disso, o ministro norueguês demonstrou consternação. Ele disse que os oficiais russos usam a retórica da Guerra Fria “com demasiada frequência”. É claro que não se deve reclamar que um peixe tem guelras. Nesse caso, pensou-se durante 20 anos que o peixe tinha pulmões, de modo que o ministro norueguês ficou desapontado por ter descoberto que ele não tinha. 

Na batalha entre capitalismo e socialismo, vemos como o socialismo continua a subverter a liberdade econômica. O que triunfou na Rússia na década de 1990 não foi o capitalismo ou a democracia, mas um show de capitalismo e democracia. Gostaria de lembrar aos meus leitores o livro de Richard McGregor, The Party: The Secret World of China’s Communist Rulers. Nesse livro constatamos que, apesar das aparências, o Partido Comunista está dirigindo ativamente todas as grandes companhias e todas as instituições financeiras da República Popular da China.

Nós aqui no Ocidente dificilmente poderíamos imaginar a extensão dos controles governamentais secretos da Rússia e da China. Esses países são liderados por comunistas da velha guarda e dos atuais que não acreditam na liberdade econômica. Para esses governantes autocráticos, o capitalismo é um fingimento no mesmo grau da democracia. Nesse ínterim, o Ocidente vem sendo enfraquecido por dentro pelo socialismo. Como disse Oswald Spengler, “Por meio do dinheiro, a democracia torna-se destruidora de si mesma após o dinheiro ter destruído o intelecto.” Talvez tenha sido nosso bem-estar ou talvez nossa prosperidade que corroeu nossos valores e nossa integridade intelectual. Sejam quais forem nossas preocupações, não estamos resistindo efetivamente. Ao contrário, estamos distraídos e decadentes. 

Os preparativos bélicos do Irã, da Rússia e da China seguem adiante ano após ano. Os Estados Unidos continuam a caminhar lentamente em direção ao socialismo. Alguém acredita que nos será permitido fazer o caminho de volta?Por: JEFFREY NYQUIST Publicado no Financial Sense. Tradução: Leonildo Trombela Júnior

domingo, 20 de janeiro de 2013

SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO ROUBADO

O "Financial Times" disse que o jeitinho brasileiro chegou ao comando da política econômica. O jornal britânico se referia à solidariedade entre os companheiros Fernando Haddad e Guido Mantega, num arranjo para que a prefeitura de São Paulo retardasse o aumento nas tarifas de ônibus, ajudando o Ministério da Fazenda a disfarçar a subida da inflação. A expressão usada pelo "Financial Times" é inadequada. Os britânicos não sabem que esse conceito quase simpático de malandragem brasileira está superado. O profissionalismo do governo popular não mais comporta diminutivos.


No Brasil progressista de hoje, os números dançam conforme a música. E a maquiagem das contas públicas já se faz a céu aberto: o império do oprimido perdeu a vergonha. No fechamento do balanço de 2012, por exemplo, os companheiros da tesouraria acharam por bem separar mais 50 bilhões de reais para gastar. Faz todo o sentido. Este ano as torneiras têm que estar bem abertas, porque ano que vem tem eleição e é preciso irrigar as contas dos aliados em todo esse Brasil grande. A execução do desfalque no orçamento foi um sucesso.

Entre outras mágicas, o governo popular engendrou uma espécie de "lavagem de dívida" para fabricar superávit. Marcos Valério ficaria encabulado. O Tesouro Nacional fez injeções de recursos em série no BNDES, que por sua vez derramou financiamentos bilionários nas principais estatais, e estas anteciparam sua distribuição de dividendos, que apareceram como crédito na conta de quem? Dele mesmo, o Tesouro Nacional - o único ente capaz de torrar dinheiro e lucrar com isso. Ao "Financial Times", seria preciso esclarecer: isso não é jeitinho, é roubo.

A "contabilidade criativa" - patente requerida pelos mesmos autores dos "recursos não contabilizados" que explicavam o mensalão - não é vista como estelionato porque o brasileiro é um amistoso, um magnânimo, deslumbrado com seu final feliz ao eleger presidente uma mulher inventada por um operário. Não fosse isso, era caso de polícia. A falsidade ideológica nas contas do governo Dilma rouba do cidadão para dar ao governo. Ao esconder dívidas e "esquentar" gastos abusivos, a Fazenda Nacional fabrica créditos inexistentes - que serão pagos pelos consumidores e contribuintes, como em toda desordem fiscal, através de impostos invisíveis. O mais conhecido deles é a inflação.

Em outras palavras: o jeitinho encontrado pelo companheiro-ministro da Fazenda para maquiar a inflação é um antídoto contra o jeitinho por ele mesmo usado para aumentar a gastança pública.

O maior escândalo não é a orgia administrativa que corrói os fundamentos da estabilidade econômica, tão dificilmente alcançada. O grande escândalo é a passividade com que o Brasil assiste a isso, numa boa. Se distrai com polêmicas sobre "pibinho" ou "pibão", repercute bravatas presidenciais sopradas por marqueteiros, e não reage ao evidente aumento do custo de vida, aos impostos mais altos do mundo que vêm acompanhados, paradoxalmente, por recordes negativos de investimento público. A bandalheira fiscal é abençoada por um silêncio continental. Nem a ditadura conseguiu esse milagre.

No auge da era da informação, o Brasil nunca foi tão ignorante. Acha que as baixas taxas de desemprego - fruto de um ciclo virtuoso propiciado pela organização macroeconômica - são obra de um governo com "sensibilidade social". Justamente o governo que está avacalhando a estabilização, estourando a meta de inflação e matando a galinha dos ovos de ouro. Esse Brasil obtuso acha que as classes C e D ascenderam ao consumo porque o que faltava, em 500 anos de história, era um governo bonzinho para inventar umas bolsas e distribuir dinheiro de graça.

Esse mal-entendido pueril gera uma blindagem política invencível. Os passageiros que assaram no Galeão e no Santos Dumont, no vergonhoso colapso simultâneo de dezembro, são incapazes de relacionar seu calvário ao caso Rosemary - a afilhada de Lula e Dilma que protagonizou o escândalo da Anac, por acaso a agência responsável pela qualidade dos aeroportos. O governo popular transforma as agências reguladoras em cabides para os companheiros e centrais de negociatas, e o contribuinte sofre com a infraestrutura depenada como se fosse uma catástrofe natural, um efeito do El Niño. Novamente, nem os generais viveram tão imunes à crítica.

Com a longevidade do PT no Planalto, o assalto ao Estado vai se sofisticando. A área econômica, que era indevassável à politicagem, hoje tem a Secretaria do Tesouro devidamente aparelhada - um militante do partido com a chave do cofre. E tome contabilidade criativa. Definitivamente, o Brasil não aprendeu nada com a lição do mensalão. Os parasitas progressistas estão aí, deitando e rolando (de tão gordos), rumo ao quarto mandato consecutivo.

