sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

GUERRA DO PARAGUAI

Guerra do Paraguai: uma batalha que será sempre maldita. Mas o Brasil não é vilão

Com sólida base documental e metodológica, o historiador Francisco Doratioto, no livro “Maldita Guerra”, desfaz mitos antigos e recentes e reconstitui o maior conflito armado da história da América do Sul. Morreram mais de 100 mil pessoas. A Inglaterra não tinha interesse na contenda
Companhia das Letras
Francisco Doratioto, autor de “Maldita Guerra — Nova História da Guerra do Paraguai”, que reconstitui o cotidiano das tropas aliadas em uma das guerras mais sangrentas da América

Aquele era um homem incomum. Sob a proteção de seu pai, maior man­datário de seu país, teve uma carreira militar meteórica. Aos 19 anos, já era general de exército, e, aos 23, ministro da Guerra e da Marinha.

Em uma de suas idas a Paris, caiu de amores por uma bela cortesã irlandesa, tida como a “mulher mais linda de Paris”. Seu nome: Elisa Alicia Lynch. Ao ouvir falar de tamanha beleza, o poderoso rapaz não teve dúvidas: ordenou ao seu ajudante de ordens que a levasse, naquela mesma noite, ao hotel. “E não se importe com quanto possa custar”, disse ele ao ajudante. Após uma noite de amor, nasceu uma paixão ardente entre o jovem general e a bela irlandesa. A partir daí, os amantes se tornaram o mais poderoso casal do Paraguai — país que seria governado a mão de ferro pelo futuro ditador.

O irmão mais velho seria o sucessor escolhido pelo pai. Mas não foi. Numa manobra política, o amante de madame Lynch se tornou o vice-presidente dando, assim, uma rasteira no próprio irmão. No leito de morte do pai, um homem de espírito conciliador, recebeu dele o seguinte conselho: “O Paraguai tem muitas questões pendentes, mas não busque resolvê-las pela espada, mas sim pela caneta, principalmente, com o Brasil”.

A história mostrou que o conselho paterno não viria a ser seguido. No poder, o jovem general se tornou o ditador que levaria sua pátria à mais sangrenta guerra, que ceifou a vida de milhares de homens nela envolvidos. Uma “Maldita Guerra”, como bem disse um dos heróis brasileiros que dela participou: o marechal Caxias. Uma maldita guerra provocada pelo personagem dessa história. Guerra da qual o Brasil não queria participar. O conflito estava previsto para durar pouco tempo, mas este se arrastou por cinco longos anos, drenando as finanças e a vida de milhares de brasileiros do Brasil imperial — e de seus aliados. Além de condenar o país de Alfredo Stroessner ao que ele hoje é: uma nação sem futuro e sem confiança em si mesma. O personagem de que vos falo é Francisco Solano López. A guerra de que vos falo é a Guerra do Paraguai. Esta foi exaustivamente estudada, por longos 15 anos, por um pesquisador movido pela paixão inerente àqueles devotados aos estudos da história. Façamos uma breve apresentação do autor para, em seguida, mergulharmos na grandiosidade de sua obra.

Francisco Doratioto é graduado pela Universidade de São Paulo, com doutorado em His­tó­ria pela Universidade de Brasília. É professor da Universidade Católica de Brasília e do mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco. É também membro do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais e da Academia Paraguaia de História. É autor, entre outras obras, dos livros “General Osório”, “A República Bossa-Nova” e “Relações Brasil-Paraguai”.

Personagens e o ambiente da guerra

Vários personagens que atuaram na Guerra do Paraguai entraram para a história dos países diretamente envolvidos no conflito. De um lado, a tríplice aliança (união do Brasil, Argentina e Uruguai. Fala­remos, mais adiante, deste assunto); de outro, o Paraguai. Aliás, quanto à natureza do conflito, os escritos do professor Doratioto nos revelam que essa guerra só ocorreu devido à teimosia de Solano López, aliada à sua incapacidade de prever um quadro desfavorável para seu país. Vejamos alguns dados que nos ajudarão a entender esse desequilíbrio e, de certa forma, o prolongamento de uma guerra que a princípio se imaginava ser de curta duração.

Das nações envolvidas no conflito, o Brasil era o país que mais abertura tinha com o exterior. O intercâmbio mensurado na moeda mais forte da época (libras esterlinas inglesas) evidenciava esse fato. O país mantinha um intercâmbio comercial com o exterior de quase 24 milhões de libras; a Argentina quase 9 milhões; o Uruguai 3,6 milhões; e o Paraguai 560 mil.

Quanto à população, o Brasil, com 9,1 milhões de habitantes, era o país mais populoso. Habitava a Argentina 1,7 milhões de pessoas. No Uruguai, viviam 250 mil. O Paraguai era habitado por cerca de 400 mil pessoas.
Quanto ao efetivo do exército, o Paraguai se destacava dos outros participantes do conflito pelo nú­mero de efetivos. O país de Solano López contava com 77 mil homens no exército; o Brasil, 18 mil; a Argentina, 6 mil; e o Uruguai, 3 mil soldados.

Certamente, a considerável superioridade numérica do exército paraguaio, aliada à garra de seus soldados, contribuiu diretamente para o prolongamento do conflito. Nesse sentido, avalia o autor que, “durante toda a Guerra do Paraguai, as forças aliadas jamais chegaram a ter, operacionalmente, mais do que o dobro de homens do exército de Solano López, o que explica, em parte, a longa duração do conflito”.

Francisco Doratioto evidencia alguns aspectos que levaram o Paraguai a cometer erros de avaliação. Aliás, a avaliação e a decisão de entrada na guerra foram tomadas soberana e absolutamente por um homem só: Francisco Solano López, o dono do país e da alma do povo paraguaio.

Contribuíram para os equívocos do ditador a enorme inexperiência do corpo diplomático paraguaio e a inexistência de elos de comunicação que informassem a sociedade. De­talhe: no Paraguai praticamente inexistiam, na época, jornais. Como se isso não bastasse, o extremo autoritarismo de Solano López atenuava possíveis opiniões contrárias à sua. No entender do autor: “sua excessiva confiança [de Solano López] levou-o ao voluntarismo, a superestimar o poder nacional paraguaio e a fazer uma análise equivocada da correlação de forças militares e políticas no Prata [Bacia do Prata]”.

Se nos propusermos a elaborar um breve panorama dos acontecimentos que marcaram a “maldita guerra”, evidenciaremos fatos de distintas naturezas, como as personalidades que fizeram história, as divergências entre líderes dos exércitos aliados ou entre membros do governo, a liderança de Dom Pedro II no comando das decisões estratégicas e, lógico, a ousadia do ditador ao decidir desafiar a Argentina e invadir o Estado brasileiro do Mato Grosso, iniciando, assim, uma guerra que deveria ser curta.

O Impe­rador desempenhou com desenvoltura o papel que lhe cabia como chefe supremo da nação. Relatam os escritos de Doratioto que “Dom Pedro II fazia-se presente nos assuntos do governo e procurava manter-se a par de tudo, ao participar, inclusive, da condução da política externa brasileira”. No tocante, ainda, aos aspectos supra evidenciados, os escritos de Francisco Dora­tioto enfatizam a habilidade diplomática de José da Silva Para­nhos (fu­turo Barão do Rio Branco) no momento em que este evitou um conflito com aquele país cisplatino, conflito que, certamente, ceifaria a vida de muitos brasileiros. A habilidade política do diplomata bateria de frente com a rigidez de um militar que não aceitava as excessivas concessões feitas por Paranhos aos uruguaios. Fala-se do almirante Tamandaré. Daí surgiu o estopim que acirrou o conflito, qual seja, a provocação dos uruguaios com algo inconcebível para um militar da envergadura do almirante: a ofensa à bandeira brasileira. O “deixa para lá” de Pa­ranhos, em nome da paz construída, irritou não só o militar, mas a opinião pública brasileira. Re­sultado: amigo próximo do almirante e ouvindo o clamor das ruas, o Imperador não teve dúvidas: demitiu José Maria da Silva Paranhos. “Falta de dignidade [de Paranhos]. Só um militar pode sa­ber o que significa um insulto à ban­deira”, assim se expressou o almirante sobre o episódio. No fundo, as desavenças entre Para­nhos e o almirante tinham motivações políticas, pois o primeiro era integrante do partido conservador e o segundo, do partido liberal.

Entretanto a história mostraria que a verdade estava com Para­nhos. E essa realidade se evidenciou no momento em que o Uruguai seria um dos países a compor, com a Argentina e o Brasil, a Tríplice Aliança, que lutaria contra um inimigo comum. O futuro Visconde de Rio Branco acabaria exercendo um papel fundamental nos novos conflitos e viria a exigir algo inato, que José Maria Paranhos tinha de sobra: a imensa capacidade de negociar. Era ele um diplomata da mais alta qualidade.

Os escritos de Doratioto não deixam dúvidas de que o general Caxias — futuro duque de Caxias — foi, do lado brasileiro, o grande estrategista da Guerra do Paraguai. Caxias se constituiu no elemento pensante que deu um rumo no avanço das tropas em território paraguaio. Da sua mente, provieram os planos de invasão das tropas aliadas no território paraguaio. Do lado argentino, esse papel coube a outro nome de expressão que fez história no conflito: Bartolomé Mitre — comandante do exército aliado e, posteriormente, presidente da Argentina. Não restam dúvidas de que ambos, embora Mitre e Caxias expressassem suas divergências quanto ao modo de avanço das tropas em território paraguaio, foram nomes decisivos nos rumos da guerra.

Nesse sentido, o sucesso da invasão de uma fortaleza decisiva para vitória dos países aliados — Humaitá — em território paraguaio, suscitou dúvidas a quem atribuir o mérito estratégico que daria novos ru­mos ao conflito pró Tríplice Alian­ça. O mérito foi de Mitre ou de Caxias? Para uns, ele deve ser atribuído a Mitre; para outros, a Caxias.

As divergências entre Caxias e Mitre, comuns em situações de incerteza e decisões vitais para as nações envolvidas no conflito, nem um pouco macularam o relevante papel histórico que esses dois grandes homens tiveram na maldita guerra. De Caxias, patrono do exército brasileiro, não é preciso falar. Quanto à figura de Bartolomeu Mitre, intelectual de primeira linha, fundador de um dos jornais mais importantes da América Latina — “La Na­cion”—, além de presidente da República, vale ressaltar a simpatia que o Império tinha por ele. Assim relata o autor a respeito do modo positivo como o Império via a atuação do líder argentino na maldita guerra: “Não só por afinidades ideológicas, mas também por interesses concretos, que beneficiou a ação brasileira no Prata” .

