quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A ECONOMIA DO INTERVENCIONISMO

Não existe nada mais empolgante do que aquelas leituras, feitas aos vinte anos de idade, que mudam o nosso modo de pensar para sempre. Essas leituras cruciais fornecem o material que une o nosso conhecimento até então fragmentado em uma visão de mundo coerente e ao mesmo tempo estimulam o senso crítico necessário para o exame dos fragmentos incompatíveis com essa visão. Para o aluno, o aspecto mais fascinante da educação universitária deveria ser a construção, como uma espécie de "Lego intelectual", da própria visão de mundo, a partir do encaixe ou rejeição crítica de cada um dos tijolos sugeridos pelos textos.

Em especial, o início do processo de construção de um edifício explanatório deve ser recompensador, pois toda teoria apresenta algo como retornos decrescentes: no início, somos expostos a vasto território inexplorado, ao passo que o intelectual maduro é condenado a se repetir. O estudo da Economia, em particular, deveria proporcionar essa sensação de descoberta, pois ele nos fornece a chave para a compreensão da maioria dos erros que povoam o núcleo do discurso dos políticos e fornece fascinantes teorias que abrem nossos olhos para os reais fatores que geram prosperidade, sem a qual não seriam possíveis todas as conquistas de nossa civilização.

O estudante contemporâneo da teoria econômica, no entanto, raramente passa pela experiência de abertura de olhos proporcionada pelo contato com o modo de pensar dos economistas. Depois de aprender que preferências convexas são garantidas pelo uso de funções utilidade estritamente quase côncavas, o estudante raramente folheia um jornal e fica revoltado com a quantidade de falácias econômicas que povoam suas páginas. O formalismo que domina o ensino da economia moderna privilegia a solução de quebra-cabeças matemáticos em modelos de brinquedo (toy models), em detrimento do exame das consequências e aplicações mais amplas das teorias. Mas, por mais árido e pausterizado que possa parecer um moderno manual de microeconomia, a teoria dos preços lá exposta possui consequências cruciais para a discussão de questões políticas fundamentais, que quase sempre escapam ao estudante.

Mesmo nos cursos de Introdução à Economia, cujo propósito deveria ser exatamente expor o núcleo da visão de mundo do economista, os alunos geralmente sabem muito bem calcular elasticidades-preço da demanda, mas ignoram as implicações dos conceitos de escassez e custo de oportunidade. Assim, não é à toa que os cursos de economia não são muito populares nas universidades.

A paixão (ou ódio) pelas teorias econômicas surge com toda a sua força, porém, quando tais teorias são explicitamente associadas aos problemas políticos que motivaram sua elaboração. No presente volume, efetuamos uma análise das economias modernas a partir de um referencial explanatório fortemente calcado na teoria econômica, mas que contempla também ideias filosóficas e políticas. Essas ideias são combinadas em uma visão de mundo institucional: perguntaremos quais conjuntos de regras resultam em prosperidade ou estagnação e investigaremos quais regras são responsáveis pelos problemas econômicos atuais. Em especial, examinaremos os papéis desempenhados pela liberdade econômica e pela intervenção do estado na economia.

Para que essa análise comparativa seja feita a contento, será antes necessário nos livrarmos de noções que atrapalham essa tarefa. Em primeiro lugar, precisamos abandonar a noção marxista de "capitalismo". Além de pertencer a uma visão de mundo ultrapassada, associada a uma teoria econômica que foi ultrapassada ainda no século XIX, a identificação automática da realidade com a noção de capitalismo impede a comparação institucional que pretendemos, pois todas as instituições vigentes, segundo essa visão, seriam capitalistas e todos os males são atribuídos por definição a esse sistema, tornando impossível discutir de forma útil o papel do estado na economia.

Em segundo lugar, precisamos superar os defeitos inerentes ao formalismo que marca a teoria econômica moderna. Ao valorizar apenas aquilo que pode ser quantificado, a teoria econômica moderna tende a deixar de lado as características institucionais que são as causas últimas das diferenças de desempenho econômico dos países. Além disso, a recusa em abandonar a visão romântica do estado como entidade incorpórea, preocupada apenas com o bem estar coletivo, em favor de uma teoria que estude a ação estatal como algo exercido por pessoas de carne e osso, impede que se faça uma análise da lógica das intervenções na economia.

Rejeitadas as teorias clássica, marxista e estritamente neoclássica como referencial teórico, escolhemos a economia austríaca como base para nossa análise. Esse referencial nos convidará a substituir a noção marxista de capitalismo pela noção de sistema econômico intervencionista. Com isso, não mais será possível comparar o capitalismo, identificado automaticamente com os males do mundo real, com o socialismo, ideal abstrato e correto por definição. Do mesmo modo, não será mais possível avaliar os mercados segundo o ideal inalcançável de eficiência alocativa sem que ao mesmo tempo eles sejam comparados com a ação estatal. Eliminados os conceitos que tornam a liberdade inferior por definição, podemos efetuar uma análise econômica do sistema econômico intervencionista no qual vivemos.

Essa análise terá como base o pensamento dos dois economistas austríacos mais conhecidos, Mises e Hayek. Do primeiro, extraímos os fundamentos da análise austríaca dos mercados e o referencial básico de análise do socialismo e intervencionismo. Do segundo, tomamos emprestada a crítica ao mau uso da noção de equilíbrio, que fundamenta a análise austríaca moderna, a noção de ordem espontânea e suas teses metodológicas. O leitor perceberá que, de fato, o referencial teórico utilizado no presente volume é em larga medida hayekiano. Além desses autores, a nossa leitura da realidade toma emprestadas teses de diversos autores, como Popper, M. Polanyi, Bartley III, A. Smith, Bastiat, Buchanan, Coase, Kirzner, entre outros.

Os capítulos contidos em cada parte são textos originalmente escritos como artigos independentes uns dos outros. Três anos atrás, fui convidado para escrever artigos mensais para o sítio do Ordem Livre. Nesse espaço, tive a liberdade para me dedicar a artigos mais acadêmicos e gerais, em vez dos usuais textos sobre conjuntura de curto prazo normalmente demandados dos economistas. Naquela ocasião, imaginei a estrutura do presente livro, aceitando a oportunidade de escrevê-lo em 30 "prestações".

Aproveitei essa liberdade para escrever artigos mais acadêmicos do que se espera desse tipo de texto, utilizando extensivamente notas de rodapé com referências bibliográficas, mas menos formais do que se espera de artigos acadêmicos. Com a crescente especialização da academia, sobra cada vez menos espaço nessas revistas para análises interdisciplinares, como a empreendida neste livro, que trata de relações entre economia, filosofia e política. Menos espaço ainda existe, sobretudo nas revistas brasileiras, para abordagens teóricas minoritárias, como a austríaca. Porém, boa parte das teses aqui apresentadas tem origem no trabalho acadêmico do autor, sujeito ao tipo de restrição mencionada acima. Mas, com a liberdade proporcionada pela minha coluna, o resultado que pode ser visto nas próximas páginas foi um conjunto de artigos mais informal, que não foge de polêmicas ideológicas, mas que pretende levar a sério o debate entre visões de mundo concorrentes.

Agradeço ao Ordem Livre pela oportunidade de utilizar material publicado originalmente no sítio daquela instituição e ao Instituto Mises Brasil (www.mises.org.br), pelo mesmo motivo, no que diz respeito ao mais extenso ensaio aqui publicado, sobre os irmãos von Mises. Agradeço também a essas duas instituições pelos convites para proferir palestras sobre economia austríaca e poder participar do extraordinário movimento, em curso nos últimos anos, de divulgação das ideias austríacas no Brasil.

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O livro é dividido em três partes. Na primeira, reunimos artigos que discutem o referencial teórico básico empregado no mesmo. Esse referencial utiliza elementos da teoria econômica moderna, com ênfase no pensamento austríaco, em especial no que diz respeito aos mercados vistos como ordens espontâneas auto-organizadas. A liberdade, nessa visão hayekiana, é a única maneira de contornar a limitação do conhecimento dos agentes diante da tarefa cada vez mais complexa de coordenar as ações individuais. Depois de tratar da defesa da liberdade e sistemas descentralizados, na segunda parte o mesmo referencial teórico é empregado no exame dos sistemas econômicos comparados. Expomos a tese austríaca sobre a impossibilidade do socialismo e apresentamos a tese misesiana sobre a instabilidade do sistema econômico intervencionista. Na terceira parte, essa mesma análise do intervencionismo é empregada como base para a crítica de algumas políticas e tendências encontradas nas sociedades contemporâneas.

A primeira parte inicia com um capítulo que expõe os principais fatores institucionais relacionados ao crescimento econômico, fatores esses expostos por economistas cujas ideias aparecerão incontáveis vezes no restante do livro. No segundo capítulo, utilizamos o pensamento de Bastiat para mostrar que as falácias econômicas são fruto da compreensão parcial do funcionamento das ordens espontâneas. Praticamente toda falácia econômica tem origem em análises que focam sua atenção em alguns mercados apenas, ignorando os custos de oportunidade das políticas econômicas nos demais. O terceiro, o mais extenso, utiliza a rivalidade entre os irmãos Mises para contrastar a metodologia da economia dos austríacos e da teoria tradicional. Acreditamos que as diferenças entre austríacos e neoclássicos repousa em última análise em diferenças metodológicas: o positivismo que informa a última impede que se perceba a importância dos fenômenos complexos enfatizados pela primeira escola, como a noção de auto-organização.

