domingo, 24 de fevereiro de 2013

A FARSA SOBRE ABRAHAM LINCOLN

O filme Lincoln, de Steven Spielberg, vem sendo um grande sucesso de bilheteria e ganhou doze indicações para o Oscar, inclusive de melhor filme, melhor diretor e melhor ator para Daniel Day-Lewis, que fez o papel do 16º presidente americano. Como não vi o filme, este artigo não será sobre ele, mas sim sobre o homem que é até hoje endeusado por muitos.


Meu colega Thomas DiLorenzo, professor de economia da Loyola University de Maryland, já expôs vários mitos a respeito de Lincoln em seu livro de 2006, Lincoln Unmasked. Agora ele acaba de receber o reforço de Joseph Fallon, analista de inteligência cultural e ex-instrutor do Centro de Inteligência do Exército dos EUA, com seu novo e-book, Lincoln Uncensored. O livro de Fallon examina 10 volumes reunidos de discursos e escritas de Lincoln, os quais incluem passagens sobre escravidão, secessão, igualdade para os negros e emancipação. Não é necessário se basear na interpretação de ninguém. Apenas leia as palavras de Lincoln e veja o que você conclui delas.

Em uma carta escrita em 1858, Lincoln diz:

Já declarei mil vezes e volto a repetir que é minha firme opinião que nem o Governo Geral e nem qualquer outro poder externo aos estados escravagistas podem constitucionalmente ou por direito interferir na escravidão onde quer que ela já exista.

Em um discurso proferido em Springfield, Illinois, ele explicou:

Minhas declarações sobre este assunto da escravidão negra podem até ser deturpadas, mas não podem ser mal interpretados. Já disse que não vejo a Declaração (de Independência) como sendo uma afirmação de que todos os homens foram criados iguais sob todos os aspectos.

Debatendo com o senador Stephen Douglas, Lincoln disse:

Digo, portanto, que não sou, nem jamais fui, a favor de criar, de qualquer maneira que seja, a igualdade social e política das raças branca e preta; que não sou, nem nunca fui, a favor de transformar negros em eleitores ou jurados, nem de habilitá-los a exercer cargos públicos, nem de permitir seu casamento com pessoas brancas; e direi, adicionalmente, que há uma diferença física entre as raças branca e preta que, creio eu, irá para sempre proibir as duas de viverem juntas em termos de igualdade social e política. E, visto que elas não podem conviver desta forma, enquanto elas permanecerem em coexistência terá de haver a posição do superior e do inferior, e eu, assim como qualquer outro homem, sou a favor de que a posição superior seja atribuída à raça branca. [....] O que eu mais gostaria de ver seria a separação das raças branca e negra. (Abraham Lincoln, First Lincoln-Douglas Debate, Ottawa, Illinois, Sept. 18, 1858, in The Collected Works of Abraham Lincoln vol.3, pp. 145-146; 521).

E então você dirá, "Mas, professor Williams, a Proclamação de Emancipação publicada por Lincoln libertou os escravos! Isso prova que ele era contra a escravidão!"

Nas palavras do próprio Lincoln:

Vejo a questão [a Proclamação de Emancipação] como uma medida prática para a guerra [de secessão], algo a ser decidido de acordo com as vantagens ou desvantagens que ela possa oferecer à supressão da rebelião. [...] Também irei admitir que a emancipação irá melhorar nossa situação perante a Europa, convencendo aquele continente de que estamos sendo impelidos por algo mais do que a ambição.

Na época em que Lincoln escreveu a proclamação, a guerra de secessão estava indo mal para a União. Londres e Paris já estavam considerando reconhecer os Estados Confederados e estavam também considerando auxiliá-los em seus esforços de guerra.

Thomas DiLorenzo, em um recente artigo, apontou que o historiador de Harvard David Donald, vencedor do Prêmio Pulitzer e um dos mais proeminentes historiadores de Lincoln da atualidade, escreveu em sua biografia sobre Lincoln (página 545) que Abraham na realidade não teve praticamente nada a ver com a aprovação da Décima Terceira Emenda, contrariamente ao que é mostrado no filme de Spielberg. Com efeito, como escreveu Donald, quando perguntado por genuínos abolicionistas no Congresso se ele iria ajudá-los a aprovar a Emenda, Lincoln disse que não. 

Mas ele, no entanto, se empenhou bastante em tentar aprovar, em 1861, uma versão de uma outra décima terceira emenda, conhecida como a Emenda Corwin, a qual visava a consagrar explicitamente a escravidão na Constituição americana. Essa emenda chegou a ser aprovada pelo Congresso.

A Emenda Corwin proibia o governo federal de interferir, sob qualquer circunstância, na escravidão do sul dos EUA. A Emanda Corwin dizia:

Nenhuma emenda será feita à Constituição autorizando ou dando ao Congresso o poder de abolir ou interferir nas instituições domésticas de nenhum estado, inclusive no que tange às pessoas mantidas para trabalho ou serviço pelas leis do referido Estado.

"Pessoas mantidas para trabalho ou serviço" é como a Convenção Constitucional se referia aos escravos, e "instituições domésticas" se referia à escravidão. Em seu discurso de posse, Lincoln anunciou ao mundo que ele apoiava a Emenda Corwin:

Entendo que uma emenda proposta à Constituição — emenda essa que, no entanto, ainda não vi — foi aprovada no Congresso com o propósito de assegurar que o Governo Federal jamais interfira nas instituições domésticas dos Estados, inclusive nas pessoas mantidas para trabalho ou serviço . . . . Considerando que tal provisão resultará em lei constitucional, afirmo que não tenho nenhuma objeção a ela se tornar manifesta e irrevogável. (Ênfase minha).

Permita-me introduzi-los agora a Lerone Bennet, Jr., que foi editor executivo da revista Ebony por várias décadas (começando em 1958) e autor de vários livros, entre eles uma biografia de Martin Luther King, Jr. (What Manner of Man: A Biography of Martin Luther King) e uma obra monumental sobre Lincoln, Forced into Glory: Abraham Lincoln's White Dream. Bennet é formado pela Morehouse College, em Atlanta, e escreveu vários artigos sobre a cultura e a história afro-americana durante sua carreira na Ebony. Ele passou mais de vinte anos pesquisando e escrevendo Forced into Glory, uma severa e rigorosa crítica a Abraham Lincoln baseada em montanhas de fatos e verdades. Segundo Bennet Jr.,

Quem libertou os escravos? Se é que eles foram de fato 'libertados', isso ocorreu por causa da Décima Terceira Emenda, a qual foi escrita e pressionada para ser aprovada não por Lincoln, mas sim pelos grandes emancipadores que ninguém conhece, os abolicionistas e líderes congressistas que criaram o clima e geraram a pressão política que incitou, empurrou e finalmente forçou Lincoln à glória ao associá-lo a uma política à qual ele resolutamente se opusera por pelo menos cinquenta e quatro de seus cinquenta e seis anos de vida. (Bennett, Jr., Forced into Glory: Abraham Lincoln' s White Dream, p. 19).

Vale dizer que a Proclamação de Emancipação não foi uma declaração universal. Ela especificava onde os escravos estariam livres: somente naqueles estados que estavam "em rebelião contra os Estados Unidos". Os escravos permaneceram escravos naqueles estados que não estavam em rebelião — tais como Kentucky, Maryland e Delaware. A hipocrisia da Proclamação de Emancipação foi alvo de pesadas críticas. O próprio Secretário de Estado de Lincoln, William Seward, ironizou: "Mostramos nossa desaprovação à escravidão emancipando escravos onde nossa jurisdição não é aceita e mantendo escravos onde podemos de fato libertá-los".

Incoerências à parte, houve sim um momento em que Lincoln articulou um ponto de vista sobre secessão que teria sido muito bem-vindo em 1776:

Quaisquer pessoas, em qualquer lugar do mundo, que estejam dispostas e tenham o poder para tal, têm o direito de se insurgirem e se desvencilharem do governo vigente, e de formarem um novo governo que lhes seja mais apropriado. ... Tampouco está este direito restrito apenas a casos em que todos os cidadãos devem escolher exercê-lo. Qualquer fatia de um povo que se sinta capaz pode fazer uma revolução, se seceder e se apossar de toda a área daquele território em que habitam.

Mas isso foi dito por Lincoln em 1848 em um discurso na Câmara dos Deputados dos EUA. Ele se referia à guerra contra o México e à subsequente secessão do Texas em relação àquele país.

O que nos leva à grande pergunta. Por que Lincoln não aplicou aos estados do sul dos EUA essa mesma lógica do direito à secessão? Por que ele decidiu enviar tropas federais para massacrar os confederados? Para chegar à resposta, basta 'seguir o dinheiro'. Ao longo de toda a história dos EUA até o início do século XX, o governo federal possuía apenas duas fontes de receita: impostos cobrados sobre a venda de alguns bens específicos (que geravam uma receita muito baixa) e tarifas de importação. Durante a década de 1850, as tarifas de importação representavam nada menos que 90% de toda a receita do governo federal. E em 1859, os portos dos estados do Sul dos EUA foram responsáveis por nada menos que 75% do total dessas tarifas. Qual político "responsável" aceitaria abrir mão de tamanha receita? 

O preço desta recusa: 750.000 compatriotas assassinados pelo seu próprio governo.

Por: Walter Williams é professor honorário de economia da George Mason University e autor de sete livros. Suas colunas semanais são publicadas em mais de 140 jornais americanos.

Tradução de Leandro Roque

sábado, 23 de fevereiro de 2013

O OUTRO LADO

E se em vez de insistirmos na comparação entre os governos petistas e os do PSDB dos últimos 20 anos fizéssemos uma análise mais abrangente, com as comparações da performance brasileira nos últimos 10 anos com a própria performance dos governos ao longo da nossa história e, além disso, com as demais economias do mundo, inclusive dos países emergentes? O professor titular de Economia Internacional da UFRJ Reinaldo Gonçalves se propôs a se distanciar da polarização PT – PSDB para analisar a economia brasileira e os avanços sociais nos 10 anos de governos petistas, e encontrou um quadro bastante desolador, distante da propaganda oficial, a que deu o título “Brasil Negativado, Brasil Invertebrado: Legado de 2 governos do PT”.


A “negatividade” é informada por inúmeros indicadores de desempenho da economia brasileira que abarcam o país, o governo, as empresas e as famílias. O “invertebramento” envolve a estrutura econômica, o processo social, as relações políticas e os arranjos institucionais. Esta trajetória é marcada, segundo o professor Reinaldo Gonçalves, na dimensão econômica, por fraco desempenho; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo.