Mito, curiosidades e humor

Teria sido a Guerra do Paraguai alimentada pela nação mais poderosa do mundo (na época, a In­gla­ter­ra) ante ao elevado nível de desenvolvimento daquele país na América do Sul? Este é um mito que os escritos do professor Francisco Do­ratioto procuram desmentir. Trata-se de uma inverdade histórica.

A começar pelos consideráveis investimentos que tinham os compatriotas de Shakespeare na terra de Solano López. Quanto a isso, relata o autor que “os projetos de infraestrutura guarani foram atendidos por bens de capital ingleses e os especialistas estrangeiros que os implementavam eram, em sua maioria, britânicos”.

Outra prova adicional que evidencia o desinteresse inglês pelo conflito se refere a uma carta do representante daquele país, na vizinha Argentina, que enfatizava a soberania do governo paraguaio que, a seu ver, “era o melhor juiz do que mais convém a sua pátria e não me compete dizer nada contra suas resoluções”. Assim, enunciou Edward Thornton, então, representante de sua majestade na terra do grande escritor Jorge Luis Borges.

Fatos curiosos ocorreram no transcorrer do conflito do Prata. O primeiro deles se refere à extrema necessidade de convocação de homens solteiros que não fossem arrimo de família para o exército. Resultado, para evitar esse destino, esses homens optavam por um desses caminhos: esconder-se na mata ou casar com mulheres mais velhas do que eles. “Se não quer ir para São Paulo assentar praça, há de casar com minha tia”, evidenciava uma charge de um jornal da época, em cuja situação um homem já velho aponta a tia para um jovem recruta.

Outro fato curioso ocorrido no transcorrer do conflito se refere a uma encomenda feita pelo governo brasileiro aos Estados Unidos, que se tornou uma novidade para a limitada tecnologia da época: a construção de um balão. O balão subia com dois observadores para espionar o terreno inimigo. A solução se mostrou ineficaz. Motivo: “o balão grande tinha diâmetro pouco mais de doze metros e exigia 37 mil pés cúbicos de hidrogênio e jamais se conseguiu enchê-lo totalmente”. Além disso, nevoeiros e as fogueiras feitas pelo exército paraguaio dificultavam a visão dos observadores. A sátira da época não perdoou a situação: “cara feia do inimigo”, descrevia uma charge da época com um observador de monóculo olhando lá de cima o traseiro dos soldados brasileiros.

As desavenças entre Caxias e Mitre se tornaram um prato cheio para os chargistas. Estes procuravam ironizar uma guerra que nunca terminava. Em uma dessas charges, aparecia o comandante brasileiro afiando espadas e baionetas num amolador com os seguintes dizeres: “A guerra continuará enquanto este grande amolador não tiver afiado, como pretende, todas as espadas e baionetas do exército brasileiro (temos muitíssimo tempo a esperar!)”.

Em outra situação, aparecia Bartolomeu Mitre sentado numa cadeira conversando com deus Mercúrio. Esta procurava ironizar o possível interesse do presidente da Argentina no prolongamento do conflito.

“Venho pedir a Vossa Excelência que volte para o teatro da guerra; os brasileiros não têm razão para desejarem seu prolongamento e são capazes de ajustar a paz, mais dia, menos dia...”, dizia Mercúrio a Mitre, e este responde “mas quem vos disse que desejo prolongar a guerra?”. Retruca Mercúrio: “Ora! Aqui entre nós, Vossa excelência quer reservas!? Pois não sabe que eu também sou mitrado?! Nada! Nada! É preciso voltar para a campanha: empenho-me com o deus do comércio, dos especuladores, etc. em favor das vossas e das algibeiras de vossos governados... é necessário que continue a pepineira?”.

O desenrolar da guerra

O que pretendia Solano López ao invadir o Mato Grosso (invadido em 27 de dezembro de 1864 e ocupado até abril de 1868), Corrientes, na Argentina (13 de abril a 5 de outubro de 1865), o Rio Grande do Sul (10 de junho a 18 de setembro de 1865), constituiu-se num mistério que ainda requer muita investigação histórica. Solano López “atuava na guerra antes como um jogador disposto a fazer apostas arriscadas do que como um general ousado que usava as informações disponíveis para montar estratégias viáveis”. Um general ousado que invadia sem planejar. Isso se mostrou uma verdade no momento em que os soldados paraguaios ficaram sem mantimentos ante a invasão do Rio Grande do Sul, invasão essa ocorrida após a derrota naval sofrida pelos paraguaios na Batalha do Riachuelo. Vale ressaltar que os almirantes Tamandaré e Barroso foram os nomes que fizeram história nessa batalha, que foi certamente a maior vitória já obtida pela marinha brasileira. A invasão do Rio Grande do Sul demorou mais tempo do que se previa, desse modo, levando o exército a ficar sem comida. Quanto a isso, nos diz o autor que, “para se sustentarem, recorreram [os soldados] a carne de cavalo, de gatos, de cachorros, de ratos e mesmo de insetos, que encontravam no in­terior dos muros. Muitos desses soldados adoeciam, quer por fome ou alimentação inadequada, quer por doenças decorrentes das más condições higiênicas, pois os restos dos animais devorados ficavam amontoados pela vila, tornando-se foco de doenças”. Mas comer comida estragada não era “privilégio” só dos paraguaios, o exército brasileiro também a ingeriu: “Fosse qual fosse a comida, as moscas eram tantas que dificilmente ela era ingerida sem uma dúzia delas”.

O fato que se constata é que, depois desses acontecimentos, consolidou-se a chamada Tríplice A­liança entre o Brasil, Uruguai e Ar­gen­tina contra um inimigo comum: o Paraguai. O Paraguai se transformou num imenso campo de batalha en­tre as tropas aliadas e os soldados de Solano López. De 5 de abril de 1866 a 1 de março de 1870, os combates se deram no território paraguaio, principalmente, em torno do maior obstáculo a ser vencido pelas tropas aliadas: a Fortaleza de Humaitá.

Vencer Humaitá era de fato estratégico para ganhar a guerra. Doratioto relata que, “durante dois anos, os aliados ficaram imobilizados em Tuiuti, emboscados pelos paraguaios, tateando, em meio ao matagal e pântanos, na busca de uma alternativa para alcançar Humaitá”. Detalhe: para quem desconhece o fato histórico, vale ressaltar a seguinte informação a respeito da batalha de Tuiuti — foi a mais sangrenta batalha travada em território paraguaio e envolveu cerca de 50 mil soldados de ambos os lados.

O primeiro comandante do exército brasileiro em território paraguaio foi um general de grande prestígio junto a seus comandados: Osório. Relata-nos o autor que “ele foi, sem dúvida, o oficial brasileiro mais admirado pela tropa aliada, cultivando excelentes relações com seus colegas argentinos, e respeitado também pelo inimigo”. Osório foi o responsável pela operação que levou os aliados a vencerem a batalha de Tuiuti. Problemas de saúde o afastaram do campo de batalha. Entre outros, comandaram as forças brasileiras, além de Osório e Wenceslao Paunero, o genro de Dom Pedro II — o conde d’Eu, vale ressaltar o nome que se tornou uma lenda no conflito da guerra cisplatina: o marechal Luis Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias. Caxias assumiu o comando do exército brasileiro após a derrota das tropas aliadas na batalha de Curupaiti, na qual morreram cerca de 4 mil homens das tropas aliadas. Em Curupaiti, Solano López mostrou que estava mais vivo do que nunca. Aliado a isso, desentendimentos entre os chefes aliados influenciaram para o desânimo das tropas.

Os escritos de Doratioto são enfáticos quando se referem ao patrono do exército brasileiro: “A ninguém se podia confiar tanta autoridade a não ser a Caxias, por ser o militar brasileiro mais importante, ‘tanto com respeito à patente, como pelo prestígio de que goza’”.

E Caxias mostrou a que viera. Sua liderança e seu senso estratégico, aliados à preocupação em dotar o exército de equipamentos modernos, foram decisivos para o significativo avanço que teve as tropas em território paraguaio. O uso de balões de observação (piadas à parte) e as instalações de telégrafos implementados por Caxias não só deram mais agilidade às comunicações, como também possibilitaram o avanço das tropas em território inimigo e a tomada do mais importante obstáculo ao avanço dos aliados na terra de Solano López: a Fortaleza de Humaitá. Tomada Humaitá, Caxias implementou a caçada a Solano López, entretanto este, fugindo pelo interior do país, conseguiu, por mais um ano, prolongar o que todos queriam que terminasse: a maldita guerra.

Caxias queria o fim da guerra com a queda de Humaitá. Para ele, “já tiramos uma boa desforra do López, pois o Paraguai ficará arrasado por 50 anos pelo menos”. Mas o Imperador foi irredutível. O conflito de fato só acabaria quando López deixasse de mandar no país. E assim “o pacífico monarca amigo das artes, imagem que Pedro II possuía até a invasão paraguaia do território brasileiro, transformou-se no senhor da guerra, no governante inflexível”.

A história militar oficial procurou construir, em relação ao patrono do exército brasileiro, o perfil de ho­mem ideal e possuidor de coragem, pa­triotismo e integridade. Não restam dúvidas de que o marechal tinha muitas qualidades, mas, como ser hu­mano, também, tinha lá seus de­feitos. Nesse sentido, os escritos de inegável fôlego intelectual de Do­ra­tioto apontam certo amesquinhamento de Caxias ao procurar diminuir a figuras de Mitre e Osório que, co­mo ele, tinham também seus méritos.

Caxias mais acertou do que errou no comando das tropas brasileiras no Paraguai. Certamente, um erro que cometeu, o qual provocou a ira do Imperador e da opinião pública, foi deixar escapar Solano López quando tinha plenas condições de capturá-lo.

A seu ver, isso abreviaria o final do conflito. A estratégia não deu certo, pois o ditador conseguiu resistir adiando, assim, por 15 longos meses o final daquilo que todos estavam ansiosos por terminar: a maldita guerra. Caxias retirou-se do front da guerra sem esperar ordens superiores. Sua saída voluntária do comando das tropas deixou um vácuo de liderança que se agravava ante a extrema politização que existia no exército entre liberais e conservadores. A substituição do marechal acabou sendo uma difícil decisão para o poder moderador do Imperador tomar. Este acabou optando por uma solução que lhe parecia a mais conciliadora: a nomeação, muito a contragosto, do conde D’Eu. Este, como sabemos, era marido da Princesa Isabel.

A nomeação de um membro da família real foi a saída política encontrada por Dom Pedro II. Procurava, dessa maneira, arrefecer os ânimos políticos da época. O conde, com patente de capitão obtida na Escola Militar de Segóvia, na Espanha, tinha participado da Guerra do Marrocos. Parecia ser essa a solução mais adequada: um membro da família real e militar de formação reergueria o moral das tropas. Os fatos históricos mostraram ser essa uma inverdade, pois o marido da Princesa Isabel era um homem de espírito mais voltado para as glórias da guerra do que para o comando em si, ainda mais em condições tão inóspitas como eram aquelas travadas no front paraguaio. O desânimo tomou conta do genro do Imperador.