Não contem para o "Financial Times", mas a conta vai chegar. Por: Guilherme Fiuza   O Globo

sábado, 19 de janeiro de 2013

ECONOMIA EM UM ÚNICO ARTIGO - EU, O LÁPIS


Certa vez, quando me pus a contemplar o miraculoso processo de criação de um simples lápis de grafite, tive aquele lampejo: Aposto que não há uma só pessoa na terra que saiba como fazer uma coisa tão simples como um lápis. 

Se isso pudesse ser demonstrado, tal fenômeno iria retratar vigorosamente o milagre que é o mercado, e ajudaria a deixar claro que todos os objetos fabricados são manifestações puras do processo de energia criativa, do processo de trocas gerido por essa energia criativa. Acima de tudo, deixaria claro que tais fenômenos são, na realidade, fenômenos espirituais. As lições de economia política que isso poderia ensinar seriam enormes! 

A essa ideia seguiu-se um inesquecível dia em uma fábrica de lápis, começando na plataforma de desembarque da matéria prima, passando por cada uma das várias fases de transformações, e concluindo tudo em uma entrevista com o químico responsável. 

Tivesse você visto o que eu vi, certamente também teria iniciado uma cordial amizade com esse incrível personagem: EU, O LÁPIS. 

Sendo ele próprio um escritor, deixemos que EU, O LÁPIS fale por si só. 

Eu sou um lápis de grafite — daqueles lápis comuns de madeira, conhecidos de todas as crianças e adultos que sabem ler e escrever. 

Escrever é minha vocação e minha profissão; é tudo o que eu faço. 

Você pode se perguntar o que me leva a escrever uma genealogia. Bem, pra começar, minha história é interessante. E, depois, sou um mistério — mais do que uma árvore ou um pôr-do-sol ou até mesmo um relâmpago. Mas, infelizmente, não sou devidamente considerado por aqueles que me usam, que me veem como se eu fosse uma mera ocorrência natural, sem todo um histórico de experiências. Essa atitude desdenhosa relega-me ao nível da trivialidade. Esse é um tipo de erro lamentável no qual a humanidade não pode persistir por muito tempo sem riscos. Como o sábio G. K. Chesterton observou, "Nossa decadência vem da falta de maravilhamento, não da falta de maravilhas." 

Eu, o Lápis, apesar de parecer simples, mereço todo seu maravilhamento e espanto, como tentarei demonstrar. Na verdade, se você tentar me compreender — não, isso é pedir demais de alguém —, se você puder perceber a maravilha que eu simbolizo, você pode ajudar a salvar a liberdade que a humanidade está infelizmente perdendo. Tenho uma lição profunda a ensinar. E posso ensiná-la melhor do que um automóvel ou um avião ou uma máquina lava-louças porque... bem, porque eu sou aparentemente muito simples. 

Simples? Sim. E mesmo assim, não há uma única pessoa na face da terra que consiga me produzir. Parece fantástico, não? Especialmente quando se sabe que, apenas nos EUA, existem em torno de um a um bilhão e meio da membros da minha espécie produzidos a cada ano. 

Pegue-me e dê uma boa olhada. O que você vê? Não há muito o que contemplar: há um pouco de madeira, verniz, a marca impressa, a ponta de grafite, um pouco de metal e uma borracha. 

Inúmeros antepassados 

Assim como você não pode rastrear o passado de sua árvore genealógica até muito longe, também me é impossível nomear e explicar todos os meus antepassados. Mas eu gostaria de citar alguns deles para que você se impressione com a riqueza e complexidade do meu passado. 

Minha árvore genealógica começa com aquilo que de fato é uma árvore de verdade, um cedro nascido da semente que cresce no nordeste da Califórnia e no estado do Oregon. Agora visualize todas as serras e caminhões e cordas e outros incontáveis instrumentos usados para cortar e carregar os troncos de cedro até a beira da ferrovia. Pense em todas as pessoas e suas inumeráveis capacidades que concorreram para minha fabricação: a escavação de minerais, a fabricação do aço e seu refinamento em serras, machados, motores: todo o trabalho que faz com que as plantas passem por vários estágios até se tornarem cordas fortes e pesadas; os campos de exploração de madeira com suas camas e refeitórios, a cozinha e a produção de toda a comida para os lenhadores. Milhares de pessoas têm participação em cada copo de café que os lenhadores bebem. 

Os troncos são enviados para uma serraria em San Leandro, Califórnia. Você é capaz de imaginar todos os indivíduos que fizeram os vagões, os trilhos e as locomotivas, e que construíram e instalaram todos os sistemas de comunicação para tudo isso? Essas multidões estão entre os meus antepassados. 

Considere o trabalho dessa serraria em San Leandro. Os troncos de cedro são cortados em pequenas tiras do comprimento de um lápis com menos de 7 milímetros de espessura. Essas tiras de madeira são queimadas no forno e em seguida são coloridas, pela mesma razão que as mulheres colocam maquiagem em seus rostos. As pessoas preferem que eu tenha uma aparência bonita, e não um branco pálido. As tiras são enceradas e levadas novamente ao forno. Quantas habilidades foram necessárias para a fabricação da tintura e dos fornos? E para prover o calor, a luz e a eletricidade, as correias e seus acoplamentos, os motores, e tudo o mais que uma serraria requer? Os faxineiros da serraria estão entre os meus antepassados? Sim, e também os homens que despejaram o concreto para a construção da represa da hidroelétrica que forneceu a energia da serraria! 

E não se esqueça de todos os antepassados atuais e distantes que participaram do transporte dos sessenta vagões carregados dessas tiras de madeira através do país. 

Uma vez na fábrica de lápis — US$ 27.700.000,00 (valores atualizados) em maquinário e construção, tudo capital acumulado pelos meus pais que pouparam e foram frugais —, uma máquina complexa faz oito entalhes em cada tira de madeira. Após isso, outra máquina deposita a ponta de grafite, aplica a cola e coloca outra tira em cima da tira anterior — um sanduíche de grafite, por assim dizer. Sete irmãos e eu somos mecanicamente esculpidos por meio desse processo de "ensanduichamento de madeira". 

Minha ponta de grafite também é complexa. O grafite vem de minas no Sri Lanka. Pense nos mineradores, naqueles que fabricam suas diversas ferramentas, nos fabricantes dos sacos de papel nos quais o grafite é enviado, naqueles que fazem os cordões que amarram os sacos, naqueles que os embarcam nos navios e naqueles que fabricam os navios. Até os zeladores das torres de farol auxiliaram no meu nascimento — além dos pilotos que conduzem os navios quando estes chegam aos portos, também conhecidos como práticos. 

O grafite é misturado com argila vinda do Mississipi, em cujo processo de refinamento se usa hidróxido de amônio. Agentes umedecedores são então adicionados, como sebo sulfonado — gorduras animais reagidas quimicamente com ácido sulfúrico. Depois de passar por numerosas máquinas, a mistura finalmente surge na forma de filetes expelidos (processo conhecido como extrusão) — como se saíssem de um moedor de carne —, cortados no tamanho certo, secos e assados por várias horas a mais de 1.000 graus Celsius. Para alisar e aumentar sua resistência, as pontas são então tratadas com uma mistura quente que inclui cera candelilla do México, parafina e gorduras naturais hidrogenadas. 