Na avaliação do crescimento da renda durante os governos do PT, o professor Reinaldo Gonçalves classifica de “fraco desempenho pelo padrão histórico brasileiro e pelo atual padrão internacional”. A taxa secular de crescimento médio real do PIB brasileiro no período republicano é 4,5% e a taxa mediana é 4,7%. No governo Lula a taxa obtida é 4,0% enquanto as estimativas e projeções do FMI para o governo Dilma informam taxa de 2,8%.

O resultado é claramente negativo: no ranking dos presidentes do país, Lula está na 19ª posição e Dilma tem desempenho ainda pior (24ª posição), em um conjunto de 30 presidentes com mandatos superiores a um ano. Resultados que não são compensados pelo fato de o governo Fernando Henrique estar em 27 posição, com o crescimento médio de 2,3%.

O Brasil Negativado dos governos petistas também é evidente quando se observam os padrões atuais de desempenho da economia mundial, ressalta Gonçalves. Durante os governos petistas a taxa média anual de crescimento do PIB (considerando as estimativas e projeções do FMI para os 2 últimos anos do governo Dilma) é 3,6%. No período 2003-2014 a estimativa é que a economia mundial cresça à taxa média anual de 3,8%; no caso dos países em desenvolvimento esta taxa deverá ser de 6,4%.

Portanto, salienta Gonçalves, o Brasil Negativado é evidente quando se constata não somente estas diferenças como os dois outros fatos: em 6 dos 12 anos do período 2003-14 a taxa de crescimento da economia brasileira é menor do que a taxa média mundial; e, em todos os anos a taxa de crescimento do PIB brasileiro é menor do que a média dos países em desenvolvimento.

O Brasil Negativado também é evidente quando se compara o crescimento do PIB brasileiro durante os governos petistas com a média simples e a mediana das taxas de crescimento dos 186 países que são membros do FMI e que representam um painel muito representativo da economia mundial.

A taxa média durante dos governos Lula e Dilma (3,6%) é menor do que a média simples (4,6%) e a mediana (4,4%) das taxas de crescimento dos 186 países do painel. A taxa de crescimento econômico brasileiro é menor do que a média simples e a mediana da economia mundial em 10 e 7 anos dos 12 anos, respectivamente.

O fraco crescimento da economia brasileira durante os governos petistas está diretamente associado às baixas taxas de investimento, ressalta Gonçalves. A taxa média de investimento do Brasil no período 2003-14 é 18,8% enquanto a média e a mediana mundial (painel do FMI) são 23,9% e 22,5%, respectivamente. Em todos os anos de governo petista a taxa de investimento é menor do que a média e a mediana do mundo. No painel de 170 países o Brasil ocupa a 126ª posição, média para o período 2003-14. (Amanhã, o social) Por: Merval Pereira O Globo

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

A DISPUTA SINO-JAPONESA


É possível que estejamos testemunhando uma manobra pela qual estão sendo psicologicamente mapeadas as posições estratégicas do Japão e dos Estados Unidos.

A segunda e a terceira dentre as maiores economias – e também as duas nações mais importantes da Ásia – continuam envolvidas em uma disputa territorial em torno de cinco ilhotas. Quais são as possíveis consequências dessa disputa? Há uma guerra no horizonte? Essa atual contenda não é algo fácil de deslindar. Os chineses não são conhecidos pela franca objetividade estratégica. Sendo assim, quando eles começam a concentrar esforços para uma determinada finalidade, é necessário cogitarmos se não há algo mais em jogo. Talvez seja algo que tenhamos esquecido.

As disputadas Ilhas Senkaku estão atualmente desabitadas. Na China, essas ilhotas são conhecidas pelo nome de Ilhas Diaoyu e estão a 330 quilômetros da China continental e 410 das ilhas japonesas Ryukyu. Especificamente dizendo, o arquipélago consiste em cinco ilhotas (uma delas foi local de uma usina de processamento de peixes de 1910 até 1940). Segundo um relatório das Nações Unidas, é possível que no solo submarino ao redor das ilhotas haja grandes reservas de petróleo e gás.

Embora a administração de Obama não tenha declarado apoio oficial à reivindicação japonesa pelas ilhas Senkaku, o Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre os Estados Unidos e o Japão pode obrigar os EUA a defenderem militarmente o Japão num eventual conflito. Com efeito, é curioso que o artigo 9º da constituição japonesa proíba Tóquio de usar a força para resolver disputas internacionais. Estritamente falando, não era para o Japão ter forças armadas. O 9º artigo diz: 

“Aspirando sinceramente a uma paz internacional baseada na ordem e na justiça, o povo japonês renúncia definitivamente à guerra como direito soberano da nação e a ameaça ou uso de força como meios de resolver disputas internacionais”. 

O parágrafo dois diz:

“Para cumprir o objetivo do parágrafo anterior, as forças terrestres, marinhas e aéreas, assim como quaisquer outros potenciais bélicos jamais serão sustentados. O direito de beligerância do estado não será reconhecido.”

Essa é uma daquelas piadas irônicas da história; encontrarmos um país com uma constituição pacifista que possui força aérea, marinha e exército terrestre. Evidentemente essas forças não são grandes ou ameaçadoras, porém elas podem ser capazes de repelir uma invasão nas ilhas Senkaku. Entretanto, isso não é tão extraordinário quando ficamos sabendo que a China foi o principal motivo por trás do armamento parcial do Japão.

Com a invasão comunista – apoiada pela China – à Coreia do Sul em 1950, os EUA foram forçados a tirar tropas do Japão para defender a Coreia do Sul. Deste modo, tornou-se necessário que o Japão cobrisse essa ausência para que pudesse proteger sua própria costa. Como a constituição japonesa de 1947 foi escrita majoritariamente pela equipe de apoio do General MacArthur, a subsequente negação do artigo 9 foi efetivamente posta em prática quando o próprio MacArthur ordenou que os japoneses criassem uma força de reserva nacional com 75 mil homens, algo que, na prática, foi a criação de uma força que pudesse repelir a invasão comunista.

Nas décadas seguintes, as forças de defesa do Japão desenvolveram uma força naval e aérea. No começo, o papel militar era fortemente restringido. Eram chamados de “policiais” e seus tanques eram “veículos especiais”. Apesar dos desafios legais, a Suprema Corte do Japão ressaltou a constitucionalidade da defesa nacional. Em 1954, a Agência Nacional de Segurança foi renomeada para Agência Japonesa de Defesa e a Polícia reservista foi, consequentemente, chamada de Forças de Defesa do Japão. Nos dias de hoje, grosso modo as forças militares têm 250 mil integrantes. Isso é pouco se comparado ao Exército de Libertação Popular da China, que responde pela maior infantaria do mundo, com cerca de 2.25 milhões de membros ativos. Adicione a isso o fato da China ser uma força nuclear e então você verá o tamanho da desvantagem do Japão.

Mas guerras não são mais ganhas pelo lado que possui a mera superioridade numérica. Um conflito pelas Ilhas Senkaku seria um conflito naval, onde as preponderantes forças terrestres chinesas não poderiam entrar em ação e, assim, a maestria tecnológica japonesa, que é superior, poderia ser decisiva. Uma batalha marinha seria decidida por aeronaves, forças náuticas e mísseis. A Força Marítima de Defesa do Japão é especializada em remoção de minas e em operações bélicas antissubmarinas; para isso conta com 110 navios de guerra, sendo que quatro são porta-helicópteros e 16 são submarinos. Contudo, a marinha chinesa tem 515 navios de guerra, sendo que 63 são submarinos, 75 navios de combate de superfície e um porta-aviões.

Uma guerra naval sob as atuais circunstâncias envolve uma série de fatores incógnitos, de modo que é impossível dizer qual lado ganharia uma guerra marinha. Com o cenário nivelado, a China tem a vantagem e poderia facilmente ocupar as ilhas com paraquedistas antes que o Japão pudesse reagir. Mas então teríamos o vasto poderio naval dos Estados Unidos, que tem um tratado de segurança com o Japão. Mais do que qualquer outra coisa, a disputa das Ilhas Senkaku revela – ou falha em revelar – a prontidão do Presidente Obama para dar suporte ao Japão. Essa prontidão não está aparente em lugar algum. Oficialmente, o Departamento de Estado dos EUA diz que a América não tomou posição na disputa das Ilhas Senkaku.

Este último fato é decisivo e muito pode se aprender com ele. Enquanto os líderes militares chineses fizeram uma enxurrada de afirmações belicosas para a mídia estatal chinesa, os líderes civis chineses mostraram uma face mais conciliadora e política. Isso é mais bem colocado no conselho dado pelo antigo filósofo militar chinês Sun Tzu: “A vitória está em saber quando se deve lutar”. Neste caso, a batalha não é o objetivo imediato, embora um objetivo de longo prazo certamente seja mantido como opção.

Há sempre um significado político implícito na retórica militar chinesa. Não devemos descartar a possibilidade de que a China usará das suas reivindicações sobre as ilhas para obter algo do Japão que ninguém está esperando. Em outras palavras, é possível que estejamos testemunhando uma manobra pela qual estão sendo psicologicamente mapeadas as posições estratégicas do Japão e dos Estados Unidos. Isto é dizer que aqui os objetivos são analisar se haverá a prontidão dos EUA em ajudar o Japão ou se haverá uma aquiescência para com a China. Afinal de contas, o que é mais importante? Algumas pequenas ilhas insignificantes ou a relação entre Japão e EUA?

O antigo estrategista chinês Sun Tzu escreveu: “Conhece o inimigo e conhece a ti mesmo. Assim não terá de temer o resultado de 100 batalhas”. Parece ocorrer aos observadores chineses que essa disputa se dará ao longo dos limites da exploração da psicologia japonesa e americana quando se trata de política asiática. O valor dessas ilhas não pode ser maior do que saber o caráter da liderança japonesa ou da americana. Saber isso pode ser o verdadeiro prêmio nessa disputa.

Há de se considerar também o jogo econômico. A disputa das ilhas está afetando as exportações japonesas para a China – houve uma diminuição de 12% no último mês de novembro – e coincidiu com o segundo trimestre consecutivo de contração do PIB japonês. Porque os líderes chineses não dão um sinal de conciliação? Os políticos japoneses sem dúvida se mostrariam receptivos se fossem tratados respeitosamente e lhes fosse oferecido uma “parceria” mais próxima com Beijing. Isso é especialmente verdadeiro se eles se sentirem abandonados por seus aliados americanos.

