domingo, 20 de abril de 2014

OS FANÁTICOS DO SECULARISMO

Abomino as demências relativistas que defendem todas as culturas, por mais abjetas que sejam, simplesmente porque são "diferentes".


Mas o meu problema não é apenas com o relativismo. Sinto igual asco com o dogmatismo fanático de quem deseja esmagar qualquer diferença com uma única concepção da Verdade e do Bem.

Um caso talvez ajude a entender o meu asco. Nas últimas eleições municipais em França, a extrema-direita teve votação expressiva: a Frente Nacional de Marine Le Pen, depois de conquistar três cidades em 1995, conseguiu agora 11 prefeituras.

A crise econômica da Europa; o medo dos "imigrantes" que roubam trabalho aos nativos; e uma vetusta tradição autoritária de direita na pátria da "Liberdade, Igualdade, Fraternidade" talvez expliquem esses tristes resultados. Que começam agora a mostrar as suas garras.

Em entrevista recente, Marine Le Pen garantiu que nas cidades onde a Frente Nacional saiu vitoriosa, as escolas terão cardápios únicos, independentemente das restrições alimentares (e religiosas) dos alunos.

Por outras palavras: quando houver porco, os alunos judeus e muçulmanos têm como única opção não almoçar. Ou, melhor ainda, tapar o nariz, violar a consciência e engolir o bicho sem protestar ou vomitar. Justificações para essa intolerância absurda e boçal?

Ironicamente, Marine Le Pen usa um argumentário tipicamente jacobino: porque a religião não pode entrar na esfera pública e, claro, porque é preciso salvar o secularismo da pátria.

Vamos por partes. Nenhuma democracia liberal sobrevive se deixar crescer no seu seio um código cultural e legal que ameace essa mesma democracia liberal. Se um país ocidental aceitar os preceitos da "sharia" (lei islâmica), permitindo que uma mulher muçulmana alegadamente adúltera seja apedrejada até à morte, isso significa o fim do Estado de Direito.

Só que confundir esse perigo com a recusa de alunos judeus e muçulmanos comerem porco não é apenas uma desonestidade intelectual; é uma violência moral que envergonha as democracias liberais. Exatamente como seria uma vergonha se um aluno cristão e profundamente crente fosse obrigado a comer carne de porco em plena Sexta-feira Santa.

Acreditar que o futuro do secularismo está no prato das cantinas escolares é não entender o que significa o secularismo.

E nesse quesito não é apenas Marine Le Pen que chafurda na ignorância. Os seus opositores de esquerda também cometem o mesmo erro ao defenderem uma visão secularista que se faz pelo apagamento radical de qualquer manifestação religiosa em público.

Não vale a pena lembrar os autores clássicos sobre a matéria, como Émile Durkheim, para quem a expressão pública de uma religião é parte da liberdade religiosa que uma democracia liberal deve proteger e garantir.

Basta apenas dizer que a separação entre Estado e Igreja não significa o apagamento da Igreja. Significa apenas que o poder político se rege por princípios laicos, e não religiosos.

Conceder a Deus o que é de Deus e a César o que é de César (ironicamente, um preceito bíblico) é uma mera questão de organização do poder político - e não, como Marine Le Pen e os seus irmãos jacobinos imaginam, colocar César na casa, na dieta e até na consciência de cada um.

Na sua defesa hipócrita e analfabeta do secularismo francês, o que Marine Le Pen e os seus irmãos jacobinos fazem é elevar um princípio político a uma nova forma de religião.

Os Torquemadas do secularismo são os piores inimigos do secularismo.

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Dicionário de Português*:

CINATTI, Rui - O poeta Ruy Cinatti (1915 - 1986) não precisa de grandes apresentações para os portugueses: é seguramente um dos maiores poetas do país no século 20.

Menos conhecido é o Cinatti antropólogo, que na década de 1940 partiu para a colônia de Timor-Leste como secretário do primeiro governador da ilha e aí encontrou a geografia física e emocional para muitos dos seus escritos.

Esses escritos podem ser lidos agora em "Timor-Amor" (Gryphus, 230 págs.), a primeira colectânea de Cinatti no Brasil superiormente organizada e prefaciada por Vasco Rosa. Resumindo, o livro é uma longa declaração de amor ao território e ao seu povo. Uma declaração feita de explorações botânicas, diários íntimos e versos de uma arrasadora e espiritual beleza:

"Hei-de esquecer-me de tudo

que me prende ainda ao futuro.

Hei-de ser, como não fui,

um homem fora do mundo."

O brasileiro Sérgio Vieira de Mello, a quem o livro é dedicado "in memoriam", teria certamente gostado da mais bela homenagem literária que conheço ao país onde ele viveu os seus últimos dias. 
Leitores vários escrevem-me com regularidade, perguntando por livros ou autores portugueses que merecem edição e leitura no Brasil. Este "Dicionário de Português", a partir de hoje, irá procurar responder a todos eles. Com livros, sim, mas também com artes, lugares e prazeres que valem a pena deste lado do Atlântico. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP


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