Embora fosse um símbolo, a presença militar do conde D’Eu acabou por se tornar inútil em terras paraguaias.

No entender de Doratioto, “é justo concluir que o príncipe consorte não queria enfrentar as durezas da guerra, para a qual não tinha competência. A memória dos milhares de mortos brasileiros na guerra, bem como o sacrifício dos combatentes, quase todos pessoas comuns e ex-escravos uma parte, que há anos permaneciam no inferno paraguaio, lutando como podiam, mereciam um comandante-em-chefe mais digno”.

Caçada a Solano López

A cena era comum naqueles longos 15 meses, no inferno no qual se constituiu o interior do Paraguai, ao final da maldita guerra: de um lado, Solano López e seu exército de crianças (convocadas a partir de 10 anos), adolescentes e velhos; de outro, as tropas brasileiras já exaustas que seguiam em torno de seu principal objetivo: a captura do ditador. O que restava pelo caminho era a face mais visível dos horrores da guerra que as cenas por si, descritas com precisão por Doratioto, revelam: “Uma criança paraguaia gritava a um companheiro ferido, mas de pé: ‘amigo, mata-me por favor!’ E o outro, acudindo à cruel imploração, desfechou-lhe um tiro à queima-roupa”.

“O campo ficou cheio de mortos e feridos do inimigo, entre os quais, causavam-nos grande pena, pelo avultado número, os soldadinhos, cobertos de sangue, com as perninhas quebradas, não tendo alguns ainda atingido a puberdade. Como eram valentes para o fogo os pobres meninos! Que luta terrível aquela entre a piedade cristã e o dever militar! Os nossos soldados diziam que não dava gosto a gente brigar com tanta criança”.

“Em janeiro de 1870, houve uma nova execução em grande escala de supostos traidores, entre eles, por lança, a ‘belíssima’ Francisca Garmendia, da qual, no final dos anos de 1850, o jovem Solano López tentara se aproximar e fora repelido. Em Igatemí e Panadero, ocorreram novas execuções, com as novas vítimas sendo executadas com lanças para economizar balas e pólvora. Os soldados que portavam as lanças estavam tão enfraquecidos pela fome que não conseguiam fazer as execuções na primeira estocada da lança. Eram necessários ‘seis ou sete golpes para acabar com o sentenciado, que se retorce e geme de dor, rolando pelo solo ao tentar se esquivar da estocada’. Dos acusados de traição, Venâncio López teve a pior sorte. Foi açoitado diariamente, durante toda prolongada marcha, que fez nu, com o corpo coberto de feridas, pois era arrastado pelo chão com uma corda amarrada na cintura.”

Detalhe: Venâncio López era irmão de Solano López. Destinos semelhantes teriam suas irmãs. Estas seriam também executadas se a guerra não tivesse terminado. Como se vê, a ira do ditador era implacável com todos, inclusive com sua própria família.

Pintura de Pedro Américo sobre a Batalha de Avaí na Guerra do Paraguai

A implacável e exaustiva caçada a Solano López chegou ao fim numa cordilheira ao norte do Paraguai: Cerro Corá, 4.500 soldados aliados de um lado contra 450 soldados paraguaios de outro. Os aliados cercaram o ditador que tentou fugir. Entretanto um fato o distinguiu de seus comandados: era o único gordo entre esqueléticos soldados.

Na tentativa de fuga, o senhor absoluto de todas as almas paraguaias foi ferido com um golpe de lança deferido pelo cabo Francisco Lacerda (que entrou para a história com o codinome de “Chico Diabo”), caiu ele ferido às margens do arroio Aquidabán. As ordens eram para que o ditador fosse capturado vivo. Era, todavia, pedir demais para soldados que vinham de longos sofrimentos nos terríveis campos de batalha paraguaios.

“Ia ordenar que o agarrassem para a terra, quando um soldado disparou, por detrás de mim, um tiro que o matou.” Assim relatou o comandante da tropa — general Câmara — à esposa a forma como morreu Solano López. Com a morte do ditador, terminou, enfim, a maldita guerra. Entretanto, com a sua morte, jamais se extinguiu o rastro de sangue que ele deixou no maior conflito armado da história da América do Sul. Solano López entrou para história como um sanguinário. Nas devidas proporções, foi o Hitler da América do Sul.

Consequências da guerra

Que consequências trouxeram tanto banho de sangue na história dos países envolvidos no conflito? Certamente, muitas, mas que a impossibilidade de espaço não permite enumerá-las. Falemos das principais.

Aproximadamente, 50 mil paraguaios, 33 mil brasileiros, 18 mil argentinos, 5 mil uruguaios — enfim: mais de 100 mil seres humanos morreram na guerra do Paraguai. O número não é preciso, por essa razão optamos pela opinião média dos historiadores.

É inegável que os vencedores — principalmente o Brasil e a Argentina — redefiniram suas fronteiras na região do Prata. No tocante ao Brasil, a Guerra do Paraguai acelerou internamente o conflito que se desenvolvia entre o exército e a monarquia, resultando, anos depois, na Proclamação da Re­pública. O Paraguai, certamente, pagou o preço do perdedor, e o mais pesado deles foi a ruptura de um modelo de desenvolvimento que se mostrava, antes da guerra, dinâmico e promissor.

Após o conflito, a terra guarani imergiu em um estado de total letargia presa às mais profundas amarras do subdesenvolvimento. Tudo precisava ser reconstruído, infraestrutura, nascimento de novas gerações ante as significativas perdas humanas da população, educação, saúde — enfim — a confiança em si mesmo que toda nação necessita para prosperar. Ao contrário do previsto, passados mais de 150 anos do conflito, o Paraguai não se recuperou do fantasma de Solano López.

Por: Salatiel Soares Correia, engenheiro, é mestre em Planejamento pela Unicamp.
Publicado no Jornal Opção

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Sazonalmente, recebo mensagens de leitores que me perguntam por livros fundamentais no mundo da política. Respondo. Melhor, vou respondendo. E é provável que, nas canseiras do dia, os meus disparos tenham alvos diversos: um Aristóteles aqui; um Maquiavel ali; um Locke mais além.


Mas quando penso demoradamente no assunto, consultando os meus neurônios com uma contemplação digna de Montaigne, percebo que nunca sugeri um amigo dele, autor de um ensaio crucial na biblioteca de qualquer cavalheiro que se preze.

Verdade que o autor em questão escreveu o texto na juventude para depois o renegar. Não vou especular sobre esse gesto (outras histórias). Exceto para dizer que o mal estava feito e, no meu caso, a cabeça do cronista já estava formatada pelas palavras do sr. Étienne de la Boétie (1530 - 1563).

O nome não figura como deveria nos grandes compêndios do pensamento político, embora a importância do francês seja imensa na Europa continental. Sem referir, claro, as palavras que o amigo Montaigne lhe dedicou nos seus ensaios.

O texto em causa intitula-se "Discurso sobre a Servidão Voluntária" e, com a devida vênia a todos os anarquistas posteriores, que só impropriamente podem ser considerados discípulos de Boétie, não encontro reflexão mais brilhante sobre a natureza da tirania –e, atenção, sobre a natureza daqueles que se submetem ao tirano.

Porque essa é a questão que anima o ensaio. Como é possível que homens, cidadãos, nações inteiras possam sofrer privações mil às mãos de uma única criatura?

O tirano, afirma Boétie olhando para a história clássica, é normalmente a figura mais ridícula e "efeminada" que existe. Raramente é um Hércules, raramente é um Sansão. Para usar a magistral prosa de Boétie, ele é "um estranho ao poder da batalha", um estranho "nas areias do torneio".

E, no entanto, é aos pés dessa anedota que os homens voluntariamente se escravizam. A ela concedem poder; a ela entregam as chaves das suas próprias correntes. Como explicar esse espantoso fenômeno?

Por interesse, dirá Boétie, referindo-se a uma minoria. Gente de igual caráter aproxima-se do tirano para lucrar alguma coisa com ele. Mas, mesmo sobre essa gente vil, as perguntas do autor são as mesmas: que existência será a dos rastejantes quando passam o dia tentando agradar à pessoa que mais temem?

E, quando não são os pequenos tiranos a submeterem-se à grande tirania, é o resto da nação em peso a fazê-lo, o que torna a servidão voluntária ainda mais insondável.

Boétie arrisca uma hipótese: quando a tirania começou, é possível que as primeiras vítimas tenham sentido o fato como uma privação fundamental.

Mas o tirano só sobrevive porque a servidão torna-se uma espécie de tradição. Gerações passam, a memória do crime apaga-se. E, para quem nunca conheceu um regime de liberdade, viver sem liberdade parece a mais natural das condições.

A proposta final de Boétie é, logicamente, simples: não é preciso lutar contra o tirano para terminar com o abuso; basta que um povo inteiro não colabore mais na sua própria escravidão. "Sem madeira, o fogo apaga-se", escreve metaforicamente o autor. E o Colosso, sem pedestal, quebra-se em mil pedaços, conclui.

O texto foi escrito no século 16. Mas é impossível não pensar no jovem Boétie quando olhamos para o nosso tempo.

Tivemos ditaduras que sobreviveram obscenamente. Não apenas pelo aparato policial que elas promoveram. Mas também porque milhares, milhões de seres humanos permitiram que elas sobrevivessem. Como? Entrando voluntariamente no curral.

Curiosamente, se Boétie teve herdeiros, eles encontram-se nos intelectuais do Leste da Europa que lutaram contra o comunismo. Nomes como Václav Havel que, ao apelarem para "o poder dos sem poder", repetia o que Boétie dissera antes dele: um povo que não é cúmplice da mentira também não será cúmplice da sua própria servidão.

E, se o leitor pensa que o texto de Boétie só se aplica às tiranias históricas, desengane-se: ele tem igual valia para as pequenas tiranias cotidianas. O dilema, ontem como hoje, permanece: por que motivo tantos de nós se submetem aos caprichos de um só –um político, um chefe, um amante?

Se os homens repetissem mais vezes essa pergunta e agissem em conformidade, a máquina que os oprime pararia no minuto seguinte. 
Por: João pereira Coutinho Publicado na Folha de SP



quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

OS NOVOS POBRES DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Era necessário encontrar um novo tipo de "pobre", pois não serviriam mais os tais "despossuídos" das décadas de 80 e 90.


Vocês já notaram que a "opção preferencial pelos pobres" foi desaparecendo ou se ressignificando no vocabulário da teologia da libertação" (TL)? Isto se deve a dois motivos principais:

- em primeiro lugar, à compreensão que o movimento revolucionário teve de que a "revolução sexual" era mais importante do que se imaginava a princípio, pois chegaram à conclusão de que era a família, e não propriamente a propriedade privada, a origem da psicologia do poder, verdadeira causa da desigualdade sócio-econômica.