Ninguém sabe o que acontecerá nos próximos meses, mas não podemos esperar que a disputa acerca das Ilhas Senkaku seja um assunto simples. Devemos considerar a possibilidade de que as tensões foram criadas pela China com o propósito de aliviá-las de uma maneira lucrativa e, por assim dizer, estrategicamente vantajosa. POR JEFFREY NYQUIST Publicado no Financial Sense. Tradução: Leonildo Trombela Júnior

A TURQUIA ESTÁ DEIXANDO O OCIDENTE?

As recentes medidas tomadas pelo governo turco indicam sua disposição em livrar-se do clube das democracias da OTAN em favor da gangue de estados autoritários russo e chinês.

Eis porque:

Começando em 2007, Ancara solicitou três vezes, sem sucesso, participar como Membro Visitante da Organização para a Cooperação de Xangai (ou SCO, informalmente conhecida como Xangai Cinco). Fundada em 1996 pelos governos russo e chinês, juntamente com três países da Ásia Central Soviética (com a afiliação de mais um em 2001), a SCO recebeu pouquíssima atenção no Ocidente, embora tenha espetaculares ambições sobre segurança entre outras, incluindo a possível criação de um cartel de gás. Além disso, oferece uma alternativa ao modelo Ocidental, desde a OTAN, passando pela democracia, indo até a substituição do dólar americano como moeda de reserva. Após as três rejeições, Ancara solicitou o status de "Parceiro de Diálogo" em 2011. Em junho de 2012, obteve a aprovação.

Passado um mês, o primeiro ministro turco Recep Tayyip Erdoğan referiu-se a respeito da sua conversa com o Presidente da Russia Vladimir Putin da seguinte maneira, "Vamos, aceite-nos no Xangai Cinco [como membro pleno] e nós iremos reconsiderar a União Européia". Erdoğan reiterou a intenção em 25 de janeiro, realçando o impasse nos esforços turcos em se filiar à União Européia (UE): "na qualidade de primeiro ministro de 75 milhões de pessoas", explicou, "começa-se a procurar alternativas. Por esta razão eu disse ao Sr. Putin um dia desses, "Aceite-nos no Xangai Cinco, vamos lá, e diremos adeus a UE". Por que protelar"? Adiante acrescentou que a SCO "é muito melhor, muito mais poderosa [que a UE] e compartilhamos os mesmos valores dos demais membros".

Presidentes dos seis países da SCO em uma reunião em Pequim em junho de 2012. 

Em 31 de janeiro, o ministério das relações exteriores anunciou planos para a promoção para "Estado Observador" na SCO. Em 3 de fevereiro Erdoğan reiterou a sua afirmação anterior, dizendo "Iremos procurar alternativas", tecendo elogios ao "processo de democratização" do grupo de Xangai, ao mesmo tempo menosprezando a "islamofobia" européia. Em 4 de fevereiro, o Presidente Abdullah Gül contra-atacou, declarando que "a SCO não é uma alternativa à UE. ... A Turquia deseja adotar e implementar os critérios da UE".

Como interpretar tudo isso?

O faz de conta da SCO enfrenta obstáculos significativos: Se por um lado Ancara lidera os esforços para derrubar Bashar al-Assad, a SCO apóia com firmeza o líder sitiado da Síria. As tropas da OTAN acabaram de chegar à Turquia a fim de operarem as baterias de mísseis Patriot com o objetivo de proteger o país dos mísseis sírios fabricados na Rússia. Mais importante ainda, todos os seis membros da SCO opõem-se veementemente ao islamismo abraçado por Erdoğan. Quem sabe, por isso mesmo, Erdoğan tenha mencionado a filiação à SCO somente com o intuito de pressionar a UE ou para mostrar uma retórica simbólica aos seus partidários.
Putin da Rússia e Erdoğan da Turquia: farinha do mesmo saco? 

Ambas as possibilidades são válidas. Mas eu considero os seis meses de flerte com seriedade por três razões. Primeira, Erdoğan já comprovou que é direto, levando o respeitado colunista, Sedat Ergin, a chamar a declaração de 25 de janeiro sua "mais importante" proclamação de política externa até hoje.

Segunda, conforme destaca o colunista turco Kadri Gürsel, "Os critérios da UE exigem democracia, direitos humanos, direitos sindicais, direitos das minorias, igualdade entre os sexos, distribuição equitativa de renda, participação e pluralismo da Turquia. A SCO como uma união de países governados por ditadores e autocratas não poderá exigir nenhum dos critérios acima para a afiliação". Diferentemente da União Européia, os membros da Xangai não irão pressionar Erdoğan a liberalizar seu país e sim incentivar suas tendências ditatoriais que já amedrontam tantos turcos.

Terceiro, a SCO se encaixa no impulso islamista de desafiar o Ocidente e sonhar com uma alternativa. A SCO, tendo como idiomas oficiais o russo e o chinês, abriga o DNA anti-ocidental e em suas reuniões transbordam sentimentos anti-ocidentais. Por exemplo, quando o Presidente do Irã Mahmoud Ahmedinejad proferiu um discurso ao grupo em 2011, ninguém repeliu sua teoria conspiratória em relação ao 11 de setembro ter sido uma trama interna do governo dos EUA usada "como justificativa para invadir o Afeganistão e o Iraque ferindo mais de um milhão de pessoas". Vários defensores ecoam o analista egípcio Galal Nassar na esperança que em última instância a SCO "terá a oportunidade de resolver a disputa internacional a seu favor". Por outro lado, conforme observou uma autoridade japonesa, "A SCO está se tornando um bloco rival da aliança dos EUA. Ela não compartilha nossos valores".

As medidas turcas a favor da filiação ao grupo de Xangai, realça a já ambivalente filiação de Ancara à Organização do Tratado do Atlântico Norte, incisivamente simbolizada pelas inéditas manobras conjuntas turco-chinesas de 2010. Dada esta realidade, a Turquia de Erdoğan não é mais um parceiro confiável do Ocidente e sim informante em seu refúgio sagrado. Senão expulso, deveria ao menos ser suspenso da OTAN.

Por: DANIEL PIPES
Publicado no The Washington Times.
Original em inglês: Is Turkey Leaving the West?
Tradução: Joseph Skilnik

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

A AMEAÇA FASCISTA

Os liberais defensores do livre mercado são comumente chamados de “reacionários” ou de “fascistas” pela esquerda. O que nem todos sabem é que o fascismo sempre foi um casamento entre nacionalistas, sindicatos e grandes empresários, em uma simbiose totalmente antiliberal.

Para Robert Paxton, em “A anatomia do fascismo”, o programa fascista era “uma curiosa mistura de patriotismo de veteranos e de experimento social radical, uma espécie de “nacional-socialismo’”.

Donald Sassoon, em “Mussolini e a ascensão do fascismo”, mostra como o clientelismo, a mentalidade antiparlamentar presente na tradição socialista italiana, e um dos mais altos índices de sindicalização da Europa ajudaram a levar os fascistas ao poder.

O próprio Mussolini foi socialista, gostava de se identificar como “homem do povo” e se dizia um defensor da classe operária. Sua visão era extremamente coletivista, bem sintetizada na máxima: "Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado." Não existe nada menos liberal que isso!

Se há um “liberalismo” que realmente se assemelha ao fascismo, este é o dos “progressistas” modernos que usurparam o termo para pregar bandeiras estatizantes e coletivistas, como demonstra Johah Goldberg em “Fascismo de esquerda”. Mas este não guarda nenhuma relação com o liberalismo clássico, defensor do livre mercado e do indivíduo como um fim em si mesmo.

O capitalismo liberal defende a propriedade privada, a liberdade individual e a livre concorrência, inclusive universal (globalização). Se, por um lado, esse modelo é o melhor para a grande maioria dispersa, por outro ele gera desconforto em certos grupos organizados. Ninguém gosta de concorrência, ainda que ela seja essencial para o progresso.

É assim que algumas categorias se unem e, apesar de minoritárias, conseguem fazer um forte lobby para obter privilégios estatais. Suas vantagens são concentradas, e os custos são espalhados por toda a sociedade. Grandes empresários e sindicatos se juntam em busca de medidas que obstruem a livre concorrência, e tudo isso em nome dos “interesses nacionais”.

Tivemos recentemente um claro exemplo disso na questão dos portos. Qualquer um sabe que nossa infraestrutura é caótica, e impõe um pesado custo ao país em termos de competitividade. Mas, quando reformas tímidas para modernizar um pouco os portos foram propostas, a reação foi imediata. Modernizar os portos implica mais concorrência, e isso os sindicatos e os capitães da indústria nacional não aceitam.

Toda a retórica nacionalista serve somente para ocultar essa agenda de interesses que, no fundo, prejudica a população brasileira. Nossos portos, assim como estradas e aeroportos, estão em estado precário porque faltam investimentos e porque a gestão estatal é sempre terrível. Mas mexer nisso é comprar briga com as forças reacionárias.

O ideal, do ponto de vista liberal, seria privatizar de uma vez portos, estradas, ferrovias, bancos públicos, a Infraero e a Petrobras. A Companhia Docas do RJ, por exemplo, dá prejuízo acima de R$ 100 milhões por ano! Os escândalos de corrupção são frequentes. A reserva de mercado garante privilégios absurdos aos sindicatos. Os produtos chegam aos consumidores a preços maiores. A quem interessa isso tudo?

A Petrobras está em evidência também, pois o governo está destruindo a olhos nus a maior empresa brasileira. Seu uso político para fins partidários já fez com que dezenas de bilhões de reais evaporassem em seu valor de mercado. O país ainda precisa importar gasolina, e faltam recursos para os investimentos necessários. Quem ganha com isso?

Mas quando um liberal aponta esses fatos e apresenta seus argumentos em defesa das privatizações, ele é logo tachado de “reacionário” ou “fascista” pelos esquerdistas. Quem é reacionário: aquele que deseja modernizar a economia com mais concorrência ou aquele que luta pelo passado mercantilista? Quem é fascista: aquele que combate a nefasta aliança entre sindicatos e grandes empresários ou aquele que pede mais privilégios em nome do nacionalismo?

Um dos aspectos que facilitaram a ascensão fascista na Itália foi a total descrença na democracia, no Parlamento corrupto, envolto em escândalos de compra de votos dos deputados. Outro fator foi a inexistência de uma oposição organizada. Soa familiar?