Os demais capítulos da primeira parte tratam da visão hayekiana da economia como uma ordem complexa auto-organizada e dos aspectos metodológicos de uma teoria que trata desse tipo de fenômeno. No quarto capítulo tratamos do problema da coordenação das atividades individuais em uma economia com divisão do trabalho cada vez mais detalhada. Nesse contexto, mostra-se como a liberdade é essencial para que o conhecimento disperso dos agentes seja utilizado e corrigido ao longo do tempo. No quinto e sexto capítulo, voltamos ao tema do terceiro capítulo e exploramos os aspectos metodológicos do estudo de fenômenos complexos. As teorias sobre esses fenômenos representam apenas certos princípios de funcionamento da ordem espontânea, nunca fornecendo previsões exatas sobre detalhes desses sistemas. Nos capítulos sete e oito, ilustramos essas ideias metodológicas através do exame de teorias sobre ordens espontâneas nos mercados e na natureza.

A primeira parte conclui com um ensaio que compara Hayek com Marx no que diz respeito ao papel do conhecimento limitado em ordens espontâneas e hierárquicas.

Na segunda parte, passamos ao exame crítico de sistemas econômicos mais hierarquizados. Nos capítulos dez e onze, visitamos a tese misesiana sobre a impossibilidade do cálculo econômico no socialismo. O primeiro expõe a tese em si e o segundo o debate entre austríacos e neoclássicos sobre o tema. Esse debate clarifica as diferenças entre as duas abordagens, que transparecerão ao longo de todo o livro. Os capítulos restantes dessa segunda parte tratam do intervencionismo, visto como o sistema econômico vigente no mundo atual.

O capítulo doze ilustra historicamente a análise do intervencionismo através do exame da recaída autoritária na última década na América Latina e o seguinte expõe a teoria austríaca sobre o intervencionismo. Para essa teoria, as "contradições internas" dos sistemas intervencionistas põem em marcha um processo que resulta em ciclos de expansão e contração do estado.

Os capítulos seguintes tratam de objeções a essa abordagem, oferecendo uma defesa metodológica do núcleo comum da teoria compartilhada entre austríacos e neoclássicos. O décimo quarto capítulo critica a tese historicista, defendida pelos marxistas, segundo a qual a teoria econômica só seria válida no capitalismo. O artigo mostra que, pelo contrário, qualquer sistema econômico tem que lidar com o problema alocativo. Os dois capítulos seguintes desmontam a crítica à teoria moderna segundo a qual esta dependeria da hipótese de agentes egoístas. Esses capítulos mostram que a teoria requer apenas agentes que tenham algum propósito, não importando a natureza dos mesmos e analisam o papel do pressuposto de autointeresse empregado na teoria econômica.

Os dois capítulos seguintes analisam os aspectos ideológicos da mentalidade estatista. O capítulo dezessete indaga se os instintos coletivistas seriam inerentes à natureza humana e o seguinte estuda as características da presente ideologia dos defensores do intervencionismo. Esse estudo é importante para o desenvolvimento da teoria no que diz respeito à fase do ciclo do intervencionismo na qual ocorrem reformas liberalizantes. Os capítulos dezenove e vinte tratam das dificuldades encontradas nessa fase de reformas. A expansão do estado faz com que reformas contrariem interesses e causem crises no curto prazo, que serão atribuídas não as distorções causadas pelas intervenções, mas as próprias reformas adotadas para aliviar o problema. Quanto mais se avança em direção ao controle central, por outro lado, mais difícil para as pessoas imaginarem instituições alternativas, compatíveis com a liberdade.

O penúltimo capítulo da segunda parte trata do final da fase de expansão do estado na teoria do intervencionismo, mostrando a diminuição da margem de manobras dos políticos nesse estágio. O capítulo final volta à ilustração da teoria, defendendo um revisionismo histórico que rejeite ideias marxistas e incorpore os resultados da teoria econômica moderna. Esse revisionismo traria inúmeras ilustrações da nossa teoria do intervencionismo.

Na terceira parte do livro discutimos aspectos políticos da batalha pela liberdade. Nos capítulos 23 e 24, discutimos como o pensamento liberal em economia é bloqueado respectivamente pela identificação da realidade com o conceito de capitalismo e pela identificação do status quo com situação desprovida de intervenções corretivas. Em nossa opinião, os grandes problemas econômicos são falhas de governo, não falhas de mercado. No capítulo 25, examinaremos como a expansão do conceito de externalidade como justificativa para intervenções estatais nos leva progressivamente ao abandono das liberdades individuais. No capítulo seguinte, efetuamos uma crítica austríaca de como o economista lida com os monopólios e na sequência mostramos como a atividade empresarial é tratada de forma inadequada na visão ortodoxa sobre o funcionamento da competição nos mercados.

No capítulo 29, criticamos aqueles que veem nos preços as causas dos problemas macroeconômicos: as análises corretas deveriam investigar os fundamentos que fazem os preços se moverem. No capítulo 30, utilizamos a história infantil dos três porquinhos para ilustrar a teoria austríaca dos ciclos econômicos, que afirma que a expansão do crédito orquestrada pelos bancos centrais é a causa principal das crises econômicas.

Nos três capítulos seguintes, analisamos o mercado das ideias. No primeiro examinamos as falsas analogias entre mercados e o sistema educacional. No segundo e terceiro, argumentamos que a tentativa de estimular a competição através de mecanismos de incentivos à produtividade acadêmica não funciona. O argumento é baseado na tese da impossibilidade do cálculo econômico no socialismo: preços artificiais são inerentemente diferentes de preços em mercados reais. Argumentamos que a liberdade acadêmica é a principal vítima do "produtivismo" acadêmico.

Nos capítulos 33 e 34, mostramos que, sob o intervencionismo, opera um mecanismo seletivo hayekiano segundo o qual os piores chegam ao poder e as alternativas liberais tendem a desaparecer. Por fim, no último capítulo analisamos o fenômeno do discurso politicamente correto, visto como uma das maiores ameaças à liberdade.

Eis, a seguir, os capítulos do livro. Basta clicar sobre cada um para lê-lo na íntegra e gratuitamente. 



Fabio Barbieri é mestre e doutor pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é professor da USP na FEA de Ribeirão Preto.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

"A ECOMONIA SEGUNDO O MODELO COSTA CONCÓRDIA"

Viciado em gastança, atolado em políticas erradas e desastrado na escolha de prioridades, o governo continua destruindo as finanças públicas e liquidando qualquer compromisso com a responsabilidade fiscal, como comprovaram mais uma vez dois relatórios divulgados na quinta-feira ─ o das operações do Tesouro e o das contas consolidadas do setor público, elaborado mensalmente pelo Banco Central (BC). Com essa informação, ficou em segundo plano, pelo menos por algumas horas, um desastre muito mais visível para a maior parte do público: o pedido de recuperação judicial de mais uma empresa, a OGX, festejada como campeã nacional e apontada como exemplo de audácia e de sucesso pela presidente Dilma Rousseff. Há muito em comum entre as duas notícias: a inconsequência, o voluntarismo e o baixo grau de discernimento revelados tanto no dia a dia da política econômica quanto no tratamento das questões de longo prazo. A mesma vocação para o erro é evidenciada na resistência a uma nova política de preços para a Petrobrás, mesmo depois do balanço muito ruim divulgado na semana anterior.


Voltando às contas públicas: segundo o Tesouro, o governo central teve déficit primário ─ sem contar os juros, portanto ─ de R$ 10,47 bilhões em setembro, o pior resultado da série histórica para o mês. O conjunto do setor público, formado por União, Estados, municípios e estatais, também foi deficitário e com esse tropeço ficou mais difícil atingir qualquer resultado fiscal razoável neste ano. O buraco registrado nas contas do governo central é explicável por “especificidades”, disse o secretário do Tesouro, Arno Augustin. O comandante do Costa Concordia, Francesco Schettino, poderia explicar com as mesmas palavras o desastre ocorrido no ano passado, quando o navio, desviado da rota, bateu num rochedo perto da Ilha de Giglio. Seu propósito pessoal ao ordenar o desvio foi uma “especificidade”, assim como a incômoda presença do rochedo num lugar tão impróprio. Talvez se pudesse atribuir este último detalhe à vontade do Criador, mas o comandante de um navio deve ter certa familiaridade com a geografia da criação.