- em segundo lugar, ao fato de que, com a ascensão dos partidos socialistas ao poder na América Latina, falar sobre os "pobres" seria um "tiro no pé", e isto para qualquer uma das facções comunistas. Como eles louvam dia e noite o presumido fato de que retiraram não sei quantos milhões da pobreza, teologar sobre ela seria um contra-senso, uma anti-propaganda.

Contudo, como dizia Marilena Chauí num seu odioso vídeo, o discurso TL-petista tem um vício que contradiz seu intento revolucionário: dizendo ter melhorado a vida do pobre, o único resultado que alcançaram foi expandir a classe média, a pseudo-burguesia que eles tanto odeiam.

Por isso, era necessário encontrar um novo tipo de "pobre", pois não serviriam mais os tais "despossuídos" das décadas de 80 e 90. E eles o encontraram naquilo que Gramsci chamava de lumpemproletariado, aquele estrato maltrapilho (moral e economicamente) da população, que sempre existe e existirá em qualquer sociedade.

Os novos pobres são os gays, as prostitutas, os delinquentes, os pervertidos morais, os cultivadores de lixo cultural, da anti-arte, os satanistas, enfim, aqueles que sempre foram considerados elementos desagregadores da sociedade.

Além destes, para dissimularem um pouco este horror grotesco, forjaram ainda outro tipo de pobre: a natureza, e aderiram ao discurso ecologista, trocando a "opção pelos pobres" por uma "opção pela vida", não necessariamente humana, e quanto mais se entra dentro do submundo "intelectual" do partido, necessariamente não-humana (os eco-teólogos-libertadores já chegaram a escrever que o homem é um vírus no planeta, e que deveria ser eliminado).

A ironia por trás de toda esta estupidez é o fato de que, pelo menos no âmbito da teologia da libertação, aquilo que se dizia nas décadas passadas quando se alegava que a Igreja sempre optou pelos pobres e não necessitava da TL para fazê-lo (vide o exemplo de S. Francisco e dos frades mendicantes) era que o mérito da TL consistia no fato de ter descoberto o "pobre como classe econômica", como "categoria teológica".

Agora, os fatos demonstram que a alegação era tão falsa como a abordagem teológica mesma. Os pobres são tão descartáveis nela quanto estas mesmas novas suas definições. A única coisa a que se prestam é à aquisição ou manutenção do poder político, utilizando-se a Igreja como instrumento para chegar a ele.

Não se admirem caso dentro de alguns meses as paróquias comecem a ser invadidas pelolumpemproletariado, e ao seu lado esteja alguém que você nunca imaginou que pudesse estar dentro duma Igreja. Na década de 80, quando as comunidades começaram a ser invadidas pelos comunistas, que até então se declaravam ateus, aquilo parecia impossível. Hoje, duplas LGBT querem batizar seus "filhos", apadrinhar filhos alheios, assentar seus novos nomes transex nos registros paroquiais e até mesmo casarem-se na igreja.

Alguns pensam que isto é casual, "sinal dos tempos". Não o é. São os novos pobres da TL que estão chegando, com Bíblia Pastoral nas axilas e cartilhas da PJ de tira-colo. O discurso está pronto e há quem o defenda. Oxalá estejamos preparados para desmascarar o ardil, e revelar que ninguém está preocupado com eles e com sua conversão, mas apenas em usá-los como instrumento de subversão, de domínio e de permanência no poder. Afinal de contas, se acabarem com o lumpemproletariado, não haverá mais revolução. Urge, então, mantê-los na delinquência moral, e até criar uma "moral" teológica para os manter aí. Caso contrário, também eles aderirão à moral burguesa, cristã, conservadora. E de tal mal, livre-nos Gaia, valha-nos Marilena Chauí. 
Por: Pe. José Eduardo  Do site: www.midiasemmascara.org

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

UM CADÁVER NO PODER(II)

Intelectualmente e teologicamente, a TL está morta há três décadas. Mas ela nunca foi um movimento intelectual e teológico. Foi e é um movimento político adornado por pretextos teológicos artificiosos e de uma leviandade sem par.

Volto à análise da Teologia da Libertação.

Se a coisa e até o nome que a designa vieram prontos da KGB, isso não quer dizer que seus pais adotivos, Gutierrez, Boff e Frei Betto, não tenham tido nenhum mérito na sua disseminação pelo mundo. Ao contrário, eles desempenharam um papel crucial nas vitórias da TL e no mistério da sua longa sobrevivência.

Os três, mas principalmente os dois brasileiros, atuaram sempre e simultaneamente em dois planos. De um lado, produzindo artificiosas argumentações teológicas para uso do clero, dos intelectuais e da Curia romana. De outro lado, espalhando sermões e discursos populares e devotando-se intensamente à criação da rede de militância que se notabilizaria com o nome de “comunidades eclesiais de base” e viria a constituir a semente do Partido dos Trabalhadores. “Base” é aliás o termo técnico usado tradicionalmente nos partidos comunistas para designar a militância, distinguindo-a dos líderes. Sua adoção pela TL não foi mera coincidência. Quando os pastores se transformaram em comissários políticos, o rebanho tinha mesmo de tornar-se “base”.

No seu livro E a Igreja se Fez Povo, de 1988, Boff confessa que foi tudo um “plano ousado”, concebido segundo as linhas da estratégia da lenta e sutil “ocupação de espaços” preconizada pelo fundador do Partido Comunista Italiano, Antonio Gramsci. Tratava-se de ir preenchendo aos poucos todos os postos decisivos nos seminários e nas universidades leigas, nas ordens religiosas, na mídia católica e na hierarquia eclesiástica, sem muito alarde, até chegar a época em que a grande revolução pudesse exibir-se a céu aberto.

Logo após o conclave que o elegeu, em 1978, o papa João Paulo I teve um encontro com vinte cardeais latino-americanos e ficou muito impressionado com o fato de que a maioria deles apoiava ostensivamente a Teologia da Libertação. Informaram-lhe, na ocasião, que já havia mais de cem mil “comunidades eclesiais de base” disseminando a propaganda revolucionária na América Latina. Até então, João Paulo I conhecia a TL apenas como especulação teórica. Nem de longe imaginava que ela pudesse ter se transformado numa força política de tais dimensões.

Em 1984, quando o cardeal Ratzinger começou a desmontar os argumentos teóricos da “Teologia da Libertação”, já fazia quatro anos que as “comunidades eclesiais de base” tinham se transfigurado num partido de massas, o Partido dos Trabalhadores, cuja militância ignora maciçamente quaisquer especulações teológicas, mas jura que Jesus Cristo era socialista porque assim dizem os líderes do partido.

Dito de outro modo, a pretensa argumentação teológica já tinha cumprido o seu papel de alimentar discussões e minar a autoridade da Igreja, e fôra substituída, funcionalmente, pela pregação aberta do socialismo, onde o esforço aparentemente erudito de aproximar cristianismo e marxismo cedia o passo ao manejo de chavões baratos e jogos de palavras nos quais a militância não procurava nem encontrava uma argumentação racional, mas apenas os símbolos que expressavam e reforçavam a sua unidade grupal e o seu espírito de luta.

O sucesso deste segundo empreendimento foi proporcional ao fracasso do trio na esfera propriamente teológica. É possível que na Europa ou nos EUA um formador de opinião com pretensões de liderança não sobreviva à sua desmoralização intelectual, mas na América Latina, e especialmente no Brasil, a massa militante está a léguas de distância de qualquer preocupação intelectual e continuará dando credibilidade ao seu líder enquanto este dispuser de um suporte político-partidário suficiente.

No caso de Boff e Betto, esse suporte foi nada menos que formidável. Fracassadas as guerrilhas espalhadas em todo o continente pela OLAS, Organización Latino-Americana de Solidariedad fundada por Fidel Castro em 1966, a militância se refugiou maciçamente nas organizações da esquerda não-militar, que iam colocando em prática as idéias de Antonio Gramsci sobre a “ocupação de espaços” e a “revolução cultural”. A estratégia de Gramsci usava a infiltração maciça de agentes comunistas em todos os órgãos da sociedade civil, especialmente ensino e mídia, para disseminar propostas comunistas pontuais, isoladas, sem rótulo de comunismo, de modo a obter pouco a pouco um efeito de conjunto no qual ninguém visse nada de propaganda comunista mas no qual o Partido, ou organização equivalente, acabasse controlando mentalmente a sociedade com “o poder invisível e onipresente de um mandamento divino, de um imperativo categórico” (sic).

Nenhum instrumento se prestava melhor a esse fim do que as “comunidades eclesiais de base”, onde as propostas comunistas podiam ser vendidas com o rótulo de cristianismo. No Brasil, o crescimento avassalador dessas organizações resultou, em 1980, na fundação do Partido dos Trabalhadores, que se apresentou inicialmente como um inocente movimento sindicalista da esquerda cristã e só aos poucos foi revelando os seus vínculos profundos com o governo de Cuba e com várias organizações de guerrilheiros e narcotraficantes. O líder maior do Partido, Luís Inácio “Lula” da Silva, sempre reconheceu Boff e Betto como mentores da organização e dele próprio.

Nascido no bojo do comunismo latino-americano por intermédio das “comunidades eclesiais de base”, o Partido não demoraria a devolver o favor recebido, fundando, em 1990, uma entidade sob a denominação gramscianamente anódina de “Foro de São Paulo”, destinada a unificar as várias correntes de esquerda e a tornar-se o centro de comando estratégico do movimento comunista no continente.

Segundo depoimento do próprio Frei Betto, a decisão de criar o Foro de São Paulo foi tomada numa reunião entre ele, Lula e Fidel Castro, em Havana. Durante dezessete anos o Foro cresceu em segredo, chegando a reunir aproximadamente duzentas organizações filiadas, misturando partidos legalmente constituídos, grupos de seqüestradores como o MIR chileno e quadrilhas de narcotraficantes como as Farc, que juravam nada ter com o tráfico de drogas mas então já costumavam trocar anualmente duzentas toneladas de cocaína colombiana por armas contrabandeadas do Líbano pelo traficante brasileiro Fernandinho Beira-Mar.

Quando Lula foi eleito presidente do Brasil, em 2002, o Foro de São Paulo já havia se tornado a maior e mais poderosa organição política em ação no território latino-americano em qualquer época, mas sua existência era totalmente desconhecida pela população e, quando denunciada por algum investigador, cinicamente negada. O bloqueio chegou ao seu ponto mais intenso quando, em 2005, o sr. Lula, já presidente do Brasil, confessou em detalhes a existência e as atividades do Foro de São Paulo. O discurso foi publicado na página oficial da Presidência da República, mas mesmo assim a grande mídia em peso insistiu em fingir que não sabia de nada.