Todo cuidado é pouco. O fascismo é uma ameaça real, como podemos ver na Venezuela e na Argentina. Antídotos contra ele são justamente a privatização e a concomitante redução do intervencionismo estatal na economia.Por: Rodrigo Constantino, O GLOBO

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A FALÁCIA DA REFORMA AGRÁRIA

O tema da reforma agrária dividiu o país durante décadas. Desde os anos 1940 foi um dos assuntos dominantes do debate político e considerada indispensável para o desenvolvimento nacional. Diziam que a divisão das grandes propriedades era essencial para a industrialização, pois ampliaria, com base nas pequenas propriedades, o fornecimento de gêneros alimentícios para as cidades, diminuindo o custo de reprodução da força de trabalho e acabando com a carestia.


Por outro lado, o campo se transformaria em mercado consumidor das mercadorias industrializadas. Ou seja, o abastecimento dos centros urbanos, que estavam crescendo rapidamente, e o pleno desenvolvimento da indústria dependiam da reforma agrária. Sem ela não teríamos um forte setor industrial e a carestia seria permanente nos centros urbanos, além da manutenção da miséria nas áreas agrícolas. E, desenhando um retrato ainda mais apocalíptico, havia uma vertente política da tese: sem a efetivação da reforma agrária, o país nunca alcançaria a plena democracia, pois os grandes proprietários de terra dominavam a vida política nacional e impediam a surgimento de uma sociedade livre. Era repetido como um mantra: o Brasil estava fadado ao fracasso e não teria futuro, caso não houvesse uma reforma agrária.

Os anos se passaram e o caminho do país foi absolutamente distinto. A reforma agrária não ocorreu. O que houve foram distribuições homeopáticas de terra segundo o interesse político dos governos desde 1985, quando foi, inclusive, criado um ministério com este fim. Enquanto os olhos do país estavam voltados para a necessidade de partilhar as grandes propriedades – marca anticapitalista de um país que não admira o lucro e muito menos o sucesso – o Centro-Oeste foi sendo ocupado (e parte da Amazônia), além da revolução tecnológica ocorrida nas áreas já cultivadas do Sul-Sudeste.

O deslocamento de agricultores, capitais e experiência produtiva especialmente para o Centro-Oeste ocorreu sem ter o Estado como elemento propulsor. Foram agricultores com seus próprios recursos que migraram principalmente do Sul para a região. Como é sabido, falava-se desde os anos 30 em marcha para o Oeste, mas nada de prático foi feito. E, quando o Estado resolveu fazer algo, sempre acabou em desastre, como a batalha da borracha, nos anos 1940, ou, trinta anos depois, com as agrovilas, na Amazônia.

O épico deslocamento de agricultores do Sul para o Centro-Oeste até hoje não mereceu dos historiadores um estudo detalhado. De um lado, devido aos preconceitos ideológicos; de outro, pela escassez ou desconhecimento das fontes históricas. Como todo processo de desbravamento não ficou imune às contradições – e isto não ocorreu apenas no Brasil. Foram registrados sérios problemas em relação ao meio ambiente e aos direitos humanos, em grande parte devido à precariedade da presença das instituições estatais na região.

Com a falência do modelo econômico da ditadura, em 1979, e a falta de perspectiva segura para a economia, o que só ocorrerá uma década e meia depois, com o Plano Real, as atenções do debate político ficaram concentradas no tema da reforma agrária, mas de forma abstrata. O centro das discussões era o futuro dos setores secundário e terciário da economia. O campo só fazia parte do debate como o polo atrasado e que necessitava urgentemente de reformas. Contudo, a realidade era muito distinta: estava ocorrendo uma revolução, um fabuloso crescimento da produção, que iria mudar a realidade do país na década seguinte.

Entretanto, no Parlamento, os agricultores não tinham uma representação à altura da sua importância econômica. Alguns que falavam em seu nome ficaram notabilizados pela truculência, reforçando os estereótipos construídos pelos seus adversários. É o que Karl Marx chamou de classe em si e não para si. Os agricultores, na esfera política, não conseguiam (e isto se mantém até os dias atuais) ter uma presença de classe, com uma representação moderna, que defendesse seus interesses e estabelecendo alianças com outros setores da sociedade. Pelo contrário, sempre estiveram, politicamente falando, correndo atrás do prejuízo e buscando alguma solução menos ruim, quando de algum projeto governamental prejudicial à sua atividade.

Hoje, o Brasil é uma potência agrícola, boa parte do saldo positivo da balança comercial é devido à agricultura, a maior parte da população vive no meio urbano, a carestia é coisa do passado, a industrialização acabou (mesmo com percalços) sendo um sucesso, o país alcançou a plena democracia e não foi necessária a reforma agrária. A tese que engessou o debate político brasileiro durante décadas não passou de uma falácia.
Por: Marco Antonio Villa


domingo, 17 de fevereiro de 2013

A LUTA DO PAPA

Paulo VI chegou a afirmar que a Igreja parecia estar em processo de autodemolição. No Brasil, a Teologia da Libertação esvaziou as igrejas e levou à fundação do PT.

A surpreendente renúncia anunciada de Bento XVI, como se poderia prever, suscitou toda sorte de comentário absurdo. De especulações sobre o motivo – que o próprio Papa declarou ser sua saúde – a delírios que só fazem expor a ignorância de quem os profere, vimos de tudo. Cabe, assim, apontar as circunstâncias da guerra interna da Igreja, para que se possa perceber com mais clareza a dureza do múnus pontifical.

Nos anos 60, imediatamente antes da revolução de costumes que varreu o Ocidente, os bispos da Igreja se reuniram em um concílio, dito Concílio Vaticano II. Um grupo de bispos oriundos do Norte europeu (especialmente Alemanha, Holanda, Bélgica e Áustria), soberbamente organizados, virou de pernas para o ar a organização do concílio, desprezando os documentos preparatórios e conseguindo aprovar – contra a oposição liderada, entre outros, pelo arcebispo de Diamantina (MG), dom Geraldo Sigaud – documentos finais um pouco confusos, que poderiam propiciar a pessoas mal-intencionadas uma leitura heterodoxa.

E foi o que aconteceu. Durante o pontificado de Paulo VI (1963-1978), o “espírito do Concílio” foi usado como desculpa para negar, dos púlpitos, não só o que a Igreja sempre pregara, mas até mesmo os próprios textos conciliares. Paulo VI chegou a afirmar que a Igreja parecia estar em processo de autodemolição. No Brasil, a Teologia da Libertação esvaziou as igrejas e levou à fundação do PT.

Conferências episcopais inteiras estão em cisma material, desobedecendo abertamente às ordens papais. Nesses territórios, mesmo os bons clérigos se veem forçados a ceder à heterodoxia e desobedecer ao Papa, sob pena de ostracismo. Em algumas, como a austríaca, a situação é gravíssima. Em outras, como a CNBB brasileira, é apenas grave. Para que se tenha uma noção do nível da desobediência daqui, basta mostrar que, pela legislação canônica, é proibido aos padres usar roupas comuns (como as dos leigos) em vez da batina, e leigos não podem distribuir a Eucaristia nas missas dominicais.

Essa situação começou a se reverter graças ao imbatível carisma de João Paulo II, auxiliado pelo sempre fiel cardeal Ratzinger. Quando aquele faleceu, este subiu ao papado para continuar a obra da restauração da Igreja contra os inimigos internos, ainda extremamente poderosos.

O que João Paulo II e Bento XVI vieram pregando é o óbvio: a doutrina da Igreja não mudou nem poderia mudar. A luta contra os inimigos nela infiltrados, portanto, continua. Que Deus ajude o próximo Papa a libertar a Igreja de seus inimigos! Por: POR CARLOS RAMALHETE Publicado no jornal Gazeta do Povo.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

COMO FUNCIONA A BUROCRACIA ESTATAL


Uma das mais importantes leis sociológicas existentes é a "Lei de Ferro da Oligarquia": toda e qualquer área do empreendimento humano, todo e qualquer tipo de organização, sempre será liderada por uma relativamente pequena elite. Essa condição prevalece em todos os campos, seja em uma empresa, em um sindicato, no governo, em uma organização de caridade ou em um clube de xadrez. Em cada área, as pessoas mais interessadas e capazes, aquelas mais adaptáveis ou mais bem ajustadas para a atividade, irão constituir a elite destacada.

Recorrentemente, tentativas utópicas de se formar instituições ou sociedades isentas da Lei de Ferro sempre acabaram sendo vitimadas por essa mesma lei: as comunidades utópicas, os kibbutz em Israel, a "democracia participativa" durante a era da Nova Esquerda no final dos anos 1960, ou aquele vasto "experimento laboratorial" (como costumava ser chamado) que constituiu a União Soviética. O que deveria ser almejado não é o absurdo e antinatural objetivo de erradicar tais elites, mas sim, para utilizar a expressão de Pareto, fazê-las "circular". Essas elites circulam ou se tornam arraigadas e fortificadas?

O mercado versus o governo

A economia de livre mercado fornece um exemplo sem paralelos dessa contínua e saudável circulação das elites. Em uma economia de mercado dinâmica, as elites que não conseguirem acompanhar seus concorrentes, que não conseguirem satisfazer as demandas dos consumidores da melhor maneira possível, serão rapidamente derrubadas, dando lugar a novas elites que se estabelecerão e farão um melhor trabalho. Ludwig von Mises escrevia seguidamente sobre o quão inapropriado era os esquerdistas se referirem a determinados magnatas como "o Rei do Aço" ou "o Rei dos Automóveis", pois os consumidores frequentemente destronavam esses supostos monarcas. Há inúmeros exemplos ao longo da história de várias grandes empresas que não foram capazes de compreender a importância de um novo produto ou de recentes transformações na economia, o que as fez perder mercado para pequenas empresas recém-criadas. Apenas para citar um exemplo mundialmente famoso, a incapacidade da antiga "monopolista" do setor de fotografias, a Eastman-Kodak, em captar a enorme significância, após a Segunda Guerra Mundial, tanto da fotografia instantânea quanto da xerografia, o que abriu espaço para concorrentes novos e mais alertas às mudanças.