Minha madeira recebe seis camadas de verniz. Você sabe todos os ingredientes do verniz? Quem poderia imaginar que os cultivadores de mamona e os refinadores de óleo de mamona fazem parte? Mas fazem. Aliás, até os processos pelos quais o verniz adquire um belo tom de amarelo envolvem a perícia de mais pessoas do que qualquer um pode enumerar! 

Observe minha marca. Ela é um filme formado pela aplicação de calor sobre carbono negro misturado com resinas. Como se faz resinas? E, por favor me diga, o que é carbono negro? 

Meu pedaço de metal na ponta superior — o arco — é de latão. Pense em todas as pessoas que mineram zinco e cobre, e naquelas que possuem as habilidades para fazer brilhantes placas de latão com esses produtos da natureza. As pequenas manilhas no meu arco de metal são níquel preto. O que é níquel preto e como ele é aplicado? A história completa sobre o porquê do centro do meu arco de metal não possuir níquel preto levaria páginas para explicar. 

Então há a minha gloriosa coroação, a borracha, a parte que o homem usa para apagar os erros que ele comete comigo. São os ingredientes abrasivos que apagam. Produtos feitos pela reação do óleo de semente de colza das colônias holandesas com cloreto sulfúrico. A borracha, contrária ao senso comum, é só para dar consistência. E então, também, há numerosos agentes vulcanizantes e aceleradores. A lixa vem da Itália; e o pigmento que colore a borracha é o sulfeto de cádmio. 

Ninguém sabe 

Alguém deseja contestar minha afirmação anterior de que não há sequer uma pessoa na face da terra que saiba como me fazer? 

Realmente, milhões de seres humanos participaram da minha criação, e nenhum deles sabe mais do que alguns dos outros. Agora, você pode dizer que estou indo longe demais ao relacionar os colhedores de café no Brasil — e em outros lugares — à minha criação, e que essa é uma posição extremada. Mantenho minha posição. Não há uma única pessoa em todos esse milhões, incluindo o presidente da empresa fabricante do lápis, que contribuiu com mais do que uma mínima, ínfima porção de conhecimento. Do ponto de vista técnico e prático, única diferença entre o minerador da grafite e o lenhador no estado do Oregon é o tipo do conhecimento. Nem o minerador nem o lenhador podem ser dispensados, tampouco se pode dispensar o químico da fábrica ou o trabalhador da refinaria de petróleo — já que a parafina é um subproduto do petróleo. 

Aqui vai um fato assombroso: nem o trabalhador da refinaria petróleo, nem o químico, nem o escavador do grafite ou da argila, nem os homens que fazem os navios ou trens ou caminhões, nem aquele que controla a máquina que arremata meu pedaço de metal, nem o presidente da empresa fazem seu trabalho particular porque eles me querem. Cada um me deseja menos, talvez, do que uma criança na primeira série. Sem dúvida, existem alguns nesta vasta multidão que nunca viram um lápis ou não sabem como utilizá-lo. Sua motivação é outra. É mais ou menos assim: Cada um desses milhões vê que ele pode, deste modo, trocar seu pequenino conhecimento por bens e serviços que deseja ou dos quais necessita. E eu posso estar ou não entre esses itens. 

Sem uma mente superior planejadora 

Há um fato ainda mais espantoso: a ausência de uma mente planejadora, de alguém ditando, ou direcionando forçosamente essas incontáveis ações que me permitem existir. Não há sinal da existência dessa pessoa. Em vez disso, vemos apenas o trabalho da mão invisível. Esse é o mistério a que me referi anteriormente. 

Diz-se que "apenas Deus pode fazer uma árvore". Por que concordamos com isso? Não é porque percebemos que nós mesmos não conseguimos fazer uma? Conseguimos realmente explicar uma árvore? Não, exceto em termos superficiais. Podemos dizer, por exemplo, que uma determinada configuração molecular se manifesta como uma árvore. Mas qual é o intelecto entre os homens que poderia sequer memorizar as constantes mudanças que acontecem na extensão da vida de uma árvore? Essa façanha é absolutamente impensável! 

Eu, o Lápis, sou uma combinação complexa de milagres: árvore, zinco, cobre, grafite e muito mais. Mas, a esses milagres que se manifestam na natureza, um milagre ainda mais extraordinário foi adicionado: a disposição das energias criativas humanas — milhões de minúsculos conhecimentos configurando naturalmente e espontaneamente uma resposta à necessidade e ao desejo humano, sem precisar de qualquer mente superior! Se apenas Deus pode fazer uma árvore, também insisto que apenas Deus pode me fazer. Homens não conseguem dirigir esses milhões de conhecimentos para me trazer à "vida", assim como não conseguem ajustar as moléculas para criar uma árvore. 

O parágrafo anterior mostra o que procurei expressar quando disse "se você puder perceber a maravilha que eu simbolizo, você pode ajudar a salvar a liberdade que a humanidade infelizmente está perdendo". Se alguém atentar para o fato de que esses conhecimentos irão naturalmente, até mesmo automaticamente, arranjar-se em padrões produtivos e criativos em resposta às necessidades e demandas humanas — ou seja, na ausência de um governo ou qualquer outra mente superior coercitiva —, então este alguém possuirá um ingrediente absolutamente essencial para a liberdade — a fé nas pessoas livres. A liberdade é impossível sem essa fé. 

Uma vez que o governo obteve o monopólio de uma atividade criativa como, por exemplo, a entrega de correspondências, a maioria dos indivíduos passou a acreditar que as cartas não poderiam ser entregues eficientemente pela ação livre dos homens. E aqui está a razão: cada um reconhece que ele próprio não sabe como fazer acontecer todas as circunstâncias para a entrega de correspondências. Essas suposições estão corretas. Nenhum indivíduo possui conhecimento suficiente para efetuar a entrega de correspondências para toda a nação, assim como nenhum indivíduo possui conhecimento suficiente para fazer um lápis. Agora, na ausência da fé em pessoas livres — sem a percepção de que milhões de pequeninos conhecimentos podem naturalmente e miraculosamente se formar e cooperarem para satisfazer suas necessidades — o indivíduo só pode concluir equivocadamente que a correspondência só pode ser entregue graças à "mente superior" do governo. 

Fartura de testemunhos 

Se eu, o Lápis, fosse o único item que pudesse oferecer testemunho sobre o que homens e mulheres podem realizar quando têm liberdade para empreender, então aqueles com pouca fé teriam um argumento justo. No entanto, há uma fartura de testemunhos: estão à nossa volta, ao nosso alcance. A entrega de correspondência é extremamente simples quando comparada com, por exemplo, a fabricação de um automóvel ou uma calculadora ou uma máquina agrícola ou dezenas de milhares de outras coisas. 

Entrega? Aliás, onde os homens puderam se aventurar nessa área, eles conseguiram fazer a entrega da voz humana em menos de um segundo: entregam um evento visualmente e em movimento na casa de qualquer pessoa no momento em que está acontecendo; entregam 200 passageiros de uma cidade a outra em questão de horas; entregam gás de uma cidade à fornalha de alguém em outra cidade a preços inacreditavelmente baixos e sem subsídio; entregam um quilo de óleo do Golfo Pérsico no oeste americano — meia volta ao mundo — por menos do que o governo cobra para entregar uma carta de 50 gramas ao outro lado da rua! 

