quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

OS ESCRAVOS SOMOS NÓS

A TV está ligada. Um sábio fala sobre a ausência de "cultura" no nosso tempo. Explico melhor: o sábio pergunta por que motivo "as massas" não leem mais Tolstói, Dickens, até Joyce. "Vivemos um tempo de desinteresse total pela cultura", diz ele, com repugnância. E conclui: "É o triunfo dos ignorantes!"


Assisto ao espetáculo e penso várias coisas. A primeira, óbvia, é a quantidade de charlatões que hoje falam na TV com ar sério e erudito. Mas a segunda, menos óbvia, resume-se no meu pasmo: "Em que mundo vive essa criatura?" Não, com certeza, no mundo que vejo em volta: um mundo de "escravidão voluntária" sob o chicote metafórico do trabalho. "Escravidão voluntária" não é expressão minha, aviso já. Pertence a Madeleine Bunting, escritora inglesa que editou um livro a respeito. O título é, precisamente, "Willing Slaves" (escravos voluntários) e o objetivo de Bunting é analisar como foi que o excesso de trabalho invadiu e dominou as nossas vidas.

Atenção: Bunting não escreve uma diatribe contra o trabalho, o que seria irracional e infantil. E, para sermos rigorosos, ela não se ocupa daqueles que precisam de trabalhar por motivos de sobrevivência.

O alvo é outro: as classes médias e médias altas que, nas sociedades ocidentais, fizeram do "excesso de trabalho" uma estranha forma de vida –e de estatuto.

Conta Bunting que, nas últimas duas décadas, o declínio histórico nas horas de labuta sofreram uma reversão. Trabalhamos mais do que nossos antepassados próximos. Mas também trabalhamos mais do que nossos antepassados remotos: sim, na Revolução Industrial era possível estar 14 ou 15 horas enfiado numa fábrica insalubre de Manchester ou Liverpool.

Mas essas 14 ou 15 horas são hoje mimetizadas pela incapacidade de separar o trabalho da vida pessoal –uma incapacidade que os mil brinquedos eletrônicos trouxeram às nossas vidas. Estamos sempre ligados, 24 horas sobre 24 horas. Em teoria, um certo nível de bem-estar deveria trazer mais lazer, não menos. Na prática, é o inverso.

E é o inverso porque existe uma segunda observação de Bunting que me parece a mais luminosa de todo o livro: se é verdade que todos os seres humanos precisam de um "sentido" para as suas vidas (obrigado, Viktor Frankl), então o trabalho assume-se hoje como a principal fonte de "sentido" e até de "identidade".

Os nossos antepassados eram capazes de encontrar esse "sentido" na partilha comunitária, na família, na religião, até na política. O trabalho era apenas mais uma cesta onde colocar os ovos da existência.

Hoje, com a atomização crescente dos indivíduos; com a desagregação da família; com o recuo da religião; e com o crescente desinteresse pela política, só resta o trabalho como bússola da nossa patética travessia terrena. Somos o que fazemos. Não somos mais o que somos.

Quais as consequências disso?

Deixo de lado as consequências físicas e psicológicas, embora seja hilariante, tragicamente hilariante, saber que as doenças mentais cavalgam a galope porque, na maioria dos casos, nos estamos simplesmente a matar em prestações. Quando o trabalho é a última boia de salvação, nadamos como desesperados e tememos o naufrágio como nunca.

Também não vou elaborar sobre as consequências políticas que a nossa escravidão representa. Tocqueville já disse o essencial: o desinteresse pela "coisa pública" sempre foi o território preferido de populistas e autoritários.

Fico-me pelo sábio da TV e o seu desprezo pelos "ignorantes". Por que motivo "as massas" não consomem cultura?

De Aristóteles a Josef Pieper, a resposta já foi dada: não existe cultura sem ócio. Isso é válido para os consumidores de cultura; mas é sobretudo válido para os produtores. Com um pedantismo ridículo, podemos perguntar por que motivo ninguém lê mais "Guerra e Paz". Simples: pelo mesmo motivo que ninguém escreve mais "Guerra e Paz".

No século 19, Paul Lafargue, no seu delicioso "O Direito à Preguiça", escrevia que as sociedades antigas tinham ócio porque existiam escravos para todo o serviço. Mas, com intocável otimismo, Lafargue garantia que no futuro os escravos não seriam necessários. A evolução da técnica permitiria libertar os homens para o ócio.

Pobre Lafargue. Mal ele sabia que, nesse futuro, os escravos seriamos nós. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP.

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