Por sua natureza, o governo não está sujeito aos mecanismos de lucros e prejuízos do livre mercado, isto é, à soberania dos consumidores. Mesmo uma organização sem fins lucrativos, embora não esteja buscando maximizar seus lucros, ao menos tem de ser eficiente o bastante para evitar prejuízos severos e uma consequente falência. Ademais, embora tais organizações voluntárias não tenham necessariamente de satisfazer os usuários dos seus bens ou serviços, como ocorreria em um mercado lucrativo, elas ao menos têm de satisfazer os princípios e demandas de seus doadores. Por outro lado, o governo é a única organização dentre todas as organizações que obtém suas receitas por meio da coerção dos cidadãos. Consequentemente, o governo não tem de se preocupar com prejuízos ou risco de falência; ele não precisa servir a ninguém senão a ele próprio. O único limite que restringe um governo é o risco — bastante amplo, é verdade — de os cidadãos se revoltarem e se recusarem a obedecer às suas ordens (inclusive o pagamento de impostos). Fora essa revolução, no entanto, há pouco ou nada que possa ser feito para se limitar um governo ou para restringir o encastelamento ou o crescimento de sua elite. (Os extraordinários eventos ocorridos em Moscou e em outros países da União Soviética entre 1989 e 1991 foram um glorioso exemplo desse limite à tirania sendo alcançado).

O governo, em suma, está particularmente sujeito aos bem conhecidos malefícios gerados por uma arrogante,mesquinha, tacanha, ineficiente, morosa e sempre crescente "burocracia". Os socialistas, mesmo durante o aparente apogeu da União Soviética, frequentemente se preocupavam com o problema da burocracia, e tentaram em vão separar o governo do seu aspecto burocrático. Mas Mises, de maneira vigorosa e direta, já havia demonstrado em sua clássica obra Burocracia que tais esperanças eram inúteis. A burocracia, com todos os seus evidentes malefícios, anda de mãos dadas com um governo. 

Uma empresa lucrativa poupa e investe seu dinheiro, sempre buscando obter lucros e evitar prejuízos; a maneira como ela irá utilizar esses fundos poupados é flexível, dependendo sempre de como serão suas decisões, as quais estarão sempre visando ao lucro. Já as agências burocráticas recebem seus fundos diretamente do orçamento do governo. É o governo quem aloca o dinheiro para cada setor da burocracia. Sendo assim, uma estrita, precisa e minuciosa obediência às regras estipuladas pela burocracia se torna vital para que cada burocrata e sub-burocrata possam demonstrar que eles utilizaram os fundos exatamente da maneira designada pelo Congresso ou pelo Executivo, e que não os embolsaram ou desviou para gastos em outras áreas não autorizadas. Não há autonomia; não há como fazer alocações mais eficientes. Não há um sistema de preços e um mecanismo de lucros e prejuízos guiando as decisões da burocracia.

Mises aponta uma diferença crucial entre o gerenciamento burocrático e o gerenciamento que visa ao lucro. Os gastos e os produtos empreendedoriais são calibrados de acordo com as valorações dos consumidores, cujos julgamentos, nas palavras de Mises, "são transmitidos e solidificados por um fenômeno impessoal: os preços de mercado". Ademais, os julgamentos dos consumidores incidem sobre bens e serviços, e não sobre os produtores em si. "O vínculo vendedor-comprador, bem como a relação empregador-empregado, em uma relação empreendedorial que visa ao lucro", declarou Mises, "é um arranjo do qual ambos os lados se beneficiam". Por outro lado, no governo, uma organização burocrática, o que a nação "obtém em decorrência das despesas, dos serviços prestados, não pode ser avaliado em termos monetários, por mais importante e valoroso que tal 'produto' seja." Em vez disso, afirma Mises, "a avaliação depende dos critérios do governo" — ou seja, das decisões pessoais e arbitrárias. Mises acrescenta que "o vínculo entre superior e subordinado é pessoal. O subordinado depende do julgamento que o superior fará de sua personalidade, e não do seu trabalho." Em suma, na burocracia estatal, não há apreço pela realidade.

Segundo a análise de Mises para a diferença entre sucursais estatais e privadas, em uma sucursal estatal,

Não é por causa da meticulosidade que as regulamentações administrativas determinam quanto pode ser gasto por cada agência ou aparato estatal em coisas como limpeza, reparo de móveis e equipamentos, iluminação e sistema de ar condicionado. Em uma grande empresa privada, tais coisas podem ser deixadas, sem hesitação, aos critérios do administrador local. Ele não irá gastar mais do que o necessário porque ele está utilizando, de certo modo, seu próprio dinheiro. Se ele desperdiçar o dinheiro da empresa, ele colocará em risco os lucros daquela sucursal e estará assim indiretamente prejudicando seus próprios interesses. Por outro lado, a situação é diferente para o chefe local de uma agência estatal. Ao gastar mais dinheiro, ele poderá aprimorar os resultados de seu departamento. A parcimônia terá de ser imposta a ele por controle governamental. E isso quase nunca funciona.

Em uma empresa privada que opera concorrencialmente no mercado, os desejos e objetivos dos administradores estão atados aos objetivos lucrativos dos proprietários. Como explica Mises, o administrador de uma sucursal tem de garantir que sua divisão irá contribuir para os lucros da empresa. Por outro lado, uma vez abolido esse regimento dos lucros e prejuízos — isto é, movendo-se para o âmbito estatal —, os desejos e objetivos dos administradores, limitados somente pelas ordens e pelo orçamento da legislatura central ou do comitê de planejamento, passarão a falar mais alto. E esses desejos e objetivos, guiados somente pela ambígua rubrica do "interesse público", significam na verdade aumentar a renda e o prestígio do burocrata-chefe daquela divisão. Em uma burocracia restringida por regulamentos, essa renda e status inevitavelmente vão depender de quantos sub-burocratas estão subordinados ao burocrata principal. Quanto mais sub-burocratas estiverem sob o comando de um alto burocrata, maior será a renda e o prestígio desse burocrata.

Como consequência, todos os departamentos e agências estatais irão se engalfinhar em seguidas contendas, cada um tentando aumentar suas funções e seu número de empregados, além de tentar se apossar das funções de outras agências. Portanto, ao passo que a tendência natural de empresas e instituições que operam no livre mercado é ser a mais eficiente possível em atender às demandas dos consumidores, a tendência natural da burocracia estatal é crescer, crescer e crescer, e tudo à custa dos espoliados, extorquidos e ignorantes pagadores de impostos.

Se o lema da economia de mercado é o lucro, o lema da burocracia é o crescimento. Como esses respectivos objetivos devem ser alcançados? A maneira de se obter lucro em uma economia de mercado é superando seus concorrentes no dinâmico e continuamente volátil processo de satisfazer as demandas dos consumidores da melhor forma possível: criar restaurantes self-service em vez de restaurantes à la carte, notebooks em vez de computadores, ou mesmo inventar fotocopiadoras e máquinas fotográficas digitais. Em outras palavras, produzir bens ou serviços concretos, pelos quais os consumidores estarão dispostos a pagar. Por outro lado, para conseguir seu crescimento, o chefe da burocracia estatal terá de convencer a legislatura ou o comitê de planejamento de que seus serviços serão, de alguma maneira indefinida, benéficos ao "interesse público" ou ao "bem-estar da população como um todo".

Dado que o cidadão é obrigado a pagar impostos, não somente não há nenhum incentivo ou motivo para que o burocrata seja eficiente, como também não há como um burocrata possa, mesmo que ele fosse dotado das melhores intenções do mundo, descobrir o que os consumidores querem e como ele pode satisfazer suas demandas. No geral, investidores não têm a permissão de se aventurar em uma concorrência contra um serviço estatal. Consequentemente, os consumidores terão simplesmente de permitir que os burocratas lhes ofertem seus serviços, queiram eles ou não.

Ao construir e operar uma barragem, por exemplo, o governo está fadado a ser ineficiente, a subsidiar alguns cidadãos à custa de outros, a alocar recursos inadequadamente e, no geral, a comportar-se como um navio à deriva no mar, sem uma bússola e sem um leme, tentando fornecer serviços sem estar sendo guiado pelo mecanismo de lucros e prejuízos. Ademais, para alguns cidadãos, a represa pode não representar benefício algum; no jargão dos economistas, para algumas pessoas, a represa, em vez de ser um "bem" será um "mal". Assim, para ambientalistas que são filosoficamente contra represas, ou para agricultores e populações ribeirinhas cujas propriedades serão confiscadas e inundadas pelo governo, este "serviço" é claramente negativo. O que dizer de seus direitos e propriedades? Logo, a ação governamental não somente está fadada a ser ineficiente e coerciva contra os pagadores de impostos, como também não passa de um mero esquema de redistribuição de renda para alguns grupos à custa de outros.

O principal grupo beneficiado pelos burocratas, obviamente, são os próprios burocratas. Toda a sua renda é extraída coercivamente dos pagadores de impostos. Burocratas não pagam impostos; suas supostas "contribuições" tributárias são uma mera ficção contábil. Se uma quadrilha rouba dinheiro de um indivíduo e fica com 10% para si e repassa os 90% restantes para terceiros, não se pode dizer que estes estão pagando 10% de imposto. Eles não ganharam seu dinheiro voluntariamente no mercado, ofertando serviços desejados pelos consumidores; apenas receberam uma fatia do dinheiro alheio que foi espoliado pela quadrilha, a qual determinou autonomamente como o butim seria dividido. 

Consequentemente, a existência de uma burocracia estatal cria na sociedade duas grandes classes conflitantes: os pagadores líquidos de impostos e os consumidores líquidos de impostos. Quanto maior a dimensão dos impostos e do governo, maior será o inevitável conflito de classes criado na sociedade. Como explicou o brilhante John C. Calhoun em seu livro Disquisition on Government:

Portanto, o inevitável resultado desta iníqua ação fiscal do governo será a divisão da sociedade em duas grandes classes: uma formada por aqueles que, na realidade, pagam os impostos — e, obviamente, arcam exclusivamente com o fardo de sustentar o governo —, e a outra formada por aqueles que recebem sua renda por meio do confisco da renda alheia, e que são, com efeito, sustentados pelo governo. Em poucas palavras, o resultado será a divisão da sociedade em pagadores de impostos e consumidores de impostos.

Porém, o efeito disso será que ambas as classes terão relações antagonistas no que diz respeito à ação fiscal do governo e a todas as políticas por ele criadas. Pois quanto maiores forem os impostos e os gastos governamentais, maiores serão os ganhos de um e maiores serão as perdas de outro, e vice versa. E, por conseguinte, quanto mais o governo se empenhar em uma política de aumentar impostos e gastos, mais ele será apoiado por um grupo e resistido pelo outro.

O efeito, portanto, de qualquer aumento de impostos será o de enriquecer e fortalecer um grupo [os consumidores líquidos de impostos] e empobrecer e enfraquecer o outro [os pagadores líquidos de impostos].