A lição que eu tenho para ensinar é a seguinte: deixem que as energias criativas permaneçam desimpedidas. Simplesmente deixem que a sociedade se organize espontaneamente para que ela aja em harmonia com essa lição. Deixem que os aparatos legais da sociedade removam todos os obstáculos da melhor forma possível. Permitam que esses conhecimentos fluam livremente. Tenham fé que homens e mulheres irão responder à mão invisível. Essa fé será confirmada. Eu, o Lápis, aparentemente tão simples, ofereço o milagre da minha criação como um testemunho de que essa fé é real, tão real quanto o sol, a chuva, o cedro. Tão real quanto a Terra. 

Leonard Read foi o fundador do instituto Foundation for Economic Education -- o primeiro moderno think tank libertário dos EUA -- e foi amplamente responsável pelo renascimento da tradição liberal no pós-guerra.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

EXPANÇÕES ECONÔMICAS E "GASTOS ESTIMULANTES" - E PAUL KRUGMAN, MAIS UMA VEZ


Uma das principais diferenças entre a Escola Austríaca de economia e a economia convencional neoclássica é a visão acerca do indivíduo e seu comportamento. Os austríacos veem os indivíduos como seres que atuam visando a um determinado propósito; já a maioria dos neoclássicos vê apenas pessoas atuando de forma mais mecanizada. Desta visão de mundo dos neoclássicos advém o raciocínio de que aquilo que é bom para indivíduos pode ir contra aquilo que é supostamente "bom" para a sociedade como um todo.

E não me refiro a comportamentos violentos ou coercivos, como quando uma pessoa rouba outra e em consequência melhora sua situação ao mesmo tempo em que faz com que o roubado fique em pior situação. Não. Refiro-me a transações econômicas pacíficas e voluntárias, decisões que envolvem a minha pessoa ou minha família — este é o cerne da teoria austríaca. Mises escreveu que indivíduos irão agir com o intuito de melhorar sua situação; e quando essa ação ocorre por meio de trocas comerciais voluntárias e mutuamente benéficas junto a terceiros, a ação pode ter efeitos sociais positivos. 

Por exemplo, quando vou ao supermercado e faço uma transação comercial, estou comprando alimentos que, em minha crença, me deixarão em melhor situação no futuro, seja aliviando minha fome, seja me propiciando saudáveis benefícios pessoais. Da mesma forma, as pessoas que trabalham no supermercado — proprietário e empregados — irão receber meu dinheiro e poderão utilizá-lo para alcançar seus objetivos pessoais. Isso não é um comportamento "insensível", como vários críticos marxistas do capitalismo gostam de afirmar; trata-se, isso sim, de um comportamento propositado e voluntário, e não baseado em coerções. 

Sim, concordo que isso que descrevi até aqui é exatamente aquela economia básica que você encontra nos principais livros-textos da disciplina, especialmente nos convencionais. Mas os austríacos divergem dos economistas convencionais quando a análise parte para um ponto de vista mais amplo acerca da sociedade. Falando mais claramente, os austríacos acreditam que a liberdade individual para se comercializar as próprias posses — sejam essas posses a riqueza acumulada na forma de dinheiro ou de bens, ou a mão-de-obra ou os talentos dessa pessoa — terão efeitos sociais e econômicos positivos sobre toda a economia, desde que, é claro, os indivíduos sejam livres para incorrer nesses atos, sem nenhuma coerção. Este é, simplesmente, o princípio da não-agressão em funcionamento. 


Já os keynesianos, como Paul Krugman, veem as coisas de maneira distinta. O que é bom para um indivíduo quase sempre não é bom para a economia como um todo. Em sua recente coluna, Krugman escreveu:

... a economia não funciona como as famílias. As famílias podem decidir gastar menos e tentar ganhar mais. Mas, na economia como um todo, gastos e receitas caminham juntos: minha despesa é sua receita e sua despesa é minha receita. Se todo mundo tenta cortar os gastos ao mesmo tempo, os rendimentos vão cair — e o desemprego vai disparar.

Isso é algo que, intuitivamente, parece estar certo, mas que na realidade se baseia em um princípio fundamentado na crença de que ações individuais e transações comerciais mutuamente acordadas podem ser deletérias para toda a economia, e que, mais sespecificamente, se várias pessoas decidirem, por exemplo, poupar mais dinheiro, isso irá gerar desemprego. Esse ponto keynesiano-krugmaniano já foi feito em várias ocasiões, e não creio estar sendo controverso quando o cito desta forma. 


Em um dado nível, se várias pessoas repentinamente decidirem parar de gastar toda a sua renda e decidirem poupar boa parte dela com a intenção de consumir apenas no futuro, isso obviamente terá certos efeitos sobre parte da economia, uma vez que haverá menos demanda por certos tipos de bens e serviços. Isso é algo óbvio e nada controverso. 

Há, no entanto, uma questão mais ampla que Krugman e os keynesianos ignoram, e é por causa dela que ocorreu esta mudança de comportamento. Na visão keynesiana, a mesma que Malthus teve, esta mudança não é uma resposta racional a determinadas alterações nas condições econômicas; ao contrário, trata-se de um comportamento irracional, de um "espírito animal". É algo que acontece do nada. As pessoas simplesmente param de gastar e começam a poupar, e então toda a Falácia da Composição entra em cena e derruba a economia. 

Os austríacos observam que, quando o crescimento artificial da economia chega ao fim — e isso sempre ocorre — e o nível de atividade vigente em determinados setores não mais pode ser mantido por meio das transações econômicas normais, então as pessoas irão inevitavelmente ajustar seu comportamento. Adicionalmente, os austríacos afirmam que todo crescimento econômico artificial — isto é, gerado por expansões artificiais do crédito — (1) resulta em recursos escassos investidos erroneamente, em setores para os quais não há uma genuína demanda dos consumidores, (2) é financiado por meio de dinheiro emprestado que, mais cedo ou mais tarde, terá de ser quitado, e (3) cria condições que inevitavelmente levarão a uma "correção" dentro da economia tão logo o período de expansão econômica termine. 

Além do mais, os austríacos também creem que, se o governo não interferir no sistema de preços e salários (não criar pacotes de estímulos que interfiram neste segmento), e não interferir na criação e na maneira como os recursos escassos são direcionados durante uma recessão, os empreendedores procurarão e descobrirão aquelas linhas de produção que são compatíveis com as recessivas condições econômicas vigentes. São estes investimentos nestas linhas de produção que levarão a uma recuperação. 

Mesmo Krugman tem de admitir que a bolha imobiliária americana não poderia ser mantida por muito mais tempo, embora ele não irá admitir que recursos escassos foram "investidos erroneamente", pois dizer isso seria conceder uma importante vitória intelectual aos austríacos, e isso não é algo do feitio de Krugman. Ainda assim, o que seria uma "bolha" se não uma série de investimentos ruins, com recursos alocados de forma insustentável? Krugman certamente não afirmaria que a bolha imobiliária era infinitamente sustentável; mas, ora, se um conjunto de investimentos não pode mais ser sustentado tão logo outros fatores de produção (como mão-de-obra e bens de capital) exponham a real situação deste mercado, então estamos lidando com recursos que foram mal investidos. Ponto. Que ele se recuse a utilizar o termo 'investimento errôneo' não altera em nada a realidade do fato. 