Por fim, em 2007, o próprio Partido dos Trabalhadores, sentindo que o manto de segredo protetivo já não era necessário, passou a alardear aos quatro ventos os feitos do Foro de São Paulo, como se fossem coisa banal e arqui-sabida. Somente aí os jornais admitiram falar do assunto.

Por que o segredo podia agora ser revelado? Porque, no Brasil, toda oposição ideológica tinha sido eliminada, restando apenas sob o nome de “política” as disputas de cargos e as acusações de corrupção vindas de dentro da própria esquerda; ao passo que, na escala continental, os partidos membros do Foro de São Paulo já dominavam doze países. As “comunidades eclesiais de base” haviam chegado ao poder. Quem, a essa altura, iria se preocupar com discussões teológicas ou com objeções etéreas feitas vinte anos antes por um cardeal que levara a sério o sentido literal dos textos e mal chegara a arranhar a superfície política do problema?

Nos doze anos em que permaneceu no poder, o PT expulsou do cenário toda oposição conservadora, partilhando o espaço político com alguns aliados mais enragés e com uma branda oposição de centro-esquerda, e governou mediante compras de consciências, assassinatos de inconvenientes e a apropriação sistemática de verbas de empresas estatais para financiar o crescimento do partido. A escalada da cleptocracia culminou no episódio da Petrobrás, onde o desvio subiu à escala dos trilhões de reais, configurando, segundo a mídia internacional, o maior caso de corrupção empresarial de todos os tempos. Essa sucessão de escândalos provocou algum malestar na própria esquerda e constantes reclamações na mídia, levando a intelligentzia petista a mobilizar-se em massa para defender o partido. Há mais de uma década os srs. Betto e Boff estão ocupados com essa atividade, na qual a teologia só entra como eventual fornecedora de figuras de linguagem para adornar a propaganda partidária. A TL havia assumido, finalmente, sua mais profunda vocação.

Quem quer que leia os escritos de Gutierrez, Boff e Betto descobre facilmente as suas múltiplas inconsistências e contradições. Elas revelam que esse material não resultou de nenhum esforço teorizante muito sério, mas do mero intuito de manter os teólogos de Roma ocupados em complexas refutações teológicas enquanto a rede militante se espalhava por toda a América Latina, atingindo sobretudo populações pobres desprovidas de qualquer interesse ou capacidade de acompanhar essas altas discussões.

Os boiadeiros chamam isso de “boi-de-piranha”: jogam um boi no rio para que os peixes carnívoros fiquem ocupados em devorá-lo, enquanto uns metros mais adiante a boiada atravessa as aguas em segurança.

Intelectualmente e teologicamente, a TL está morta há três décadas. Mas ela nunca foi um movimento intelectual e teológico. Foi e é um movimento político adornado por pretextos teológicos artificiosos e de uma leviandade sem par, lançados nas águas de Roma a título de “boi de piranha”. A boiada passou, dominou o território e não existem piranhas de terra firme que possam ameaçá-la.

Sim, a TL está morta, mas o seu cadáver, elevado ao posto mais alto da hierarquia de comando, pesa sobre todo um continente, oprimindo-o, sufocando-o e travando todos os seus movimentos. A América Latina é hoje governada por um defunto.
Por: Olavo de carvalho Publicado no Diário do Comércio. http://olavodecarvalho.org

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

ESPARTA GANHA NA EUROPA

Como bem disse Thomas Sowell: “Os fracassos do socialismo são tão evidentes que somente podem ser ignorados pelos intelectuais”.


Está na hora de a Europa tomar consciência de que sua crise é a crise do socialismo.

Tal como era de se esperar, ganhou a esquerda na Grécia. Como não? Porém, o problema com a Europa é: e o que NÃO É esquerda? Em que país da União Européia hoje não impera o socialismo? Quando Sarkozy, supostamente de direita, governava a França, o gasto público já havia alcançado 57% do PIB e a dívida 125%. Ocorre-me que não parece definível a diferença entre esquerda e direita, além da confusão que impera como conseqüência de que a esquerda considera o fascismo de direita. Conforme esse critério, os Founding Fathers seriam considerados de extrema-direita. Ou seja, que de acordo com a esquerda, que monopolizou a ética, o respeito ao direito de propriedade e a busca da própria felicidade são os determinantes da desigualdade econômica.

Frente a essa confusão ideológica, permitam-me lembrar que o fascismo foi um derivado do socialismo. Foi Lênin que, ao se dar conta do fracasso da economia comunista, propôs e escreveu a NEP (Nova Economia Política), e escreveu: “Os capitalistas estão operando entre nós. Estão operando como ladrões. Fazem lucros mas sabem como fazer as coisas”. 

Igualmente Hayek em seu “Caminho da Servidão”, descreveu claramente as fontes socialistas do nazismo, que é fascismo a la alemã. E Ernst Nolte, em sua análise filosófica do fascismo, chegou à seguinte conclusão: 

“Fascismo é o anti-marxismo que pretende destruir o inimigo pela evolução de uma oposta mas relacionada ideologia, e mediante o uso de quase idênticos mas modificados métodos, sempre, todavia, dentro de um inflexível marco de auto-determinação nacional e autonomia”.

No meio desta confusão ideológica se produziu o triunfo do suposto líder da extrema-esquerda grega, o Sr. Tsipras, nas recentes eleições na Grécia. Tenho a impressão de que continua o triunfo de Esparta sobre Atenas, e Licurgo e Platão estão presentes em um país que enfrenta uma dívida de 321.700 milhões de euros e alcança 175% do PIB. Qual é a proposta? Acaso pode-se acreditar que a Grécia pode pagar essa dívida? Porém, mais confuso continua sendo o fato que põe de manifesto a falácia da esquerda de confundir o fascismo com a direita. O Sr. Tsipras chegou ao poder associado com o partido de ultra-direita “Gregos Independentes”, que coincide com a posição de se negar a aceitar a austeridade proposta pela Alemanha. E, certamente, para maior confusão ideológica, Marine Le Pen, a representante do Partido Nacionalista francês, apoiou o triunfo de Tsipras.

Em virtude destas, que considero realidades políticas e ideológicas, França, Itália e Espanha, e certamente a Grécia, se opõem às medidas de austeridade propostas pela Alemanha. 

Recentemente, Mario Draghi, presidente do BCE, determinou uma política de expansão monetária comprando bônus. Ante esta opção, não só existe uma diversidade de opinião senão que aparentemente prevalece o nacionalismo tradicional europeu. Em primeiro lugar, a causa desse desequilíbrio gerou-se como conseqüência do aumento do gasto público, que provocou, com uma relativa exceção da Alemanha, uma dívida, que embora não alcance à da Grécia, aparece igualmente impagável. Remeto-me às provas. O gasto público na França alcança 57% do PIB, na Itália 50%, na Inglaterra 46,9%, na Espanha 47,9% e na Alemanha 44,8% (dados do FMI do ano de 2012). Segundo os dados de The Economist, o déficit fiscal da França em 2014 alcançou 4,4% do PIB, na Espanha 5,6%, na Itália 3,0% e certamente na Grécia 4,0%.

Ante esses dados podemos ver que dificilmente a dívida européia possa ser paga, e não deveria caber dúvidas de que a política a seguir a fim de superar o desequilíbrio pendente passa inexoravelmente pela redução do gasto público. Como bem assinalou Milton Friedman e recordam os economistas: “O que importa não é o déficit, senão o gasto”. Esta realidade implica em primeiro lugar que, na medida em que o gasto público aumenta, reduz-se a taxa de crescimento econômico. Portanto, não deveria haver dúvidas a respeito de que a política a seguir para solucionar a crise européia passa inexoravelmente pela redução do gasto. Esse nível de gasto é o produto do chamado Estado de Bem-estar. E esse estado de bem-estar, que não é mais que o socialismo via demagogia democrática da pretensão da igualdade econômica, foi o que produziu o estado de mal-estar da crise européia. A respeito podemos ver que hoje o desemprego na Grécia é 25,8%, na Espanha 23,9%, na Itália 13,4% e na França 10,3%.

O tema pendente então é definir qual é a política para conseguir a redução do gasto e ainda possibilitar o pagamento de uma dívida que não implique na quebra do sistema bancário. Em um recente artigo, Paul Krugman reconheceu o fato de que na Grécia o processo de austeridade acordado com o FMI, o BCE e a Comissão Européia ignorou que teria um efeito negativo sobre a renda e o emprego, e que o povo grego está pagando o preço dessa ilusão da elite. Porém, uma vez que aceitamos que a causa da crise foi o aumento inusitado do gasto público, a pergunta que Krugman não responde é qual é então a política a seguir.

Hoje já nos encontramos ante o fato sem precedentes de que o FMI recomenda à União Européia uma maior inflação para conseguir resolver a presente crise. Até há muito pouco, toda a política do FMI era conseguir o equilíbrio monetário, baseado na teoria quantitativa do dinheiro e evitar a inflação. A idéia que compartilho aparentemente é reduzir a dívida pública em termos reais e evitar a quebra do sistema bancário. Para conseguir esse objetivo não há outra solução que os países da União Européia saiam do euro e desvalorizem suas próprias moedas.

No que se refere à necessidade de reduzir o gasto, minha proposta é que não se faça de imediato em termos nominais. A política a seguir seria reduzir os impostos, cujo atual nível implica a violação do direito de propriedade, e assim conseguir um maior investimento e um maior crescimento. A redução dos impostos, ao mesmo tempo em que se mantém o nível do gasto em termos de moeda corrente, determinaria um maior déficit fiscal e a inflação recomendada pelo FMI. A conseqüência seria a redução do gasto e da dívida em termos reais. Por sua vez, a maior taxa de crescimento determinaria do mesmo modo uma redução do gasto e da dívida em relação ao PIB.

Conseguido esse processo em uma primeira instância, deve ser seguido por uma política fiscal adequada de redução do Estado na economia, o que provocaria uma vez mais um maior crescimento econômico na União Européia. Por tudo o que foi dito anteriormente, é evidente que o problema da Europa não é a Grécia senão da União Européia, inclusive a Alemanha, por mais que este país seja atualmente o que apresenta um menor desequilíbrio, não obstante manter um gasto público de 44% do PIB. Em função dessa posição relativa, a Srª Merkel propõe a austeridade à qual se opõe toda a esquerda e a chamada direita européia.