Sendo assim, resta a pergunta: como os burocratas conseguem alcançar seu objetivo prioritário, qual seja, aumentar o número de funcionários públicos subalternos e com isso aumentarem suas próprias rendas? Apenas se persuadirem a legislatura ou a opinião pública de que sua agência estatal em específico é digna de um aumento em seu orçamento. Porém, como seria possível fazerem isso, uma vez que tal agência não vende seus serviços no mercado e, mais ainda, suas atividades são necessariamente redistributivas e prejudicam, em vez de beneficiar, a maioria dos consumidores? A resposta é que os burocratas têm de "criar um consentimento", isto é, eles têm de falsamente persuadir o público ou a legislatura de que suas atividades representam um luminoso benefício, e não um enorme prejuízo, para os pagadores de impostos. E, pra criar esse consentimento, é necessário utilizar ou empregar intelectuais — a classe formadora de opinião da sociedade — para persuadir o público ou a legislatura de que a burocracia é uma bênção universal. E se estes intelectuais, ou propagandistas, forem eles próprios empregados do estado, então isso será duplamente insultuoso para os pagadores de impostos: pois agora eles serão forçados a pagar por sua própria e deliberada enganação.

É intrigante que os esquerdistas invariavelmente vituperem os anúncios publicitários feitos pelo mercado, dizendo que são enganosos, estridentes e que "incentivam" artificialmente o consumo, sendo que a publicidade é justamente o método indispensável por meio do qual informações vitais são transmitidas para os consumidores — sobre a natureza e a qualidade do produto, e sobre seu preço e local de oferta. Incrivelmente, os esquerdistas nunca direcionam essa sua crítica para justamente aquela área onde ela mais se aplica: as propagandas de exaltação do estado, as relações públicas e as tolices baratas e vulgares difundidas pelo governo. A diferença é que, no mercado, todas as propagandas são rapidamente submetidas a um teste prático: será que essa televisão funciona? Será que esse aparelho elétrico é realmente bom? Por outro lado, para o governo, não existe esse teste direto junto ao consumidor: não há maneira de o cidadão ou o eleitor descobrirem rapidamente como uma determinada política realmente funcionou. Além disso, em eleições, ao eleitor não são apresentados programas específicos para ele escolher: ele tem necessariamente de escolher um pacote inteiro criado por um burocrata, o qual irá durar X número de anos e fará com que o eleitor fique preso a este pacote por aquele período de tempo. E dado que não há como testar diretamente as políticas propostas, torna-se possível entender por que o moderno processo democrático é incapaz de discutir questões políticas, preferindo concentrar-se meramente na demagogia televisiva, a qual é de mais fácil digestão e surte muito mais efeito.

A estrutura e os objetivos da burocracia

A burocracia é necessariamente hierárquica — primeiro por causa da Lei de Ferro da Oligarquia, e segundo porque a burocracia se expande ao multiplicar camadas subalternas. Uma vez que, sem um mercado, não há como testar genuinamente os "méritos" dos serviços prestados pelo governo aos consumidores, em uma burocracia amarrada por regulamentos, o tempo de serviço passa a ser adotado, com grande júbilo, como um substituto para o mérito. Aumentar o tempo de serviço, portanto, leva a promoções a cargos superiores, ao passo que a expansão do orçamento do governo leva a uma multiplicação dos cargos abaixo de você, o que gera um aumento do seu salário e do seu poder. O crescimento da burocracia ocorre, portanto, pela multiplicação dos níveis da burocracia.

A teoria da burocracia estatal hierárquica é que a informação é coletada nos postos mais baixos da organização e, a cada posto sucessivamente superior, o chefe escolhe as informações mais importantes coletadas por seus subordinados, separa o joio do trigo, e passa a informação selecionada para seus superiores. O problema é que favores burocráticos, especialmente nos mais altos escalões, só geram novas gentilezas caso o subordinado saiba agradar aos seus superiores.

Todas as atividades humanas, bem como todas as instituições, tendem a recompensar aqueles que se mostram mais proficientes em adotar o melhor caminho para o sucesso naquela atividade. No mercado, empreendedores bem sucedidos serão aqueles que souberem antecipar e atender mais corretamente as demandas dos consumidores. Já o sucesso na burocracia, ao contrário, depende de o indivíduo se mostrar competente em (a) fazer uma eficaz propaganda pessoal de si próprio para persuadir seus superiores de que possui grandes méritos; e, portanto, em (b) entender que a maneira de ascender na carreira é dizendo aos seus superiores exatamente aquilo que eles querem ouvir. Logo, quanto maior o posto hierárquico da burocracia, maior o número de pessoas subservientes e dispostas a fazer tarefas para você. Consequentemente, cada superior frequentemente será menos informado do que os burocratas dos escalões mais baixos.

A explicação padrão quanto ao porquê de o governo crescer é que, à medida que o tempo passo, há mais trabalho para o governo realizar; por conseguinte, a "demanda" do povo por mais governo cresce. Muito mais correta, no entanto, é a explicação de que no mundo da burocracia funciona uma espécie de Lei de Say invertida, na qual a oferta — ou melhor, os ofertantes de "serviços" estatais, a burocracia — constitui ela própria a "demanda" por seus serviços, e que ela consegue manipular perfeitamente seus superiores, ou a legislatura, fazendo com que eles lhe forneçam cada vez mais recursos oriundos de impostos. 

Daí surgiu a hilariantemente satírica, porém extremamente perceptiva, descrição da "Lei de Parkinson" da burocracia. O professor Parkinson afirmou que, em uma burocracia estatal, "não é necessário haver nenhuma relação entre o trabalho a ser feito e o tamanho da equipe para a qual ele deve ser designado." O contínuo aumento no total dos funcionários públicos "seria praticamente o mesmo caso o volume de trabalho aumentasse, diminuísse ou até mesmo desaparecesse." Parkinson identificou duas fundamentais forças "axiomáticas" responsáveis por esse crescimento: (1) "Um burocrata quer multiplicar seus subordinados, e não seus rivais"; e (2) "Burocratas criam serviços uns para os outros."

Parkinson começa seu "modelo" descrevendo um burocrata que se sente estafado por estar trabalhando demais. O burocrata poderia perfeitamente pedir demissão, mas isso seria impensável, pois ele perderia seu direito a uma magnânima pensão. Pedir para um novo colega recém-promovido dividir com ele sua carga de trabalho é igualmente impensável, pois assim seu prestígio ficaria reduzido; pior ainda, ele estaria promovendo um perigoso rival, o qual passaria a disputar com ele o cargo de seu chefe quando este se aposentasse. Ele poderia pedir a contratação de um assistente, mas isso seria perigoso, pois o novato poderia se revelar competente e conquistar o mesmo status que o seu. Logo, sua escolha mais sensata será pedir a contratação de dois assistentes, os quais iriam então competir entre si por seu favor e atenção; em pouco tempo, ambos os assistentes irão reclamar de carga de trabalho excessiva, e cada um deles irá pedir a contratação de dois novos assistentes. O burocrata original agora terá a satisfação de ter seis homens subordinados diretamente a ele, o que significa que ele já está pronto para uma promoção e um consequente aumento substancial no seu salário.

Mas e quanto ao trabalho a ser feito? A quantidade original de trabalho não foi agora dividida entre sete pessoas? Sendo assim, não seria correto dizer que cada homem estará agora absurda e manifestamente ocioso, com pouco trabalho para fazer? Não — e eis aqui um dos cintilantes vislumbres de Parkinson quanto à teoria da burocracia —, pois um aspecto da Lei de Parkinson é que "o trabalho se expande de modo a preencher todo o tempo disponível para sua realização". Ou, como Parkinson também coloca, "A tarefa a ser feita aumenta em importância e complexidade em uma proporção direta ao tempo a ser gasto para realizá-la."

E aqui entra o segundo aspecto da Lei de Parkinson do crescimento da burocracia: "todo funcionário público cria trabalhos improdutivos para todos os outros". Prossegue Parkinson: "Estes sete burocratas criam tanto trabalho uns para os outros, que no final todos estão completamente ocupados," e o burocrata original, o superior, "estará na realidade trabalhando mais do que nunca." Documentos e papeladas têm de ser enviados e lidos por todos os burocrata, cada qual em sua vez. E cada um deles tem de comentar os documentos e enviar seus comentários para todos os outros. Todos têm de conferir cada documento, bem como as várias emendas propostas. E o burocrata original, o superior, agora estará envolto nos inevitáveis problemas de relacionamento interpessoal entre ele e sua equipe, e entre os próprios membros de sua equipe, coisa que sempre surge nestes ambientes. 

Finalmente, após um longo processo de interação, escreve Parkinson, o burocrata original dá ao documento a mesma resposta que teria escrito caso todos os seus subordinados "jamais tivessem nascido". "Um número muito maior de pessoas", conclui Parkinson, "levou muito mais tempo para produzir o mesmo resultado. Nenhum ficou ocioso. Todos fizeram o seu melhor."

Conclusão

Por que afinal há uma tendência constante de agigantamento do estado, tanto em tamanho quanto em autoritarismo? Porque, do ponto de vista dos burocratas, a vantagem de um estado grande e poderoso é clara, direta e inquestionável, ao passo que para os cidadãos comuns, meros pagadores de impostos cuja atenção dificilmente está voltada para o governo, o custo desse estado, não apenas em termos de dinheiro mas também de liberdade, a qual é perdida quando se concede autoridade a burocratas, é muito vago e nebuloso. São poucos aqueles que realmente têm ideia do quão alto é esse custo.

Consequentemente, dado que os burocratas sabem exatamente o que eles querem, dado que eles trabalham para seu imediato e exclusivo interesse, e dado que os outros cidadãos não têm ideia do quanto estão sendo espoliados — com efeito, sequer prestam atenção a isso —, resta óbvio qual grupo irá prevalecer e dominar o outro.


À medida que as empresas foram sendo submetidas a regulamentações e cargas tributárias cada vez mais altas, sua administração foi se tornando cada vez mais burocrática. Como explicou Mises, "nenhuma empresa que visa ao lucro, por maior que seja, possui a tendência de se tornar burocrática. Isso só irá acontecer caso sua administração se torne mais restringida por interferências governamentais. A tendência a uma rigidez burocrática não é algo inerente à evolução das empresas. Tal rigidez será resultado, isto sim, da interferência governamental sobre o ambiente empreendedorial." Ibid., p.12

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O SISTEMA BANCÁRIO E O ESTADO

O sistema bancário e o estado - por que os banqueiros evitam a atenção pública


Passou a ser aceito pela maioria que os porcos, que eram inequivocamente mais espertos do que os outros animais, deveriam decidir todas as questões políticas da fazenda, embora suas decisões tivessem de ser ratificadas pelo voto da maioria  Orwell, G. (1989 [1945]), A Revolução dos Bichos


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O ponto de partida: o início da civilização

O fundador da dinastia bancária dos Médici, Giovanni di Bicci de' Medici (1360—1429), disse aos seus filhos em seu leito de morte: "Evitem ao máximo a atenção do público". Suas palavras levam à inevitável pergunta: Os banqueiros realmente sabem a verdade sobre o moderno sistema monetário e bancário?

Para desenvolver uma resposta significativa para essa pergunta, na tradição da Escola Austríaca de economia, é necessário começar bem do início, ou seja: com o processo de evolução da civilização.

Por 'processo de evolução da civilização' entende-se o desenvolvimento por meio do qual o homem substitui seu estado de subsistência (isto é, uma existência precária e violenta) pelo arranjo caracterizado pela divisão do trabalho e pela especialização (isto é, cooperação pacífica e produtiva).

Em sua obra magna Ação Humana (1949), Ludwig von Mises (1881—1973) apresenta uma explicação praxeológica para o processo de civilização, a qual nos ajuda a entender o desenrolar de sua evolução.

Se, e na medida em que, pela divisão do trabalho obtém-se maior produtividade do que a obtida pelo trabalho isolado, e se, e na medida em que, o homem seja capaz de perceber este fato, a ação humana tende, naturalmente, para a cooperação e para a associação; o homem torna-se um ser social não por ter de sacrificar seus interesses em favor de um mítico Moloch, a sociedade, mas sim porque pretende melhorar seu próprio bem-estar. A experiência ensina que esta condição — maior produtividade alcançada pela divisão do trabalho — se torna efetiva porque sua causa — a desigualdade inata dos homens e a desigual distribuição geográfica dos fatores naturais de produção — é real. É este fato que nos permite compreender o processo da evolução social.

Para Mises, dois fatores estão no cerne do processo de civilização: (1) É necessário haver uma desigualdade de desejos e habilidades entre as pessoas. Esta é uma condição necessária para que as pessoas queiram buscar a cooperação entre si. (2) O homem tem de reconhecer que a divisão do trabalho possibilita um aumento da produtividade. Sendo assim, Mises pressupõe — como condição necessária — que haja um mínimo de inteligência entre os seres humanos e uma propensão a utilizar essa inteligência na vida prática.

O surgimento do dinheiro - a teoria de Carl Menger para a origem do dinheiro

A desigualdade de habilidade e desejos, em conjunto com a pressuposição de um mínimo de inteligência, leva as pessoas a incorrerem na divisão do trabalho e na especialização. Isto, por sua vez, produz a necessidade de transações interpessoais.

A forma mais primitiva de uma economia de trocas é o escambo. Mas o escambo possui limitações. Por exemplo, sob o escambo, as oportunidades de troca dependem da existência de uma coincidência de desejos entre os agentes que praticam a troca. Cedo ou tarde, as pessoas (pressupondo que haja um mínimo de inteligência) perceberão que utilizar um meio de troca indireto é economicamente benéfico. Utilizar um meio de troca indireto aumenta as oportunidades de transações, dado que a coincidência de desejos deixa de ser um pré-requisito para viabilizar a transação.

O meio de troca indireto que se torna universalmente aceito é chamado de "dinheiro".

Em seu livro Principles of Economics (1871), Carl Menger (1840—1921) desenvolve a teoria de que o dinheiro surge espontaneamente das atividades do mercado, que esse dinheiro criado pelo livre mercado é uma mercadoria (metais preciosos, por exemplo).

Posteriormente, Mises demonstrou com o seu teorema da regressão que, de fato, o dinheiro só pode ter surgido dessa maneira, e por motivos praxeológicos: o dinheiro tem de ter surgido a partir de um mercado; e ele tem de ter sido antes utilizado como uma mercadoria.

Estabelecimentos de armazenagem de dinheiro

O dinheiro é um bem econômico como qualquer outro. Logo, ele será poupado e guardado, como qualquer outro.

As pessoas irão demandar maneiras convenientes de portar e transacionar seu dinheiro.

Dado que os indivíduos inevitavelmente possuem preferências temporais distintas entre si, haverá poupadores (aqueles que mantêm consigo uma quantidade de dinheiro maior do que a que gastam em consumo) e investidores (aqueles que demandam uma quantia de dinheiro maior do que possuem).

É sob este arranjo que dois tipos de empreendimento voltados para o manuseio do dinheiro surgem em um livre mercado: bancos voltados para depósitos (ou armazenamento de dinheiro) e bancos voltados para empréstimos ou concessão de crédito.

Bancos voltados para depósitos oferecem serviços de custódia, proteção, transferência, liquidação e compensação de dinheiro para seus clientes. Por exemplo, indivíduos que estejam portando dinheiro metálico podem, por comodidade ou segurança, depositar este seu dinheiro em um banco de depósito. Em troca, eles recebem um certificado de depósito que poderá ser transacionado como dinheiro. As pessoas que venderem um bem ou serviço a estes depositantes receberão em troca estes certificados e, com isso, poderão trocá-lo pelo dinheiro em espécie que está guardado no banco de depósito.

Já os bancos voltados para a concessão de empréstimos operam adquirindo poupança genuína dos indivíduos. Eles emitem títulos que rendem juros. Os poupadores voluntariamente dão seu dinheiro em troca destes títulos que lhes pagarão uma quantia maior no futuro. Durante este período, o poupador não tem acesso ao dinheiro que emprestou.

A taxa de juros de mercado será determinada pela oferta de dinheiro emprestado pelos poupadores e pela demanda por esse dinheiro, de modo que a taxa de juros de mercado irá refletir a taxa de preferência temporal desta sociedade. Em outras palavras, em um livre mercado, haverá de modo natural uma profissão à qual chamaríamos de "banqueiros": alguns banqueiros irão trabalhar no ramo da armazenagem de dinheiro (bancos de depósito) e outros irão trabalhar no ramo da concessão de crédito (bancos de empréstimos).

Para ficar claro: em um livre mercado, instituições voltadas para depósitos e instituições voltadas para a concessão de crédito seriam entidades legalmente distintas e separadas. Há o banco de depósito e há o banco de crédito.

O incentivo para a agressão

Em um livre mercado, há apenas três maneiras de se adquirir propriedade (ou seja, de forma não-agressora): pela apropriação original de propriedade sem dono (o que na prática denota o princípio do "o primeiro a usar é o proprietário"), pela produção e por contratos voluntários. 

Na realidade, no entanto, as coisas podem ser um tanto diferentes.

Franz Oppenheimer afirmou que "Há duas maneiras fundamentalmente opostas pelas quais um homem, necessitado de sustento, é impelido a obter os meios necessários para satisfazer seus desejos. Estas são o trabalho e o roubo: ou ele utiliza o próprio trabalho ou ele se apropria forçosamente do trabalho de terceiros".

A lógica da ação humana nos diz que há — e, com efeito, tem de haver — um incentivo econômico para o indivíduo atacar a propriedade de terceiros. Duas intuições praxeológicas interrelacionadas explicam isso.

Primeiro, sabemos com certeza que é preferível satisfazer uma necessidade ou um desejo mais cedo do que mais tarde; também sabemos com certeza que uma satisfação de desejos a um custo baixo é preferível a uma satisfação de desejos a um custo alto. Em outras palavras, indivíduos tentam alcançar seus objetivos com o mínimo de esforço possível e no mais curto período de tempo.

Segundo, o processo rumo à civilização não extirpa a propensão do homem à agressão. É de se esperar que o indivíduo A irá atacar o indivíduo B sempre que ele puder se dar bem — isto é, se os (esperados) benefícios para A oriundos da agressão a B forem maiores do que os (esperados) custos em que ele terá de incorrer ao praticar tal ação.

É este incentivo econômico de cada indivíduo em atacar a propriedade de terceiros que está no cerne do surgimento daquilo que é tipicamente chamado de "governo".

Um governo pode ser entendido como um monopolista territorial da coerção: uma agência que incorre em violações institucionalizadas dos direitos de propriedade e na exploração — na forma de expropriação, tributação e regulação — dos donos de propriedade privada.

Para responder à pergunta "Os banqueiros realmente sabem a verdade sobre o moderno sistema monetário e bancário?", é necessário analisarmos mais detidamente as várias formas de governo.

Em primeiro lugar, é possível fazer uma distinção entre governos com uma baixa preferência temporal e governos com uma alta preferência temporal. Baixa preferência temporal significa estar mais voltado para o longo prazo; alta preferência temporal significa ser mais imediatista.

Em um lado do espectro está, tomando emprestada a metáfora criminal de Mancur L. Olson (1932—1998), obandido itinerante. O bandido itinerante representa uma forma de governo que possui pouco interesse no bem-estar da sociedade; e, como consequência, seu assalto tipicamente chega a quase 100% da renda da sociedade.

O bandido itinerante não tem de lidar com os danos que sua agressão causa à sociedade (em termos de renda perdida). A preferência temporal do bandido itinerante é, portanto, relativamente alta. Ele extrai o máximo possível de suas vítimas, e não há praticamente nenhum incentivo econômico para que ele restrinja seu roubo.

Do outro lado do espectro está o bandido estacionário. Assim como o bandido itinerante, ele também detém o monopólio da coerção de suas vítimas. No entanto, o bandido estacionário possui um interesse mais abrangenteno bem-estar da sociedade. Ele deseja que suas vítimas sejam produtivas e continuem trabalhando: quanto mais suas vítimas produzirem, mas riqueza haverá para ser apropriada pelo bandido estacionário.

Analisando mais atentamente o bandido estacionário, é possível fazer uma distinção entre um governo em mãos privadas (feudalismo/monarquia) e um governo em mãos públicas (democracia).

O indivíduo que está no comando de um governo em mãos privadas tem o interesse de maximizar o valor presente da renda total que ele pode expropriar de seus governados. Um monarca, por exemplo, detém o monopólio da expropriação de suas vítimas, e sua preferência temporal será, em decorrência de seu abrangente interesse, relativamente baixa.

Em contraposição, o interino que está no comando do governo em mãos públicas tem o interesse de maximizar sua renda atual. Ele sabe que dali a alguns anos não mais estará no poder. Sua preferência temporal, portanto, será relativamente alta.