Certo. Agora vamos à resposta sobre o que deveria ter sido feito quando os mercados expuseram os investimentos errôneos. (Observo aqui que Krugman acredita que, a menos que burocratas do governo estejam ditando ordens para cidadãos que estejam praticando transações de mercado pacíficas e voluntárias, os mercados irão para o abismo, arrastando todas as pessoas junto a ele. No entanto, foram os mercado que expuseram a bolha imobiliária, assim como foram os mercados que expuseram o esquema fraudulento de Bernie Madoff, e não as agências reguladoras do governo americano). 

A resposta de Krugman é que o governo deveria criar ainda mais bolhas para compensar a bolha que estourou, assim como deveria estimular ainda mais investimentos ruins para compensar aqueles que entraram em colapso, neste processo desperdiçando ainda mais recursos escassos. Sim, há aquela infame frase de Krugman, proferida há uma década, dizendo que Alan Greenspan deveria criar uma bolha imobiliária para compensar o estouro da bolha das ações pontocom, mas não é a isso que me refiro. A questão é que Krugman acredita que os governos deveriam tomar dinheiro emprestado ou imprimir dinheiro (ou ambos) para poderem sair gastando com o intuito de preencher um "buraco" surgido nos gastos dos consumidores e dos investidores, uma vez que, sem essa intervenção, não mais haveria dinheiro sendo direcionado para aquela parte da economia que entrou em colapso (ao menos, não no mesmo volume de antes) — neste caso, o setor imobiliário. 

(Por exemplo, Krugman repetidas vezes mostrou seu contumaz endosso a políticas insensatas e improdutivas como energia eólica e carros elétricos maciçamente subsidiados. No entanto, o fato de que tais investimentos necessitam de contínuos subsídios para se manterem operantes mostra claramente sua sustentabilidade econômica. São investimentos errôneos e insensatos, sem meios termos. Ainda assim, Krugman e Obama querem que acreditemos que este tipo de investimento subsidiado pode fazer a economia voltar a crescer solidamente). 

Os keynesianos argumentam que, se há "recursos ociosos ou não empregados", então não é possível haver investimentos errôneos, pois a economia poderá absorver um volume maior de gastos sem que o nível geral de preços suba. Tal raciocínio ignora a questão do real motivo de estes recursos estarem "ociosos" em primeiro lugar. Krugman alegaria que eles estão "ociosos" porque as pessoas não estão gastando dinheiro; sendo assim, o governo deve entrar em cena e assumir o lugar de todos os cidadãos e sair gastando com o intuito de aditivar a economia novamente, criando aquele efeito de "gotejamento" que supostamente turbinaria a economia. 

Mas a verdade é que esses recursos estão ociosos porque os investimentos anteriores que foram feitos com eles não mais podem ser mantidos. Seu valor contábil já caiu. Os mercados estão emitindo este alerta, mas os keynesianos ignoram o óbvio e preferem continuar exigindo que estes setores recebam injeções extras de gastos governamentais. 

Com efeito, Krugman e os keynesianos alegam que a Lei da Escassez, a mais básica lei da economia, é abolida durante severas retrações econômicas. No entanto, ainda pelo raciocínio deles, a menos que o governo comece a se endividar mais intensamente e saia gastando feito um marinheiro bêbado, todos os cidadãos estarão severamente limitados pela escassez. Famílias estarão limitadas pela escassez, mas não o governo, que opera em outra dimensão. 

Para que ninguém pense que estou criando um espantalho e deturpando a posição de Krugman, ei-lo aqui em suas próprias palavras:

Então, o que pode ser feito? Um choque financeiro de menor porte, como o estouro da bolha das ações pontocom, ocorrido no final da década de 1990, poderia ser resolvido por meio de um corte das taxas de juros. Mas a crise de 2008 foi muito maior, e até mesmo cortar as taxas de juros, reduzindo-as a zero, não foi suficiente.
Nesse ponto, os governos precisaram intervir, passando a sustentar suas economias enquanto o setor privado se reequilibrava. E, em certa medida, isso realmente aconteceu: a receita caiu drasticamente durante a crise, mas os gastos aumentaram enquanto programas e benefícios como o seguro-desemprego foram ampliados e estímulos econômicos temporários entraram em vigor. Os déficits orçamentários aumentaram, mas, na realidade, isso foi uma coisa boa — provavelmente eles foram o principal motivo que impediu um replay completo da Grande Depressão.


Mas por que o setor privado iria se "reequilibrar"? Como isso ocorreria? Afinal, se transações comerciais mutuamente benéficas possuem efeitos nocivos, e se a tendência natural de uma economia de mercado é de implodir sempre que as pessoas aumentam suas poupanças, então por que deveríamos esperar qualquer tipo de recuperação? E por que os governos deveriam em algum momento reduzir sua gastança maciça? Por que não continuá-la aumentando seguidamente, até o infinito, sem se preocupar com déficits? 

Se você enxerga os gastos individuais como sendo algo mecânico em vez de algo propositado, então o ponto de vista keynesiano pode fazer sentido. Sob este prisma, uma economia é pouco mais do que uma máquina em moto-perpétuo, que funciona por meio de gastos que se movem em um fluxo circular, com recursos homogêneos. 



Ou seja, não há uma estrutura do capital complexa, não há varias etapas de produção, não há preferências temporais. Há apenas gastos, os quais fazem automaticamente o serviço de "gerar crescimento". (Veja maisaqui). 

Há um último ponto que deve ser enfatizado. Krugman alega que a recuperação econômica americana está mais fraca do que deveria porque o governo federal não está tributando, imprimindo e tomando dinheiro emprestado na quantidade em que deveria, e que se o governo gastasse ainda mais do que já gasta — por exemplo, se fizesse preparativos para combater uma imaginária invasão de alienígenas —, então tudo estaria perfeito com o mundo e estaríamos hoje vivenciando uma sólida e esplêndida recuperação. 

Em minha concepção, os EUA ainda não vivenciaram uma real recuperação por várias razões, dentre elas a insistência do governo em forçar um redirecionamento de recursos, retirando-os de setores onde são mais valorados e canalizando-os para onde são menos valorados (investimentos em "energia verde" são um bom ponto). O governo federal, e especialmente a administração Obama, demonstram aberta hostilidade a empreendedores que não são ligados às classes políticas, e a redução da taxa básica de juros para quase zero feita pelo Fed não apenas aboliu qualquer incentivo para as pessoas pouparem, como também está enviando sinais errôneos e confusos para o mercado, tornando ainda mais difícil para os empreendedores descobrirem linhas de produção que sejam genuinamente lucrativas e que estejam sob sólida demanda dos consumidores. 