A solução ao problema europeu passa inexoravelmente pela decisão de abandonar o socialismo que, como bem disse Thomas Sowell: “Os fracassos do socialismo são tão evidentes que somente podem ser ignorados pelos intelectuais”. E eu acrescentaria, e pelos políticos, pois é evidente que a demagogia é que leva ao poder. Assim, na suposta busca pela igualdade se produz a desigualdade política e econômica, não como conseqüência do aumento da rentabilidade do capital, senão da corrupção que impera no Estado. Mas, não obstante essa realidade, hoje aparentemente o livro mais popular é “O capitalismo do Século XXI”, escrito pelo economista francês Thomas Picketty, no qual ele propõe que o aumento da taxa de retorno do capital determina a redução da taxa de crescimento econômico e, conseqüentemente, uma maior desigualdade econômica. Estas propostas decididamente são populares, pois como disse Aristóteles, “os pobres sempre vão ser mais que os ricos”. A realidade é que quando cai a rentabilidade do capital se reduz o investimento e conseqüentemente a taxa de crescimento. Está na hora de a Europa tomar consciência de que sua crise é a crise do socialismo.
Por: Armando Ribas Tradução: Graça Salgueiro
Do site: http://www.midiasemmascara.org

domingo, 15 de fevereiro de 2015

ESQUERDA E DIREITA SEGUNDO ROTHBARD

“Aqueles que desistiriam da liberdade essencial para comprar um pouco de segurança temporária não merecem liberdade nem segurança.” (Benjamin Franklin)

O uso de rótulos objetivando simplificar a posição política de um grupo pode gerar muita confusão. Afinal, expressar em uma única palavra todo tipo de crença defendida por um partido ou doutrina é tarefa árdua, que muitas vezes acaba lançando uma névoa nos olhos das pessoas em vez de clarear sua visão. Assim, coisas absurdas ocorrem, como colocar Hitler e Stalin em espectros políticos opostos, aproximando Hitler de Mises em vez de Stalin, somente por conta do rótulo “direita” e “esquerda” criado. Tentando melhorar a compreensão sobre tais conceitos, Murray Rothbard escreveu um pequeno livro chamado justamente Esquerda e Direita, no qual ele fornece instrumentos para dissipar a confusão gerada pelas nomenclaturas.

Logo no começo, Rothbard faz uma distinção clara entre conservadores e libertários, mostrando que os primeiros sempre se caracterizaram pelo pessimismo quanto às suas perspectivas de longo prazo, enquanto a “atitude adequada ao libertário é a de inextinguível otimismo quanto aos resultados finais”. Para ele, o “erro do pessimismo é o primeiro passo descendente na escorregadia ladeira que leva ao conservantismo”.

A Velha Ordem, que Rothbard entende como sendo a forma do feudalismo ou do despotismo oriental, caracterizado pela tirania e exploração, é ainda o grande e poderoso inimigo da liberdade. O capitalismo floresceu mais cedo e com maior eficácia precisamente onde o Estado central era fraco ou inexistente. Ele cita como exemplo as cidades italianas e a Holanda do século XVII. A Velha Ordem teve seu domínio abalado pela expansão da indústria e do comércio, a sociedade do status deu lugar, em parte, à “sociedade do contrato”.

Surgiram, nesse contexto, duas grandes vertentes políticas na Europa, centradas nesse novo fenômeno revolucionário. De um lado, o liberalismo, com a esperança, o radicalismo pela liberdade, a defesa do progresso da humanidade. Do outro, o conservantismo, o partido da reação, que almejava restaurar a hierarquia, o estatismo, a teocracia, a servidão e a exploração de classes da Velha Ordem. Uma vez que a razão estava do lado dos liberais, os conservadores “turvavam a atmosfera ideológica apelando para o romantismo, a tradição, a teocracia e o irracionalismo”. Quem compreendeu essa distinção foi Lord Acton, que escreveu que “o liberalismo deseja aquilo que deve ser, sem levar em conta o que é”. Para ele, “o liberalismo é em essência revolucionário”.

Para Rothbard, os socialistas estavam divididos, no começo, entre conservadores autoritários, que glorificavam o estatismo e o coletivismo, e os liberais, que queriam destruir o aparelho do Estado. Ao rejeitar a propriedade privada, entretanto, e especialmente o capital, os socialistas tornavam-se presas de uma contradição crucial: se o Estado deve desaparecer após a revolução, como poderá então o “coletivo” gerir sua própria propriedade, sem que ele próprio se transforme num gigantesco Estado de fato? Esta aversão ao capital e à propriedade privada afastou esses socialistas dos libertários, que enaltecem a função tanto do capital como da propriedade privada para a garantia da liberdade.

O fascismo e o nazismo, segundo Rothbard, representaram o ápice alcançado, em alguns países, “pela guinada moderna rumo ao coletivismo de direita no âmbito dos negócios internos”. Para o autor, portanto, há uma clara distinção entre comunismo e fascismo: enquanto o primeiro desalojou e destronou de modo implacável as elites dominantes estabelecidas, o último consolidou no poder as classes dominantes tradicionais. O fascismo foi um “movimento contra-revolucionário, que cristalizou um conjunto de privilégios de monopólio sobre a sociedade”.

Em seguida, Rothbard analisa o New Deal americano, após a grande depressão, mostrando que tal programa não tinha nada de revolucionário ou progressista, no sentido libertário. Na verdade, era um programa coletivista, com base no planejamento central do Estado. Entre seus componentes estavam a criação de uma rede de cartéis compulsórios para a indústria e agricultura, a expansão de crédito pelo governo, a elevação artificial de salários, a regulamentação governamental etc. O New Deal não significou, resume Rothbard, “uma ruptura qualitativa com o passado dos Estados Unidos”. Foi uma simples extensão quantitativa da teia de privilégios concedidos pelo Estado. Nos aspectos econômicos, ele foi muito parecido com o nazismo, onde o governo controlava praticamente tudo. Ambos foram contrários ao ideal dolaissez-faire, defendido pelos libertários.

Com o aumento da competição livre, algumas empresas buscam abrigo no Estado, pregando proteção através de tarifas e monopólios. Como lembra Rothbard, “o privilégio de monopólio só pode ser criado pelo Estado, não podendo resultar de operações do mercado livre”. Este é um fato não apenas ignorado atualmente, mas invertido, já que muitos culpam o livre mercado pela existência de monopólios, e demandam a intervenção estatal para atacar este mal. É como defender o uso de sanguessugas para a cura da leucemia. Deve ficar bem claro que o libertário combate o mercantilismo com toda a sua força.

Lutar contra os grilhões da burocracia centralizada, a educação uniforme do povo e a brutalidade e opressão exercidas pelos agentes subalternos do Estado, eis o que motiva os libertários na busca pela liberdade. Nesta trajetória, os reacionários que buscam um retrocesso à Velha Ordem estão fadados ao fracasso. Para tanto, a principal tarefa do libertário é “desvencilhar-se de seu desnecessário e debilitante pessimismo”. Os rótulos de “esquerda” e “direita” podem confundir mais que esclarecer nesse caso. Existem aqueles que lutam pela liberdade individual, pelo progresso, pelo avanço. E existem aqueles que criam obstáculos a isso, defendendo o retrocesso, o coletivismo, o resgate da Velha Ordem. Os verdadeiros defensores da liberdade irão triunfar no final das contas.

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

Nota do Autor: hoje em dia vejo com muitas ressalvas a postura libertária e revolucionária de Rothbard e seus seguidores. Vale notar que o tipo “conservador” atacado no livro e na resenha não é o que chamo de “boa estirpe”, da tradição britânica que aceita mudanças e tenta preservar o que for de legado positivo, e sim os mais reacionários que idealizam um passado inexistente e rejeitam qualquer mudança social. Rothbard tem coisas interessantes, mas precisa ser lido com muita cautela. Caso contrário, acaba fomentando um lado jacobino nos leitores, especialmente nos mais jovens e idealistas.
Por: Rodrigo Constantino 






sábado, 14 de fevereiro de 2015

O QUE PRETENDE MOSCOU?

“Quando discutia com os seguidores de Dugin na internet em 1998, eles mandavam uma enxurrada de e-mails dizendo ‘Morte nuclear à América’. Naqueles dias tratava-se de uma turma minúscula e insignificante. Hoje eles são os mais influentes ideólogos da Rússia.”


Rússia e Irã assinaram um acordo de cooperação militar. Por que eles fizeram isso agora?

No artigo intitulado “General russo alerta para Terceira Guerra Mundial e fala dos planos nucleares para o mundo” lemos que os russos estão envolvidos em projetos conjuntos de defesa com China, Índia e outros países. O Coronel-General Leonid Ivashov é citado no Pravda dizendo que os EUA não fizeram “upgrade de um único míssil balístico e tampouco construíram novos”. Ele gabou-se da vantagem nuclear russa: “A situação mudou drasticamente e nós estamos à beira de uma guerra — e não uma fria, mas quente. Por conseguinte, a Rússia hodierna está, antes de todos, empreendendo esforços para reconstruir a capacidade defensiva das forças armadas e mudar a doutrina militar”.

Abordando assunto similar, na semana retrasada um analista ucraniano comentou em privado as alegações de Pavel Gubarev (no leste ucraniano) de que o homem de Putin na Chechênia, Ramzon Kadyrov, estava por trás dos ataques terroristas na França: “Se Gubarev diz que Kadyrov está envolvido com terrorismo na França, provavelmente é verdade”. Ele então acrescentou posteriormente: “A Rússia está em velocidade máxima com seu modelo de ameaça bélica”.

Eu disse ao meu colega ucraniano: “Mas Gubarev é homem de confiança de Moscou. Ele é um dos líderes separatistas. Por que ele deduraria Kadyrov — outro de confiança de Moscou?”

O ucraniano respondeu: “Porque essa é a nova estratégia russa. Eles não estão se escondendo mais e eles não ligam mais se as pessoas sabem. Não sou eu quem diz isso. Li a mesma coisa no blog de Illarionov. A fraqueza é associada ao fingimento. Se eles vão enfrentar o Ocidente eles precisam parar de fingir. E é assim que eles mostram suas garras. Eles abrem a grande boca para que vejamos suas presas. Eu sei disso, posso sentir. Recentemente, quando o correspondente da BBC perguntou sobre a prova que a OTAN tem que os russos derrubaram o avião da Malaysian Airlines, um oficial russo disse ‘Tudo isso é mentira, uma fabricação da OTAN.’ E assim eles estão se colocando do lado da Coréia do Norte. ‘Estamos cercados’ dizem. ‘Somos o único povo bom do planeta. O mundo todo está contra nós, exceto a Bielorrússia e o Cazaquistão’. É o que eles dizem”.

Perguntei o que motivava os líderes russos.

Meu colega ucraniano respondeu: “Quando discutia com os seguidores de Dugin na internet em 1998, eles mandavam uma enxurrada de e-mails dizendo ‘Morte nuclear à América’. Naqueles dias tratava-se de uma turma minúscula e insignificante. Hoje eles são os mais influentes ideólogos da Rússia.”