Não há como deixar de lado as motivações e decisões equivocadas, no caso das contas públicas, na história dos apertos financeiros da Petrobrás, na escolha desastrosa de campeões nacionais ou no episódio do Costa Concordia. De janeiro a setembro a receita do governo central ─ Tesouro, Previdência e BC ─ foi 8% maior que a de um ano antes. A do Tesouro, isoladamente, foi 6,8% superior àquela obtida entre janeiro e setembro de 2012. Mas a despesa total ficou 13,5% acima da contabilizada no ano anterior. Não houve, de fato, nenhum esforço importante de contenção, embora alguns problemas fossem previstos, incluída a perda de receita causada pelas desonerações fiscais.

Apesar dessas desonerações, o crescimento da economia continuou pífio. Nem o governo projeta, neste momento, uma expansão maior que 2,5% neste ano. Os estímulos foram mal concebidos e alimentaram mais o consumo do que a produção. Os empresários da indústria, setor com crescimento de apenas 1,1% nos 12 meses até setembro, continuaram ressabiados e pouco dispostos a mais gastos para produzir. O BC continuou apontando em seus relatórios a estreita margem de capacidade da indústria, os efeitos inflacionários da demanda e os riscos associados às condições de um mercado de trabalho muito apertado.

Esse aperto ficou ainda mais evidente quando a Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou seu último estudo sobre as dificuldades de obtenção de mão de obra qualificada. O problema foi apontado por 68% das empresas consultadas na pesquisa. Em outras palavras, para bem avaliar a escassez de oferta no mercado de trabalho é preciso levar em conta a qualidade do capital humano disponível.

Além disso, praticamente metade das empresas, 49%, tem dificuldade para treinar o trabalhador, por causa da baixa qualidade da educação básica. Este é um problema herdado. Durante os primeiros oito anos da administração petista, a política educacional concentrou-se em facilitar o acesso ao ensino “superior”, sem levar em conta os principais focos de problemas, localizados na educação básica e no ensino médio. Apesar de algum avanço, o Brasil continua ocupando posições vergonhosas nos testes internacionais de linguagem, matemática e ciências. O equívoco na escolha da prioridade foi muito mais que um inocente erro de avaliação. Foi também, obviamente, uma decisão ditada por interesses eleitorais.

Fiel ao padrão consolidado na gestão anterior, o governo da presidente Dilma Rousseff continuou gastando dinheiro e distribuindo benefícios de forma ineficiente, como se estivesse ao mesmo tempo realizando uma política anticrise e criando condições de crescimento de longo prazo. Queimou dinheiro inutilmente, como comprovam as contas públicas, o baixo ritmo da produção e os problemas consideráveis de competitividade internacional dos produtores instalados no Brasil. A crise externa é a causa menos importante da erosão da balança comercial.

Erros acumulados em dois governos deixaram a Petrobras com problemas de caixa e muito dinheiro encalhado em projetos mal concebidos, como o da Refinaria Abreu e Lima. Apesar disso, a empresa tem de ser operadora única de todos os campos do pré-sal, manter participação de pelo menos 30% em todos os consórcios e funcionar como instrumento de política industrial.

Como exercer esse papel sem elevar seus custos e sem prejudicar sua atividade básica, o chamado core business, é uma questão ainda sem resposta. Mas o governo parece desconhecer essa pergunta, assim como desconhece, ou menospreza, as principais causas da estagnação brasileira, a começar pelos erros da política fiscal.
Por: Rolf Kuntz  Publicado no Estadão

DOIS TIPOS DE INDIVIDUALISMO

Há dois tipos de individualismo: há o individualismo genuíno, que leva à liberdade e a uma ordem espontânea, e há o pseudo-individualismo, que leva ao coletivismo e às economias controladas e planejadas.

Antes de explicar o que seria o individualismo genuíno, seria útil fornecer algumas indicações da tradição intelectual à qual ele pertence. O individualismo genuíno começou a ser desenvolvido ainda no século XVII por John Locke. Posteriormente, no século XVIII, Bernard Mandeville e David Hume ampliaram o pensamento, o qual alcançou uma envergadura completa pela primeira vez com as obras de Josiah Tucker, Adam Ferguson, Adam Smith, e daquele que foi o maior contemporâneo de Smith, Edmund Burke — o homem que, segundo Smith, foi a única pessoa que ele conheceu que abordava questões econômicas exatamente como ele, embora ambos nunca houvessem se comunicado de absolutamente nenhuma maneira.

No século XIX, tal pensamento foi representado à perfeição nas obras de dois de seus maiores historiadores e filósofos políticos: Alexis de Tocqueville e Lord Acton. Estes dois homens desenvolveram com o mais pleno êxito tudo aquilo que havia de melhor na filosofia política de Burke, dos filósofos escoceses e dos Whigs ingleses. 

Por outro lado, os economistas clássicos do século XIX — ou pelo menos os discípulos de Jeremy Bentham ou os radicais entre eles — se mostraram crescentemente sob a influência de outro tipo de individualismo, um individualismo de origem distinta.

Esta segunda e completamente distinta linha de pensamento, também conhecida como individualismo, é representada predominantemente por escritores franceses e por outros pensadores do continente europeu — um fato que, creio eu, se deve ao papel dominante que o racionalismo cartesiano tem em sua composição. Os principais representantes dessa tradição foram os enciclopedistas, Rousseau e os fisiocratas. E, devido a alguns motivos que iremos aqui analisar, este individualismo racionalista sempre tende a se degenerar e a se transformar no exato oposto do próprio conceito de individualismo: isto é, descamba para o socialismo e o coletivismo. 

É justamente pelo fato de apenas o primeiro tipo de individualismo ser consistente, que eu lhe atribuo a denominação de individualismo genuíno, ao passo que este segundo tipo de individualismo deve ser considerado como uma fonte para o socialismo moderno tão importante quanto as próprias teorias coletivistas.

Não há melhor ilustração da atual confusão a respeito do significado de 'individualismo' do que o fato de aquele homem tido como um dos maiores expoentes do individualismo genuíno, Edmund Burke, ser comumente (e corretamente) acusado de ser o principal oponente do "individualismo de Rousseau" — cujas teorias ele dizia que iriam rapidamente dissolver a sociedade "na poeira e no pó da individualidade" —, e que o próprio termo "individualismo" tenha sido apresentado pela primeira vez no idioma inglês por meio da tradução de uma das obras de outro grande representante do individualismo genuíno, Alexis de Tocqueville, que utilizou o termo em sua obra Democracia na América para descrever uma atitude que ele deplora e rejeita. No entanto, não há dúvidas de que tanto Burke quanto de Tocqueville estão, em toda a sua essência, próximos de Adam Smith — a quem ninguém negaria o título de individualista —, e que o "individualismo" ao qual eles se opõem é algo completamente diferente daquele de Smith.

O próximo passo na análise individualista da sociedade será dirigido àquele pseudo-individualismo racionalista que também leva ao coletivismo. Trata-se da controvérsia de que, ao se investigar os efeitos combinados das ações individuais, descobrimos que várias das instituições responsáveis pelas conquistas e façanhas humanas surgiram e seguem funcionando sem a existência de uma mente planejadora e criadora. Descobrimos que, como Adam Ferguson disse, "nações dependem de instituições, as quais realmente são resultado da ação humana, e não do planejamento humano"; e que a espontânea colaboração de indivíduos livres frequentemente leva a criações que são maiores do que suas mentes individuais são capazes de compreender. Este é o grande tema por trás das obras de Josiah Tucker, Adam Smith, Adam Ferguson e Edmund Burke.

A diferença entre esta visão — que diz que toda a ordem que percebemos nas relações humanas é o resultado não-premeditado de ações individuais —, e a visão que atribui toda essa ordem perceptível a um planejamento deliberado é o primeiro grande contraste entre o individualismo genuíno dos pensadores britânicos do século XVIII e o suposto individualismo da Escola Cartesiana. Mas essa diferença é apenas um aspecto de uma diferença ainda mais ampla entre as duas visões. De um lado, temos uma visão que, no geral, não endeusa o papel da razão nas relações humanas, afirma que o homem alcançou tudo o que já alcançou apesar do fato de ser guiado apenas parcialmente pela razão, e afirma que a razão individual é muito limitada e imperfeita. De outro, temos uma visão que pressupõe que a Razão, com R maiúsculo, está sempre disponível de maneira plena e igualitária para todos os seres humanos, e que tudo que o homem alcança é resultado direto de estar submetido ao controle da razão de uma mente planejadora.

A abordagem anti-racionalista, a qual considera o homem não como um ser altamente racional e inteligente, mas sim um ser extremamente irracional e falível, cujos erros individuais serão corrigidos apenas no decorrer de um processo social, e que tem como objetivo tirar o melhor proveito possível de um material altamente imperfeito, é provavelmente a característica mais notável do individualismo inglês.

Portanto, para concluir, volto ao que foi dito no início: a atitude fundamental do individualismo genuíno é de humildade em relação aos processos pelos quais a humanidade alcançou vários feitos que não haviam sido planejados ou compreendidos por nenhum indivíduo sozinho, e que são, com efeito, maiores do que as mentes individuais. A grande questão neste momento é se a mente humana poderá continuar crescendo como parte deste processo ou se ela deverá ser acorrentada aos grilhões que ela própria criou. O que o individualismo nos ensina é que a sociedade será maior do que o indivíduo apenas se ela for genuinamente livre. Se ela for controlada ou planejada, será totalmente limitada pelos poderes das mentes dos indivíduos que a controlam ou planejam. 

