domingo, 24 de novembro de 2013

DIÁRIO DA EUROPA

Ah, a Europa: contada ninguém acredita. Confesso que li e ri com o artigo de J.R. Guzzo na "Veja" sobre o projeto "euroflush". O que é isso? 


Simples: a Comunidade Europeia gastou 100 mil euros para determinar que todas as privadas dos países membros só poderão gastar 5 litros nas descargas geradas em caixas. Nos mictórios, será 1 litro. E nas meias-descargas, 3 litros. 

Isso, para Guzzo, é o retrato de um mundo infantil onde, parafraseando Churchill, nunca tantos dependeram de tão poucos para tanta coisa nas suas vidas. 

Mas existe um lado menos hilariante do "projecto europeu": a forma abusiva como Bruxelas, hoje, detém poderes impensáveis há uns anos para determinar o que os estados-membros podem ou não inscrever nos seus orçamentos. 

Espanha e Itália, aliás, foram recentemente repreendidas por não respeitarem os limites de dívida e de défice nos seus orçamentos para 2014. Curioso: eu julgava que essas matérias eram discutidas primeiro nos respectivos parlamentos nacionais. Depois, e só depois, Bruxelas poderia meter o nariz. 

Engano. Antes dos parlamentos, Bruxelas tem direitos especiais que suplantam a soberania das nações. Donde, para que servem os parlamentos nacionais? 

Não admira que, perante esse cenário, a Frente Nacional de Marine Le Pen e o Partido da Liberdade do holandês Geert Wilders tenham anunciado a intenção de formarem uma "aliança histórica" no Parlamento Europeu depois das eleições europeias de 2014. 

A Frente Nacional e o Partido da Liberdade, escusado será dizer, são dois partidos de extrema-direita com elevada popularidade em França e na Holanda - e que podem mesmo conquistar 1/3 dos lugares. E com um objetivo político claro: "destruir o monstro de Bruxelas" por dentro, avisou o sr. Wilders com a moderação que o caracteriza. 

Vem nos livros: em época de crise e quando a soberania das nações é atropelada por burocratas sem rosto, a Europa sempre foi pródiga em produzir estes monstrinhos. 

2. 

Dizem que o mais difícil em literatura é escrever uma boa cena de sexo. Só em literatura? No cinema é a mesma coisa: como filmar o ato sem cair no clichê sentimental - ou na "grotesquerie" pornográfica? 

Abdellatif Kechiche ensina como no seu "La Vie d'Adèle", Palma de Ouro em Cannes em 2013. Assisti ao filme no Lisbon & Estoril Film Festival e pasmei com a inteligência de Kechiche: através de uma história de amor entre duas mulheres - Adèle e Emma - o diretor não apenas revisita os andamentos clássicos de qualquer história de amor (primeiros encontros, primeiros medos, primeiras experimentações) como oferece duas personagens inteiras que, apesar de mundos sociais distintos, se encontram no mesmo mundo do desejo. 

Semanas atrás, escrevi nesta folha um réquiem ao cinema "mainstream" americano por comparação com as séries de tv "Atrações de feira". Gostaria de acrescentar que o réquiem não se estende ao cinema que a velha Europa ainda oferece de vez em quando. 

3.
Portugal joga amanhã com a Suécia. "Jogo importante?", pergunto eu na tabacaria do bairro onde compro jornais todos os dias. Só para provocar, fazer piada, meter conversa. 

O vendedor olha para mim com cara séria. Faz-se um silêncio sepulcral em volta. "Jogo importante?", responde o vendedor, incrédulo, como se eu tivesse insultado a mulher dele. "É para o Mundial, homem", esclarece ele, com um esgar de profunda e indisfarçável náusea. 

Pois é: parece que amanhã, em Estocolmo, o país saberá se, em 2014, vai estar na Copa do Brasil. Porque não estar é já considerado o maior vexame nacional desde, pelo menos, 1808, ano em que a família real fugiu dos exércitos franceses para o Rio de Janeiro. 

As perspectivas não são totalmente más: depois de vencer por 1 a 0 em Lisboa, Portugal só precisa de não perder em Estocolmo. Mas nem isso convence o delicioso fatalismo dos lusos, que dedicam ao assunto uma gravidade digna de um assunto de Estado. 

Então eu pergunto, meio a sério, meio a brincar, o que seria de Portugal se os portugueses dedicassem aos assuntos de Estado propriamente ditos a mesma exigência fanática que devotam à seleção nacional. Sobretudo quando o país quase faliu em 2009, antes de ser salvo pelo FMI. 

O vendedor, uma vez mais, tem resposta pronta para mim: "O mal da nossa política é não ter lá um Cristiano Ronaldo." 

Falou e disse. 

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

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