Meu amigo ucraniano diz que há um rumor em Moscou. Trata-se de uma guerra nuclear em junho. Não há como confirmar esses rumores. Já ouvimos esses rumores antes — como o rumor de uma jovem russa se escondendo na América Latina. O pai dela era um diplomata russo que mandou-a secretamente para longe antes de embarcar em uma perigosa viagem para alertar o Ocidente. Supõe-se que ele foi morto antes que esse alerta fosse dado. Ele havia sido parte de um time secreto que negociava com oficiais [chineses?] do Extremo Oriente, ou algo do tipo. Ele havia dito à sua filha que sob condição nenhuma viajasse para os Estados Unidos, pois os americanos estavam marcados para morrer. De outra fonte russa eu ouvi sobre os futuros planos de guerra da Rússia. Um ex-militar russo disse que após a derrota dos Estados Unidos, a Rússia pegaria para si o Alaska e partes do Canadá, enquanto a China ocuparia os demais 48 estados.

Você acha uma fantasia absurda?

Seria, se não fosse o fato de que há um discurso secreto proferido em 2005 pelo Ministro da Defesa chinês, Chi Haotian, dizendo que seu plano era aniquilar os americanos. Chi diz que “Na história chinesa das substituições das monarquias, o impiedoso sempre ganhou e o benevolente sempre fracassou”. Mais adiante ele afirmou: “De fato é brutal matar cem ou duzentos mulhões de americanos. Mas esse é o único caminho que assegurará o século chinês; um século em que o PCC [Partido Comunista Chinês] dominará o mundo. Nós, como revolucionários humanitários, não queremos mortes. Mas se a história nos confrontar com a escolha entre a morte de chineses ou a morte de americanos, escolheremos a segunda opção, pois para nós é mais importante salvaguardar as vidas chinesas e a vida do nosso Partido”.

Que idealista! Que humanitário! O benevolente, claro, “sempre fracassa”. Tal é a brutalidade do idealismo chinês. É uma pena que nossos ideais e utopias continuam em sua maioria irrealizados, enquanto os horrores da inumanidade do homem preenchem as páginas da história desde os escritos de Heródoto até o New York Times de ontem. E aqui temos a explicação completa, direto da fonte primária.

Por que deveríamos acreditar seriamente que alguém pretende assassinar em massa o povo americano? Essa é a questão que apresentamos diante das palavras de Chi. Por que os líderes russos ou chineses levariam em consideração a matança de 100 ou 200 milhões de americanos? Respondo essa questão com outra questão. Você não leu a história que Heródoto descreveu a fundação do Império Persa, rodeada de traições e sangue derramado? Você não leu a história de Tucídides que conta o Diálogo Meliano onde os atenienses falam de cenários de poder bruto como forma de exterminar a população masculina de Melos? Essas coisas por acaso não aconteceram? Será possível que jamais acontecerão de novo?

Você poderia rir com desdém, mas é a lei do mais forte.

Acreditar que isso jamais se repetirá é acreditar no equivalente histórico ao coelhinho da Páscoa. Para acreditar nisso a pessoa precisa assistir muita televisão americana, onde os “mocinhos” sempre ganham. Talvez eles ganhem num sentido mais extenso (i.e. metafisicamente), mas não em termos históricos. Ser bom certamente era de grande conforto para Sir Thomas Moore quando ele subiu o cadafalso. Ser bom era talvez um grande conforto para um pequeno punhado das incontáveis vítimas de Stálin. Mas ser bom não é completamente suficiente para a salvação deste mundo — a menos que por “bom” queiramos dizer a “virtude” descrita por Maquiavel (i.e. ser impiedoso e mau porque os outros são impiedosos e maus).

É infantil acreditar que nossas boas intenções nos salvarão das bombas atômicas russas e chinesas. É infantil acreditar que nossas boas intenções nos protegerão da próxima onda de terrorismo islâmico. Ficamos tão fracos e tão ingênuos a ponto de acreditar que os mansos herdaram a Terra e que a implacável ânsia de poder é coisa do passado? A ânsia de poder foi, no final das contas, o romance dos assassinos em massa da história. Foi o romance dos reis persas e de Alexandre O Grande. Foi o romance de Gaius Julius César e da maior parte daqueles que o sucederam. Sim, história é um assunto consternador cheio de ações maldosas em nome do poder. Você não leu sobre o corte da cabeça e das mãos do estadista romano Marcus Cícero, cujos membros foram parar na Rostra no Forum Romanum? E o executor de Cícero por acaso não era o tribuno militar Popílio, que outrora havia sido defendido eloquentemente por Cícero na corte? E o próprio traidor de Cícero não foi levado à ex-esposa de Cícero que forçou o traidor a cortar e comer partes assadas do seu próprio corpo?

Não se iluda achando que a história é o enredo feito para o bem triunfar sobre o mal. Essa era a propaganda da última guerra e será a propaganda da próxima, independente de qual lado ganhe. Já hoje, um lado está começando a contar sua história antes dos demais (para o seu próprio povo). Veja a televisão russa que justifica a “morte nuclear à América”. Veja também o que estão fazendo os líderes russos. Rússia e Irã assinaram um acordo de cooperação militar. Por que eles fizeram isso agora?

Considere o líder da América, o Presidente Barack Obama. Recentemente ele ignorou o Primeiro Ministro de Israel para poder encontrar uma mulher que tornou-se famosa banhando-se de Fruit Loops e leite (não, não estou inventando). Obama estava muito ocupado para Netanyahu, mas não tão ocupado assim para a mulher do Fruit Loops. Isso é o tipo de coisa importante que serve para ver que tipo de liderança temos. É importante calcular nossas chances — não em termos de mísseis, mas de estupidez. Coréia do Norte, China e Irã estão se preparando para a guerra. Apenas nós não conseguimos ver tão claramente a preparação deles da mesma forma que vemos a preparação russa. Sim, a Rússia lidera o bando e o bando está determinado a segui-la. Evidentemente o ditador chinês ainda finge que não apoia Coreia do Norte e Rússia. Devemos acreditar nele? Costumávamos acreditar nas mentiras russas. Hoje mal conseguimos acreditar nos nossos ouvidos quando ouvimos que os russos gabam-se da sua força e da nossa fraqueza. Estariam eles se gabando se estivessem incertos dos seus aliados?

O homem prudente procuraria meios de se defender. O bravo homem falaria verdadeiramente sobre o perigo que se aproxima. O homem justo não mataria o mensageiro que disse que a festa acabou e que o inimigo está nos portões (e já entrou). E last but not least, o homem moderado não teria problemas em aceitar que a festa já acabou.

Contudo não vejo homens virtuosos no comando da América. Não vejo homens prudentes ou bravos ou justos ou moderados. Vejo homens “bem-sucedidos” e ricos no pleno auto-engano. Esses homens não são “bons” ou inocentes em qualquer sentido. Eles não possuem discernimento porque eles são vazios. É isso que fez com que eles tapassem o sol com a peneira. Eles não estão ancorados na virtude. Eles estão à espreita e sem porto seguro.

O Gen. Chi Haotian disse que na história chinesa “o impiedoso sempre ganhou e o benevolente sempre fracassou”. Seu sistema de crenças é o oposto ao de Deus; isto é, a pervertida fé da “ânsia de poder”. Essa é a fé dos Grandes e Poderosos. Esse tipo de gente prevalece em Beijing e Moscou, Pyongyang e Teerã. Talvez até mesmo em Washington e Bruxelas.

Edmund Burke disse: “A única coisa necessária para o triunfo do mal é que o homem de bem não faça nada”. Mesmo se houver homens de bem, a intervenção deles não é garantia de vitória da boa causa. Ela garantiria, entretanto, um tipo de imortalidade. E isso é algo a se contemplar.
Por: Jeffrey Nyquist   http://jrnyquist.com  Tradução: Leonildo Trombela Junior






sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

'MADE IN BRASIL"

No final de 2013, muito se falava sobre a possibilidade da chamada "tempestade perfeita", entendida à época como a combinação profana do rebaixamento da nota da dívida brasileira com o aumento das taxas de juros nos EUA.


Segundo o ex-ministro Delfim Netto, em tal cenário teríamos "uma rápida elevação da taxa de juros no mundo, uma mudança dos fluxos de capitais, um ajuste instantâneo e profundo da nossa taxa de câmbio, uma redução do crédito bancário, uma queda dramática da renda real dos trabalhadores e a volta (...) de taxas de juros reais aos absurdos níveis com que vivemos durante tantos anos, acompanhados por um aumento do desemprego".

Embora a nota da dívida tenha sido rebaixada, não chegamos a perder (ainda!) o "grau de investimento", nosso atestado de bons pagadores. Por outro lado, em que pesem os sinais de recuperação cada vez mais evidentes da economia americana, como mostrado no mais recente relatório do mercado de trabalho, as taxas de juros (no caso para aplicação nos títulos de dez anos do Tesouro) se encontram cerca de um ponto percentual mais baixas do que eram à época, na casa de 1,80% ao ano. A verdade é que essa temida "tempestade perfeita" (ainda) não ocorreu.

No entanto, à falta da ajuda meteorológica estrangeira o governo, com sua competência habitual, tratou de criar a versão brasileira desse desastre climatológico-econômico.

O consenso entre os economistas que contribuem para a pesquisa Focus, do BC, aponta para crescimento nulo em 2015, com a inflação superando 7%, e isso num cenário que não contempla racionamento de energia e água (ainda; perdão pela repetição do advérbio).

Assim, o mercado de trabalho, que não foi bem do ponto de vista de geração de empregos em 2014, deve provavelmente ter desempenho ainda pior em 2015. Nesse contexto, é difícil imaginar que a taxa de desemprego vá permanecer tão baixa quanto nos últimos anos.

É tentador atribuir esse quadro desolador às políticas adotadas no período mais recente e não tenho a menor dúvida de que economistas já conhecidos por seu baixo apego à honestidade intelectual não hesitarão em fazer exatamente isso. Aliás, não parece ser outra a motivação do manifesto "heterodoxo" publicado na semana passada.

A verdade, contudo, é que a "tempestade perfeita" vem sendo gestada domesticamente há anos, mas ganhou velocidade do fim de 2014 para cá.

Do lado da política macroeconômica, a irresponsabilidade foi a norma. A incapacidade de reconhecer que a desaceleração da economia brasileira resultava essencialmente de limitações do lado da oferta levou a políticas de aumento sem precedentes do gasto governamental, assim como ao desmonte da estrutura institucional que impunha alguma disciplina ao setor público. A Lei de Responsabilidade Fiscal foi devidamente imolada no altar da "nova matriz macroeconômica".

Da mesma forma, o descaso com a inflação ficou evidente na condução desastrada da política monetária de 2011 para cá, também implicando considerável retrocesso institucional.

Tão ou mais importante, porém, foi a deterioração da política microeconômica. Retomando velhos vícios no que se refere à intervenção no domínio econômico, o governo desarticulou setores importantes, reduzindo ainda mais o ritmo de expansão da produtividade, agravando o problema do baixo crescimento.