Se a presunção da mentalidade moderna — que não respeita nada que não seja conscientemente controlado por alguém — não entender a tempo suas limitações, poderemos, como nos alertou Edmund Burke, "estar seguros de que tudo a nosso respeito e à nossa volta irá definhar gradualmente, até que, no final, nossos objetivos serão encolhidos à insignificante dimensão de nossas mentes."

O artigo acima foi retirado de um trecho do livro Individualism and Economic Order.

Friedrich A. Hayek (1899-1992) foi um membro fundador do Mises Institute. Ele dividiu seu Prêmio Nobel de Economia, em 1974, com seu rival ideológico Gunnar Myrdal "pelos seus trabalhos pioneiros sobre a teoria da moeda e das flutuações econômicas e por suas análises perspicazes sobre a interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais". Seus livros estão disponíveis na loja virtual do Mises Institute.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

"A FALTA QUE NOS FAZ UMA BOA ESPIONAGEM"

Essa história da espionagem americana está cada vez mais complicada, e vai ficar pior. A chamada comunidade de inteligência de Washington, que inclui políticos, formadores de opinião e funcionários do setor, saiu em defesa própria, dizendo que agências de outros governos também espionam líderes americanos. Algo assim: está todo mundo esculhambando a NSA (Agência Nacional de Segurança dos EUA), mas a verdade é todo mundo faz a mesma coisa e que eles (da NSA) sabem de tudo muito bem.

Uma ameaça, não é mesmo?

Vai piorar nessa direção — se os americanos resolverem vazar o que certamente sabem sobre a espionagem dos outros. Comentou James Clapper, diretor geral da Inteligência Nacional da administração Obama: “Tentar decifrar as intenções de líderes estrangeiros é a função básica das operações de inteligência de qualquer governo”.

Por outro lado, há aí um efeito positivo. Acusações e contra-acusações já conduzem a um bom debate, especialmente nos EUA, sobre a competência dos atuais órgãos de espionagem, a extensão de sua atuação e os limites que devem ser impostos.

O resumo do que aconteceu está na cara: depois da série de sangrentos atentados terroristas, que começou nas torres de Nova York, passou por estações de Londres e Madrid e diversos outros locais e nações, os governos dos países que eram alvos óbvios remontaram seus sistemas de segurança. E os ampliaram de tal modo que estes ganharam autonomia, uma dinâmica própria que os coloca fora do controle dos governantes eleitos.

O que Obama sabia ou sabe agora? Em algum momento ele vai ter que dizer algo e dificilmente encontrará uma boa saída. Se ele sabia de tudo, inclusive dos grampos, então claramente mentiu e exorbitou de suas funções. Se não sabia de nada, então quem é que manda lá?

Já no Brasil ─ falando fracamente ─ o que nos falta é uma boa espionagem. Esses grupos que estão quebrando e tocando fogo em várias cidades certamente não saíram do nada. Organizaram-se de algum modo no passado e hoje organizam suas ações do mesmo modo ─ que é pelos instrumentos da internet e dos celulares e suas vias, os e-mails, Google, Facebook e Twitter, para citar apenas os mais manjados.

Há muitas agências de inteligência no Brasil ─ federais, das Forças Armadas e das polícias estaduais. E não perceberam nada? Muitas investigações apanharam grossa corrupção com grampos legais, autorizados pela Justiça. Agentes federais foram colocados em Pernambuco para vigiar o governo de Eduardo Campos. Aliás, foram descobertos, o que sugere muita coisa sobre o grau de eficiência do sistema.

De todo modo, é obviamente uma falha das agências e do Ministério Público não terem percebido, monitorado e apanhado esses grupos terroristas que estão agindo nas cidades brasileiras. Continua sendo uma falha que não tenham conseguido até agora desativar esses grupos.

Agências de informações nunca foram lá essas coisas por aqui, nem mesmo durante o regime militar. A tortura era o método principal de obter informações.

Nos anos 70, período da distensão no governo Geisel, tive oportunidade de fazer reportagens, para a Veja, sobre ações do famoso Serviço Nacional de Informações (SNI). Era ridícula a coleta de informações: agentes se baseavam na imprensa e davam crédito aos boatos mais estúpidos. A análise dos grupos de esquerda estava totalmente errada.

Depois, na democratização, trabalhando no Ministério do Planejamento, na ocasião do Plano Cruzado (1986), tive acesso a relatórios que o SNI mandava ao presidente da República sobre as reações ao programa econômico. Tudo material de imprensa e ainda assim tendenciosamente favorável, mostrando sempre quadros positivos. (Conto isso em meu livro Aventura e agonia nos bastidores do cruzado, Companhia das Letras, 1987).

Parece que não mudou muita coisa. Vinte e oitos anos depois da queda do regime militar, ainda não aprendemos como se lida com a polícia, incluindo a política, na democracia. O combate à ditadura militar deixou um subproduto cultural e político, a tremenda desconfiança em relação a qualquer tipo de polícia. Com isso, não houve a formação de um novo sistema de informação e segurança, controlado pelos órgãos do Estado. A defesa da democracia precisa tanto de polícia como de forças armadas.

O resultado está na cara. A falta de segurança é uma das principais queixas dos cidadãos. Nas manifestações, as polícias militares ou não fazem nada ou baixam o cacete indiscriminadamente. As agências de informação não sabem de nada e, quando grampeiam, deve ser coisa do governo, não do estado.

Lá, informação de mais. Aqui, de menos. E erradas.

Por: CARLOS ALBERTO SARDENBERG Publicado no Globo 


"CRÊ OU MORRE"

E se de repente, um dia desses, ficasse demonstrado por A + B que o grande problema do Brasil, acima de qualquer outro, é a burrice? Ninguém está aqui para ficar fazendo comentários alarmistas, prática que esta revista desaconselha formalmente a seus colaboradores, mas chega uma hora em que certas realidades têm de ser discutidas cara a cara com os leitores, por mais desagradáveis que possam ser. É possível, perfeitamente. que estejamos diante de uma delas neste momento: achamos que a mãe de todos os males deste país é a boa e velha safadeza, que persegue cada brasileiro a partir do minuto em que sua certidão de nascimento é expedida pelo cartório de registro civil, e o acompanha até a entrega do atestado de óbito, mas a coisa pode ser bem pior que isso. Safadeza aleija, é claro, e sabemos perfeitamente quanto ela nos custa ─ basicamente, custa todo esse dinheiro que deveria estar sendo aplicado em nosso favor mas que acaba se transformando em fortunas privadas para os amigos do governo, ou é jogado no lixo por incompetência, preguiça e irresponsabilidade. Mas burrice mata, e para a morte, como também se sabe, não existe cura. Ela está presente pelos quatro cantos da vida nacional.


Um país que tem embargos infringentes, por exemplo, é um país burro ─ não pode existir vida inteligente num sistema em que, para cumprir a lei, é preciso admitir a possibilidade de processos que não acabam nunca. Também não há atividade cerebral mínima em sociedades que aceitam como fato normal trens que viajam a 2 quilômetros por hora, a exigência de firma reconhecida, o voto obrigatório e assim por diante. A variedade a ser tratada neste artigo é a burrice na vida política. Ela é especialmente malvada, pois age como um bloqueador para as funções vitais do organismo público — impede a melhora em qualquer coisa que precisa ser melhorada, e ajuda a piorar tudo o que pode ser piorado.

A manifestação mais maligna desse tipo de estupidez é a imposição, feita pelo governo, e a sua aceitação passiva, por parte de quase todos os participantes da atividade política brasileira, da seguinte ideia: no Brasil de hoje só existem dois campos. Um deles, o do governo, do PT, da presidente Dilma Rousseff e do ex-presidente Lula, é o campo do “bem”; atribui a si próprio as virtudes de ser a favor da população pobre, da verdadeira democracia, da distribuição de renda, da independência nacional e tudo o mais que possa haver de positivo na existência de uma nação. É, em suma, a “esquerda”. O outro, formado automaticamente por quem discorda do governo e dos seus atuais proprietários, é o campo do “mal”. A ele a máquina de propaganda oficial atribui os vícios de ser a “elite”, defender a volta da escravidão, conspirar para dar golpes de Estado, brigar contra a redução da pobreza e apoiar tudo o mais que possa haver de horrível numa sociedade humana. É, em suma, a “direita”. O efeito mais visível dessa prática é que se interditou no Brasil a possibilidade de haver um centro na vida política. Ou você está com Lula-Dilma ou vai para o inferno: “crê ou morre”, como insistia a Inquisição da Santa Madre Igreja.