Krugman acredita que tudo o que é necessário para uma recuperação econômica sólida é que o governo saia despejando dinheiro sobre aqueles empreendimentos politicamente preferidos. Isso fará com que os gastos tenham aquele efeito de "gotejamento" sobre todos os cidadãos da economia. 

Sim, se todos os recursos da economia fossem puramente homogêneos e se os indivíduos não agissem propositadamente, então Krugman teria alguma razão. Mas, dado que a realidade não é esta, então ele está simplesmente exigindo que o governo continue exatamente com o mesmo tipo de comportamento que gerou esta depressão.

William L. Anderson é um scholar adjunto do Mises Institute, leciona economia na Frostburg State University. 
Tradução de Leandro Roque

O EXTERMÍNIO DAS EMPREGADAS DOMÉSTICAS


Perdoem o sensacionalismo do título, mas é um fato: as empregadas domésticas entrarão em extinção, e por um motivo ruim. O motivo bom para a extinção das domésticas seria se pessoas que trabalharam ou consideram trabalhar como domésticas tivessem ofertas de trabalho melhores e mais bem remuneradas. Nesse caso, elas demandariam salários muito altos para trabalhar como domésticas; salários além das possibilidades da maioria dos domicílios. E assim o serviço doméstico seria gradualmente extinto, restringindo-se aos muito ricos. É algo que vem, aos poucos, acontecendo.

O motivo ruim para a extinção das domésticas se dá quando, embora muitas pessoas queiram trabalhar como domésticas e não tenham alternativas de emprego melhores, existe algo que as proíbe de fazê-lo. E é isso que quero discutir aqui. Os responsáveis por criar esse impedimento a um trabalho honesto são, como não poderia deixar de ser, nossos políticos, bem como sindicalistas e todos aqueles que defendem a ideia para lá de perniciosa dos direitos trabalhistas.

Muitos estão celebrando a recente conquista trabalhista brasileira: a extensão de FGTS e hora extra para empregadas domésticas (a qual aguarda aprovação do Senado). Foi uma grande vitória para as leis trabalhistas nacionais, e uma grande derrota para os brasileiros; empregadas inclusive. Vou analisar aqui os efeitos dessas duas mudanças legais. Mas enuncio já o problema de fundo: o estado é capaz de aumentar o preço de um serviço; mas não é capaz de aumentar de seu valor.

FGTS

O FGTS funciona quase como um fundo de investimento; isto é, um fundo com rendimentos baixíssimos, não raro inferiores à inflação, e que obriga seus depositantes a manter o dinheiro lá. Sua justificativa é que ele funciona como uma proteção ao trabalhador em caso de desemprego. Implícita aí está a premissa de que o trabalhador é burro demais para poupar por conta própria.

Claro que, quando deseja poupar parte de seu salário para se proteger de eventualidades futuras, qualquer trabalhador pode abrir uma conta bancária (como aliás várias empregadas já fazem; a minha está entre essas) e aplicar seu dinheiro a um retorno superior ao do FGTS. Quem ganha nessa história? Para o empregador, dá na mesma: o que ele paga de FGTS ele deixa de pagar em remuneração. A única diferença é que a vaga de emprego é ofertada a um salário básico menor. O valor que o empregador estaria disposto a desembolsar, que antes virava integralmente salário (dividido desigualmente por conta da obrigação de décimo terceiro e férias), agora divide-se entre salário e FGTS. Parte do que poderia ir para o bolso da empregada ficará nas contas do governo.

O trabalhador perde: parte de seu salário lhe é alienada e sub-remunerada. Já o governo... esse ganha! E aí está a explicação do FGTS. A Caixa Econômica Federal brinca de fazer investimento com o dinheiro do fundo, levando adiante as ambições do governo para o país e ajudando megaempresas público-privadas, segundo critérios políticos, e sem gerar retorno. Outra parte é usada para alimentar a bolha imobiliária criada e insuflada pelo governo. Um fundo de baixíssimo retorno e baixíssima liquidez; e um banco salvo do risco de corrida bancária, sem obrigação de dar retorno a seus "clientes". Tudo o que a Caixa ganha nessa conta (a diferença entre a remuneração que ela dá e a remuneração que o mercado daria por esse dinheiro) ela tira dos salários dos trabalhadores. As empregadas só têm a lamentar: serão agora obrigadas a ceder dinheiro para esse golpe financeiro do estado.

O FGTS supostamente se justifica porque os trabalhadores não poupariam por conta própria. Por que não? Os trabalhadores são perfeitamente capazes de poupar por conta própria. E para os psicologicamente incapazes de tomar essa decisão, que melhor escola de prudência do que aprender na prática? A existência do FGTS infantiliza o trabalhador, sem em nada ajudar a melhorar as supostas falhas de caráter generalizadas que visa compensar. Ao tirar de suas mãos a decisão de poupar, o FGTS garante que o bom hábito nunca será criado.

Sem falar que, em muitos casos, gastar todo o salário agora pode realmente ser a melhor decisão para um trabalhador; se ele quer um móvel ou um eletrodoméstico agora, ou se quer ir ao bar com o dinheiro que ganhou honestamente, quem negará a ele esse direito? Para gerações acostumadas a inflação alta, confisco, instabilidade institucional e irresponsabilidade fiscal, o mais razoável é mesmo gastar o máximo possível agora e não poupar; sabe lá quanto o dinheiro valerá no ano seguinte. É esse o efeito moral da intervenção do estado.

Hora Extra

O caso da hora extra é ainda mais complicado. Primeiro porque o impacto dela no custo de se contratar uma empregada é muito pesado. Segundo estimativas conservadoras, seria um aumento de pelo menos 45%. A princípio, isso não traria grandes problemas; bastaria o patrão reduzir o salário base. Claro que essa mudança não viria sem custos; dada a baixa educação do setor, pode demorar um tempo para se difundir a informação de que, com as horas extras contabilizadas, um salário muito menor resultaria na mesma remuneração final. Muitas se negariam a trabalhar pelos novos salários antes de se dar conta disso. A difusão de informação também tem custos.

O problema maior dessa redução do salário é que em muitos casos, para manter a mesma remuneração final, empregadores teriam de reduzi-lo a um valor inferior ao salário mínimo, o que é proibido. Assim, o resultado é que o custo de se contratar uma empregada doméstica efetivamente aumentará; resultado especialmente válido para as faixas inferiores de remuneração — ou seja, para os domicílios de classe C que recentemente vêm contratando empregadas. Na margem, a demanda pelo serviço doméstico cairá. Casas ficarão mais sujas, mulheres e homens (mas especialmente mulheres) trabalharão menos fora de casa e/ou terão menos tempo de lazer; e mulheres pobres desejosas de uma oportunidade de trabalho que demande baixíssima qualificação terão mais dificuldade em encontrar um patrão. Sua pobreza será mais duradoura. Todos saem perdendo.

