quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O IMPASSE CONSERVADOR

A pergunta que toda pessoa de sensibilidade conservadora se deve fazer hoje é: "conservar o quê?", uma vez que o mundo de Edmund Burke (século 18), pai do pensamento "liberal-conservative", não existe mais.


O americano Russel Kirk (século 20) se faz pergunta semelhante em sua obra. O mundo americano em que ele vivia, Mecosta, no estado de Michigan, sua pequena cidade, recolhida num paraíso longe da "rat race", também não existe mais. Ou, se existe, não suportaria o impacto de milhões de pessoas querendo viver assim. Ao final, uma vida "recolhida" como esta acaba por ser um artigo de luxo num mundo em que o comum é a "rat race". Tampouco a religião é solução.

Se acompanharmos Kirk, por exemplo, na sua defesa do "espírito conservador", veremos que ele entende o "contrato social" conservador como sendo o seguinte: "a sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram", segundo Burke, claro.

Pessoalmente, não conheço forma mais poética de ver a vida social e histórica, e olha que já li, como diz um amigo meu jornalista, uns dois livros na minha vida.

Temo que esta linda imagem tenha perdido validade porque ela supõe outra ideia: a de que exista uma misteriosa sabedoria na heterogênea experiência humana (Kirk pensa assim), e que esta misteriosa sabedoria está "depositada" na continuidade quase inconsciente da vida. Será?

Temo que seja impossível qualquer "misteriosa heterogeneidade" num mundo como o nosso, afogado no corre-corre utilitarista e narcisista sempre igual. Não vejo retorno possível.

Além disso, o estrago causado pela vida moderna e sua tagarelice digital acaba por nos fazer questionar se há mesmo uma sabedoria na história ou no "povo".

Pelo contrário, e aqui sigo outro autor de sensibilidade conservadora, Nelson Rodrigues (século 20), o mundo moderno deu a vitória aos "idiotas". Acrescentaria, "tagarelas", fazendo uso de uma imagem de outro autor de sensibilidade conservadora, Alexis de Tocqueville (século 19).

Talvez o único argumento possível a favor ainda de alguma sabedoria fosse defender a ideia que a experiência pré-histórica (a violência que sempre retorna) em algum momento se imponha e nos cure dos delírios contemporâneos. Mas aí o remédio seria demasiado amargo, não sei se vale a pena.

Por outro lado, a ideia de "hábito", tão afeita a Michael Oakeshott (século 20), se perdeu, uma vez que os hábitos hoje são todos submetidos à lógica da desqualificação do passado. Mesmo a "espontaneidade" de Friedrich Hayek (século 20) não tem mais lugar num mundo que não crê mais na liberdade e autonomia, e prefere a mediocridade da igualdade imposta.

Isaiah Berlin (século 20), e sua defesa da "liberdade negativa" ("live and let live"), me parece também inviável no mundo em que vivemos, no qual, os mecanismos de controle da vida pelo Estado e pelo mercado assumem proporções antes impensáveis.

A ideia de que o Estado "nos deixe em paz" é inviável porque, associado ao mercado e seus mecanismos de produção de riqueza, sem os quais não sobrevivemos num mundo com bilhões de pessoas (muitas delas da tribo descrita pelo Nelson), não há saída a não ser racionalizando cada vez mais a vida cotidiana. Nós mesmos pedimos o controle para que a vida seja segura e "tiremos férias seguras".

O simples fato que optamos pela "felicidade" compreendida como otimização da vida (os utilitaristas como Jeremy Bentham e John Stuart Mill do século 19 venceram) implica um impasse: como resistir ao desejo por um "mundo melhor" pensado como uma sociedade "parque temático" de indivíduos que consomem matéria e espírito ao sabor da moda?

Todavia, não aceito as utopias da esquerda que continuam a prometer uma saída mentindo sobre o custo dela: o autoritarismo centralizado do Estado ou o populismo dos "idiotas" do Nelson mobilizados. Esconder-se na natureza tampouco é possível: todo lugar tem IPTU.

Resta-nos, talvez, a companhia de românticos como Friedrich Nietzsche (século 19) ou Albert Camus (século 20): diante do absurdo, mal-estar e revolta. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

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