Essa postura é um insulto à capacidade humana de pensar em linha reta, que continua sendo a distância mais curta entre dois pontos. O Brasil não é feito de extremos; isso simplesmente não existe em nenhum país democrático do mundo. Abolir o espaço para um centro moderado é negar às pessoas o direito de pensar com aquilo que lhes parece ser apenas bom-senso, ou a lógica comum. Por que o cidadão não poderia ser, ao mesmo tempo, a favor do Bolsa Família e contra a conduta do PT no governo? É dinheiro de imposto; melhor dar algum aos pobres do que deixar que roubem tudo, (o programa, aliás, foi criado por Fernando Henrique; de Júlio César para cá, passando por Franklin Roosevelt, dar dinheiro ou comida direto ao povão é regra básica de qualquer manual de sobrevivência política.) Qual é o problema em defender a legislação trabalhista e, ao mesmo tempo, achar que quem rouba deve ir para a cadeia? O que impediria alguém de ser a favor do voto livre e contra o voto obrigatório? Nada, a não ser a burrice que obriga todos a se ajoelharem diante do que o PT quer hoje, para não serem condenados como hereges. É por isso que no Brasil 2013 Fernando Gabeira, Marina Silva e tantos outros que querem pensar com a própria cabeça são de “direita”, segundo os propagandistas do governo. Já Paulo Maluf, José Sarney etc. são de esquerda.
Vida inteligente?  
Por: J. R. Guzzo  Publicado na edição impressa de VEJA

domingo, 3 de novembro de 2013

HOMENS E ANIMAIS, REVISITADOS

Recebi centenas de e-mails na semana passada por causa de um texto sobre os "direitos dos animais" ("Homens e animais", 22/10). Escuso de esclarecer que a maioria não foi simpática.

Com verdadeiro espírito humanista, muitos dos defensores dos animais desejaram-me doenças que eu, um hipocondríaco confesso, nem sabia que existiam. Sem falar das inevitáveis ameaças de morte, sempre antecedidas de tortura (lenta).

Agradeço a gentileza e espero ansiosamente pelo dia em que o mundo será governado pelo espírito tolerante dessa gente. Para os restantes leitores, que insistiram em seis perguntas recorrentes (e civilizadas), aqui vão respostas civilizadas:

1 - Se é possível fazer pesquisa sem animais, como justificar o uso dos bichos?

Infelizmente, não é possível fazer todo o tipo de pesquisas sem usar animais. Verdade que a ciência evoluiu imenso e a pesquisa "in vitro" (usando células em laboratório, algumas das quais humanas) e "in silico" (com computadores) tem ocupado as pesquisas "in vivo". Mas, para certas patologias, e sobretudo para se obterem respostas precisas a farmacologias várias, é necessário o uso de organismos vivos com certo grau de complexidade (o que exclui, por exemplo, moscas ou lesmas). Não usar animais implicaria, em muitos casos, usar seres humanos --ou, em alternativa, frear o progresso científico.

2 - Os animais dos laboratórios são tratados cruelmente.

Uma absoluta falácia. Os animais domésticos são, muitas vezes, tratados cruelmente. Animais de laboratório são, como o nome indica, seres vivos criados em ambiente controlado (temperatura, som, conforto, comida etc.) de forma a infligir o menor sofrimento possível. É claro que algumas experiências implicam dor ou desconforto. Mas o uso de animais em laboratório está submetido a legislação rigorosa, na qual os "limites de severidade" são cada vez mais apertados.

Dissecar animais em praça pública, como aconteceu no passado para conhecer o sistema circulatório (um feito que fez a medicina avançar vários séculos), seria impensável nos dias de hoje. E ainda bem.

3 - É legítimo usar animais para testar cremes e batons?

Não é legítimo e deve ser severamente punido. Na Europa, já é desde março deste ano. Mas a discussão do artigo lidava com pesquisa médica, não estética. Confundir ambas revela ignorância ou má-fé.

4 - Todos os ativistas dos "direitos dos animais" estão errados?

Pelo contrário: a ciência deve muito aos ativistas razoáveis dos "direitos dos animais", que contribuíram para que a ciência "humanizasse" o seu trato com os bichos.
Os defensores razoáveis dos "direitos dos animais" legaram à ciência o desafio dos "três R's": "to reduce" (reduzir, sempre que possível, o número de animais em laboratório); "to replace" (substituir, sempre que possível, o uso de animais por outra alternativa --estudo de células ou simulação computacional, por exemplo); e "to refine" (refinar, sempre que possível, a forma como a pesquisa é feita --uso de anestésicos e analgésicos quando o desconforto é previsto; criação de um ambiente confortável e estimulante para os animais etc.). O diálogo entre cientistas e "eticistas" deve por isso continuar.

5 - Você não gosta de animais e por isso defende o uso deles pela ciência?

Não pretendo tornar a discussão pessoal. Mas gosto de animais, tenho animais e até já escrevi sobre todas as lições "filosóficas" que aprendi com o meu gato.

6 - Todas as vidas são sagradas e nenhum animal deve ser sacrificado para nosso benefício.

Quem parte dessa premissa encerra o debate mesmo antes dele começar. Infelizmente, não tenho essas certezas --e, como onívoro, é evidente que continuo a usar os animais como fonte principal de alimentação. Sobre a "sacralidade" da vida, confesso uma certa paralisia agônica com certos cálculos utilitaristas mesmo em relação à vida humana (para mim, a mais importante).

Se, por hipótese, fosse possível salvar 10 milhões de pessoas gravemente doentes pelo sacrifício em laboratório de dez indivíduos, valeria a pena matar esses dez inocentes?

Instintivamente, direi que não e ficarei feliz com as minhas vaidades deontológicas. Pensando friamente, não sei se diria não --e que Deus, ou o sr. Kant, me perdoe. Porém, se a vida de 10 milhões de pessoas dependesse da vida do meu gato, não haveria hesitação alguma.
Por: João pereira Coutinho  Folha de SP

O PENSADOR COLETIVO

O Pensador Coletivo é uma máquina regida pela lógica da eficiência, não pela ética do intercâmbio de ideias

Você sabe o que é MAV? Inventada no 4º Congresso do PT, em 2011, a sigla significa Militância em Ambientes Virtuais. São núcleos de militantes treinados para operar na internet, em publicações e redes sociais, segundo orientações partidárias. A ordem é fabricar correntes volumosas de opinião articuladas em torno dos assuntos do momento. Um centro político define pautas, escolhe alvos e escreve uma coleção de frases básicas. Os militantes as difundem, com variações pequenas, multiplicando suas vozes pela produção em massa de pseudônimos. No fim do arco-íris, um Pensador Coletivo fala a mesma coisa em todos os lugares, fazendo-se passar por multidões de indivíduos anônimos. Você pode não saber o que é MAV, mas ele conversa com você todos os dias.

O Pensador Coletivo se preocupa imensamente com a crítica ao governo. Os sistemas políticos pluralistas estão sustentados pelo elogio da dissonância: a crítica é benéfica para o governo porque descortina problemas que não seriam enxergados num regime monolítico. O Pensador Coletivo não concorda com esse princípio democrático: seu imperativo é rebater a crítica imediatamente, evitando que o vírus da dúvida se espalhe pelo tecido social. Uma tática preferencial é acusar o crítico de estar a serviço de interesses de malévolos terceiros: um partido adversário, "a mídia", "a burguesia", os EUA ou tudo isso junto. É que, por sua própria natureza, o Pensador Coletivo não crê na hipótese de existência da opinião individual.

O Pensador Coletivo abomina argumentos específicos. Seu centro político não tem tempo para refletir sobre textos críticos e formular réplicas substanciais. Os militantes difusores não têm a sofisticação intelectual indispensável para refrasear sentenças complexas. Você está diante do Pensador Coletivo quando se depara com fórmulas genéricas exibidas como refutações de argumentos específicos. O uso dos termos "elitista", "preconceituoso" e "privatizante", assim como suas variantes, é um forte indício de que seu interlocutor não é um indivíduo, mas o Pensador Coletivo.

O Pensador Coletivo interpreta o debate público como uma guerra. "A guerra de guerrilha na internet é a informação e a contrainformação", explica o deputado André Vargas, um chefe do MAV. No seu mundo ideal, os dissidentes seriam enxotados da praça pública. Como, no mundo real, eles circulam por aí, a alternativa é pregar-lhes o rótulo de "inimigos do povo". Você provavelmente conversa com o Pensador Coletivo quando, no lugar de uma resposta argumentada, encontra qualificativos desairosos dirigidos contra o autor de uma crítica cujo conteúdo é ignorado. "Direitista", "reacionário" e "racista" são as ofensas do manual, mas existem outras. Um expediente comum é adicionar ao impropério a acusação de que o crítico "dissemina o ódio".

O Pensador Coletivo é uma máquina política regida pela lógica da eficiência, não pela ética do intercâmbio de ideias. Por isso, ele nunca se deixa intimidar pela exigência de consistência argumentativa. Suzana Singer seguiu a cartilha do Pensador Coletivo ao rotular o colunista Reinaldo Azevedo como um "rottweiler feroz" para, na sequência, solicitar candidamente um "bom nível de conversa". Nesse passo, trocou a função de ombudsman da Folha pela de Censora de Opinião. Contudo, ela não pertence ao MAV. Os procedimentos do Pensador Coletivo estão disponíveis nas latas de lixo de nossa vida pública: mimetizá-los é, apenas, uma questão de gosto.