O resultado dessas políticas não poderia ser diferente do observado: estagnação, inflação acima da meta, deficit externos elevados e dívida pública crescente, agravados agora pela gestão desastrosa tanto da Petrobras quanto do setor energético, supostamente áreas de especialidade da presidente.

A "tempestade perfeita" é apenas o ponto culminante dos erros do governo, cuja responsabilidade cabe igualmente aos economistas que não só aplaudiram a política econômica da presidente mas também pediram bis e agora tentam desajeitadamente fingir que nada têm a ver com o problema. 
Por: Alexandre Schwartsman  Publicado na Folha de SP



quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O NOVO IMBECIL COLETIVO

Quando entre os anos 80 e 90 comecei a redigir as notas que viriam a compor O Imbecil Coletivo, os personagens a que ali eu me referia eram indivíduos inteligentes, razoavelmente cultos, apenas corrompidos pela auto-intoxicação ideológica e por um corporativismo de partido que, alçando-os a posições muito superiores aos seus méritos, deformavam completamente sua visão do universo e de si mesmos. Foi por isso que os defini como “um grupo de pessoas de inteligência normal ou mesmo superior que se reúnem com a finalidade de imbecilizar-se umas às outras”.

Essa definição já não se aplica aos novos tagarelas e opinadores, que atuam sobretudo através da internete que hoje estão entre os vinte e os quarenta anos de idade. Tal como seus antecessores, são pessoas de inteligência normal ou superior separadas do pleno uso de seus dons pela intervenção de forças sociais e culturais. A diferença é que essas forças os atacaram numa idade mais tenra e já não são bem as mesmas que lesaram os seus antecessores.

Até os anos 70, os brasileiros recebiam no primário e no ginásio uma educação normal, deficiente o quanto fosse. Só vinham a corromper-se quando chegavam à universidade e, em vez de uma abertura efetiva para o mundo da alta cultura, recebiam doses maciças de doutrinação comunista, oferecida sob o pretexto, àquela altura bastante verossímil, da luta pela restauração das liberdades democráticas. A pressão do ambiente, a imposição do vocabulário e o controle altamente seletivo dos temas e da bibliografia faziam com que a aquisição do status de brasileiro culto se identificasse, na mente de cada estudante, com a absorção do estilo esquerdista de pensar, de sentir e de ser – na verdade, nada mais que um conjunto de cacoetes mentais.

O trabalho dos professores-doutrinadores era complementado pela grande mídia, que, então já amplamente dominada por ativistas e simpatizantes de esquerda, envolvia os intelectuais e artistas de sua preferência ideológica numa aura de prestígio sublime, ao mesmo tempo que jogava na lata de lixo do esquecimento os escritores e pensadores considerados inconvenientes, exceto quando podia explorá-los como exceções que por sua própria raridade e exotismo confirmavam a regra.

Criada e mantida pelas universidades, pelo movimento editorial e pela mídia impressa, a atmosfera de imbecilização ideológica era, por assim dizer, um produto de luxo, só acessível às classes média e alta, deixando intacta a massa popular.

A partir dos anos 80, a elite esquerdista tomou posse da educação pública, aí introduzindo o sistema de alfabetização “socioconstrutivista”, concebido por pedagogos esquerdistas como Emilia Ferrero, Lev Vigotsky e Paulo Freire para implantar na mente infantil as estruturas cognitivas aptas a preparar o desenvolvimento mais ou menos espontâneo de uma cosmovisão socialista, praticamente sem necessidade de “doutrinação” explícita.

Do ponto de vista do aprendizado, do rendimento escolar dos alunos, e sobretudo da alfabetização, os resultados foram catastróficos.

Não há espaço aqui para explicar a coisa toda, mas, em resumidas contas, é o seguinte. Todo idioma compõe-se de uma parte mais ou menos fechada, estável e mecânica – o alfabeto, a ortografia, a lista de fonemas e suas combinações, as regras básicas da morfologia e da sintaxe -- e de uma parte aberta, movente e fluida: o universo inteiro dos significados, dos valores, das nuances e das intenções de discurso. A primeira aprende-se eminentemente por memorização e exercícios repetitivos. A segunda, pelo auto-enriquecimento intelectual permanente, pelo acesso aos bens de alta cultura, pelo uso da inteligência comparativa, crítica e analítica e, last not least, pelo exercício das habilidades pessoais de comunicação e expressão. Sem o domínio adequado da primeira parte, é impossível orientar-se na segunda. Seria como saltar e dançar antes de ter aprendido a andar. É exatamente essa inversão que o socioconstrutivismo impõe aos alunos, pretendendo que participem ativamente – e até criativamente – do “universo da cultura” antes de ter os instrumentos de base necessários à articulação verbal de seus pensamentos, percepções e estados interiores.

O socioconstrutivismo mistura a alfabetização com a aquisição de conteúdos, com a socialização e até com o exercício da reflexão crítica, tornando o processo enormemente complicado e, no caminho, negligenciando a aquisição das habilidades fonético-silábicas elementares sem as quais ninguém pode chegar a um domínio suficiente da linguagem. 

O produto dessa monstruosidade pedagógica são estudantes que chegam ao mestrado e ao doutorado sem conhecimentos mínimos de ortografia e com uma reduzida capacidade de articular experiência e linguagem. Na universidade aprendem a macaquear o jargão de uma ou várias especialidades acadêmicas que, na falta de um domínio razoável da língua geral e literária, compreendem de maneira coisificada, quase fetichista, permanecendo quase sempre insensíveis às nuances de sentido e incapazes de apreender, na prática, a diferença entre um conceito e uma figura de linguagem. Em geral não têm sequer o senso da “forma”, seja no que lêem, seja no que escrevem.

Aplicado em escala nacional, o socioconstrutivismo resultou numa espetacular democratização da inépcia, que hoje se distribui mais ou menos equitativamente entre todos os jovens brasileiros estudantes ou diplomados, sem distinções de credo ou de ideologia. O novo imbecil coletivo, ao contrário do antigo, não tem carteirinha de partido. 
Por: Olavo de Carvalho Do site: http://www.olavodecarvalho.org
Diário do Comércio, 30 de outubro de 2012 




terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

AMENIZANDO AS PERVERSIDADES POR MEIO DE FIGURAS DE LINGUAGEM

Um dos mais ardilosos truques criados pelos defensores de políticas socialistas foi o de recorrer a expressões aparentemente nobres utilizadas para conferir uma aura de legitimidade moral a atos essencialmente maléficos. Assim, confiscar a propriedade alheia e espoliar o dinheiro de terceiros passou a ser chamado de "espalhar a riqueza", "redistribuir a renda", "cuidar dos menos afortunados", e "atender aos desejos da maioria".


Façamos um experimento mental para ver se você aprova um ato essencialmente criminoso.

Imagine que haja várias viúvas já idosas em sua vizinhança. Elas não têm a aptidão física para fazer faxina em suas casas, limpar suas janelas, cozinhar e efetuar outras tarefas domésticas. Tampouco têm elas meios financeiros para contratar alguém para ajudá-las. 

Eis uma pergunta que tenho até receio de fazer: você defenderia um decreto governamental que obrigasse algum dos seus vizinhos a efetuar essas tarefas para as viúvas?

Vou ainda mais adiante: se a pessoa escolhida para obedecer a esse decreto governamental se recusasse a fazê-lo, você apoiaria algum tipo de sanção a ela, como multa, confisco de propriedade ou até mesmo encarceramento?

Tenho a esperança de que a maioria das pessoas iria condenar este decreto estatal. Elas concordariam que se trata de uma espécie de escravidão — mais especificamente, do uso forçoso de uma pessoa para servir aos propósitos de outra.

Agora, será que haveria essa mesma condenação se, em vez de forçar seu vizinho a realmente efetuar as tarefas domésticas para as viúvas, o governo apenas o obrigasse a dar a elas uma determinada quantia monetária mensal? Desta maneira, as viúvas poderiam utilizar esse dinheiro para contratar alguém para efetuar as tarefas domésticas. Por acaso este decreto governamental se difere daquele que obriga alguém a realmente efetuar as tarefas domésticas?

Eu diria que há muito pouca diferença entre os dois decretos. Mudou apenas o mecanismo da servidão. Em ambos os casos, uma pessoa está sendo coercivamente usada para servir aos propósitos de outra pessoa.

Tenho quase certeza de que a maioria dos vizinhos iria querer ajudar essas necessitadas viúvas. Mas também desconfio fortemente que eles considerariam qualquer arranjo que colocasse uma pessoa em uma posição semelhante à servidão algo profundamente ofensivo. 

Por outro lado, caso todos os moradores dessa vizinhança fossem igualmente obrigados a dar esse dinheiro para o governo, que então o repassaria às viúvas, a consciência deles poderia ficar mais amenizada. Este mecanismo coletivo faz com que aquela vítima de escravidão se torne agora invisível, mas não altera o fato de que há uma pessoa sendo forçosamente usada para servir aos propósitos de outra. Ser obrigado a dar dinheiro para o governo simplesmente oculta um ato que, caso fosse praticado de maneira mais explícita, seria considerado profundamente imoral e depravado.

É por isso que o socialismo é maléfico. Ele recorre a meios perversos — confisco e intimidação — para alcançar objetivos que frequentemente são vistos como nobres. Você ajudar uma pessoa necessitada utilizando o seu próprio dinheiro e os seus próprios bens é uma atitude extremamente admirável e digna de louvor. Ajudar uma pessoa necessitada utilizando coerção e espoliando a propriedade alheia é algo perverso, imoral e digno de condenação. 

Tragicamente, grande parte dos ensinamentos em voga, propugnados desde as igrejas até as salas de aula, defendem que o governo use uma pessoa para servir aos propósitos de outra. Os defensores deste arranjo não têm a honra e a coragem de chamá-lo pelo nome correto, e preferem apenas dizer que ser trata de 'caridade' ou de uma 'função social'.

Alguns argumentam que vivemos em uma democracia, e que, na democracia, a maioria decide. Mas será que o mero consenso da maioria faz com que atos que em outras circunstâncias seriam considerados imorais passem a ser morais e perfeitamente aceitáveis? Em outras palavras, se os membros de uma vizinhança fizessem uma votação e a maioria decidisse que um determinado membro desta vizinhança — sob ameaça de punição — deveria efetuar as tarefas domésticas das viúvas, tal votação tornaria todo este arranjo moral?

Chega a ser inacreditável a quantidade de pessoas que ainda aceita o argumento de que, se a vida é injusta, a solução é confiscar a propriedade das pessoas e dar mais dinheiro e mais poder a políticos. É muita sensatez!
Por: Walter Williams, professor honorário de economia da George Mason University e autor de sete livros. Suas colunas semanais são publicadas em mais de 140 jornais americanos.
Tradução de Leandro Roque
Do site: http://www.mises.org.br