Um governo em mãos públicas significa que a escolha do interino se dá pelo voto majoritário. Uma maioria de pessoas decide quem irá ser o administrador temporário do governo, que neste caso é uma propriedade pública.

O eleitor médio irá apoiar aqueles políticos que ele julga (correta ou erroneamente) serem capazes de melhorar sua situação econômica. Um eleitor tem todos os incentivos econômicos para agir desta maneira — sem se importar com o fato de que a renda que ele irá obter desta forma advém da expropriação de seus concidadãos.

Já o administrador temporário deste governo, que é propriedade pública, terá todos os incentivos para tentar ganhar a maioria dos eleitores. Ele irá defender políticas de expropriação dos produtores de alta renda (que normalmente são poucos) para redistribuir o espólio para aquelas pessoas menos produtivas ou improdutivas (que normalmente são muitos).

A importante constatação aqui é a seguinte: a propriedade pública do governo irá levar a uma contínua erosão do interesse da maioria das pessoas em produzir riqueza para a sociedade. Em outras palavras, a preferência temporal da sociedade irá aumentar.

O governo gera um sistema bancário fraudulento

O aumento da preferência temporal da sociedade é o principal fator que explica o surgimento de práticas fraudulentas no sistema bancário, as quais são perfeitamente resumidas pela adoção de um papel-moeda fiduciário de curso forçado.

Sabemos que os interinos de um governo em mãos públicas desejam expropriar os recursos do público em geral. Isso pode ser feito mais convenientemente (1) obtendo-se o controle da produção de dinheiro, (2) substituindo o dinheiro metálico por um dinheiro de papel, e (3) criando sempre mais dinheiro por meio da expansão do crédito.

A indústria bancária e os banqueiros são, portanto, aliados naturais do roubo planejado pelo governo. Com efeito, os banqueiros e aqueles que estão no governo irão, e de maneira muito lógica, fazer um conluio para criar um sistema monetário baseado em um papel-moeda puramente fiduciário e de criação totalmente monopolizada por eles.

Os banqueiros percebem que irão auferir receitas adicionais se puderem criar dinheiro digital por meio da expansão do crédito, processo esse em que dinheiro é criado do nada ao se conceder empréstimos em um volume muito superior ao total de dinheiro real que possuem em seus cofres. É assim que funciona um sistema bancário de reservas fracionárias.

Os banqueiros sabem que esta prática de reservas fracionárias é um empreendimento extremamente lucrativo. Sendo assim, tanto os bancos de depósito quanto os bancos de crédito defenderão a fusão de ambas as atividades para um mesmo banco. Ou seja, a mesma instituição poderá, simultaneamente, aceitar depósitos e conceder empréstimos.

Os administradores temporários de um governo em mãos públicas também são totalmente a favor de um sistema bancário de reservas fracionárias. Afinal, sendo os primeiros a receber este dinheiro recém-criado pelos bancos, o governo se torna capaz de obter recursos sem ter produzido nada. Ao agir assim, ele obtém algo em troca de nada. Ele está retirando recursos escassos de toda a sociedade para benefício exclusivo de sua burocracia. Trata-se de uma expropriação.

Tendo monopolizado a lei, será relativamente fácil para o governo declarar que a prática de reservas fracionárias é legal. No entanto, praticar reservas fracionárias é algo um tanto arriscado para um banqueiro. Ele sabe que se o público se tornar ciente desta sua prática — a qual nada mais é do que falsificação de dinheiro —, pode ocorrer uma corrida bancária, o que tornaria seu banco insolvente e forçaria sua liquidação.

Para o governo, quebras bancárias também são totalmente indesejáveis. Além de gerarem severos problemas políticos e econômicos, falências bancárias também — e isso é muito importante — colocam em risco o acesso farto e barato ao dinheiro e ao crédito.

Sendo assim, o governo irá, e com enorme apoio de todos os banqueiros, criar um banco central, o qual não apenas permitirá, como também estimulará com grande afinco, que todos os bancos inflacionem de maneira harmoniosa e combinada a quantidade de dinheiro na economia.

Mesmo após a criação de um banco central, o risco de uma corrida bancária ainda não é totalmente eliminado. É necessário que o banco central adquira o monopólio da produção de dinheiro.

É por isso que, cedo ou tarde, o dinheiro metálico, lastreado em uma commodity como ouro ou prata, será substituído por um dinheiro de papel inconversível (sem nenhum lastro) e de curso forçado; e este dinheiro de papel gozará de privilégios legais (como a obrigatoriedade de se aceito por todos). Para este fim, o governo legalizará a prática bancária de suspender a restituição, isto é, de se recusarem a restituir certificados de depósito em ouro. Ato contínuo, o governo se apropriará do ouro e os cidadãos serão obrigados a utilizar apenas o papel, agora sem nenhum lastro; sem nenhuma conversibilidade.

Corrupção coletiva

É de se pensar: como o governo e os banqueiros fizeram isso e continuam fazendo nada lhes acontece? Por que essa fraudulenta extração de recursos da sociedade via inflação monetária não gera protestos?

Seria falta de conhecimento por parte daqueles que estão do lado perdedor deste regime monetário baseado na falsificação de dinheiro? Ou será que os custos de se revoltar contra um regime puramente fiduciário é proibitivamente alto do ponto de vista do indivíduo?

Uma resposta economicamente sensata — isto é, praxeológica — a esta pergunta pode ser encontrada naquilo que chamo de "corrupção coletiva". Tão logo o governo passa a intervir nas questões monetárias da sociedade, os indivíduos irão desenvolver, de forma crescente, uma propensão a violar a propriedade de terceiros.

Ao se aproveitar da ação coerciva do governo, um indivíduo se torna capaz de colher os benefícios do ataque à propriedade de terceiros. Ao mesmo tempo, ele terá de lidar com apenas uma fração do estrago que esta sua ação impõe à sociedade como um todo.

Ele terá todos os incentivos para agir desta forma. Afinal, caso não o faça, outros o farão. E aí ele estaria do lado perdedor. Ele teria de arcar com as perdas de qualquer oportunidade de violar a propriedade de terceiros da qual abrisse mão.

Um sistema monetário puramente fiduciário, tão logo seja adotado, levará a uma corrupção coletiva na maior escala possível. Como é bem sabido, o governo pode garantir seu apoio ao permitir que uma determinada fatia do público usufrua livremente as receitas fraudulentamente extraídas da sociedade como um todo. Por exemplo, o governo irá oferecer empregos muito bem pagos a uma determinada casta (e, em particular, irá subsidiar intelectuais e formadores de opinião). Ele também irá premiar suas empresas favoritas com contratos em licitações e contratos de fornecimento exclusivo. Empreiteiras, em particular, irão se dar muito bem. Outras pessoas irão simplesmente receber subsídios diretos para ajudar em sua sobrevivência.

Com a crescente distribuição de oferendas e benesses, um crescente número de pessoas e empresas irão se tornar econômica e socialmente dependentes da continuidade (ou até mesmo do crescimento) desta atividade governamental. 

Sendo assim, será natural que a resistência contra novas expansões do governo e do sistema monetário fiduciário — algo que necessariamente significa mais violações dos direitos de propriedade do indivíduo — diminua.

Obviamente, os banqueiros possuem um papel extremamente importante na difusão desta corrupção coletiva. Basta dizer que um crescente número de pessoas terá de investir toda a sua poupança em depósitos e títulos bancários definidos em moeda fiduciária. Afinal, não há outra opção. Ou elas fazem isso, ou toda a sua poupança será dizimada pela inflação.

Mais cedo ou mais tarde, as pessoas irão desenvolver um grande interesse em apoiar a existência de um governo e em defender o sistema monetário fiduciário vigente — utilizando quaisquer meios que julgarem necessários.

Tudo irá terminar em hiperinflação

A corrupção coletiva, tão logo se torna suficientemente dispersa, levará à hiperinflação — isto é, a um aumento acelerado na quantidade de dinheiro na economia, o que levará à erosão, ou até mesmo à total destruição, do poder de compra do dinheiro fiduciário.

É claro que os banqueiros e aqueles que estão no governo têm interesse em evitar a hiperinflação. Eles preferem um tipo de inflação que passe basicamente despercebido, uma forma de inflação que não fugirá do controle.

No entanto, tão logo a corrupção coletiva se torna difundida e o setor bancário e financeiro se torna amplamente importante em termos de financiamento do governo e de servir como um importante repositório de toda a poupança dos indivíduos, o fiel da balança já foi girado para o lado hiperinflação.

Pela praxeologia, podemos saber com certeza que uma expansão monetária irá terminar em depressão. Também sabemos que esforços para se evitar uma depressão por meio do aumento da quantidade de dinheiro irá apenas postergar o dia do acerto final, o que aumentará ainda mais os custos da depressão no futuro.

Como irá a maioria das pessoas reagir a uma iminente depressão? Se eles nutrirem a esperança de que estarão entre os primeiros recebedores do dinheiro recém-criado (o que na realidade é o que ocorre tão logo a corrupção coletiva se torna suficientemente dispersa), então a resposta parece óbvia. A maioria terá a esperança de que irá se beneficiar da impressora monetária eletrônica, e irá preferir que a impressora eletrônica continue trabalhando a deixar que o governo e os bancos deem o calote e vão à falência. Sob tal estrutura de incentivos, o sistema monetário fiduciário acabaria em hiperinflação.

Conclusão

À luz de tudo o que foi dito acima, podemos concluir que: (1) Se e quanto o formato de governo em mãos públicas for adotado, o dinheiro metálico — aquele lastreado em uma commodity — será substituído por um dinheiro de papel fiduciário e de curso forçado. (2) O dinheiro fiduciário leva a uma corrupção coletiva em grande escala. E (3), tão logo a corrupção coletiva se torna suficientemente dispersa, o regime monetário fiduciário será destruído pela hiperinflação.

De tudo isso, conclui-se que, tão logo um sistema monetário fiduciário seja adotado, bancos e banqueiros irão inevitavelmente se juntar — alguns voluntariamente e cientes de tudo; outros, sem maior ciência — àquele vasto empreendimento criminoso que é o estado.

Sendo seres humanos, banqueiros têm interesses próprios, como todos nós. Logo, é de se imaginar que eles saibam bastante sobre o real funcionamento do sistema monetário e bancário. À luz do sombrio histórico monetário pelo qual já passou o mundo, tal conclusão também ajuda muito a explicar as últimas de Giovanni di Bicci de' Medici para seus filhos: "Evitem ao máximo a atenção do público".


Thorsten Polleit  é professor honorário da Frankfurt School of Finance & Management.