Esse não é o único efeito nocivo de se instituir a hora extra. A novidade modifica profundamente a relação de trabalho em si. Pois neste setor é comum que os horários sejam flexíveis, e que a remuneração não se dê precisamente pelo número de horas. Isso não quer dizer que não existam remunerações diferentes para uma empregada que fique 6 horas diárias no serviço e outra que more na casa do patrão. É bem sabido por qualquer um que queira contratar uma empregada que é preciso pagar mais por uma que se disponha a dormir na casa. É a pergunta mais básica na hora de conseguir alguém: é pra dormir? Se sim, sai mais caro (ou é mais difícil encontrar quem tope, o que redunda na mesma coisa; pois aquelas que "não podem" aceitaria dormir na casa dos patrõespor um certo preço). O mercado já encontrou, portanto, soluções para remunerar o valor adicional gerado por aquelas que ficam mais tempo no serviço; e essas soluções levam em conta a flexibilidade e a fluidez inerentes à função. Em que outro trabalho há tal flexibilidade com horário de chegada e de saída, ou com saídas e ausências para resolver problemas pessoais? Com férias longas e possibilidade de se escolhê-las livremente?

Impor a hora extra é um golpe particularmente nefasto porque quebra a relação de confiança na qual o trabalho de empregada doméstica se dá: ele deixa de ser um trabalho no qual favores podem ser dados de parte a parte e se transforma numa relação calculista, num cabo de guerra em que uma parte busca tirar mais da outra dando o mínimo possível. Patrão e empregado tornam-se inimigos. A realidade das piores relações virará, aos poucos, a regra para todas. Como sempre, é via legislação trabalhista que a luta de classes — pesadelo alimentado por esquerdossauros de gabinete — vira realidade.

Lei trabalhista como criadora da luta de classes

O mecanismo que instaura essa luta é simples. Ao aumentar a remuneração obrigatória de uma função, o estado cria uma disjunção falsa na mente da maioria dos empregados: "se eu não estou recebendo tudo o que a lei demanda, ainda que eu tenha concordado plenamente com os termos do contrato, estou sendo explorado". Como o estado é dotado de uma aura mágica e onisciente na cabeça de muita gente, seus ditames são vistos como expressão de um ideal possível, de uma realidade objetiva que deveria vigorar, e que se não vigora é porque alguém está sendo canalha. O que ele não percebe é que a lei, ao alterar a remuneração legal de um determinado trabalho, não altera o valor que aquele trabalho gera.

A pergunta que fica obscurecida, mas que deveria ser feita, é: será que meu trabalho vale o quanto quero ganhar? Será que alguém estaria disposto a pagar, voluntariamente, o salário que quero receber? Se não, pode ter certeza que nenhum governo do mundo conseguirá obrigar um patrão a lhe contratar pelo que você quer ganhar; tudo que o estado consegue fazer é impedir que esse patrão lhe contrate por um valor inferior a esse, mantendo-lhe no desemprego ou na informalidade. A medida estatal destrói possibilidades de contratação sem criar nada em seu lugar.

Não se sabe ao certo se os custos ficarão, de fato, proibitivos, pois ainda não se definiu como a hora extra será calculada e remunerada no caso das empregadas. Talvez a solução encontrada para não arruinar o setor seja torná-las algo muito leve. Nesse caso, assim como em todos os outros, vale a mesma regra: a lei trabalhista, na exata medida em que deixa de ser perversa, torna-se inócua. Ela é incapaz de aumentar salários; ela pode, no melhor dos casos, proibir remunerações abaixo do que o mercado já pratica, e assim não causar grandes danos.

O valor do salário

Há um dado da economia que é muito difícil para a maioria aceitar pois temos enraizada a noção de que todo mundo merece, por desempenhar uma função qualquer, uma remuneração que o permita se sustentar com dignidade. Infelizmente, tal concepção, embora fruto de um desejo nobre, seria catastrófica se levada a sério. Pois um trabalho ajuda a sociedade a viver melhor se ele produz valor; o mero tempo ou esforço gastos, em si mesmo, não trazem benefício algum. A remuneração ao trabalhador no mercado corresponde ao valor que seu trabalho cria, e apenas isso. O valor de um determinado trabalho é determinado pela capacidade desse trabalho de ser usado, direta ou indiretamente, para satisfazer a desejos e necessidades dos demais participantes do mercado.

Quem cria valor, recebe valor. O mercado — isto é, as pessoas que transacionam umas com as outras — não remunera horas de trabalho, não remunera os ATPs gastos com atividade física, não remunera o esforço mental, e não remunera nem mesmo o mérito e a dedicação; remunera a criação de valor. Todas essas outras coisas são remuneradas apenas na medida em que ajudam na criação de valor.

Desse princípio, segue-se que, quanto mais unidades de um bem ou serviço estão disponíveis, menor é o valor de cada uma dessas unidades. Se houvesse apenas uma pessoa na cidade capaz de limpar o chão, a remuneração dela seria altíssima, pois todos disputariam seus serviços com unhas e dentes. Se houver muitas — e há, posto que essa tarefa não exige habilidades ou conhecimentos incomuns — a remuneração de cada uma será baixa, pois é uma função cuja oferta está sobrando e que, a bem da verdade, eu mesmo poderia fazer se gastasse um pouco do meu tempo de lazer.

Como os salários das domésticas têm subido

É bem sabido que vivemos em uma época de crescente escassez relativa de empregadas, e que os salários vêm, por causa disso, subindo bastante. Sobem da única maneira que salários podem subir: pelo aumento do valor gerado pela mão-de-obra. Para as condições atuais, o salário que se pagava nos anos 90 não dá mais para contratar uma empregada. A mão-de-obra brasileira é mais produtiva do que era naquela época. O comércio e os serviços em geral demandam muitas mulheres que poderiam trabalhar como domésticas. Ao mesmo tempo, muitas pessoas em ascensão econômica agora querem, elas também, contratar empregadas. "É uma questão de oferta e demanda. Se há menos trabalhadores disponíveis, o custo desse serviço cresce." Se um pesquisador do IBGE é capaz de dizer isso, o Brasil ainda tem jeito! A lei trabalhista não tem nada a ver com o aumento dos salários.

É verdade que alguns trabalhadores se privilegiam dessas leis no curto prazo: aqueles cuja remuneração estava abaixo de seu potencial, que ainda não se deram conta de que há pessoas dispostas a contratá-los por preços mais altos. Esses continuarão contratados e terão um aumento salarial. Mas pensem: a alta rotatividade do setor de domésticas, em que muitas largam um emprego pouco tempo depois por encontrar uma alternativa melhor, indica que esse problema de sub-remuneração não deve ser muito duradouro. A tendência de alta dos salários prova o meu ponto. Se os salários estão subindo, é porque os trabalhadores estão conseguindo elevar sua remuneração; ou seja, ou estão mudando de empregador ou negociando termos melhores com o mesmo empregador. Seja como for, sua remuneração não está encontrando obstáculos para subir e chegar a seu valor potencial.

Já os malefícios são de longo prazo, quiçá permanentes. Todos cuja produtividade é inferior à remuneração mínima exigida pela lei (que leva em conta salário mínimo e todas as demais exigências) serão, com o tempo, demitidos e/ou não encontrarão emprego. As menos instruídas, com menos experiência e com menos habilidades terão muito mais dificuldade em encontrar quem as empregue. A governanta de décadas, que cozinha maravilhosamente e basicamente gere a casa, continuará encontrando demanda: sua remuneração atual já émaior do que o mínimo legal a ser estabelecido neste ano. Já a iniciante, analfabeta, que não sabe fritar um bife e mistura roupas brancas e coloridas na máquina, essa encontrará um mercado muito mais hostil; pois quem pagará mais de R$1.200,00/mês por seus serviços?