Existem similares ao MAV em outros partidos? O conceito do Pensador Coletivo ajusta-se melhor às correntes políticas que se acreditam possuidoras da chave da porta do Futuro. Mas, na era da internet, e na hora de uma campanha eleitoral, o invento será copiado. Pense nisso pelo lado bom: identificar robôs de opinião é um joguinho que tem a sua graça. Por: Demétrio Magnoli Folha de SP


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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

POR QUE O RETORNO AO MUNDO NATURAL TEM TANTO APELO, MAS NÃO LEVA A LOGAR NUNHUM

BOM PRA QUEM, CARA-PÁLIDA? Na raiz de todo ativismo violento está a noção utópica e errônea de que Thomas Hobbes pensou errado e, portanto, a vida selvagem é idílica, prazerosa e fraternal (Deagostini/Getty Images)

Por Eurípedes Alcântara, na VEJA:

“Sou homem. Nada do que é humano me é estranho”, já dizia o romano Terêncio, dramaturgo de apenas relativo sucesso do segundo século antes de Cristo. Mas temos de concordar com ele. Eta espécie complicada esta nossa. Depois de ralar durante milênios para construir uma civilização tecnológica com aviões, carros, internet, vacinas, antibióticos e anestesia, o bacana agora é lutar pela volta ao mundo natural. Depois de experimentar toda a sordidez da servidão humana aos mais sanguinários tiranos e de sofrer no lombo os mais odiosos arranjos coletivistas totalitários, ainda temos entre nós quem se encante com aiatolás-presidentes, mulás-chefes de po­lícia e caudilhos latino-americanos cobertos de adereços indígenas, medalhas no peito ou pancake no rosto. Depois de rios de sangue derramados para arrancar dos poderosos o compromisso inarredável com os direitos humanos, a justiça igualitária, o rodízio pacífico de poder, a organização econômica baseada no respeito à propriedade, aceitamos que mascarados aterrorizem as grandes cidades quebrando e queimando indiscriminadamente apenas porque estão incomodados com o estilo de vida da maioria. Depois do sacrifício dos mártires que deram a vida para impor o uso apenas legítimo da força pelos governantes, impedindo que o Estado use brucutus para impor a vontade dos ricos sobre os pobres, dos fortes sobre os fracos, ficamos contra os policiais que tentam impedir o triunfo do reino de terror nas ruas. Depois de tudo isso, esquecemos que o que nos trouxe ao atual estágio civilizatório foi o trabalho obstinado e austero de mentes brilhantes em ambientes monásticos e idolatramos os barulhentos ativistas. 


A ÚNICA CHANCE?de salvar os cães é nos salvar, ou seja, acelerar os avanços científicos e tecnológicos, e não colocar obstáculos intransponíveis a eles?






Esse é o dilema oculto do ativista, a pessoa que se cansou de esperar que as coisas ocorram naturalmente da maneira como ela imagina, e vai à luta para tentar embicar o mundo para o rumo que ela acha certo e com o uso das armas que ela própria acha conveniente usar. Os ativistas que libertam cães em São Paulo, que quebram vitrines em Londres e Paris, que se propõem a ocupar Wall Street, em Nova York, têm em comum a ideia de que a lei e a ordem existem apenas para garantir o modo de vida das pessoas das quais eles discordam – ou, frequentemente, que eles odeiam. Outro ponto comum, em geral inconsciente, para a maioria deles, é a negação do que em sociologia se chama “contrato social”, que nada mais é do que a aceitação da tese de que sua liberdade termina onde começa a do outro. Os filósofos da baderna sustentam que isso que denominamos civilização não passa de uma grande e castrante prisão, à qual somos moldados desde o nascimento, primeiro pelo amor materno e paterno, depois pela educação formal, mais tarde pela democracia representativa, pelo consumo, pela arte degenerada e pelos remédios antidepressivos.



A REVOLTA DA VACINA – No Rio Janeiro, em 1904, o medo da vacinação obrigatória contra a varíola gerou protestos violentos, como este na Praça da República





Para quem pensa assim, nós todos vivemos uma vida vicária, uma vida substituta, uma vida no lugar da verdadeira vida que está… que está… que está onde? Ora, na natureza, no mundo selvagem, nas selvas, florestas e savanas, na cova dos leões onde seremos recebidos com lambidas fraternas como aquelas que as feras ofereceram ao profeta Daniel. O que muito se discute atualmente é se a ideia de que o homem solto na natureza, fora do alcance das leis, das instituições, completamente alheio às convenções sociais, estaria mesmo condenado à perversão moral e ao sofrimento físico, vítima da “guerra de todos contra todos”, como o inglês Thomas Hobbes disse ser a vida humana “em estado natural”. É disso que se trata. A vontade de ser seu próprio juiz, único e absoluto, do que é certo ou errado é o traço filosófico que une os ativistas que desprezam as leis, que lutam contra moinhos de vento ditatoriais em pleno regime democrático, contra as injustiças sociais em um Brasil onde há pleno emprego, contra a violência policial quando são eles que mais agridem e vandalizam. Thomas Hobbes escreveu que, fora dos arranjos sociais em que as pessoas obedecem a regras em troca do direito à convivência em sociedade, a vida do homem é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”. Hoje, o bacana é apostar que Hobbes pensou errado e que a verdadeira conquista é escapar dos contratos sociais. O preço a pagar para testar aquela hipótese é muito alto. Como é impagável também o preço de um mundo sem ativismo, sem idealismo, sem sonhos.

O engajamento solidário em causas consideradas justas é uma das grandes conquistas da modernidade. Divisor de águas é o caso do jovem capitão Alfred Dreyfus, judeu falsamente acusado de espionagem e condenado no fim do século XIX em uma França antissemita. A injustiça contra ele foi tão flagrante que se mobilizaram em sua defesa cientistas, artistas, escritores e estudantes . “Meu dever é falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu”, dizia a famosa carta aberta ao presidente da República escrita por Émile Zola em um jornal sob o título: “Eu Acuso…!”. Por serem homens de letras e de ciências, os defensores de Dreyfus eram chamados de modo depreciativo de “intelectuais”. Logo o termo ganhou a conotação positiva de “sábio engajado”. Claro que havia idealismo, sacrifício e nobreza de espírito antes do caso Dreyfus, mas nunca antes tantas pessoas haviam se mobilizado por uma causa sem que tivessem interesse direto nela – seja partidário, religioso, nacionalista, patriótico ou étnico. Elas se mobilizaram contra uma injustiça flagrante. Contra isso sempre valerá a pena lutar.

Por Reinaldo Azevedo

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

ACHADOS E PERDIDOS


Às vezes, eu sinto a angústia de um menino perdido numa multidão. Vivemos hoje no Brasil um período inusitado de estabilidade política permeada pelas superimposições promovidas pelo casamento entre hierarquias aristocráticas – que em todas as sociedades (e sobretudo na escravidão, como percebeu o seu teórico mais sensível, Joaquim Nabuco) têm como base a amizade e a simpatia pessoal; e o individualismo moderno relativamente igualitário que demanda burocracia e, com ela, uma impecável, abrangente e inatingível impessoalidade.

O hibridismo resultante pode ser negativo ou positivo. Pelo que capturo, o hibridismo – ou o mulatismo ético – é sempre mal visto porque ele não cabe no modo ocidental de pensar. Provam isso as Cruzadas, a Inquisição, o Puritanismo, as Guerras Mundiais, o Holocausto e a exagerada ênfase na purificação e na eugenia – na coerência absoluta entre gente, terra, língua e costumes, típicas do eurocentrismo. A mistura corre do lado errado e tende a derrapar como um carro dirigido por jovens bêbados quando saem da balada; ou da esquerda carismática-populista, burocrática e patrimonialista no poder.

Desconfio que continuamos divididos entre tipos de dominação weberiana e suas instituições. Fazer a lei e, sobretudo, preparar a sociedade para a lei, ou simplesmente prender? Chamar a polícia (que é, salvo as honrosas exceções, intensamente ligada aos bandidos e chefes do crime paradoxalmente presos) ou resolver pela “política”? Mas como fazê-lo se os “políticos” (com as exceções de praxe) estão interessados no desequilíbrio porque a estabilidade impede e dificulta a chegada ao “poder”? Poder que significa, além da sacralização pessoal, um imoral enriquecimento pelo povo e com o povo. Ademais, somente uma minoria acredita na política representada por instituições igualitárias e niveladoras.

Para ser mais preciso ou confuso, amamos a dominação racional-legal estilo germano-romana, mas não deixamos de lado nosso apreço infinito pela dominação carismática em todas as esferas sociais, inclusive na “cultura”, como revela esse disparate de censurar biografias. Temos irrestrita admiração por todos os que usaram e abusaram da liberdade individualista nesse nosso mundinho relacional quando os perdoamos e não os criticamos, o que conduz a uma confusão trágica entre o uso da liberdade e o seu abuso irresponsável. Esses mimados pela vida e exaltados pelos amigos – os nossos maluquinhos – legitimam a ambiguidade que se consolida pelo pessoalismo do herói a ser lido pelo lado do direito ou do avesso. Esse avesso que, no Brasil, é confundido com a causa dos oprimidos num esquerdismo que tem tudo a ver com uma “ética da caridade” do catolicismo balizador e historicamente oficial. Com isso, ficamos sempre – como dizia aquele general-ditador – a um passo do abismo. Andar para trás é condescendência, para a frente, suicídio.

Como gostamos de brincar com fogo, estamos sempre a um passo da legitimação da violência justificada como a voz dos oprimidos que ainda não aprenderam a se manifestar corretamente. E como fazê-lo se jamais tivemos um ensino efetivamente igualitário ou instrumental para o igualitarismo numa sociedade cunhada pelo escravismo e por uma ética de condescendência pelos amigos e conhecidos?

Pressinto uma enorme violência no nosso sistema de vida. Temo que ela venha a ocupar um território ainda mais denso e seja usada para legitimar outras violências tanto ou mais brutais do que o “quebra-quebra” hoje redefinido como “manifestações”. Protestos que começam como demandas legitimas e, infiltrados, tornam-se “quebra-quebras”. Qual é o lado a ser tomado se ambos são legítimos e, como é óbvio, dizem alguma coisa como tudo o que é humano?

Estou, pois, um tanto perdido e um tanto achado nessa encruzilhada entre demandas legais e prestígios pessoais. Entre patrimonialismo carismático e burocracia, os quais sustentam o “Você sabe com quem está falando?” – esse padrinho do “comigo é diferente”, “cada caso é um caso”, “ele é meu amigo”, “você está errado mas eu continuo te amando”… E por aí vai numa sequência que o leitor pode inferir, deferir ou embargar.

Embargar, aliás, é o verbo e a figura jurídica do momento em que vivemos e dos sistemas que se constroem pela lei, mas confundindo a regra com o curso torto, podre e vaidoso da humanidade, tem as suas cláusulas de desconstrução. Com isso, condenamos com a mão direita e embargamos com a esquerda; ou criamos os heróis com a esquerda e os embargamos com a direita. Construímos pela metade. O ponto que já foi ressaltado por mim algumas vezes é o simples: se conseguirmos assumir e controlar abertamente a ambiguidade, há a esperança de controlá-la. E isso pode ser uma enorme vantagem num planeta cujo futuro é um inevitável “abrasileiramento”.

Assim, entre o ser obrigado a calvinisticamente condenar, como fazem os nossos brothers americanos que todo dia atiram nos próprios pés, podemos assumir em definitivo que todos têm razão. Afinal de contas, o Brasil é um vasto programa de auditório com pitadas de missa solene e jogo de futebol.

Por: Roberto DaMatta Fonte: O Estado de S. Paulo, 23/10/2013

terça-feira, 29 de outubro de 2013

HISTÓRIA, POLÍTICA, POLÍTICA E TEMPERAMENTO, QUEM É QUEM NA POLÍTICA ARGENTINA

Nos últimos 67 anos os diversos peronismos – em ritmo felino – governaram a Argentina mais da metade do tempo

“Quando os outros nos ouvem gritar acham que estamos brigando. Nada disso..somos como os gatos. Quando gritamos estamos nos reproduzindo!” (Juan Domingo Perón, explicando com felina metáfora como são as brigas/cópulas dos peronismo. O quadro acima é “Gatos lutam em uma despansa”, de Paul de Vos, 1663.

Os argentinos foram às urnas neste domingo para renovar metade da Câmara de Deputados e um terço do Senado. Os principais protagonistas deste embate – cujo decisivo campo de batalha será a província de Buenos Aires (que concentra 38% do eleitorado) – serão Martín Insaurralde, cabeça da lista de candidatos a deputado da Frente pela Vitória, e Sergio Massa, da Frente Renovadora. No entanto, as duas “Frentes” – a primeira kirchnerista e a segunda anti-kirchnerista – são duas sublegendas rivais do Partido Justicialista (Peronista), movimento que chegou ao poder em 1946, quando foi eleito Juan Domingo Perón, fundador da griffe política à qual deu seu nome.

Dos 67 anos transcorridos de lá para cá, o Peronismo – em suas mais variadas modalidades – governou a Argentina mais da metade do tempo (34,5 anos).

Perón governou entre 1946 e 1955, ano em que foi deposto por um golpe. Em 1973 Perón, que estava no exílio, usou um velho braço-direito no Parlamento, Héctor Cámpora, para vencer em seu nome as eleições presidenciais. O representante do velho caudilho foi eleito com o slogan “Cámpora no governo, Perón no poder”.

Menos de três meses depois Cámpora suspendia a proibição existente no país sobre a atuação política de Perón, renunciava e deixava a presidência interina nas mãos do peronista Raúl Lastiri, genro de José López Rega, astrólogo de Perón e sua eminência parda. Cámpora, um conservador mas que contava com vários ministros de esquerda, abria o caminho para que seu chefe voltasse do exílio e fosse eleito em outubro desse ano.

Com a saída de Cámpora estava concluída a “Primavera Peronista” e iniciava um período conservador, com alguns toques neoliberais de Perón, que estava reconfigurando suas políticas. Este Perón, que havia voltado do exílio e ia contra-mão de seu intervencionismo dos anos 50 morreu em 1974.

Sua esposa e vice-presidente, Maria Estela Martinez de Perón, conhecida pelo apelido de “Isabelita”, assumiu o comando do país. A nova presidente – que Perón havia conhecido quando ela era dançarina em um cabaré no Panamá – foi deposta pelos militares em 1976, no meio do caos político.

O peronismo perdeu suas primeiras eleições em 1983, com a volta da democracia. Mas, teriam sua vingança nas urnas em 1989, com a eleição do peronista Carlos Menem, que fizera sua campanha com slogans pregando maior intervenção do Estado na economia. No entanto, imediatamente Menem deu uma guinada implantou as privatizações mais radicais da História da América Latina.

A política neoliberal de Menem provocou um êxodo de peronistas que deixaram o partido e fundaram a Frepaso. Menem foi reeleito em 1995. Mas, em 1989, seu candidato, Eduardo Duhalde, que não sintonizava totalmente com o neoliberalismo de Menem, perdeu as eleições.

Duhalde foi derrotado pela coalizão Aliança UCR-Frepaso, formada pela centenária União Cívica Radical, de centro, e os progressistas da Frepaso.

Em dezembro de 2001 a crise econômica e social provocou a queda de Fernando De la Rúa, da Aliança, que foi substituído por uma sequência de três breves presidentes provisórios peronistas (Ramón Puerta, Eduardo Caamaño e Adolfo Rodríguez Saá).

Em janeiro de 2002, Duhalde assumiu como presidente provisório. Em maio de 2003 deixou o cargo a Néstor Kirchner, seu delfim, que depois o trairia. Kirchner, ele próprio um ex-menemista e ex-duhaldista, atraiu ex-menemistas, ex-duhaldistas e boa parte dos antigos frepasistas que voltaram ao seio do peronismo.


O novo presidente deu um tom intervencionista ao governo, recuperando parte do peronismo de Perón em seu primeiro governo. Simultaneamente Kirchner tentou remover da memória popular que havia respaldado as políticas neoliberais de Menem nos anos 90, sendo figura crucial na privatização da petrolífera YPF.

Em 2007 Kirchner lançou sua própria esposa, Cristina Kirchner, para a sucessão presidencial em 2007. Kirchner morreu em 2010. Cristina foi reeleita em 2011. Um ano depois Cristina intensificaria seu perfil intervencionista ao reestatizar a YPF (desta vez, com o respaldo do ex-neoliberal senador Menem). Mas, em meados deste ano daria uma guinada no discurso nacionalista ao associar a YPF à empresa Chevron.

Nas eleições parlamentares deste domingo, o kirchnerista Insaurralde se confronta com Sergio Massa, atualmente ex-kirchnerista (que foi chefe do gabinete de Cristina entre 2008 e 2009). No entanto, ambos são peronistas.

“O Peronismo é como a Coca-Cola”, me disse em off um idoso ex-vice-ministro peronista. “Você tem Coca light, Coca regular, etc. O Peronismo é assim: tem neoliberais, esquerdistas, e as mais diversas variáveis. No fundo, tudo é Coca-Cola, isto é, todos são peronistas. Mudam o rótulo da quantidade do ‘açúcar’ político dependendo da conveniência. Mas continua sendo a mesma marca. Assim é com o Peronismo. É como um refrigerante que pretende atender todos os gostos”.

Depois, recorda uma marota frase de Perón que deixava claro que as supostas brigas entre os peronistas não eram motivo de preocupação: “quando os outros nos ouvem gritar acham que estamos brigando. Nada disso..somos como os gatos. Quando gritamos estamos nos reproduzindo!”. 
Perón usava gatos em suas metáforas políticas. Mas ‘El General’ era fã mesmo dos cachorros. Mais especificamente, dos poodles.


E para encerrar, ad hoc com os felinos peronistas, o “Duetto buffo di due gatti” (Dueto buffo de dois gatos), de Gioacchino Rossini: 




PERFIL: Ariel Palacios fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996.


segunda-feira, 28 de outubro de 2013

"DIA DA DEMOCRACIA"

“A data da morte do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, é considerada o ponto de partida para a retomada do processo democrático no Brasil. Por isso, o dia de hoje 25 DE OUTUBRO, é considerado por muitos o DIA da DEMOCRACIA.

As redes sociais podem decididamente ajudar e estão ajudando a transformar o Brasil e o mundo.

Apesar de todos os riscos do “mau caratismo” e da desconfiança que nós temos pelos episódios que estão ocorrendo, continuemos participando, falando com sinceridade, criando amizades e um mundo melhor.

Estamos atravessando um período interessante do mundo moderno contemporâneo.

Quando o nosso Presidente Ministro do STF Joaquim Barbosa ousa, ouvindo até mesmo outros magistrados, dizer que a Justiça Brasileira é confusa é importante, um gesto valente, corajoso.

Pouco importa as incompreensões.

Coisa igual faz o Papa Francisco, de uma instituição secular como a Igreja Católica, quebrando tabus e falando franco, usando termos como “Vaticanocracia”, e demitindo bispos deslumbrados, como o bispo alemão irresponsável.

É o mundo mudando.

Que essas coisas ou cousas, possam ser aprendidas e apreendidas por nós todos e que a gente, independente de pequenezas, façamos a nossa parte.

Continuaremos amigos e faremos das redes sociais um instrumento de discussões honestas, esclarecedoras e por isso libertária.

Sujeitas à chuvas e trovoadas;

· Voto, infelizmente nem sempre é atestado de honradez ou certificado de competência.

Os exemplos estão aí, desnecessários citá-los.

· Sigla partidária não é carimbo da Vigilância Sanitária. São heterogêneas. Vai desde a Madre Paulina até o Fernandinho beira-mar. Vamos regenera-las.

· Algumas de nossas melhores ideias andam também infelizmente pela boca de alguns de nossos piores homens. Daí a confusão em distingui-los.

· Eleição não é doença é remédio.

· Carteira de identidade, os suínos, os bovinos e até os galináceos tem (chip).

Titulo de eleitor só os cidadãos.

Exige inteligência, raciocínio, livre arbítrio, responsabilidade social.

· Coletivo não é só sinônimo de ônibus.

Pensar o coletivo é ser cidadão, é ser solidário.

· Se interessar pela politica não é só exercer um direito, é uma obrigação de cidadania.

Embora não pareça, os apátridas, os traficantes, os criminosos se preocupam, e muito.

· Lobista é uma coisa, deputado é outra.

Deputado lobista desserve a democracia.

São agentes da corrupção. O Brasil precisa se livrar deles.

· A Reforma Tributaria não sai, não acontece, porque a falta dela é que mantém a vassalagem, a subserviência.

Transforma o direto em um favor.

Temos que fazê-la.

· Essas observações fazem parte do contexto da democracia. Em verdade, se constituem numa homenagem simples ao jornalista Herzog.

Pensemos a respeito.

Qualquer dia tem mais.

Saudações democráticas,

Por: Jaison Barreto.






'O PALÁCIO E OS 'MOVIMENTOS SOCIAIS".

“É um absurdo vender isso. A sociedade não participou do debate sobre o tema. Nossa tentativa é sensibilizar o governo para negociar e discutir.” As sentenças, de Francisco José de Oliveira, diretor da Federação Única dos Petroleiros (FUP), referiam-se ao leilão de Libra, na faixa do pré-sal. Mas a lógica subjacente a elas, expressa na segunda frase, nada tem de singular. Nas duas últimas décadas, os “movimentos sociais” repetem aborrecidamente a ladainha sobre “a sociedade” excluída do “debate”, enquanto invadem órgãos públicos em nome da “participação”. Vivemos nos tempos do supercorporativismo, um ácido corrosivo derramado sobre o material de nossa democracia.

O Brasil moderno nasceu, pelo fórceps de Getúlio Vargas, sob o signo do corporativismo. A “democracia social” do Estado Novo cerceava os direitos do indivíduos, subordinando-os a direitos coletivos. Na definição do historiador Francisco Martinho, “o cidadão nesse novo modelo de organização do Estado era identificado através de seu trabalho e da posse de direitos sociais e não mais por sua condição de indivíduo e posse de direitos civis ou políticos” (O corporativismo em português, Civilização Brasileira, 2007, p. 56). Inspirado no salazarismo português e no fascismo italiano, o corporativismo varguista organizou a sociedade como uma família tripartida: governo, sindicatos patronais e sindicatos de trabalhadores. O supercorporativismo, uma obra do lulopetismo, infla o balão do corporativismo original até limites extremos.

Um traço forte, comum a ambos, é o desprezo pelos direitos civis e políticos, que são direitos individuais associados à ordem da democracia representativa. A principal diferença encontra-se no atributo nuclear da cidadania: o cidadão varguista definia-se pelo trabalho; o cidadão lulopetista define-se pela militância organizada. No Estado Novo, a carteira de trabalho funcionava como atestado de inserção na ordem política nacional. Sob o lulopetismo, o documento relevante é a prova de filiação a um “movimento social”. Na invasão do Ministério das Minas e Energia, junto com a FUP, estavam líderes do Movimento dos Sem Terra (MST) e do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) — que, em tese, não têm interesse no tema da exploração do pré-sal. A sociedade, segundo o supercorporativismo, é a soma das entidades sindicais e dos “movimentos sociais”. É por isso que, sem o consenso dessas corporações da nova ordem, nenhum assunto jamais estará suficientemente “debatido”.

Lula nasceu no berço do sindicalismo. O PT estabeleceu, na origem, íntimas relações com os “movimentos sociais”. Nas democracias, a sociedade civil organiza-se para exercer pressão legítima sobre os poderes de Estado. O lulopetismo, porém, borrou a fronteira entre sociedade civil e Estado assim que chegou ao governo: sua reforma da CLT estendeu a partilha do imposto sindical varguista às centrais sindicais, enquanto os “movimentos sociais” passaram a receber financiamento público direto ou indireto. O cordão umbilical que liga o poder de Estado aos “movimentos sociais” é a Secretaria Geral da Presidência, um ministério estratégico chefiado por Luiz Dulci, no governo Lula, e por Gilberto Carvalho, no governo Dilma Rousseff. Os dois engenheiros do edifício do supercorporativismo pertencem ao círculo de fiéis incondicionais de Lula.

O PT sempre enxergou os “movimentos sociais” como tentáculos partidários. Os líderes mais destacados desses movimentos são militantes petistas. O financiamento público elevou a conexão a um novo patamar: na última década, eles se converteram em satélites do Palácio. Os dirigentes do MST, do MAB e de inúmeros movimentos similares ajustam suas agendas políticas às do Partido e cerram fileiras com o lulopetismo nos embates eleitorais. Durante a odisseia do mensalão, eles desceram às trincheiras enlameadas para proteger José Dirceu et caterva. Contudo, na dialética do supercorporativismo, os “movimentos sociais” também precisam promover mobilizações contra o governo, sob pena de se condenarem à irrelevância.

O corporativismo varguista almejava a harmonia social. No mecanismo de regulação do lulopetismo, a desordem é um componente da ordem. Os “movimentos sociais” palacianos produzem fricções cíclicas, que são reabsorvidas pelo recurso a negociações simbólicas e compensações materiais. A extensão inevitável do “direito à desordem” a movimentos controlados por facções dissidentes (PSOL, PSTU) provoca perturbações suplementares, mas, paradoxalmente, robustece os alicerces lógicos do supercorporativismo. Os invasores do Ministério de Minas e Energia são obrigados a confirmar periodicamente seu estatuto de interlocutores privilegiados do poder por meio de ações de contestação limitada da ordem.

A democracia representativa ancora-se no princípio da soberania popular, que é exercida por meio da delegação de poder, em eleições gerais. O sistema político-partidário brasileiro desmoraliza a representação para assegurar privilégios especiais a uma elite política de natureza patrimonialista. O lulopetismo, um sócio majoritário desse sistema, aproveita-se de seus desvios para erguer o edifício do supercorporativismo como esfera paralela de negociação política. Na dinâmica extraparlamentar do supercorporativismo, o Partido pode ignorar as demandas dos cidadãos comuns, dialogando exclusivamente com a casta mais ou menos amestrada de dirigentes dos “movimentos sociais”. Sabe com quem está falando? Você só é alguém se possuir a carteirinha de um “movimento social” ─ eis a mensagem veiculada pelo Palácio.

Nas “jornadas de junho”, manifestações multitudinárias falaram em “saúde” e “educação”, reivindicando direitos universais estranhos à lógica do supercorporativismo. Por isso, nervoso e assustado, o Partido as rotulou como uma “reação da direita”. Ah, bom…

Por: Demétrio Magnolo O Globo