Sua alternativa é manter-se no setor informal, recebendo algo mais próximo de seu valor de mercado. Quem sabe, no futuro, ela consiga usar isso em sua vantagem em um processo trabalhista contra a patroa? O estado desempenha nesse caso o papel de agente corrosivo das relações de confiança das quais o mercado defende. Novamente, somos confrontados com o caráter imoralizante de sua influência.

O fim do serviço doméstico não é algo bom?

O serviço doméstico é alvo de muito preconceito nos meios esclarecidos. Não sei por quê. Ele sempre foi, e continua sendo, uma oportunidade de ascensão social para mulheres pouquíssimo qualificadas, e que não tiveram oportunidade de educação. É, inclusive, um caso muito interessante de discriminação pró-mulher; pelo menos por enquanto. Os empregadores preferem empregadas mulheres, e provavelmente só aceitariam um homem no serviço se fosse por um salário consideravelmente mais baixo. Por uma série de motivos (que podem ser reais ou fruto do preconceito, cabe a cada um decidir por si), a maioria das pessoas se sente mais à vontade deixando uma mulher cuidar de sua casa, o que envolve deixar alguém que (inicialmente) não é íntimo lidar com diversos âmbitos da intimidade dos patrões. Sendo assim, ele funciona como meio de ascensão social específico para as mulheres das classes mais pobres.

Muitos lamentam os salários baixos e o baixo grau de instrução de muitas empregadas. Mas o emprego doméstico não é a causa de nada disso; ele é parte da solução! Garanto que o leitor conhece casos de empregadas que vieram de contextos paupérrimos e cujos filhos hoje gozam de uma qualidade de vida superior à da mãe quando criança. Há até muitas empregadas que contratam empregadas e/ou diaristas para suas casas.

O valor do serviço doméstico advém da própria natureza da sociedade humana e do sistema de mercado. O valor que um membro de um domicílio de classe média gera trabalhando fora de casa é maior do que o custo de se pagar uma empregada para fazer o serviço doméstico. Ele valoriza mais o tempo de lazer do que o salário que a empregada demanda. A empregada, por outro lado, valoriza mais o salário que ganha ali do que o tempo livre que teria se não tivesse essa função; sua qualidade de vida cairia muito sem essa fonte de renda. Via de regra, tudo o mais considerado, ela ganha mais ali e tem um trabalho mais seguro e menos demandante do que em qualquer outra ocupação a que ela poderia ter acesso; a prova é que ela está lá. Quando melhores oportunidades surgirem, ela se vai.

"Mas no Primeiro Mundo esse negócio de empregada não existe!" É verdade. E essa verdade se deve a dois motivos, conforme enunciei no início do artigo: um bom e outro mau. Vejam: em países mais ricos, onde o valor criado por cada trabalhador é, em média, alto, é muito caro contratar uma empregada. Para aceitar trabalhar em uma casa, então, os trabalhadores exigirão um valor maior do que a maioria dos patrões está disposta a pagar. Esse é um desenvolvimento natural e que está, inclusive, em curso no Brasil.

Mas essa história tem também um lado mais sombrio. Afinal, bem se sabe que há uma classe baixa, tanto de imigrantes como de nativos, com baixa produtividade e com desemprego crônico morando nas periferias europeias. Ora, será que muitos profissionais de classe média alta europeus e americanos não adorariam ter empregadas domésticas como as que temos no Brasil? Arrisco que sim. Então por que todo esse desemprego? Será que os desempregados pobres se negam a desempenhar esse tipo de função "inferior"? Provavelmente. Mas eles não precisam engolir o próprio orgulho e trabalhar para sobreviver? Não.

O estado de bem-estar de países ricos garante a todos, mesmo a quem não trabalha, um padrão de vida relativamente alto, de modo que trabalhar não é mais uma necessidade. Há todo um filão do jornalismo de tabloide britânico que se dedica a expor os casos escandalosos — e também hilários — de famílias de gerações de desempregados, totalmente irresponsáveis e perdulários, cuja irresponsabilidade, ao invés de ser desestimulada, é premiada.

O Brasil, supostamente, também tem uma malha de proteção de social, só que nossos serviços e garantias estatais são ruins, o que não é uma surpresa. O estado não gera riqueza; ele apenas suga parte da riqueza produzida na sociedade. Assim, se a sociedade da qual o estado suga seus recursos for rica — isto é, se ela tiver alta concentração de capital físico e humano — então o estado poderá prover serviços generosos e de alta qualidade. Se a sociedade for pobre, o estado terá serviços precários e os benefícios por ele concedidos serão poucos. Quase todos os países pobres do mundo são welfare states, e isso não os faz menos pobres. A consequência disso para nós é que, enquanto o pobre europeu pode basicamente se recostar, o pobre brasileiro tem que se virar; quase nada está garantido para ele. E é por isso que a jovem pobre no Brasil aceita trabalhar de empregada e a jovem inglesa prefere ficar em casa e comprar um tablet. Assim, dada nossa realidade social, faz todo o sentido que mulheres com pouca formação procurem, entre outras atividades, a de empregada.

A solução do mercado

Felizmente, o mercado sempre encontra meios de burlar as ineficiências e pesos mortos criados pela intervenção estatal. Assim como, no meio empresarial, a legislação trabalhista praticamente obriga as empresas a pagar por serviços de PJ ao invés de contratar formalmente um funcionário, também no setor das domésticas vem ganhando peso a função da diarista para trabalhos específicos. Esse processo é em parte independente das leis trabalhistas: com o encarecimento da mão-de-obra, serviços especializados com tempos estritamente determinados tornam-se mais vantajosos. Não dá para pagar uma mulher para ficar o dia todo em casa, grande parte do tempo apenas de stand-by caso alguém precise de algo. Mas dá para pagar para essa mesma mulher passar uma hora produtiva dentro da casa toda semana. As leis trabalhistas, contudo, aceleram esse processo de mudança, tornando-o mais rápido do que deveria ser. Graças a elas, esse processo se dará um pouco antes de muitas mulheres terem conseguido encontrar alternativa melhor no mercado de trabalho.

Esse é provavelmente o novo paradigma ao qual os brasileiros se habituarão. Uma realidade com um pouco menos de lazer e um pouco menos de possibilidades para trabalhadoras pobres e pouco qualificadas, mas na qual, ainda assim, ambos os lados conseguem se beneficiar mutuamente.

A outra parte da solução é nossa velha e conhecida informalidade, que deve continuar a vigorar em muitos casos. É uma opção de risco para o empregador, mas que, num mercado como o das domésticas, em que a confiança pesa muito, continua fazendo sentido para muitos. Ao contrário do que se diz, não há problema absolutamente nenhum na existência do trabalho informal. O problema, como tentei mostrar, são as leis que criam a necessidade da informalidade.

Joel Pinheiro da Fonseca é mestrando em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta